DOI
10.11606/issn.2318-8863.discurso.2020.181249
Aristóteles e a necessidade do
conhecimento científico
Lucas Angioni
Unicamp
R E S U MO
ABSTRACT
O artigo discute o sentido exato da tese segundo a qual o objeto do conhecimento científico é necessário. A tese é expressa por
Aristóteles nos Segundos Analíticos, em sua
definição de conhecimento científico. Pela
interpretação tradicional, essa definição
opera com dois requisitos paralelos e independentes entre si, o da causalidade e o da
necessidade. Contra essa interpretação, procuro mostrar, pelo exame de várias passagens
que aludem à definição de conhecimento científico, que o requisito da necessidade especifica com mais exatidão o da causalidade,
pois o que não pode ser de outro modo é a
relação explanatória entre o explanandum e
a causa pela qual ele é o que é.
The paper discusses the exact meaning of
the thesis according to which the object of
scientific knowledge is necessary. The thesis
is expressed by Aristotle in the Posterior Analytics, in his definition of scientific
knowledge. The traditional interpretation
understands this definition as depending on
two parallel and independent requirements,
the causality requirement and the necessity
requirement. Against this interpretation, I
try to show, through the examination of several passages that refer to the definition of
scientific knowledge, that the necessity requirement specifies more exactly the causality requirement: what cannot be otherwise is
the explanatory relation between the explanandum and the cause by which it is
what it is.
PALAVRAS-CHAVE
K E Y WO R D S
Demonstração; Explicação científica;
Necessidade; Causalidade; Essencialismo;
Conhecimento.
Demonstration; Scientific Explanation;
Necessity; Causality; Essencialism;
Knowledge.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
1. Introdução:
Atribui-se a Aristóteles a tese de que o objeto do conhecimento científico é necessário. Também se atribui a Aristóteles a tese de que, para conhecer cientificamente
um objeto qualquer, devemos saber que tal objeto é necessário. Nesse nível de generalidade, a formulação parece captar aquilo que Aristóteles efetivamente disse. No
entanto, o que essas teses querem dizer, exatamente? Como elas deveriam ser parafraseadas e desenvolvidas de modo exegeticamente correto?
A passagem em que Aristóteles parece definir conhecimento científico diz o seguinte:
T “(i) Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, sem mais (e não do
modo sofístico, por um concomitante), (ii) quando julgamos reconhecer, a
respeito da causa pela qual a coisa é, que ela é causa disso, (iii) e que não é
possível que isso seja de outro modo” (b-, minha tradução).
Neste artigo, não discutirei a seção (i) dessa passagem, muito menos o que significa o contraste entre conhecer algo sem mais e conhecer algo do modo sofístico, por
um concomitante1. A passagem, longe de pretender analisar a noção de conhecimento em geral, se propõe a definir a noção estrita de conhecimento científico. No
definiens, duas exigências são apresentadas, nas partes (ii) e (iii) da passagem: o conhecimento científico de X depende de conhecer a causa de X – e Aristóteles enfatiza
que se trata de saber que tal causa é a causa de X —, bem como depende de saber
que “isso” não pode ser de outro modo. A primeira exigência é razoavelmente clara.
Já a segunda suscita duas questões cruciais: primeiro, o que exatamente o pronome
“isso” retoma; segundo, o que exatamente significa a exigência de saber que isso não
pode ser de outro modo. Como o exame dessas duas questões cruciais é determinante para meus propósitos, convém examinar essas exigências com detalhe.
2. Examinando o problema
Assim, conhecer cientificamente X (seja lá o que for X) requer:
A. conhecer a causa pela qual X é;
B. saber que “isso” é necessário (ou seja, não pode ser de outro modo).
(Doravante, para facilitar a fluência do texto, usarei as expressões “exigência A”
e “exigência B” para me referir a essas duas condições expostas em T.)
A exigência B é muito genérica e pode gerar uma série de opções. Generalidade
não implica em falsidade. É certamente verdadeiro que você comeu alimentos no
almoço de hoje. No entanto, responder desse modo não é elucidativo para alguém
—
1
No entanto, a análise de T me obrigará a recuperar algumas coisas sobre esse contraste na parte (i) de T.
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
(sua médica, sua nutricionista etc.) que quer saber precisamente o que foi que você
comeu. Do mesmo modo, a exegese exata do texto de Aristóteles requer saber precisamente o que é que se pretende dizer com a exigência B.
Em primeiro lugar, convém ressaltar que a maior parte das opções interpretativas
toma o pronome “isso” como se referindo à coisa X, ao “pragma” do texto de Aristóteles2. No entanto, “pragma” pode ser intepretado de vários modos: pode ser entendido no sentido vago e abstrato de objeto (por oposição a proposição, e englobando coisas tão distintas como uma espécie natural, o Sol, o triângulo ou deus),
ou pode ser entendido como uma proposição ou estado de coisas, ou, para simplificar
o ponto, como aquilo que precisamente se codifica na conclusão de um silogismo
demonstrativo (cf. b-). Dito isso, as possibilidades para compreender a exigência B seriam, por enquanto, estas duas (B e B):
B. saber que o objeto é necessário (ou seja, não pode ser de outro modo).
Neste caso, a exigência seria equivalente à condição de saber que um dado objeto
de conhecimento científico é necessário no sentido de que existe eternamente e não
muda de propriedades ao longo do tempo — por exemplo, saber que o objeto abstrato triângulo é eternamente do modo como é, não mudando de propriedades ao
longo do tempo.
B. saber que a proposição em questão é necessária (ou seja, é sempre verdadeira
e jamais poderia tornar-se falsa).
Neste caso, a exigência seria equivalente à condição de saber que uma dada proposição é verdadeira necessariamente. No entanto, como todos admitem, a exigência B é embaraçosa. Há razões mais profundas para considerá-la um embaraço
(conforme explorarei na seção ..), mas a razão aceita por todos é que tal exigência,
aos olhos do próprio Aristóteles, seria satisfeita apenas em alguns poucos domínios
— na matemática, na cosmologia e na teologia —, deixando de lado muitos domínios, como o da biologia, nos quais Aristóteles efetivamente produziu investigações
científicas. Assim, muitos intérpretes julgam que B merece uma interpretação por
princípio de caridade, à luz de outras evidências, gerando a seguinte opção3:
—
2
3
Cf. Filopono .; Ross, , p. ; Porchat, , p. ; Barnes, , p. -; McKirahan, , p. ;
Pellegrin, , p. ; Mignucci, , p. ; Bronstein, , p. , . Sobre Filopono, tenho minhas
dúvidas sobre o que exatament Filopono entendeu (cf. .--).
Cf. Ferejohn, , p. ; Bronstein, , p. , n; Mignucci, , p. ; Barnes, , p. , . Há, de
fato, várias evidências para justificar a aplicação do princípio de caridade. Mas ver adiante a distinção entre Q e
Q. Mignucci, argumentou extensamente em favor de considerar as proposições verdadeiras no mais das
vezes como equivalentes a proposições necessárias (eternas). Contra essa posição, ver Judson , p. -.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
B*. saber que a proposição em questão é verdadeira ou necessariamente ou no
mais das vezes.
No entanto, há ainda mais opções de interpretação: o pronome “isso” (“τοῦτο”,
b) pode ser tomado como se referindo à proposição anterior no texto de Aristóteles, qual seja, “que [a causa da coisa] é causa disso” (em Grego, ὅτι ἐκείνου αἰτία
ἐστι).4 Neste caso, o que Aristóteles procuraria expressar é algo bem diverso: o que
não pode ser de outro modo é a relação entre explanans e explanandum, isto é, entre
a causa e o estado de coisas que ela fundamenta ou explica. No entanto, essa opção
ainda é genérica, pois é preciso especificar qual é exatamente a natureza da relação
que não poderia ser de outro modo. Para evitar confusão, já antecipo que defenderei
a opção B, abaixo, mas, para fins de consideração minuciosa das opções disponíveis,
convém examinar passo a passo as consequências de se tomar o referente do pronome “isso” como sendo a relação entre causa e pragma. Poderíamos, ter, ainda, as
seguintes opções:
B. saber que a relação entre causa e pragma não pode ser de outro modo no
sentido (lógico) de que tal relação consiste em uma conseqüência necessária.
Ou seja: dada a causa como conteúdo das premissas, se segue necessariamente a
conclusão que expressa o pragma.
B. saber que a relação entre causa e pragma não pode ser de outro modo no
sentido (metafísico) de que, se a causa está objetivamente dada, não é possível que
o pragma (do qual ela é causa) não esteja conjuntamente dado.
Ou seja: a causa seria um item qualquer que, do ponto de vista metafísico, necessitaria a ocorrência do pragma.
B. saber que a relação entre causa e pragma não pode ser de outro modo no
sentido (explanatório) de que é precisamente aquela causa (e não outra) que explica
apropriadamente o pragma em questão (mas não outro pragma qualquer).
Ou seja: não se trata, neste caso, nem de uma relação de conseqüência lógica,
nem de uma relação de necessitação metafísica, mas de uma relação explanatória.
—
4
Objetar que o pronome “τοῦτο” só pode referir-se a “πρᾶγμα” por razões gramaticais é tão incorreto que
surpreende que opinião tão tacanha se faça presente na discussão acadêmica. Não somente em Grego, mas
também em Português e inúmeras outras línguas, pronomes podem retomar sentenças ou proposições. Para
este caso, ver Angioni a, p. , n; a, p. , n. Que eu saiba, o único intérprete que parece ter
flertado com essa possibilidade – mas de modo lateral, em uma nota de rodapé – foi Lloyd, , p. , n.
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
Ainda que B tenha implicações no terreno da lógica e da metafísica envolvendo a
causa e o pragma, o que B formula é uma exigência explanatória: para tal pragma,
exige-se, precisamente, esta causa (e não outra)5.
3. Duas Questões Distintas
Para prosseguir, é fundamental insistir na distinção entre duas perguntas bem diversas entre si. No que se segue, essa duas questões serão retomadas sob as rubricas
Q e Q:
Q. Quais proposições acima, de B a B, são verdadeiras para Aristóteles nos
Segundos Analíticos (ou em sua obra como um todo)?
Q. Quais dessas proposições, de B a B, a definição de conhecimento científico
em b- (T) pretende captar e expressar?
Confusão entre as questões Q e Q é tão comum quanto desastrosa para a exegese
de Aristóteles. Ainda que relacionadas entre si, as questões são bem distintas. É claro
que, em qualquer definição proposta por Aristóteles, apenas conteúdo verdadeiro
pode ser expresso no definiens, de modo que respostas positivas no âmbito de Q
implicam respostas positivas no âmbito de Q — mas não vice-versa. As questões são
realmente distintas. Definições, para qualquer objeto X, não precisam encapsular tudo
o que é verdadeiro sobre o objeto X. Por exemplo, a definição de ser humano não
precisa conter todas as verdades sobre o ser humano, nem mesmo precisa mencionar
que o ser humano é um mamífero, ou um animal capaz de sorrir etc. Nada é diferente,
quando o X da questão definicional é o conhecimento científico.
Dito isso, podemos oferecer um mapeamento preliminar do debate. Comecemos
pela questão Q, cujo estatuto consiste em saber se Aristóteles, de fato, considerou BB como exigências para o conhecimento científico. Interpretações tradicionais asseveram que as seguintes exigências são tomadas como verdadeiras por Aristóteles: B,
B (bem como B*, que se segue de B, mas não vice-versa), B e, talvez, B. Sobre
B, pode haver mais sutilezas,6 mas meu propósito neste artigo consiste em ressaltar
que a tradição não parece ter nem mesmo sonhado com a possibilidade de considerar
B como uma opção de interpretação, nem mesmo no âmbito da questão Q.
—
5
6
Talvez a sentença que é o referente do pronome “isso” — “ὅτι ἐκείνου αἰτία ἐστι” — pudesse ser mais bem
traduzida assim: “que é disso que ela é causa”. Neste ponto, agradeço Adam Crager, Tim Clarke e Ben Morison por discussões que me ajudaram a aclarar a questão. Ver Ribeiro, , p. -, .
Por exemplo: causas materiais, ou mesmo certas causas finais, não parecem satisfazer B.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
De minha parte, enfatizo que, no âmbito da questão Q, as exigências B, B e
B são verdadeiras, mas B e B são falsas. Não darei atenção central a B neste
artigo. Mais importante para meus propósitos consiste em ressaltar que B é falsa,
devendo ser substituída por B*.
Passemos ao âmbito da questão Q, que considera estritamente aquilo que foi
codificado na definição de conhecimento científico em T. Neste ponto, a quase
unanimidade dos intérpretes defende que a exigência B em T deve ser entendida
em termos de B ou (à luz de outras evidências) B*. Em contrapartida, defendo
que a exigência B deve ser interpretada em termos de B: o que Aristóteles tenta
codificar na definição de conhecimento científico em T é uma exigência sobre adequação explanatória.
Antes mesmo de desenvolver com detalhe minha resposta sobre a questão Q,
convém ressaltar dois pontos de suma importância.
Por um lado, reticências contra B (no âmbito de ambas as questões, Q e Q)
advêm de certa confusão quanto à natureza exata do definiendum em b- (T).
Muitos intérpretes supõem que Aristóteles, em T, está definindo “conhecimento
científico” no sentido que “understanding” tem em discussões epistemológicas contemporâneas, isto é, o domínio sobre um corpo de proposições organizado como
uma disciplina científica.7 É como se as exigências A e B dissessem respeito às condições que alguém deveria satisfazer para ser considerado um “expert”, que domina
uma dada disciplina (um geômetra, por exemplo). No entanto, embora Aristóteles
esteja de fato interessado também nessas questões sobre o que determina uma expertise e o que determina uma disciplina científica organizada como um sistema de
proposições, seu foco exato em T é outro. Em T, Aristóteles está definindo o que
é “conhecer cientificamente cada coisa, isto é, cada explanandum (em um dado domínio)”. As exigências A e B dizem respeito às condições que alguém deveria satisfazer para ter conhecimento científico de um dado explanadum no interior de uma
disciplina (por exemplo, que o atributo R se atribui ao triângulo).
De novo, embora essas duas questões estejam intrinsecamente relacionadas, elas
são distintas. Distinção, como se sabe, não implica independência. Conhecer cientificamente um dado teorema requer certo domínio da disciplina em geral, assim como
o domínio da disciplina em geral requer conhecimento sistemático de um número
significativo de teoremas. Mas, mesmo assim, exigências específicas para se dizer que
—
7
Ver Burnyeat, ; Burnyeat, , p. ; Lesher, ; para “systematic knowledge”, ver Charlton , p. ;
Broadie & Rowe, , p. . Para outra visão, ver Bronstein, , p. .
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
atingimos a explicação última de um dado teorema são diferentes de exigências específicas para se atribuir a alguém um domínio geral sobre a disciplina8. Aristóteles está
preocupado com ambas questões, mas o que ele procura definir em T é o conhecimento científico de um dado explanandum específico. Muitos que resistem contra B
julgam que se trata de uma exigência muito forte (ou mesmo inadequada) para o
conhecimento científico entendido como domínio de uma disciplina — e nisso eles
tem razão, pois uma disciplina exige domínio de diversas outras proposições e procedimentos dedutivos que não envolvem as causas exatamente apropriadas a cada explanandum. No entanto, B não é uma condição para tudo aquilo que compõe o
conhecimento sistemático de uma disciplina. B é uma exigência para o conhecimento científico de um dado explanandum — pois é isto que se procura definir em
T: o conhecimento científico de um dado explanandum específico.
Por outro lado, minha tese em favor de B às vezes encontra resistência porque
julgam, precipitadamente, que ela implica em simplesmente descartar B e, sobretudo, B* — como se eu defendesse que B* fosse uma exigência falsa. A rigor,
descarto a exigência B como realmente falsa — e nisso não estou sozinho.9 Mas
minha tese em favor de B (no âmbito de ambas as questões Q e Q) não é de
modo algum incompatível com aceitar B* no âmbito da questão Q — ou seja,
julgo B* verdadeira em si mesma. Para Aristóteles, ter conhecimento científico de
uma dada proposição envolve, certamente, a exigência de saber que a proposição em
questão é verdadeira ou necessariamente ou no mais das vezes. A dificuldade crucial,
no entanto, consiste em saber se Aristóteles, na definição de conhecimento científico
em T (b-), está expressando B* ou não. Devemos, portanto, insistir muito
na distinção entre as questões Q e Q. Pois uma mesma tese, como B*, pode ser
verdadeira aos olhos de Aristóteles (no âmbito da questão Q) mas não ter sido
expressa em T (no âmbito da questão Q).
4. O requisito da necessidade como adequação explanatória (B5)
Adentrarei, agora, no âmbito da questão Q: entre as cinco opções para compreender a exigência B em T, isto é, entre as proposições B-B, quais delas (ou, no
singular, qual delas) a definição de conhecimento científico em T pretende captar?
—
8
9
Por exemplo: a exigência de que os termos de uma demonstração apropriada sejam coextensivos entre si se
aplica à noção de conhecer cientificamente um dado explanandum (como defendi em Angioni , p. ), mas não se aplica generalizadamente sobre tudo aquilo que constitui uma disciplina – pois nessa disciplina também existem muitas outras coisas, como procedimentos dedutivos não-silogísticos, bem como
aquilo que McKirahan , p. -, chamou de “argumentos de aplicação”.
Cf. Barnes, , p. -; Ferejohn, , p. ; Bronstein, , p. , n.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
Convém ressaltar que B, B e B foram consideradas para mapear o terreno de
modo exaustivo, mas podem ser descartadas sem mais delongas no âmbito da questão Q. Em primeiro lugar, B implica B e de certo modo colapsa em B: o mais
importante, no conhecimento científico, são as proposições que definem ou atribuem propriedades ao objeto X, e o reconhecimento de que X existe necessariamente
pode recuar para o campo das pressuposições de um dado domínio10. Além do mais,
a existência de X interessa a Aristóteles do ponto de vista científico sobretudo o (ou
exclusivamente) quando é analisada em termos da presença de certo atributo em
determinado tipo de sujeito — por exemplo, a existência do trovão é analisada em
termos da ocorrência de certo tipo de ruído nas nuvens. Consequentemente, sentenças como “X existe necessariamente” colapsam — ou melhor, devem ser cuidadosamente analisadas — em sentenças predicativas necessárias, do tipo “P ocorre
necessariamente em S”, “P ocorre necessariamente em X” ou “X ocorre necessariamente em S”11.
Também B pode ser descartada: embora Aristóteles de fato defenda a tese de
que a relação entre causa e pragma deva ser expressa como uma dedução correta, na
qual premissas verdadeiras acarretam a verdade da conclusão, nem por isso procurou
expressar essa exigência em T. Aristóteles está longe de reduzir a noção de conhecimento científico (e, mais especificamente, a noção de demonstração científica) à
noção de dedução correta12.
Também B pode ser descartada: embora Aristóteles de fato defenda a tese de
que a causa, ao menos em alguns domínios importantes, é tal que necessita metafisicamente a ocorrência do pragma, nem por isso procurou expressar essa exigência
em T. A rigor, Aristóteles está comprometido com uma tese ainda mais forte, a de
que causa e pragma são correlatos metafísicos e suas expressões linguísticas (devidamente lapidadas) são coextensivas ou se implicam mutuamente (cf. b-, II.,
ass.)13. No entanto, Aristóteles está longe de reduzir a noção de causa apropriada
à noção de condição que implica mutuamente seu pragma.
Assim, a diferença mais importante no mapeamento das respostas para a questão
Q é a seguinte: enquanto interpretações tradicionais entendem que definição em
—
10
11
12
13
Sobre pressuposições no domínio de uma ciência, cf. b-.
Ver bss. Não preciso entrar nos detalhes dessa análise. Trato disso em Angioni b, p. -.
Ver Almeida, . Convém ressaltar que discordo da interpretação que vê nas “hipóteses” definidas em a
- asserções de existência com a forma “S existe”. Para discussão, ver Gomez-Lobo, e Charles, ,
p. -. Para tratamento detalhado, ver Barnes .
Para discussão, ver Angioni, b, p. -. Entre outros textos, o mais intuitivo para esclarecer esse ponto
é Segundos Analíticos b-b. B entrará em cena, mas como coadjuvante, na análise de T.
Para detalhes, ver Angioni, , p. -; Zuppolini, b, p. -.
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
T expressa as condições A e B (ou B*)14, eu defendo que tal definição expressa as
condições A e B. No entanto, como as questões Q e Q são diferentes, dizer que
a definição em T expressa as condições A e B (no âmbito da questão Q) é compatível com aceitar a tese B* como verdadeira (no âmbito da questão Q). Na minha interpretação, B* é verdadeira: o conhecimento científico sobre X requer saber
que proposições sobre X são verdadeiras ou necessariamente ou no mais das vezes,
bem como requer conhecimento de proposições sobre X que são verdadeiras necessariamente ou no mais das vezes. No entanto, B* não faz parte do conteúdo expresso por Aristóteles na definição de conhecimento científico em T. Essa definição
propõe a exigência B, que diz respeito à adequação explanatória da causa.
5. Remissões de Aristóteles à noção de conhecimento científico
Até este ponto, expus argumentos que já foram desenvolvidos alhures.15 Pretendo
agora me concentrar na seguinte questão: de que modo as remissões de Aristóteles
à definição de conhecimento científico, nos Segundos Analíticos e em outras obras,
favorecem uma ou outra das interpretações mais proeminentes da mesma? Como se
trata de saber quais são, precisamente, as exigências codificadas e expressas nessa
definição (no âmbito da questão Q), a nova questão que acabei de formular equivale a examinar de que modo as remissões de Aristóteles à definição de conhecimento científico contribuem para resolver a questão Q.
Primeiramente, procurarei mostrar que as referências à noção de conhecimento
científico dentro dos Segundos Analíticos confirmam a interpretação em termos de
B. Tais referências se dividem em dois grupos: aquelas que aparentam retomar B
(ou B*), mas, sob melhor análise, confirmam que a noção de relevância explanatória é que está em questão, favorecendo, assim, a interpretação que defende B; aquelas que retomam explicitamente a exigência A, sem nenhuma alusão à exigência B.
Como já me dediquei à primeira parte dessa tarefa em outras ocasiões, nas quais
examinei passagens importantes dos Segundos Analíticos que parecem contar como
evidência em favor da interpretação tradicional, serei breve a esse respeito.
Em segundo lugar, discutirei o significado do seguinte fato: a maior parte das referências à noção de conhecimento científico fora dos Segundos Analíticos não retoma
a exigência B, mas se concentra na exigência A. Há duas aparentes exceções, que são
usualmente apontadas como evidência pela interpretação tradicional: Ethica Nicoma-
—
14
15
Ver, por exemplo, Barnes, , p. -; McKirahan, , p. -; Mignucci, , p. , -; Ferejohn,
, p. ; Bronstein , p. , .
Ver, principalmente, Angioni a; Angioni , p. -; Angioni a, p. ss.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
chea VI.-, Metafísica VII.. A passagem da Metafísica não será examinada neste artigo por razões de espaço. Tal passagem constitui parte da argumentação de Aristóteles
contra alguma versão da teoria platônica das Formas, e uma reconstituição satisfatória
da trama do argumento exige muitos detalhes. Além do mais — e talvez de modo
mais importante — tudo que Aristóteles diz em Metafísica VII. envolve a distinção
entre conhecimento científico e opinião e, por isso, pode receber o mesmo tratamento
que Segundos Analíticos I., que parece discutir essa distinção precisamente em termos
de modalização — como se o conhecimento científico tivesse por objeto predicações
necessárias e a opinião se restringisse a objetos contingentes. Como já tratei com detalhe da distinção entre conhecimento científico e opinião em Segundos Analíticos I.,
omitirei um tratamento detalhado de Metafísica VII. neste artigo, pois julgo que
ambos os textos são suscetíveis às mesmas soluções16.
5.a) Remissões à noção de conhecimento científico nos Segundos
Analíticos
5.a.1) Aparente evidência em favor de B2* confirma B5:
Em Segundos Analíticos I., a-, Aristóteles retoma os termos do requisito B presente na definição de conhecimento científico: “aquilo de que há conhecimento científico, sem mais, não pode ser de outro modo” (cf. b-), e, logo em seguida, conclui:
T “aquilo que se conhece por conhecimento demonstrativo é necessário. É
demonstrativo o conhecimento que possuímos por possuir demonstração. Assim,
a demonstração é um silogismo que procede de itens necessários” (a-).
Por si mesma, a primeira sentença dessa passagem é tão vaga quanto a formulação
encontrada em T, embora a tradição tenha se apressado em dizer que a passagem é
evidência cabal em favor da interpretação em termos de B17.
Um pouco mais adiante nos Segundos Analíticos, o capítulo I. é inteiramente
dedicado a explorar a tese anunciada em I., a saber, que “a demonstração é um
silogismo que procede [ou depende] de itens necessários”. As duas passagens mais
importantes são as seguintes:
—
Ver Angioni a, p. -; b. Para visões diferentes sobre I., ver Fine ; Moss & Schwab (forth.);
Morison (forth.); Peramatzis (forth.).
17
Ver Filopono, .-, .-; Barnes, , p. -; Barnes, b, p. ; McKirahan, , p. -;
Mignucci, , p.-. Ver também Ferejohn , p. , que argumenta em favor de B*. Ross , p.
é neutro, pois repete o mesmo nível de generalidade da letra de Aristóteles. A posição de Porchat, ,
p. , parece envolver B e B ao mesmo tempo.
16
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
T “Visto que o conhecimento demonstrativo provém de princípios
necessários […], e visto que são necessários os atributos que se atribuem às
coisas por si mesmas […], é evidente que o silogismo demonstrativo procede
de itens de tal tipo; pois tudo se atribui ou deste modo, ou por um concomitante, e os concomitantes não são necessários” (b-).
T “se algo está demonstrado, não é possível que seja de outro modo;
portanto, é preciso que tal silogismo proceda a partir de itens necessários. Pois,
a partir de itens verdadeiros, é possível fazer um silogismo mesmo sem demonstrar, mas, a partir de itens necessários, não é possível fazer silogismo a não ser
demonstrando, pois é isso que é próprio da demonstração” (b-).
Intepretar o requisito da necessidade na definição de conhecimento científico
(T) em termos da exigência B é embaraçoso por duas razões principais. A primeira,
que tem uma importância menor, é a seguinte: pela exigência B, apenas algumas
disciplinas, como as matemáticas, a cosmologia e a teologia, mereceriam o título de
“conhecimento científico”, o qual seria denegado a disciplinas que o próprio Aristóteles desenvolveu com esmero, como os diversos ramos da biologia. A tradição
costuma livrar-se desse embaraço por meio de uma hipótese especulativa para a qual
não há nenhuma evidência textual: Aristóteles teria mudado de idéia ao desenvolver
suas explorações no campo da biologia, deixando de lado os exageros contidos nos
Segundos Analíticos18. (A única suposta “evidência” para essa narrativa fictícia seria
Segundos Analíticos I., texto do qual tratarei adiante).
A segunda razão é muito mais importante. Se for intepretado em termos da exigência B (como quer a tradição), o texto T estaria dizendo que qualquer dedução
correta modalizada (isto é, com premissas e conclusão necessariamente verdadeiras)
contaria como uma demonstração. No entanto, há um conjunto robusto de evidências contra essa tese, isto é, um conjunto robusto de evidências contra a redução das
demonstrações a deduções corretas com proposições necessárias19. Em contrapar-
—
Essa é a tônica em LeBlond, ; também há um flerte com essa sugestão em Barnes , p. . Também
Smith, , p. , julga que T opera com uma outra definição de demonstração, independente de T.
19
Sobre a falsidade da redução, ver Barnes, , p. ; Mignucci, , ; Hankinson, , ; Angioni,
a, p. -. O conjunto robusto de evidências contra a redução inclui os seis requisitos das premissas em
b-, a insistência em predicações per se (b-, a-), a exigência de princípios congêneres (b, a-, -) e apropriados aos explananda (b-, a-, b-, b-, a-). É surpreendente que a maior parte dos intérpretes (seguindo o exemplo de Ross, ) não comentam nada sobre T
(ou comentam de modo medíocre, como Filopono, .-. De nada adiante tentar se esquivar do problema
supondo que Aristóteles tem em mente um misteriosa equivalência entre predicação necessária e predicação
per se, como é a sugestão de alguns (cf. Barnes , p. -: “the Posterior Analytics states that holding ‘in
itself’ and holding necessarily are equivalent (A b-).
18
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
tida, se T for interpretado em termos da opção B, há perfeita harmonia na progressão argumentativa pela qual Aristóteles especifica com detalhe aquilo que foi
expresso de modo sumário na definição em T.
Como já tratei desse assunto com detalhe em outras ocasiões, serei muito breve20.
O conjunto robusto de evidências contra essa redução — e, conseqüentemente,
também contra a interpretação do requisito da necessidade em termos de B ou B*
— se concentra nos capítulos I. e I., que contêm passagens que retomam claramente o definiendum de T, que é “conhecer cada coisa sem mais”, isto é, conhecer
cada coisa do modo específico que conta como conhecimento científico. Assim, em
ass., vemos Aristóteles preocupado em estabelecer critérios mais refinados para
decidir “quando se conhece sem mais” — no contexto, “quando se conhece sem
mais por que o atributo R se atribui àquilo a que propriamente se atribui”. Aristóteles está preocupado em refinar tais critérios justamente porque é comum passar
despercebido que uma pretendida demonstração, que satisfaz algumas condições
determinadas (por exemplo, ser uma dedução correta da conclusão), não demonstra
do modo apropriado aquilo que se propôs a demonstrar (a-). Em a-, ele
volta a comentar a questão:
T “É difícil discernir se se conhece ou não. Pois é difícil discernir se
conhecemos pelos princípios de cada coisa ou não (é isto que é, precisamente,
o conhecer). Julgamos conhecer quando possuímos um silogismo a partir de
certos itens verdadeiros e primeiros. Mas não é o caso” (a-).
Trata-se do final de I., capítulo no qual Aristóteles se ocupou em discernir critérios mais refinados para compreender sob quais condições temos conhecimento
científico de um dado explanandum. Assim, em a-, lemos: “não é possível demonstrar cada coisa senão a partir dos princípios de cada uma (quando aquilo que
se quer provar se atribui a cada coisa enquanto ela é ela mesma)”. A exigência de
demonstrar cada coisa pelos princípios de cada uma (enquanto ela é ela mesma) é
exatamente a mesma exigência de adequação explanatória que resulta, em T, das
exigências A e B. Mais adiante no mesmo capítulo, é ainda mais explícita a remissão
à passagem que define conhecimento científico (T): “Conhecemos cada coisa não
por um concomitante quando a conhecemos através daquilo em virtude de que ela é
o caso, a partir dos princípios dessa coisa enquanto ela é ela mesma” (a-).
—
20
Tratei exatamente desse problema com foco em T em Angioni, a. Ver também Angioni, , p. ; Angioni a, p. -.
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
Todos esses textos provenientes dos capítulos I. e I. são extremamente complexos.21 No entanto, todos eles evidenciam a preocupação de Aristóteles em refinar
as condições sob as quais se diz que atingimos conhecimento científico de um dado
explanandum X (para além das condições mais gerais que delimitam em que consiste
a expertise sobre um dado domínio). A estratégia de Aristóteles é múltipla: ele insiste
não somente na coextensão entre os termos de uma demonstração (a-), mas
também em aspectos intensionais, que dependem de noção de predicação per se
(b-; a-)22; ele aponta para o perigo de interpretar erroneamente a exigência de selecionar premissas primeiras e indemonstráveis (b-, a-) —
que era um dos seis requisitos apresentados em b-23. Mas o ponto crucial para
o refinamento de seus critérios consiste na noção de adequação explanatória: a causa
ou princípio para obter a demonstração científica de X deve tomar X enquanto X.
Poder-se-ia dizer que, ao procurar refinar esses critérios, Aristóteles parece concentrado na exigência A. No entanto, interpretação apurada de T, T e outras passagens de I.- e I. mostram que esse esforço em refinar critérios por meio da noção
de adequação explanatória consiste em esforço por elucidar de que modo a exigência
B deve ser entendida24. E é sobretudo com relação a T que a insistência de Aristóteles na noção de adequação explanatória confirma a interpretação da exigência B
em termos de B. De acordo com B, a causa que deve ser captada na demonstração
científica de X é tal que não pode ser outra — é aquela causa que, tomando X exatamente como X, explica do modo mais apropriado por que X é do modo que é. Por
essas razões, essa causa pode ser intitulada como “princípio necessário” para a explicação científica de X — isto é, o princípio que não poderia ser outro, sob pena de se
esvair a adequação explanatória. E, assim, o vocabulário aparentemente modal de
T deixa de engendrar uma tese falsa e embaraçosa e, em vez dela, engendra uma
—
Infelizmente, esses textos não têm recebido na literatura a atenção que merecem. O capítulo I. tem uma
sorte melhor, sobretudo com Ferejohn, , e Hasper, . Os comentários de Barnes, , ao capítulo
I. somam menos de três páginas (p. -) e não há nenhuma entrada específica para T (a-), que é
uma passagem de suma importância. O mesmo ocorre em Ross, , p. -, que, além do mais, erroneamente toma I. como mera advertência a metabasis eis ello genos (sobre a metabasis, ver Steinkrüger, ).
McKirahan, , não examina particularmente nenhuma das passagens de I., nem de I.. Praticamente se
dá o mesmo com Bronstein (que, no entanto, diz algo sobre a- na nota , p. ).
22
Ver Angioni, , p. -; Ferejohn, , p. -; Hasper, ; Zuppolini, a, p. -.
23
Sobre esse ponto, ver Angioni, a, p. -. Para outra visão, ver Ferejohn, , p. -.
24
Ver Angioni, a, Angioni, , p. -. Devo notar, também, que minha interpretação permite entender T como uma programa que justifica muitas das discussões que efetivamente encontramos nos capítulos seguintes: discussões sobre atributos per se (I.-), coextensionalidade entre termos do silogismo demonstrativo (I.-, I.), princípios necessários (I.), metabasis eis allo genos (I.), inadequação explanatória de
princípios comuns e genéricos (I.), causas primeiras (I.) – tudo isso pode ser entendido como refinamento
das exigências A e B. Nas demais interpretações, a relação entre muitas dessas discussões é bem mais obscura.
Ferejohn, , p. -, , reconhece a lacuna e tenta resolvê-la propondo uma divisão entre I.- (condições
gerais para qualquer epistemologia) e I. em diante (a filosofia da ciência própria de Aristóteles).
21
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
tese perfeitamente consistente com diversas passagens dos Segundos Analíticos25.
Ao dizer que uma demonstração depende de um “princípio necessário” (b-),
Aristóteles não quer dizer que a demonstração depende de uma proposição necessária (isto é, cujo laço predicativo é necessariamente verdadeiro) — ainda que seja
verdadeiro dizer que a proposição que desempenha o papel de princípio explanatório para a conclusão em pauta seja, de fato, necessária em si mesma. O que Aristóteles quer dizer é que a demonstração depende de uma proposição que (sendo, em
si mesma, ou necessariamente verdadeira, ou verdadeira no mais das vezes) é o princípio explanatório necessário, isto é, requisitado, para explicar do modo mais apropriado por que X é do modo como é. O adjetivo “necessário”, em b- (T), ao
incidir sobre o substantivo “princípio”, toma o princípio exatamente enquanto princípio e nos diz algo sobre seu valor explanatório. Algo similar ocorre com as ocorrências absolutas do adjetivo “necessário” em T e T: ao dizer que a demonstração
procede e depende de “itens necessários”, o foco de Aristóteles não consiste em dizer
que a demonstração procede de premissas necessariamente verdadeiras (ainda que
isso seja o caso — afinal, no âmbito da questão Q, B* é uma tese correta); o que
Aristóteles quer dizer exatamente é que a demonstração depende de premissas que
desempenham o papel de princípios sem os quais não se tem a explicação plenamente
apropriada do explanandum em pauta.26
Importante salientar esse ponto para discutir outro, que é a hipótese de que Segundos Analíticos I. forneceria alguma evidência em favor da interpretação do requisito
da necessidade em T em termos de B*. Novamente, é importante ressaltar a distinção entre as questões Q e Q. A tese que Aristóteles defende em I., e que se confirma em muitas outras passagens, é a de que “não há conhecimento científico por
demonstração daquilo que se dá por acaso” (b)27. O argumento de Aristóteles é
simples: “aquilo que se dá por acaso não é nem necessário, nem no mais das vezes,
mas é o que ocorre para além desses — mas a demonstração diz respeito a um desses
dois” (b-). É também verdade que, logo em seguida em I., o vocabulário
modal se aplica exatamente às relações predicativas codificadas em cada sentença de
uma demonstração, em vez de se aplicar à relação explanatória entre premissas e conclusão: “todo silogismo se dá através de premissas necessárias, ou através de premissas
no mais das vezes; se as premissas são necessárias, também a conclusão é necessária; se
são no mais das vezes, também a conclusão será desse tipo” (b-). No entanto,
essa passagem conta como evidência a favor de B* apenas no âmbito da questão Q,
—
Ver as referências na nota .
Para detalhes, ver Angioni, a, p. -; Angioni, , p. -; Angioni, a p. -.
27
Cf. Metafísica a-; Física a-. Para excelente discussão, ver Judson, .
25
26
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
mas não no âmbito da questão Q. Ou seja: é verdade que, para Aristóteles, o conhecimento científico exige saber que as proposições em questão são verdadeiras ou necessariamente ou no mais das vezes28. No entanto, isso não prova que, na definição
de conhecimento científico em T, o requisito da necessidade deva ser entendido em
termos de B*. Como já argumentei, se o requisito da necessidade fosse entendido em
termos de B em T e T, Aristóteles estaria abraçando uma tese que ele mesmo julga
falsa e que é inconsistente com boa parte das discussões que ele desenvolve nos Segundos Analíticos, a tese de que qualquer dedução correta modalizada (isto é, com premissas e conclusão necessariamente verdadeiras) contaria como uma demonstração científica29. Esse problema de modo algum seria corrigido ao se substituir B por B*: a
rigor, B* engendraria uma tese ainda mais bizarra em T, a tese de que valeria como
demonstração científica qualquer dedução correta composta por predicações quase
necessárias, isto é, predicações verdadeiras no mais das vezes30.
Assim, distinção entre as questões Q e Q é fundamental para compreender a
noção de conhecimento científico em Aristóteles. De fato, é verdade que, para Aristóteles, “todo conhecimento científico é ou daquilo que se dá sempre, ou daquilo
que se dá no mais das vezes” (a-) — isto é, no âmbito da questão Q, B*
é uma tese verdadeira. No entanto, a questão Q é outra: trata-se de saber se B* é
uma exigência codificada na definição de conhecimento científico em T. Para a
questão Q, a resposta é negativa. As remissões à noção de conhecimento científico
em passagens importantes como T e outras mostram que a definição de conhecimento científico em T se dá em termos de duas exigências, ambas focalizadas na
noção de explicação: a exigência A requer que se reconheça a causa do explanandum
X; a exigência B, nos termos da opção B, requer que se reconheça que o fato de essa
causa ser a causa de X não pode ser de outro modo. A rigor, os esforços de Aristóteles
em elucidar as condições sob as quais se diz que atingimos o conhecimento científico
de um dado explanandum X são esforços para elucidar de que modo a exigência B
deve ser entendida.
—
Cf. Metafísica VI., a-. O trecho a- poderia ter sido incluído como uma das passagens examinadas neste artigo. No entanto, examinar esse trecho me levaria ainda mais longe, pois ele emprega a noção de
“concomitante” ou “acidente” (συμβεβηκός) de um modo que é diverso daquilo que se encontra em T. Explicar esses pormenores – dos quais já tratei em outras ocasiões (cf. Angioni, , p. -) – não caberia aqui.
29
Ver referências na nota .
30
Além do mais, minha interpretação explica melhor a desenvoltura de Aristóteles em I.. Pela interpretação
tradicional, o propósito de I. seria corrigir B em termos de B*. No entanto, seria surpreendente que Aristóteles fizesse tamanha correção sem anunciá-la ou prepará-la – Aristóteles que foi ciente da possibilidade de ser
mal interpretado, cf. Incessu Animalium b-. Na minha interpretação, não há, da parte de Aristóteles,
nenhuma necessidade de fazer alarde sobre suposta mudança de tese, pois tudo que ocorre é que o vocabulário
da “necessidade”, antes aplicado a relações explanatórias, agora se aplica às premissas em si mesmas.
28
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
5.a.2) Outras passagens nos Segundos Analíticos
Ressalto que, em dois momentos cruciais dos Segundos Analíticos, Aristóteles novamente remete à noção de conhecimento científico sem fazer nenhuma alusão à necessidade tal como concebida pela tradição, em termos de B (ou B*).
Em I., lemos:
T “Entre as figuras, a que mais propicia conhecimento é a primeira. Pois, entre
as ciências, apresentam as demonstrações através dela as matemáticas (por exemplo, a aritmética, a geometria, a ótica) e, por assim dizer, todas as que fazem
a investigação do por que. De fato, o silogismo do por que se dá através desta
figura, ou em todos os casos, ou no mais das vezes e na maioria dos casos. Por
conseguinte, também por isso é ela a que mais propicia conhecimento, visto que
o mais decisivo para o conhecer é considerar o por que.” (a-).
Essa passagem envolve muitas outras dificuldades31. O que me interessa agora é
ressaltar um único ponto. Se ambas as exigências, A e B, são igualmente importantes
na definição de conhecimento científico em T, e se a exigência B devesse ser interpretada em termos de B (ou B*), então seria de se esperar que Aristóteles a retomasse
em T. Aristóteles poderia ter dito: “o mais decisivo para o conhecer científico é,
também, saber que as proposições são necessariamente verdadeiras”. Mas ele não o
disse. Ele ressaltou que “o mais decisivo para o conhecer científico é considerar o por
que”. Poder-se-ia argumentar que Aristóteles não resgatou a exigência B porque o assunto — a comparação entre as figuras silogísticas — não dependeria dela. Pode ser.
Mas é fato que a ausência de remissão à exigência B pode ser explicada de modo muito
plausível se B for entendida em termos de B: como B exige a perfeita adequação
explanatória entre causa e pragma, pode-se dizer que B diz respeito a condições mais
específicas para a exigência A. O fator inicial para definir o conhecimento científico
em T é conhecer a causa ou o porquê. É claro que isso não basta, pois deve-se conhecer a causa primeira ou apropriada. No entanto, é compreensível que Aristóteles mencione a noção de conhecimento científico do modo abreviado e sumário que encontramos em T: é que, se a exigência B deve ser interpretada em termos de B, podese considerar como implícita a referência ao tipo específico de causa capaz de explicar
seu explanandum da maneira mais apropriada32. E, como veremos mais adiante, outras passagens tornam explícita essa referência à causa primeira.
—
31
32
Para exame detalhado, ver Mendell, . Ver também Barnes, , p. ; McKirahan, , p. .
Além do mais, há, nos textos de Aristóteles, vários usos das expressões “τὸ αἴτιον” e “τὸ διότι” nas quais o
artigo “τὸ”, mesmo sem a presença de adjetivos, desempenha a função de assinalar “a causa”, isto é, aquela
que é a causa requisitada para a explicação plenamente apropriada. Em b, “τὸ αἴτιον” é uma remissão
abreviada a “τὸ πρῶτον αἴτιον” mencionado em b- (cf. Angioni , p. ). Algo similar, na ordem
inversa, ocorre em Metafísica V.: em b, temos (“τὸ αἴτιον”), mas em b se torna claro que se
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
Em contrapartida, se a exigência B é interpretada em termos de B (ou mesmo
B*), temos um outro tipo de requisito, que se acrescenta paralelamente à exigência
A, de modo que sua omissão em passagens como T fica mais difícil de explicar.
Em II., lemos:
T “Visto que julgamos ter conhecimento científico quando conhecemos a
causa, e as causas são quatro […], todas elas se mostram através do termo
mediador” (a-).
Se ambas as exigências, A e B, são igualmente importantes na definição de conhecimento científico em T, e se a exigência B devesse ser interpretada em termos
de B (ou B*), seria de se esperar que Aristóteles aludisse especificamente a ela em
T. Mas, de novo, a ausência de alusão à exigência B é facilmente explicável se a
interpretamos em termos de B: longe de ser uma outra exigência, que fosse paralela
à exigência A, a exigência B é uma especificação que refina as condições sob as quais
a exigência A engendra conhecimento científico.
No caso de T, reconheço que meu argumento tem uma fraqueza, quando tomado isoladamente. Alguém poderia objetar, e de modo muito apropriado, que a
ausência de alusão à exigência B em T é facilmente explicável pelo fato de que T
está estritamente interessado em especificar os tipos de causa, como um refinamento
adicional à exigência A. A ausência de remissão ao requisito da necessidade em T
dificilmente prova algo sobre a definição de conhecimento científico em T.
No entanto, a única razão para eu ter incluído T na presente discussão é que lá
se encontra algo que se repete como um padrão, nas muitas passagens de outras
obras nas quais Aristóteles remete à definição de conhecimento científico em T.
Assim, embora T por si mesmo não agregue nenhuma evidência de peso para minha discussão, T acrescenta, de fato, algum peso, quando se junta às outras passagens em que Aristóteles, fora dos Segundos Analíticos, retoma a noção de conhecimento científico. Com exceção de dois casos importantes — Metafísica VII. e
Ethica Nicomachea VI.-, um dos quais será discutido logo mais —, todas essas
passagens omitem referências explícitas à exigência B, e muitas delas retomam explicitamente a exigência A. O fraseado de muitas dessas passagens parece implicar
que, para Aristóteles, conhecer cientificamente X pode ser resumido, de modo abreviado, em um único traço: conhecer a causa (ou a causa primeira) pela qual X é o
—
tratava do “αἴτιον πρῶτον”. Em b- (que será considerado como T, mais adiante), “o porquê” é
tomado como equivalente à “causa primeira”. Ver também a, a, a.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
que é33. Pretendo mostrar que, longe de atestar um abandono da exigência B em T,
essas passagens podem ser mais bem interpretadas em termos da opção B.
No entanto, como pretendo discutir com mais detalhe um suposto caso recalcitrante, que pareceria contar a favor da interpretação tradicional — Ethica Nicomachea VI.- —, farei uma abordagem rápida e superficial das outras passagens.
5.b) Além dos Segundos Analíticos
5.b.1) Nenhuma menção à exigência B
Começo por outras passagens do Organon. No início dos Tópicos, Aristóteles fornece
a seguinte elucidação para o que entende por “demonstração”:
T “Um silogismo é uma demonstração quando procede de [premissas]
verdadeiras e primeiras, ou de [premissas] tais que o princípio de conhecimento concernente a elas se adquire mediante [premissas] verdadeiras e
primeiras” (a-).
Ao elucidar a noção de demonstração, Aristóteles não retoma nenhuma das exigências, nem A nem B, pelas quais se define o conhecimento científico em T. Seria
de se esperar que ele as retomasse, pois muitas vezes entende “demonstração” como
o tipo de argumento que expressa o conhecimento científico.34 Mas não é preciso
exagerar as diferenças entre T e T. Os interesses de cada contexto são bem distintos e podem explicá-las muito bem. T ocorre em uma obra que se dedica a explorar
em que consiste o conhecimento científico — e define precisamente a noção central
que ocupará Aristóteles ao longo da mesma obra. Por outro lado, T ocorre em uma
obra na qual Aristóteles se dedica a estudar o raciocínio dialético — e define uma
noção auxiliar, em contraste com a qual se pode perfilar com mais nitidez a noção
central dos Tópicos, que é a de raciocínio dialético.
Poder-se-ia argumentar que a noção de premissas primeiras inclui alguma menção implícita ao modo pelo qual o conhecimento demonstrativo é caracterizado logo
—
Poderia ainda acrescentar b-, bem como esta passagem de I.: “se a demonstração é o silogismo que
mostra a causa e o porquê, e se o universal é mais causa […]; por conseguinte, também a demonstração
universal é melhor, pois ela, sobretudo, é da causa e do porquê” (b-). Mas a lista de textos já está de
bom tamanho – e eu teria bom trabalho para mostrar que esta passagem de I. deve ser tomada a sério em
todos seus detalhes.
34
O termo “ἀπόδειξις” (bem como o verbo “ἀποδείκνυμι”) é usado de muitos modos em Aristóteles (cf. Retórica a, a, a, b, , a; Poética, a; b; a). Ver Barnes , p. .
Mas não há dúvida de que, em T, “ἀπόδειξις” tem o sentido mais forte presente nos Segundos Analíticos.
33
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
após T. De fato, embora o adjetivo “primeiro” (πρῶτον) seja caracterizado em termos mais vagos em muitas ocasiões (cf. b, a), em a- ele é associado à
noção de “princípios apropriados”, os quais, pelo que foi dito em b-, parecem
envolver a noção de adequação explanatória.35 No entanto, esse argumento não é
promissor, pois, logo na seqüência dos Tópicos, Aristóteles explica o que ele entende,
neste contexto, pela conjunção dos adjetivos “verdadeiros” e “primeiros”: “são verdadeiros e primeiros os itens nos quais se confia por si mesmos mas não devido a
outras coisas” (a-b). Essa explicação está longe de ser claríssima, mas uma
coisa é certa, e isso basta para minha discussão. Longe de associar o adjetivo “primeiro”, em T, a qualquer característica que pudesse remeter à exigência A de T,
Aristóteles esclarece que, nos Tópicos, tal adjetivo tem uma carga epistemológica,
que depende da atitude e do estado cognitivo de quem emprega um dado argumento. Ao acrescentar, logo mais, que, “entre os princípios demonstrativos, não é
preciso requisitar o porquê” (b-), Aristóteles não está focalizando o poder
que esses princípios teriam de explicar outras coisas, mas sim o fato de que eles
impõem a convicção de que são verdadeiros por si mesmos, sem exigir nenhuma
justificação suplementar36. Aristóteles tem boas razões para assim empregar o termo.
Seu objetivo, nos Tópicos, é caracterizar um tipo de argumentação — a dialética —
na qual as premissas assumidas pelos debatedores não são assumidas porque se lhes
afiguram verdadeiras (ainda que sejam verdadeiras), mas porque são endoxicais —
isto é, bem reputadas por algum grupo relevante para a discussão37. O mais importante para a argumentação dialética é o estatuto epistêmico dessas premissas: suas
credenciais, nos limites da discussão dialética, advêm do fato de serem reputadas
como verdadeiras por certos grupos.38 Essa circunscrição dos argumentos dialéticos
também daria uma boa razão para Aristóteles omitir, em T, qualquer remissão à
exigência A. Se ele tivesse remetido à exigência A em T, sua definição de silogismo
dialético, em contraste com a definição de demonstração, poderia dar a entender,
erroneamente, que argumentos dialéticos jamais se poderiam empenhar em discutir
explicações ou opiniões explanatórias.
—
Para detalhes, ver Angioni, a, p. -, -.
Discordo de Barnes, , p. : “the analysis of primitiveness at b- implies […] explanatoriness […]
and appropriateness is said to follow from explanatoriness”.
37
Para detalhes sobre essa discussão, ver Rapp, , p. -; Frede, , p. -; Smith, , p. xxiii, Mendonça, , p. -; Mendonça, , p. -. Para posição diversa da que sugeri, ver Reinhardt .
38
E é por isso que debatedores dialéticos podem assumir, em princípio, teses contrárias, ao passo que, na demonstração, deve-se assumir apenas aquilo que é verdadeiro, por ser verdadeiro (cf. a-).
35
36
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
Por outro lado, suponha-se que a exigência B em T devesse ser entendida do
modo tradicional, como B (ou B*). Seria mais surpreendente, neste caso, a omissão à exigência B em T. Pois Aristóteles teria um excelente parâmetro para fazer o
contraste almejado: “por um lado, o silogismo é demonstrativo quando sabemos
que suas proposições são necessariamente verdadeiras; por outro lado, o silogismo é
dialético quando as proposições são assumidas apenas por serem bem reputadas”39.
É certo que o fato de Aristóteles não ter adotado essa via tampouco prova algo a
respeito de T. No entanto, T acrescenta algum peso nesse debate, quando se junta
às outras passagens em que Aristóteles retoma a noção de conhecimento científico.
Ainda no Organon, há uma passagem das Refutações Sofísticas na qual as demonstrações, como expressão do conhecimento científico40, são caracterizadas sob a rubrica de “argumentos didáticos”:
T “Argumentos didáticos são os que deduzem a partir dos princípios apropriados a cada coisa, mas não a partir das opiniões de quem responde” (b-).
Tal como no início dos Tópicos, é bem clara a intenção de realçar o contraste
entre diferentes tipos de argumentos através de atitudes epistêmicas de quem usa os
argumentos. Mas, diferentemente dos Tópicos, a alusão a princípios apropriados tem
um sabor que remete à noção de adequação explanatória, tal como caracterizada nos
Segundos Analíticos (b, a-), e é claro que adequação explanatória pressupõe,
de modo incontroverso, a exigência A de T. Por outro lado, T não faz nenhuma
alusão à exigência B entendida do modo tradicional, em termos de B.
Além das passagens do Organon, há passagens relevantes na Física e na Metafísica
nas quais Aristóteles parece retomar a noção de conhecimento científico tal como
definida em T. No início da Física, lemos:
T “Dado que, em todos os estudos nos quais há princípios, ou causas, ou
elementos, sabemos (isto é, conhecemos cientificamente) quando
reconhecemos esses itens (pois julgamos compreender cada coisa quando
reconhecemos suas causas primeiras e seus primeiros princípios, até seus elementos” (a-).
—
Visões da dialética que entendem o endoxon como “provável” ficariam ainda mais tentadas a tomar o contraste
em termos modais (para crítica dessas visões, ver Smith, , p. xxiii, Brunschwig, , p. -; Barnes,
, p. -). Nesse caso, porém, tais visões teriam ainda mais dificuldade para explicar a omissão da
exigência B em T.
40
Logo após T, Aristóteles deixa claro que se trata de demonstrações científicas: “já se falou sobre os argumentos demonstrativos nos Analíticos” (b-). Ver Barnes, , p. ; Barnes, , p. ; Hasper, ,
p. -; Fait, , p. .
39
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
O vocabulário de T pode convidar o leitor a interpretações sutis — supostamente fundadas na distinção entre os verbos “εἰδέναι”, “ἐπίστασθαι” e “γινώσκειν”.
No entanto, feitas as ressalvas contra elucubrações à la Prodicus, é claro que Aristóteles
retoma a definição de conhecimento científico dada em T. Vários contextos relevantes empregam “εἰδέναι” e “ἐπίστασθαι” de modo equivalente, não somente nos Segundos Analíticos mas também em outras obras41. Não bastasse isso, é o próprio Aristóteles que ressalta essa equivalência no início da Física, se — como de fato julgo ser
correto — o “καί” que os liga em T for tomado como epexegético.
Dito isso, observemos que T, ao aludir à noção de conhecimento científico definida em T, remete claramente à exigência A, mas não menciona a exigência B.
Conhecer cientificamente um dado objeto consiste em reconhecer suas causas e princípios, mas não há nenhuma alusão ao suposto requisito de saber que as proposições
sobre tal objeto são necessariamente verdadeiras. Alguém poderia objetar que a omissão de qualquer referência à exigência B, interpretada em termos de B, é mais que
natural, pois se trata do proêmio da Física, cujo domínio são entidades suscetíveis ao
devir: as proposições a respeito dessas entidades são verdadeiras apenas no mais das
vezes, mas não necessariamente. Certo. Mas, se o domínio das entidades suscetíveis
ao devir, no final das contas, abarca quase todos os domínios nos quais Aristóteles de
fato desenvolveu empreendimentos científicos, por que insistir em interpretação segundo a qual, em T, ele teria definido o conhecimento científico de um modo que
resultaria inadequado a quase todos seus próprios empreendimentos científicos?
Nesse passo, a interpretação tradicional costuma intervir com duas fábulas: a de
que Aristóteles teria mudado de opinião, e a de que “o formalismo dos Segundos Analíticos” seria incompatível com a concepção mais flexível de conhecimento científico
que emerge dos próprios tratados científicos de Aristóteles42. No entanto, não há nenhuma evidência textual (ou psicografada) sobre a suposta mudança de opinião. E a
suposta incompatibilidade entre a concepção de conhecimento científico nos Segundos Analíticos e os tratados biológicos — velho clichê de uma época passada — resulta
apenas da incapacidade de compreender as discussões de Aristóteles em seus devidos
contextos43. A definição de conhecimento científico em T opera basicamente com os
mesmos traços gerais que encontramos em T. Não há nenhuma referência explícita
à exigência B. No entanto, tal omissão é plausível, se a exigência B é interpretada em
—
Para detalhes nessa discussão, ver Bronstein, , p. -; Burnyeat, , p. -. Ver observação em
Barnes, , p. (embora defenda interpretação diversa sobre T): “Among the different Greek verbs there
are indeed differences of nuance or colour and differences in idiom so that in a given context one of the verbs
may be more appropriate than the others. But there are no semantic differences, no differences in sense”.
42
O estilo fabuloso encontra-se em LeBlond, . Ver também Barnes, , p. .
43
A obra de Lennox, , é monumental contra a alegada incompatibilidade. Ver também Angioni, c, p. .
41
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
termos de B: pois, neste caso, longe de sobrevir como um requisito adicional a respeito da verdade necessária das proposições sobre o objeto de conhecimento científico, B consiste em mera especificação da exigência A. Conhecer X de modo científico
exige saber qual é a causa de X, e — para deixar o ponto mais claro — exige saber que
é essa causa que é, realmente, a causa de X e não pode ser outra, pois nenhuma outra
explica X do modo mais apropriado. Nesse sentido, a exigência A é, de certo modo, a
principal, que serve de cabeçalho — isto é, aquela que pode ser retomada em vários
contextos que não estão interessados em detalhes.
Além do mais, T não fala apenas de causas em geral, mas faz referência específica às causas primeiras e aos princípios primeiros. O adjetivo “primeiro” (“πρῶτον”)
é usado de muitos modos (cf. b, ; a, b, b, a-, b, a,
a, a, b) e já vimos que, no início dos Tópicos (T), ele tem um sentido
meramente epistemológico que nada deve à noção de adequação explanatória. No
entanto, em vários contextos (alguns dos quais serão examinados a seguir), tal adjetivo é usado exatamente para assinalar a noção de adequação explanatória (cf. a) e, aplicado a “causa” (cf. a-, b), “termo mediador” (cf. a) ou usado de
modo absoluto (cf. a, b), se refere exatamente ao fator explanatório que
codifica a explicação mais apropriada. Se isso está correto44, então se pode dizer que
a referência específica às causas primeiras e aos princípios primeiros recupera, precisamente, a exigência B45.
Mais adiante na Física, lemos:
T “dado que não julgamos conhecer cada coisa antes de apreendermos o
porquê de cada uma (e isto é apreender a causa primeira)” (b-).
Aristóteles remete apenas à exigência A, mas não à exigência B. Novamente, meu
argumento poderia ser rejeitado com base no mesmo arrazoado referente a T.
Tanto em Física II. como em Segundos Analíticos II., Aristóteles está fundamentalmente interessado em sua teoria das quatro causas e, dado esse interesse preponderante, é natural que, ao recuperar a noção de conhecimento científico, ele omita
a exigência B e se concentre na exigência A. No entanto, neste caso, tenho um pequeno desconforto contra esse arrazoado. O interesse preponderante na teoria das
quatro causas poderia bem explicar a omissão da exigência B entendida em termos
—
44
45
Pace, Pellegrin , p. , n, e muitos outros que seguem os comentadores antigos – mesmo Ross, , p. .
Não vou desenvolver a sugestão, mas algo similar poderia ser associado à expressão “até os elementos” no final
de T. Encontrar as causas primeiras “até os elementos” poderia ser um modo de frisar que essas causas
consistem nos elementos essenciais dos quais algo depende para ser o que é. Além do mais, em b, Aristóteles afirma que os elementos das demonstrações são as premissas indemonstráveis (sobre isso, ver opinião
diversa em Malink, , p. -).
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
de B (ou B*). No entanto, a observação que os editores inserem entre parênteses
— “e isto [sc. apreender o porquê de cada coisa] é apreender a causa primeira”
(b-) — não se encaixa bem no arrazoado. O adjetivo “primeiro(a)”, associado à “causa”, é comum em Aristóteles para indicar aquela causa que, precisamente,
é a mais importante e a mais apropriada para a explicação científica de um dado
explanandum46. Na minha interpretação, essa ênfase na noção de causa primeira, no
lembrete que recupera a definição de conhecimento científico dada em T, é perfeitamente justificada — pois a exigência B, entendida em termos de B, especifica
com mais exatidão que o tipo de causa requisitada para o conhecimento científico
de cada coisa é aquela causa que não pode ser outra — a causa plenamente apropriada para explicar o explanandum em questão — ou, nos termos em que T retoma
a exigência B, a causa primeira.
Similar a T, há o famoso trecho no início da Metafísica, que precede a avaliação
que Aristóteles faz sobre os primeiros princípios e as causas mais altas na filosofia de
seus predecessores:
T “Dado ser evidente que é preciso tomar conhecimento das causas que se
dão como princípio (pois afirmamos conhecer cada coisa precisamente
quando julgamos discernir sua causa primeira)” (a-).
Tal como em T, também em T o lembrete de Aristóteles sobre a noção de
conhecimento científico coloca a noção de causa primeira no centro das atenções.
Alguém poderia argumentar: não há nenhum vestígio dessa noção de causa primeira
na definição de conhecimento científico em T; T não faz nenhuma referência ao
requisito da necessidade (entendido em termos de B); logo, T deve estar fazendo
referência a outra definição de conhecimento científico, diferente da que encontramos
nos Segundos Analíticos, provavelmente pertencente a um tratado perdido etc.47 No
entanto, o princípio de economia recomenda que poupemos essas especulações sem
nenhuma evidência exegética, sobretudo quando uma interpretação melhor é perfeitamente defensável com base na evidência disponível. Como eu disse sobre T e T,
a ênfase na noção de causa primeira, nos lembretes que recuperam a definição de conhecimento científico dada em T, é perfeitamente justificada: pois a exigência B,
entendida em termos de B, apenas especifica com mais exatidão qual é o tipo de
causa requisitado para o conhecimento científico de cada coisa. A exigência A havia
apenas ressaltado o requisito de conhecer a causa do explanandum em questão. Já a
—
Ver Angioni, , p. . Cf. nota . Sobre T, é digno de nota que Ross, , p. , entende o adjetivo
“primeira” no sentido de “proximate”, embora ele tenha opinião diferente sobre T.
47
Esse é o estilo de argumento que encontramos em LeBlond, . Cabe enfatizar que causa primeira tem aqui
o mesmo sentido que lhe atribui em T (pace Ross , p. ).
46
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
exigência B especifica que se trata daquela causa que, nessa relação, não pode ser outra
— a causa plenamente apropriada para explicar aquele explanandum, isto é, a causa
primeira. A progressão de A para B, como elementos do definiens em T, é análoga a
uma progressão em que disséssemos, ao tentar caracterizar o ser humano: “ser humano
é um animal dotado de pés; mais precisamente, bípede”. Como sabemos, a informação de que se trata de um animal dotado de pés está contida na informação de que se
trata de um bípede (cf. Metafísica a-). Portanto, relembrar a definição de conhecimento científico por meio da noção de causa primeira é o mesmo que usar a
exigência B em termos de B, sem mencionar a exigência A — porque a exigência A
já está contida, imanentemente, na exigência B.
Outra passagem da Metafísica é a seguinte:
T “também em outros domínios, julgamos que conhecer cada coisa (até
mesmo aquelas das quais há demonstração) se dá quando sabemos o que ela é
(por exemplo, o que é produzir quadratura? É a descoberta de uma média;
semelhantemente nos demais casos)” (b-).
Essa passagem deve ser usada com moderação, por várias razões. Primeiramente,
é preciso cautela porque a passagem se encontra no livro III da Metafísica, em contexto no qual Aristóteles desenvolve aporias concernentes à natureza e às tarefas próprias da sabedoria, como ciência dos primeiros princípios e das causas mais altas. O
desenvolvimento das aporias no livro III da Metafísica muitas vezes conta com premissas que não correspondem a nenhuma tese aceita por Aristóteles — são premissas
pressupostas na formulação de um dilema, dando razões e alguma credibilidade para
uma das supostas saídas do impasse. Às vezes essas premissas correspondem a teses
genuinamente propostas por Aristóteles. Discutir, com detalhe, se isso é o caso em
T me levaria longe demais. Em segundo lugar, o exemplo envolvido na passagem
é o problema geométrico da quadradura do círculo, no qual se deveria provar que
há um quadrado cuja área corresponde à área de um dado círculo. A discussão desse
problema é muito complexa para caber nos limites deste artigo48. Em terceiro lugar,
T sugere que Aristóteles adota um modelo de demonstração no qual o papel explanatório mais relevante é desempenhado pela essência do atributo que se quer
explicar, de tal modo que conhecer por que X (sendo X um atributo) se torna equivalente a conhecer o que X é49. Mas discutir esse ponto exigiria levar em consideração
uma série de outras dificuldades exegéticas.
—
Ver Mueller, , p. ; Dorion, , p. ; Fait , p. ; Hasper, , p. -. Tratei do assunto
em Angioni, b, p. -; Angioni, , p. .
49
Na nomenclatura de Bronstein, , p. -, trata-se do “Modelo ” de explicação científica (ou, para
Ferejohn , p. , o “modelo causal” de demonstração). Ver Zuppolini, b, p. -.
48
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
Embora essas três razões recomendem cautela na interpretação de T, assevero
que, neste caso, a premissa fundamental da passagem corresponde, de fato, a uma
tese aristotélica. Essa tese não parece, à primeira vista, corresponder a nenhuma das
exigências (A ou B) na definição de conhecimento científico dada em T. No entanto, no livro II dos Segundos Analíticos, Aristóteles defende explicitamente a tese
de que “o o que é é o mesmo que por que é” (a-) e, mais adiante, que “é o
mesmo conhecer o que é e conhecer a causa de [certa coisa] ser algo”50 (a). Essa
equivalência entre conhecer a causa (ou o porquê) pela qual um dado sujeito é de
tal e tal tipo (isto é, tem um atributo tal e tal) e conhecer o que algo é (a saber, o
que é o atributo que tal sujeito tem) consiste exatamente no modelo de demonstração no qual o papel explanatório mais relevante é desempenhado pela essência do
atributo que se quer explicar51. É essa equivalência que permite conectar T à definição de conhecimento científico em T sem nenhum atrito. Conforme T, ter
conhecimento científico sobre a quadratura do círculo consiste em saber o que ela
é. No entanto, conforme se explicita no livro II dos Segundos Analíticos (sobretudo
em a- e a), saber o que é a quadratura do círculo equivale a saber qual é a
causa pela qual um dado círculo tem a propriedade de ter uma área correspondente
à área de um certo quadrado. Por meio dessa equivalência entre conhecer a causa e
conhecer o que é, fica claro que também T faz referência à definição de conhecimento científico dada em T: pela exigência A, requer-se o conhecimento da causa
da quadratura do círculo; pela exigência B (entendida em termos de B), acrescentase que a causa em questão deve ser exatamente aquela que não pode ser outra, a que,
ao fornecer a explicação apropriada da quadratura, diz o que é a quadratura e assim
capta sua essência52.
Finalmente, há uma passagem bem mais extensa e informativa no livro VI da
Metafísica:
T “em geral, toda ciência [ἐπιστη% µη] raciocinativa ou que compartilha do
raciocínio diz respeito a causas e princípios, sejam eles mais exatos ou mais
simples. No entanto, todas elas, circunscrevendo-se a algum ente (isto é, a
algum gênero), a ele se dedicam, mas não se dedicam ao ente, sem mais, nem
—
Em a, prefiro a lição “αἴτιον τοῦ τί εστι” (Bekker), em vez de “αἴτιον τοῦ εἰ εστι” (Ross). Na expressão
em questão, “τί εστι” não é a típica pergunta pela essência, pois o “τι” não é interrogativo e se refere a algum
atributo não-essencial, como em a-.
51
Para discussão, ver Charles, , p. -; Goldin, , p. -; Bronstein, , p. -; Angioni,
b, p. -; Zuppolini, , p. -; Zuppolini, , p. -; Zuppolini, b, p. -, ; Almeida, ; Ferejohn, , p. -.
52
Não vou entrar em detalhes sobre o Modelo de explicação científica. Para discussão, ver Zuppolini, ,
p. . A rigor, julgo que o Modelo na verdade é o único modelo, presente inclusive no livro I dos Segundos
Analíticos (ver Angioni, a, p. -, Angioni, , p. -).
50
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
ao ente enquanto ente, nem propõem nenhuma explicação a respeito do ‘o
que é’, mas, a partir dele — umas, fazendo-o evidente pela percepção, outras,
assumindo como hipótese o ‘o que é’ — assim demonstram (ou de modo mais
necessário, ou de modo mais maleável) aquilo que se atribui em si mesmo ao
gênero a respeito do qual são” (b-).
Também esta passagem está repleta de problemas exegéticos, cuja análise detalhada não cabe nos limites deste artigo. Interessa-me apenas ressaltar alguns aspectos
importantes para meus propósitos. É digno de nota que Aristóteles remete à exigência A, mas não parece remeter à exigência B. Poder-se-ia argumentar que o termo
“ἐπιστη( µη” em b, longe de remeter precisamente à noção de conhecimento
científico, tem alcance mais amplo, neste contexto. De fato, pode-se argumentar
que o mesmo termo parece estar implícito em b, subjacente aos adjetivos
“πρακτικη( ” (“voltada à ação”) e “ποιητικη( ” (“produtiva” ou “voltada à produção”), de modo que o contexto falaria de conhecimentos teóricos, práticos e produtivos, mas não de ciências teóricas, práticas e produtivas, no sentido estrito do termo
“ciência”. Regime semântico similar parece repetir-se em a. Assim, alguém
poderia alegar que, dado o emprego mais flexível do termo “ἐπιστη( µη” no contexto,
a omissão da exigência B seria mais que justificada — pois o requisito da necessidade, interpretado em termos de B, não se aplica ao conhecimento voltado à ação,
nem, provavelmente, ao conhecimento codificado nas habilidades técnicas.
Discussão detalhada desse problema também me levaria longe demais53. Bastame observar alguns pontos. Em primeiro lugar, a linguagem utilizada por Aristóteles
corresponde, em boa parte, ao jargão empregado nos Segundos Analíticos — demonstrar os atributos per se (a-, b-; b-) a respeito de um gênero (b,
a, b-), fazer uso de hipóteses (a-, b-) etc. Essa similaridade
da terminologia não é superficial: Aristóteles parece de fato remeter à noção de conhecimento demonstrativo, que capta as causas que explicam, em um determinado
gênero, por que determinado sujeito tem os atributos que lhe cabem por si mesmo.
Assim, não me parece convincente alegar que T não faz nenhuma alusão à noção
de conhecimento científico tal como definida em T e desenvolvida nos Segundos
Analíticos como um todo. Afinal, Aristóteles inicia a passagem com uma clara remissão à exigência A.
Por outro lado, devemos perguntar porque a exigência B não recebeu uma referência similar. Remissão à exigência B interpretada em termos de B seria bem conveniente, neste caso, porque o objetivo último desse capítulo da Metafísica consiste
—
53
Para discussão detalhada sobre o estatuto epistemológico da filosofia prática de Aristóteles, ver Karbowski, ,
e Henry, ; para discussão sobre o estatuto do conhecimento técnico, ver Aimar & Pavese (manuscrito).
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
em apresentar a ciência do ser enquanto ser como filosofia primeira, que trata das
coisas eternas (cf. ass.). Ora, a ciência do ser enquanto ser, por tratar de objetos que, de fato, são necessários, envolve proposições que são verdadeiras necessariamente (e não apenas no mais das vezes) — seja no caso em que o objeto de tal
ciência é interpretado como o primeiro motor (cf.a), seja no caso em que o
objeto de tal ciência é interpretado como o ser enquanto ser em geral (cf. a), o qual (por exemplo) tem a propriedade de ser convertível com o um
(cf. b-) e a propriedade de não ser suscetível à contradição (cf. ass.).
A exigência B daria a Aristóteles uma excelente fonte para caracterizar a ciência do
ser enquanto ser de modo mais informativo.
Poder-se-ia argumentar que a remissão à exigência B encontra-se contida no
final da passagem, na expressão “demonstram ou de modo mais necessário, ou de
modo mais maleável”. No entanto, essa expressão, ao contrário das expectativas que
uma leitura superficial suscita, resulta em evidência contra a interpretação tradicional. O adjetivo “ἀναγκαιο( τερον” está na forma comparativa, remetendo a algo
que é (em algum sentido) mais necessário, presumivelmente em contraste com algo
que, sendo mais mole ou maleável, é menos necessário. No entanto, o comparativo
de modo algum pode ser aplicado à noção de necessidade tal como entendida em
B, por duas razões. Primeiro, porque a necessidade do laço predicativo em uma
predicação necessariamente verdadeira não é algo que admita variação de grau. Uma
proposição ou é necessariamente verdadeira, ou é verdadeira apenas, mas não necessariamente. Não faz sentido dizer que a proposição “ + = ” é mais necessária do
que a proposição “todo carneiro tem quatro patas”, assim como não faz sentido
dizer que o número é mais par do que o número . O uso de comparativos pressupõe que todos os itens relacionados na comparação estão em um mesmo domínio
de coisas, a saber, o domínio das coisas suscetíveis de receber propriamente o atributo em questão, em algum grau. Mas o atributo “par” não admite o tipo de variação de grau que comparativos pressupõem, e o mesmo vale para o atributo “necessário” entendido de acordo com B (ou B).
Como objeção, se poderia sugerir que Aristóteles usa o comparativo, em T, de
acordo com uma metáfora bem imprecisa, como se quisesse dizer “demonstram ou
proposições necessárias [= as mais necessárias], ou proposições que são verdadeiras
no mais das vezes [= as mais maleáveis e, portanto, menos necessárias]”, o que contaria em favor da opção B*. No entanto, há ainda uma segunda razão contra a
leitura dessas expressões como evidência para B ou B*. Devemos notar que o
comparativo “ἀναγκαιότερον” tem valor adverbial e modifica o verbo
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
“ἀποδεικνύουσιν”, “demonstram”54. Assim, não é o que se demonstra que admite
variação de grau quanto à necessidade, mas o modo pelo qual se demonstra.
Nesse caso, porém, é absolutamente impossível referir o advérbio à operação lógica
efetuada na demonstração, pois a passagem das premissas à conclusão, em qualquer
demonstração, é um acarretamento que não admite variação de grau (mesmo para ciências biológicas, que lidam com o que é verdadeiro no mais das vezes).
A conclusão resulta necessariamente das premissas em qualquer argumento válido e, a
fortiori, em qualquer argumento correto, e essa relação de conseqüência lógica não admite variação de grau55. Como toda demonstração é um argumento correto (mesmo
para ciências biológicas, que lidam com o que é verdadeiro no mais das vezes), segue-se
que o adjetivo comparativo “ἀναγκαιότερον” em b não pode se referir a uma
suposta variação de grau no acarretamento lógico das conclusões demonstrativas56.
No entanto, se a exigência B é entendida em termos de B, o adjetivo comparativo “ἀναγκαιότερον” em b torna-se perfeitamente compreensível. A relevância explanatória de uma causa ou fator explanatório é suscetível a uma avaliação
graduada — ou seja, a variação de grau pode ser aplicada ao sucesso explanatório de
uma explicação, mas não pode ser aplicada nem ao sucesso dedutivo de uma demonstração, nem à verdade necessária de predicações. Se temos duas deduções corretas, não faz sentido compará-las quanto ao grau de sucesso com que suas respectivas premissas acarretam a conclusão, ou seja, não faz sentido perguntar qual dessas
duas conclusões se segue mais necessariamente de suas premissas. De modo similar,
se temos duas deduções corretas apodícticas (no sentido em que “apodíctica” se usa
na silogística modal), não faz sentido compará-las quanto ao grau de necessidade
que se aplica às suas respectivas conclusões, ou seja, não faz sentido perguntar qual
dessas duas proposições é mais necessária que a outra. No entanto, se temos duas
deduções corretas com pretensões explanatórias, faz pleno sentido compará-las
quanto ao grau de sucesso com que suas respectivas premissas explicam a conclusão.
Afinal, a própria linguagem de Aristóteles no início de T sugere que esse tipo de
comparação está em seu horizonte, pois ele fala de causas ou princípios que são “ou
—
Cf. expressão similar, com valor adverbial, em Retórica II., a-b.
Isso também mostra que a opção B não pode ser a opção correta no âmbito da questão Q.
56
Insistir no contrário levaria à conseqüência drástica de afirmar que demonstrações no terreno da biologia
(com proposições verdadeiras no mais das vezes) não seriam, a rigor, inferências válidas. De fato, das premissas
“todo quadrúpede tem quatro patas, no mais das vezes” e “todo carneiro é um quadrúpede”, não se segue que
“todo carneiro tem quatro patas”. No entanto, a conclusão, para Aristóteles, seria antes “todo carneiro tem
quatro patas, no mais das vezes”, a qual, de acordo com I., é consequência lógica de suas premissas. Para
discussão, ver Barnes, .
54
55
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
mais exatos ou mais simples” (ἢ ἀκριβεστέρας ἢ ἁπλουστέρας, b)57. E, a rigor, esse amplo espectro de variação no sucesso estritamente explanatório das demonstrações — que podem captar ou causas mais exatas, ou causas mais grosseiras
— também parece coadunar-se ao uso amplo que Aristóteles faz do termo
“ἐπιστήμη” no contexto: pois também o conhecimento prático e o conhecimento
técnico buscam explicar seus objetos, na medida do possível.
Contra essa solução, poder-se-ia objetar que, ainda que a relevância explanatória
das causas seja suscetível a uma avaliação graduada, a definição de conhecimento
científico em T, em termos de B, exige que a causa expressa em uma demonstração
seja a mais relevante de todas, aquela que é totalmente apropriada e, por isso, não
pode ser de outro modo. Em outras palavras, a possibilidade de graduar a importância explanatória de causas, em geral, não implica que a causa apreendida em uma
demonstração científica seja suscetível a esse tipo de gradação. Nisso, a objeção está
correta: a causa capturada em uma demonstração científica deve ser a necessária para
a explicação mais apropriada, e ponto final. No entanto, a definição de conhecimento científico em T é normativa, mas não descritiva: Aristóteles quer dizer que,
em última instância, só é conhecimento científico, mesmo, aquele que capta a causa
que é a necessária para a explicação mais apropriada. Mas essa norma está longe de
ser satisfeita em todas as tentativas. Passagens como T mostram que Aristóteles está
plenamente ciente da dificuldade de encontrar, para cada explanandum, a causa
exata que conta como mais apropriada. Enquanto esse ideal não é satisfeito, certamente se pode descrever as disciplinas científicas em termos de demonstrações nas
quais o explanandum em pauta é explicado “ou de modo mais necessário, ou de
modo mais maleável”58.
5.b.2)
Aparente evidência em favor da interpretação tradicional
(Ethica Nicomachea VI)
Há passagens que são usualmente acionadas para comprovar a interpretação tradicional sobre a definição de conhecimento científico em T: Metafísica VII.,
b-a; Ethica Nicomachea VI., a-, VI., b-. Discutir a passagem da Metafísica é, como já disse, algo que não cabe nos limites deste artigo.
—
O uso de “simples” em sentido negativo, em oposição a “exato”, não é surpreendente. É comum o uso do
advérbio “simplesmente” (ἁπλῶς) ou cognatos para indicar uma falha. Em Refutações Sofísticas a,
“ἁπλῶς” é usado em oposição a “διαιρούμενον”: se o assunto é complexo e exige distinções, é errôneo falar
de modo simples. Ver Geração dos Animais b; Metafísica a; Ethica Nicomachea b (teoria rival
simplista), b (a falha do legislador, que é obrigado a formulações gerais).
58
Sobre a possibilidade de progresso na investigação científica, ver De Caelo b-a (cf. Metafísica b) e minha discussão em Angioni .
57
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
Assim, minha atenção se concentrará nas passagens da Ethica Nicomachea. Na mais
célebre delas, lemos:
T “O que é o conhecimento científico [episteme], ficará claro a partir deste
ponto — se é preciso propor especificações exatas e não se deixar levar pelas
semelhanças. Todos nós julgamos que aquilo que conhecemos cientificamente
não pode ser de outro modo. Por outro lado, passa-nos despercebido se as
coisas que podem ser de outro modo são o caso ou não, quando não as estamos
considerando. Portanto, o objeto de conhecimento científico é por necessidade, e, portanto, é eterno, pois todas as coisas que são por necessidade, sem
mais, são eternas, e as coisas eternas não são suscetíveis de geração e corrupção.” (b-)59.
Considerar que T dá evidência cabal em favor da interpretação da exigência B
em termos de B (ou, ainda, B) é, no mínimo, precipitado.60 A precipitação parece
ser favorecida pelas expressões que somos obrigados a usar em Português (ou outra
língua moderna), como “objeto do conhecimento científico”. Em grego, trata-se do
adjetivo verbal “ἐπιστητόν”, que é extremamente vago em si mesmo, bem como a
expressão equivalente usada um pouco antes, “aquilo que conhecemos cientificamente” (ὃ ἐπιστάμεθα). A pergunta crucial que se deve fazer, neste caso, é simples:
afinal, o que é que conhecemos cientificamente? Por exemplo, quando adquirimos
conhecimento científico de que a lua sofre eclipse devido à interposição da Terra, o
que é que, precisamente, conhecemos cientificamente?
Três respostas são perfeitamente aceitáveis e nenhuma delas, por si mesma, exclui
as demais. Quando adquirimos conhecimento científico de que a lua sofre eclipse
devido à interposição da Terra, podemos dizer que é o eclipse lunar que conhecemos
cientificamente, isto é, um estado de coisas com estrutura proposicional. No entanto, de acordo com outro uso da expressão, pode-se dizer que é a lua que é “o
objeto de nosso conhecimento científico”. Finalmente, de acordo com outro uso da
expressão “aquilo que conhecemos cientificamente”, podemos dizer que o objeto de
nosso conhecimento científico não é outra coisa senão a conexão explanatória entre
a privação de luz na Lua e a interposição da Terra. As três respostas são respectivamente adequadas a contextos distintos, e respondem a aspectos distintos em que se
pode falar de conhecimento. A primeira resposta parece adequada (por exemplo)
—
59
60
A tradução foi modificada em detalhes a partir de Angioni, b.
No entanto, essa é a prática corrente. Ver Barnes, , p. ; Broadie & Rowe, , p. ; Porchat, ,
p. -. A rigor, é natural que comentadores e tradutores dos tratados éticos não percebam nem vislumbrem
a possibilidade de uma interpretação mais refinada sobre o significado da exigência B. No entanto, o mesmo
ocorre também com autores que vêm procurando colmatar as lacunas entre a ética e a noção de ciência. Ver
Henry, , p. , n. Karbowski , p. .
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
aos contextos que privilegiam problemas de certificação e de justificação de nossos
estados cognitivos (ou contextos preocupados em ressaltar que o conhecimento científico é proposicional, diferente da mera familiaridade com objetos singulares).
Após estabelecer a causa apropriada do eclipse lunar, podemos dizer que sabemos,
de fato, que o eclipse lunar é o caso, no sentido de que justificadamente nos certificamos de que se trata de um fato. Já a segunda resposta parece adequada (por exemplo) aos contextos em que a preocupação central é o mapeamento dos assuntos em
suas disciplinas apropriadas. Dizer que temos conhecimento científico sobre a lua é
importante para ressaltar que se trata de um conhecimento no domínio da astronomia, não em outro domínio qualquer (sabemos algo sobre a Lua, não sobre objetos
abstratos), ou para ressaltar que, dentro do domínio da astronomia, nosso interessse
principal incide na lua, não em outro corpo celeste. Finalmente, a terceira resposta
parece adequada (por exemplo) aos contextos em que a preocupação central é, precisamente, a explicação completa e apropriada de um explanandum. Neste caso, o
que conhecemos é, precisamente, a relação explanatória — sabemos que a causa
apropriada do eclipse lunar é a interposição da Terra, ou, em outras palavras, sabemos
que é porque a Terra se interpõe entre o Sol e a Lua que esta última sofre a privação
de luz que identificamos como um eclipse.
Como nenhuma das três opções, por si mesma, exclui as demais, a preferência
por uma em detrimento das outras só pode ser determinada por fatores presentes
nos diversos contextos em que a expressão “objeto do conhecimento científico” ou
outras similares são empregadas. De minha parte, creio que a resposta correta, com
respeito a T, é a terceira, mas basta-me, por enquanto, enfatizar a equipolência
entre as três respostas para já desfavorecer a interpretação tradicional, que não é a
única opção a emanar cristalinamente dos textos61.
Alguém poderia julgar que o emprego do adjetivo “eterno” favoreceria a interpretação tradicional, porque tal adjetivo se aplicaria, em sentido estrito, apenas a objetos e,
no máximo, a verdades básicas expressas em predicações, mas não a explicações, isto é,
relações estritamente explanatórias entre um explanans e um explanandum. Essa objeção é muito frágil. Aristóteles aplica a proposições adjetivos que podem soar bem estranhos aos nossos ouvidos. Para nós, a surpresa maior já consistiria em transpor a demarcação entre objetos e proposições, aplicando também a estas últimas adjetivos que poderiam parecer adequados apenas a objetos. Mas, uma vez transposta essa fronteira, a
aplicação do adjetivo “eterna” (e outras expressões similares) a relações explanatórias (ou
—
61
Esse mesmo tratamento se aplica a outras ocorrências relevantes de “ἐπιστητόν” (como em a, b,
b-b, b) ou expressões similares (como em b, b). Sobre a expressão em Segundos Analíticos
I., ver Angioni a, p. -, .
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
a proposições que captam tais relações) não deveria mais surpreender. Em b, ao
menos de acordo com alguns códices, o adjetivo “eterna” (ἀΐδιον) é aplicado a “conclusão” (συμπέρασμα)62, e em Metafísica a (cf. Geração dos Animais b), é aplicado a relações entre atributos per se e seus sujeitos apropriados, que são exatamente os
explananda nas demonstrações. De todo modo, algumas linhas mais adiante nos Segundos Analíticos (b), o adjetivo “corruptível” (φθαρτή) é aplicado a “proposição” ou
“premissa” (πρότασις), e não é raro Aristóteles se referir a uma proposição necessariamente verdadeira com o adjetivo “ἀκίνητον”, isto é, “não suscetível a mudança” (cf.
a-; b). Em um quadro como esse, não há nada surpreendente na utilização
do adjetivo “eterna” para caracterizar a relação entre um explanans e um explanandum
— e essa utilização independe do estatuto modal das proposições envolvidas na explicação. A rigor, em b, o advérbio “sempre” (ἀεί) é diretamente aplicado a “demonstrações” de tal modo que parece sugerir que a relação causal no eclipse lunar é eterna,
ainda que a ocorrência de tais eclipses seja um fenômeno que ocorre apenas muitas vezes63. Como se sabe, nem sempre nasce um carneiro com quatro patas. No entanto,
nem por isso deixaria de ser “eterna” e “necessária” a conexão explanatória entre ter
quatro patas e ser um animal sangüíneo dotado de tais e tais características64.
Mas o mais importante para meus propósitos é que a continuação de T é bem
elucidativa no âmbito do problema que me interessa. Aristóteles prossegue do seguinte modo:
T “Além disso, parece que todo conhecimento científico é suscetível de ensino e que o objeto de conhecimento científico é suscetível de aprendizado.
Como dizemos nos Analíticos, todo ensinamento provém de itens previamente conhecidos, às vezes, por indução, às vezes, por silogismo. Ora, a indução é princípio também dos universais, ao passo que o silogismo procede
dos universais. Há, portanto, princípios dos quais procede o silogismo e dos
quais não há silogismo. Há indução deles, então. Assim, o conhecimento
científico é uma habilitação para demonstrar, e todas as outras coisas que
acrescentamos nos Analíticos. De fato, alguém tem conhecimento científico
—
Ver Angioni, a, p. -, para outra opção nos códices.
Ver Angioni, a, p. -.
64
Aristóteles aplica o adjetivo “eterna” a causas em Metafísica a. Por um lado, ele sugere que é um objeto
– o primeiro motor imóvel – que mais merece essa caracterização; mas, por outro, ao generalizar a aplicação
do adjectivo a todas as causas em pauta no contexto, ele parece ter em vista as conexões explanatórias consideradas nas matemáticas e nas ciências naturais. Além do mais, em b, o verbo “corromper-se”
(φθείρεσθαι) é aplicado a “termo mediador” (μέσον). O argumento é obscuro e difícil de compreender
(cf. Barnes , p. -) – surpreendente é o otimismo de Porchat, , p. , a esse respeito. Mas o que
me interessa é a aplicação do verbo “corromper-se” exatamente ao termo que capta o fator explanatório (a, a-, -, a-, ass.). Seja como for o detalhe do argumento em b-, Aristóteles pressupõe que, nas condições ideais, o termo mediador, que capta a causa, deve ser “eterno”, pois, se se corrompesse,
não se teria conhecimento científico (presumivelmente do explanandum – πρᾶγμα em b, – em pauta).
62
63
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quando tem uma crença de um dado tipo e quando os princípios lhe são
conhecidos. Pois, se os princípios não lhe forem mais conhecidos que a conclusão, terá conhecimento apenas por algum concomitante.” (b-,
minha tradução).
Em T, poderia ter-se a impressão de que Aristóteles adotara uma outra definição de conhecimento científico, no qual a exigência B ocuparia lugar central, sem
nenhuma menção à exigência A. No entanto, isso é pura precipitação exegética. Em
T, que é continuação imediata de T, a exigência A volta a ocupar posição central
e fica absolutamente claro que Aristóteles retoma aquilo que foi estabelecido na definição de conhecimento científico em T. Quatro pontos devem ser ressaltados a
respeito de T: (i) Aristóteles reconhece plenamente a autoridade superior dos Analíticos sobre o assunto em pauta, o que deixa claro que sua presente caracterização
do conhecimento científico seleciona apenas traços que são importantes para seus
interesses argumentativos na Ethica; (ii) a caracterização do conhecimento científico
como suscetível de ensino remete, indiretamente, à exigência A; (iii) até mesmo
traços que estão ausentes em T (ou nos Analíticos) e cuja presença em T se deve
ao interesse em pauta na Ethica se mostram, no final das contas, perfeitamente de
acordo com a definição de conhecimento científico dada em T; (iv) o modo pelo
qual a exigência A é caracterizada em T confirma que a interpretação correta da
exigência B se dá termos de B.
(i) As duas menções explícitas aos Analíticos — “como dizemos nos Analíticos”
(b-), “e todas as outras coisas que acrescentamos nos Analíticos” (b) — mas, sobretudo, a segunda, deixam perfeitamente claro que, para Aristóteles,
são os Analíticos, não a Ethica, a obra dotada de maior autoridade sobre o assunto
“conhecimento científico”. Fica claro que a discussão na Ethica apenas recolhe alguns traços mais importantes para os interesses do argumento em pauta, remetendo
o leitor (ou o ouvinte) aos Analíticos para uma caracterização mais apurada e detalhada do conhecimento científico.65 Assim, é surpreendente qualquer estratégia exegética que queira utilizar a caracterização encontrada na Ethica como parâmetro decisivo para compreender o que Aristóteles diz nos Analíticos. É antes a estratégia
inversa que deve ser adotada.
(ii) O conhecimento científico é caracterizado, no início de T, como suscetível
de ensino. Para notar que essa caracterização recupera a exigência A de T, um elo
importante é T (Refutações Sofísticas b-). Em T, Aristóteles diz que “argumentos didáticos são os que deduzem a partir dos princípios apropriados a cada
—
65
Algo similar ocorre em Ethica Eudemia b-.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
coisa”. Ensinar, para Aristóteles — nos contextos relevantes que nos interessam —,
não consiste em transmitir a outrem um conjunto de proposições verdadeiras sobre
um dado assunto, nem mesmo se esse conjunto de proposições estiver articulado
conforme relações meramente dedutivas (mas não explanatórias). Ensinar, para
Aristóteles, consiste em explicar o porquê, “a partir do princípio apropriado a cada
coisa”. Essa concepção de ensino não surpreende o leitor atento. A mesma concepção é proeminente em Metafísica I.- (a-, -) e outras passagens (Retórica
a; com nuances, Refutações Sofísticas a-).
Além do mais, o fraseado original da sentença “o objeto de conhecimento científico é suscetível de aprendizado” — em Grego, “καὶ τὸ ἐπιστητὸν μαθητόν”
(b-) — sugere que a expressão “o objeto de conhecimento científico”, neste
contexto, se refere à relação explanatória entre a causa e o pragma por ela explicado.
Creio que, neste contexto, a expressão “o objeto de conhecimento científico” dificilmente poderia ser interpretada como se referindo ao objeto Lua (para retomar os
termos do meu exemplo anterior): de fato, que a Lua existe ou que a Lua é o referente
do termo “Lua” não são coisas que se ensinam e se aprendem através de uma disciplina científica, mas são coisas com as quais já estamos familiarizados em etapas précientíficas de nosso conhecimento. De modo semelhante, visto que ensinar envolve,
precisamente, identificar as causas de fenômenos que já estão previamente codificados em proposições verdadeiras, é natural inferir que “o objeto de conhecimento
científico” (ἐπιστητὸν), ou seja, aquilo que se aprende (μαθητόν) quando um professor nos ensina a disciplina, também envolve, de maneira irredutível, as explicações que identificam causas e porquês. Aprendemos não apenas que é verdade que
a lua sofre a privação de luz identificada como eclipse; aprendemos também, e de
modo mais importante, que a lua sofre a privação de luz devido à interposição da
Terra. Para usar um exemplo que envolve proposições matemáticas: ao aprender
geometria, aprendemos não somente que a sentença “todo triângulo tem R” é uma
verdade necessária; aprendemos também, e de modo mais importante, que todo
triângulo tem R porque a essência dos itens envolvidos é tal e tal (a-ss.).
O mais importante naquilo que aprendemos, é uma conexão explanatória.
(iii) Além da suscetibilidade ao ensino, o conhecimento científico recebe, na
Ethica, duas outras caracterizações que não são proeminentes nos Analíticos. Aristóteles afirma que o conhecimento científico é uma habilitação (ἕξις), isto é, uma
capacidade consolidada pelo treino apropriado (ou, se preferirmos o sentido deflacionado e vazio que a tradição prefere atribuir a “ἕξις”, um estado da alma)66.
—
66
Defendi a interpretação de “hexis” como capacidade ou habilitação consolidada pelo exercício
em Angioni, 2009b, p.6-9, e Angioni, 2011a, p. 307, 319.
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
E Aristóteles enfatiza que o conhecimento científico envolve uma crença maior nos
princípios dos quais depende a conclusão. Esta última característica está presente
nos Analíticos (a-b), mas diluída entre muitas outras, e o fato de a Ethica a
selecionar, em detrimento das outras, se justifica pelos interesses do contexto. De
fato, o interesse da Ethica em descrever o conhecimento científico se subordina ao
interesse maior de caracterizar a phronesis como uma das virtudes racionais, pelas
quais somos capazes de alcançar a verdade (cf. b-). Dado que Aristóteles já
havia caracterizado a virtude do caráter, pertinente a certa parte não-racional da
alma, como uma habilitação (ἕξις)67, e dado que continuará a usar o mesmo conceito de habilitação (ἕξις) para caracterizar as virtudes racionais68, é natural que ele
diga que também o conhecimento científico é uma habilitação (ἕξις) — neste caso,
uma capacidade consolidada de demonstrar69, isto é, por T, de explicar um determinado explanandum por uma relação causal “que não pode ser outro modo”. Por
outro lado, a ênfase em um requisito epistemológico do conhecimento científico —
a saber, a crença maior nos princípios dos quais depende a conclusão — também é
natural nesse contexto argumentativo, pois, no interesse de ressaltar diferenças e
semelhanças entre o conhecimento científico e a phronesis, é propício ressaltar aspectos psicológicos dos quais depende o sucesso de cada uma na performance de
suas funções — isto é, o sucesso da demonstração e o sucesso da agência racional
ou, mais precisamente, da ação virtuosa (cf. a-ss.).
No entanto, o modo pelo qual esse requisito epistemológico é tratado nos Analíticos remete novamente à exigência A encontrada em T. Pois ter crença maior nos
princípios dos quais depende a conclusão da demonstração, bem como conhecê-los
mais, consiste, no final das contas, em reconhecer que esses princípios captam a
causa daquilo que a conclusão expressa (cf. a-). É porque os princípios são a
causa mediante a qual a conclusão é devidamente explicada que se pode dizer que
conhecemos mais os princípios e, também, temos mais confiança neles70.
(iv) Finalmente, o modo pelo qual T explicitamente justifica o requisito epistemológico acima mencionado — a saber, a crença maior nos princípios dos quais
depende a conclusão — também confirma o acordo entre T e T. No final de
T, Aristóteles nota que, “se os princípios não lhe forem mais conhecidos que a
—
Em ambos tratados (pois o livro VI é um livro comum): Ethica Nicomachea b, ; b; a, ,
; b; Ethica Eudemia b; a, , , -; b; a.
68
Cf. a, , , , ; b, .
69
Os adjetivos ligados a hexis (cf. a-; a, -, -; b, -) expressam as ações ou atividades
das quais a hexis em questão é uma capacidade consolidada pelo exercício. Assim, hexis apodeiktike é uma
capacidade ou habilitação para demonstrar.
70
Defendi esse ponto com algum detalhe em Angioni a, p. -. Para uma análise de a-b, ver Bronstein, , p. .
67
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
conclusão, terá conhecimento apenas por algum concomitante” (b-). Como
ressaltei no ponto anterior, o que faz alguém ter uma crença maior nos princípios
da demonstração é o reconhecimento de que esses princípios captam a causa daquilo
que a conclusão expressa. Assim, se alguém falha em ter mais confiança nos princípios do que na conclusão, é porque seus princípios não captaram a causa apropriada.
Em vez de captar a causa apropriada para explicar o explanandum em pauta, o fulano que falha em confiar mais nos princípios captou, como suposta causa, algo que,
do ponto de vista explanatório, é um mero concomitante que acompanha seu explanandum. Alhures, expliquei com detalhe que “ter conhecimento [de um dado
explanandum] por algum concomitante” (ἐπίστασθαι κατὰ συμβεβηκός) significa,
nos contextos apropriados, como T e a- (acima citado ao comentar T), explicar um dado explanandum por alguma característica que, mesmo quando é necessariamente verdadeira a respeito do sujeito em questão, não capta a causa apropriada para tal explanandum e, do ponto de vista explanatório, apenas o “acompanha”71. É precisamente este ponto que é retomado no final de T. Tentar entender
T sem recurso aos Analíticos, neste caso, leva a interpretações bem incorretas —
como a tentativa de entender a expressão “por um concomitante” como se ela incidisse sobre a atribuição de conhecimento ao sujeito cognoscente — erro que é facilitado pelas traduções de “κατὰ συμβεβηκός” como “acidentalmente”. No entanto,
em b — bem como em b, , a — “κατὰ συμβεβηκός” é uma expressão com significado causal: “κατὰ + acusativo” tem aí força causal, e “συμβεβηκός”
se refere a atributos que, exatamente do ponto de vista explanatório, apenas vão junto
do explanandum sem captar o fator mais importante para explicá-lo. Por isso, traduções como “com base em um concomitante” ou “por um concomitante” é que
captam o sentido correto dessas ocorrências de “κατὰ συμβεβηκός”.
A próxima passagem é, na ordem do texto de Aristóteles, anterior a T, mas foi
conveniente deixar sua análise para o último passo de minha discussão. No capítulo
anterior da Ethica, lemos:
T “Considere-se que as partes [sc. da alma] que possuem razão são duas:
uma é aquela pela qual conhecemos os tipos de entes cujos princípios não podem ser de outro modo; outra é aquela pela qual conhecemos as coisas que
podem ser de outro modo.”72 (a-).
O crucial desta passagem consiste na descrição da parte da alma à qual compete
o conhecimento científico: “aquela pela qual conhecemos os tipos de entes cujos
—
71
72
Ver Angioni, , p. -; Angioni, b, p. -.
Lendo o texto de Bekker. Mais adiante, comento a conjetura de Irwin, .
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
princípios não podem ser de outro modo” (a-). Veja bem: Aristóteles não diz
“pela qual conhecemos os tipos de entes que não podem ser de outro modo”. Aristóteles
ressalta, precisamente, que são os princípios que não podem ser de outro modo.
Poder-se-ia dizer que “os princípios não podem ser de outro modo” ou bem porque tais princípios existem necessária e eternamente (no caso de “princípios” se referir a objetos, como deus e as esferas celestes, cf. “causas eternas” em a), ou
bem porque todas as proposições que servem de princípios no conhecimento científico são proposições necessariamente verdadeiras. No entanto, ambas as sugestões
são insuficientes e mesmo errôneas para caracterizar aquilo que se conhece cientificamente. Seria surpreendente se Aristóteles, mesmo sob a pressão de ser breve para
ir ao que mais lhe interessa no contexto, selecionasse precisamente essa característica
para aludir ao conhecimento científico. Alguém pode conhecer a definição do triângulo e saber que ela é uma proposição necessariamente verdadeira, mas ignorar
de que modo ela explica a atribuição de R aos triângulos.73 Seria absurdo dizer que,
nessa situação, tem-se conhecimento científico do atributo R. (É por isso que a
exigência A está em T: pois ela obviamente evita essa conseqüência absurda). Além
do mais, como já argumentei, passagens como T resultam em teses falsas e embaraçosas, se a exigência B for tomada de acordo com essas sugestões.
Além do mais, há um problema quanto à motivação de Aristóteles para a afirmação exata que ele fez em T. No domínio da geometria, por exemplo, todas as proposições, inclusive os teoremas que se quer demonstrar, não podem ser de outro
modo, se “não poder ser de outro modo” significa ser uma proposição necessariamente verdadeira (em termos de B). Mas por que razão, em vez de ressaltar esse
ponto mais geral, Aristóteles selecionaria os princípios como sujeito do predicado
“não poder ser de outro modo”?74
É bem claro que, no contexto das discussões na Ethica, a motivação para dizer
que os princípios não podem ser de outro modo se deve ao interesse de destacar que
a outra parte da alma, que comanda a ação, lida com coisas e princípios que podem
ser de outro modo (cf. Ethica Eudemia b-ss.; Ethica Nicomachea ass.).
Esse ponto fica ainda mais claro na tradução de Irwin (“with the other we study
beings whose principles admit of being otherwise”), que faz a conjectura “τὰ ὧν
—
73
74
Ver Bronstein, , p. .
Em Broadie & Rowe, , p. , lemos: “things whose principles are necessary are themselves necessary”.
Certo. Mas o interesse de Aristóteles incide (i) no caráter necessário dos princípios em si mesmos, (ii) ou na
relação explanatória entre princípios e explananda, (iii) ou em ambos? Essa é a questão importante.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
ἐνδέχονται” em vez das opções nos códices em a75. No entanto, como argumentarei logo abaixo, a interpretação de T em termos de B permite compreender
a motivação de Aristóteles de modo bem mais coerente e satisfatório.
Resta ainda outro problema. Se T for interpretado de acordo com a opção B
(ou mesmo B*, como em Broadie & Rowe , p. ), resultará uma estranha
anatomia da alma. É como se Aristóteles dissesse que, por um lado, uma parte da
alma é apta ao conhecimento científico de verdades necessárias (o que incluiria, a
rigor, apenas as matemáticas, a cosmologia e a teologia) e, por outro lado, outra
parte da alma é apta ao conhecimento de verdades não-necessárias — o que obrigaria
Aristóteles a agrupar na segunda parte da alma coisas tão díspares como o conhecimento prático e as ciências biológicas (que lidam com proposições verdadeiras no
mais das vezes). Mas, como nota Irwin a respeito das coisas contingentes, “in fact
not all these states of affairs are matters of rational calculation and deliberation, as
a-b makes clear” (Irwin , p. ). Aristóteles, portanto, estaria sendo
bem impreciso em sua divisão da alma racional. Para tentar evitar o problema, podese contrabandear as verdades biológicas para a alçada da primeira parte da alma com
a opção B*: a rigor, toda a ciência da natureza lidaria com “padrões que, em casos
individuais, são necessários-a-não-ser-que-algo-interfira”76.
Por outro lado, a interpretação que defendo nos livra de atribuir a Aristóteles esse
contrabando na anatomia da alma racional, bem como nos livra de lhe imputar a
imprecisão que Irwin notou. Como ressaltarei em seguida, ela tem ainda outra vantagem exegética. Com a opção B ou B*, o contraste entre as duas partes da alma
aludiria apenas às características que explicam ou pressupõem a voluntariedade da
ação: pois o contraste enfatiza que, no domínio das ações, há abertura para os contrários, visto que está no domínio do agente fazer ou não fazer F etc. Seria uma
estratégia compreensível da parte de Aristóteles destacar essas características no contexto de T. No entanto, a caracterização da phronesis como uma virtude intelectual
que controla o sucesso da ação moral ganhará muito mais força se forem destacadas
também outras características daquilo que cai sob sua alçada. Um painel coerente e
bem mais informativo resulta das características que se destacam com a interpretação da exigência B em termos de B.
Seja F uma ação qualquer, que está no domínio do agente fazer ou não fazer.
Suponha que F corresponde a uma ação virtuosa, ao menos em seus aspectos externos. Uma questão relevante, para caracterizar a phronesis e suas relações com as virtudes do caráter, é que F pode ser praticada por uma série de razões: por vergonha
—
75
76
cf. Irwin , p.
“Patterns which in individual cases are necessary-unless-something-interferes”. (Ibid, p. .).
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(e receio de má reputação); por medo da retaliação prevista em lei; pelo cálculo das
vantagens materiais que se seguiriam; por que um amigo recomendou (embora o
agente não tenha entendido o porquê); por que se reconheceu o valor moral intrínseco de F etc. Essas razões estão incluídas na gama de possíveis respostas para a
pergunta “qual é a causa pela qual o agente H fez a ação F?”. Nessa situação, são
verdadeiras as seguintes afirmações:
(i) F é contingente, pois o agente pode fazer ou não fazer F.
(i*) a própria agência que pode causar F é, por isso, contingente (pode ser ou não ser);
(ii) as causas pelas quais F poderia acontecer são várias (i.e., vergonha, medo etc.)
A interpretação de T em termos de B* captura apenas o ponto (i) e sua contraparte (i*). No entanto, capturar o ponto (ii) seria bem mais relevante no contexto
de T. É bem claro que ações virtuosas praticadas de modo virtuoso exigem a causa
correta (cf. a-, a-). Se a phronesis é uma virtude intelectual que, de
um modo ou de outro, colabora para que ações virtuosas sejam praticadas de modo
virtuoso, é claro que ela colabora na determinação da causa correta. Assim, para ressaltar a contribuição da phronesis nessa tarefa, ressaltar o ponto (ii) é muito mais
esclarecedor que ressaltar os pontos (i) e (i*) — ou seja, ressaltar que as causas pelas
quais F poderia acontecer são várias é muito mais esclarecedor do que ressaltar que
F é contingente e que o agente é voluntário. Além do mais, os pontos (i) e (i*) se
seguem do ponto (ii), mas não vice-versa.
Não é meu objetivo entrar em detalhes sobre as controvérsias relativas ao papel da
phronesis.77 No entanto, como se poderia considerar questionável a premissa de que a
phronesis colabora na determinação da causa correta das ações virtuosas, desenvolverei
outra opção para interpretar T, a partir da premissa de que a phronesis contribui
para especificar em que consiste, concretamente, a realização de um propósito virtuoso em uma dada circunstância78. Seja P um propósito moral qualquer, que dá um
orientação geral sobre como o agente deve, em cada circunstância particular, praticar
uma ação virtuosa de modo virtuoso — por exemplo, “usufruir dos prazeres da bebida
do modo como se deve”. Entre P e uma ação do tipo F que conta de modo relevante
como realização bem sucedida do propósito moral P, há grande distância, graças à
indeterminação dos diversos fatores relevantes envolvidos nas circunstâncias. Assim,
é possível que o mesmo propósito geral P acabe por engendrar propósitos específicos
bem diversos, P e P, nos quais o “como se deve” terá sido satisfeito de modo bem
—
Minha posição sobre isso está em Angioni, a. Para discussões recentes, ver Lorenz, , Coope, ;
Moss, e Moss, .
78
No que se segue, adoto alguns pressupostos que podem ser rastreados em Angioni, a. Ressalto que “propósito” é minha opção para traduzir “προαι'ρεσις”. Ver Angioni, a, p. -.
77
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
diverso: P determina beber um pouco além do limite, em vista de uma circunstância
específica; P determina beber menos que a média regular, em vista de outras complicações circunstanciais. Como é tarefa da phronesis fazer uma avaliação da importância moral das circunstâncias, é claro que ela terá papel relevante na determinação
de P e P, que são princípios ou causas (cf. a) de onde procedem ações que
instanciam, de modo satisfatório, a ação virtuosa do tipo F.
Assim, em qualquer uma das duas situações acima descritas — sem entrar na
discussão sobre qual delas é uma melhor interpretação sobre o papel da phronesis —
, a relação entre princípio e ação (aquilo de que o princípio é princípio) não é uma
relação um-para-um. Pelo contrário:
(ii) as causas pelas quais a ação F poderia acontecer são várias.
Podemos ver a vantagem exegética da interpretação da exigência B em termos de
B: ela permite ressaltar ambos o ponto (ii), que implica (i)-(i*). Assim, a motivação
de Aristóteles para selecionar os princípios como sujeito do predicado “não poder ser
de outro modo” em T resulta bem mais coerente e interessante. O mesmo tratamento exegético que alhures apliquei a T vale também para T: “princípios”,
como sujeito do predicado “não poder ser de outro modo”, se refere aos itens que
são princípios, mas não enquanto são tomados em si mesmos, independentemente
do papel explanatório que desempenham em relação a um explanandum. Pelo contrário: como sujeito do predicado “não poder ser de outro modo”, em T, “princípios” remete a tais itens exatamente enquanto eles desempenham o papel de princípio
explanatório em relação a um dado explanandum. Nesse âmbito, dizer que os princípios não podem ser de outro modo está longe de colapsar na afirmação de que tais
princípios são, em si mesmos, proposições necessariamente verdadeiras. Ainda que
tais princípios sejam, de fato, proposições necessariamente verdadeiras (como, de
fato, o são nas matemáticas), o que Aristóteles quer dizer em T é algo bem diferente. Ele quer dizer que, para cada um desses princípios, a relação explanatória
entre o princípio e seu explanandum não pode ser de outro modo. O que, por exemplo, não pode ser de outro modo, nessa perspectiva? A causa do eclipse lunar ser,
exatamente, a interposição da Terra entre o Sol e a Lua é algo que não pode ser de
outro modo. Por isso, o princípio do explanandum eclipse lunar, enquanto este último é precisamente o que é (cf. b, a), não pode ser de outro modo.
Em contrapartida, a outra parte da alma, identificada em a, lida com relações
explanatórias nas quais essa descrição não pode ser aplicada. É certo que as proposições elementares envolvidas nessas relações explanatórias tampouco são, em si mesmas, verdades necessárias. Mas não é esse o ponto mais relevante. Pois há outro domínio em que as proposições são, em si mesmas, verdadeiras apenas no mais da vezes,
mas as relações explanatórias não podem ser de outro modo — o domínio das ciências
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
naturais. Que os carneiros têm quatro patas é uma proposição verdadeira apenas no
mais das vezes. Mas essa propriedade dos carneiros é explicada por outra propriedade
mais básica: por exemplo, ser um animal sanguíneo com tais e tais características. Essa
relação explanatória — entre ter quatro patas no mais das vezes e ser um animal sangüíneo com tais e tais características — é tal que não pode ser de outro modo. Assim, os
princípios pelos quais os carneiros têm, normalmente, quatro patas são tais que não
podem ser de outro modo, e a ciência biológica pode ficar alojada ao lado das matemáticas na mesma parte da alma, sem nenhum contrabando79.
Por outro lado, uma ação F é algo que Aristóteles considera como contingente: ela
pode ocorrer ou não ocorrer. Também é verdade que uma ação F (supondo que se
trata de uma ação virtuosa em seus aspectos externos) pode vir a ocorrer graças a princípios totalmente diferentes entre si: pode-se fazer F por vergonha, por medo da retaliação legal, pelo reconhecimento de seu valor moral intrínseco etc. E, neste último
caso, o princípio geral pelo qual se reconhece o valor moral intrínseco de F pode,
ainda, se multiplicar em uma variedade de propósitos mais específicos, cada qual adequado a uma circunstância particular. Assim, o princípio de uma ação como F é tal
que pode ser de outro modo. Em outras palavras, a relação explanatória entre uma ação
F e o princípio que pode lhe dar origem é tal que pode ser de vários modos. Discussões
sobre a voluntariedade das ações privilegiam o primeiro ponto: tais ações são, em si
mesmas, contingentes. No entanto, discussões sobre a phronesis enquanto virtude intelectual que contribui para que ações virtuosas sejam feitas virtuosamente se tornam
muito mais interessantes se focalizarem o segundo ponto: o princípio de um ação
como F é tal que pode ser de outro modo. A rigor, se o princípio de uma ação como F
fosse tal que não pudesse ser de outro modo, a phronesis não seria requisitada.
6. Conclusão
T, ao enfatizar que são os princípios que não podem ser de outro modo, se encontra
em perfeita consonância com a definição de conhecimento científico em T, intepretada em termos de adequação explanatória, ou seja, em termos da opção B para
o chamado requisito da necessidade. E nisso T não é diferente de nenhuma das
—
79
Minha discussão pressupõe que o tipo de cognição ligado à segunda parte da alma (a que lida com coisas
contingentes cujos princípios também podem ser outro modo) é, no contexto de T, o conhecimento prático
em sentido estrito: aquele conhecimento que um agente mobiliza para determinar e realizar uma ação concreta. É importante ressaltar que há uma diferença entre esse conhecimento prático de cada agente e o empreendimento que Aristóteles desenvolve nas Éticas. O conteúdo das Éticas, ou ao menos boa parte dele,
poderia perfeitamente ficar sob a alçada da primeira parte da alma, juntamente com as matemáticas e as
ciências naturais. É que, no nível de generalidade que é suficiente para a teoria desenvolvida nas Éticas, a
adequação explanatória dos princípios não é muito diferente do que se encontra nas ciências naturais.
Sobre isso, ver discussão em Karbowski, , Henry, , p. -.
Lucas Angioni Aristóteles e a necessidade do conhecimento científico
demais passagens que consideramos. Em todas essas passagens, a remissão de Aristóteles à noção de conhecimento científico se mostra, sob o devido escrutínio, em
perfeita consonância com a definição de conhecimento científico em T.
Foi sugerido por Barnes (, p. ) que a definição de conhecimento científico
em T seria o resultado de uma infeliz justaposição de duas partes desconexas.80
Observando a importância das causas na ciências naturais, Aristóteles teria proposto
a exigência A; observando a importância da necessidade das matemáticas, Aristóteles
teria chegado à exigência B — e erroneamente juntado as duas partes em uma mesma
definição universal. Pelo exame dos textos coligidos neste artigo, espero ter mostrado
o contrário: que a definição de conhecimento científico em T é bem coerente.81
Nota de Homenagem a Oswaldo Porchat:
Em , quando minha pesquisa de iniciação científica sobre a Metafísica de Aristóteles exigiu estudo mais apurado dos Segundos Analíticos, meu orientador, José
Cavalcante de Souza, me apresentou à tese de doutorado de Oswaldo Porchat, a
qual li de imediato, com imenso interesse e entusiasmo. O apuro exegético da tese
era impressionante, mas o que mais me impressionou foi a tenacidade de Porchat.
O modo pelo qual ele examinava os problemas exegéticos sobre os textos de Aristóteles era muito superior a tudo que eu conhecia na época. Não muito depois, consolidei juízo que até hoje preservo: apresentada em , a tese de Porchat era muito
superior à maioria dos autores com os quais ele discutia (por exemplo, LeBlond,
Suzanne Mansion, Pierre Aubenque, F. Solmsen), estando em nível equiparável a
coisas que, então, ou logo depois, surgiam como novidade na exegese de Aristóteles
(por exemplo, Barnes e Mignucci). Meu contato com sua tese teve um significativo
impacto em minha formação, e sua tenacidade me serviu de inspiração. Não larguei
os Segundos Analíticos, e não os largarei.
—
80
81
Barnes, , p. : “we might surmise that Aristotle, observing the importance of necessity to mathematic
sciences and the importance of explanatoriness to the natural sciences, mistakenly concluded that both necessity and explanatoriness must be essential parts of any proper or scientific knowledge”. Não vou discutir
o problema da relação entre explicação causal e matemáticas (ver Barnes, , p. -).
Agradeço a Fernando Mendonça e Breno Zuppolini pelas sugestões e comentários a versões prévias deste artigo.
discurso, v. 50, n. 2 (2020), pp. 193–238
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