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Jacques mick | João Kamradt O fim da nOtícia a monopolização da mídia e o trabalho dos jornalistas Florianópolis 2017 Jornal A notícia 15x21.indd 5 06/05/17 05:56 O fim da nOtícia a monopolização da mídia e o trabalho dos jornalistas Jacques Mick | João Kamradt CONSELHO EDITORIAL Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Fernando Serra, Jali Meirinho, Natalina Aparecida Laguna Sicca e Salvador Cabral Arrechea (Argentina) EDITOR Nelson Rolim de Moura DIREÇÃO DE ARTE, PROJETO GRÁFICO E CAPA Estúdio Insular REVISÃO Carlos Neto M???o Mick, Jacques; Kamradt, João. O fim da notícia: a monopolização da mídia e o trabalho dos jornalista / Jacques Mick, João Kamradt. Florianópolis: Insular, 2017. ??? p. ISBN 978-85-7474-972-3 1. Jornalismo. 2. Comunicação. 3. Jornal A Notícia. 4. Santa Catarina. 5. Empresas jornalísticas. I. Títulos. CDU 070.4 Jornal A notícia 15x21.indd 6 Editora Insular Insular Livros (48) 3232-9591 editora@insular.com.br twitter.com/EditoraInsular www.insular.com.br facebook.com/EditoraInsular Rua Antonio Carlos Ferreira, 537 Bairro Agronômica Florianópolis/SC – CEP 88025-210 (48) 3334-2729 insularlivros@gmail.com 06/05/17 05:56 Sumário Introdução ........................................................................................................11 1. RBS, oligopólio em expansão .................................................................. 23 1.1 O maior negócio da história da mídia catarinense ........................ 28 1.2 As mudanças editoriais ..................................................................... 39 1.3 A tabloidização, da retórica ao retorno ........................................... 45 1.4 Resultados ambivalentes ................................................................... 51 2. Um balanço das críticas sobre as mudanças editoriais ...................... 55 2.1 A nova elite abre caminho para o oligopólio .................................. 57 2.2 Um caso: a cobertura das eleições municipais ............................... 71 3. Os jornalistas observam a concentração ............................................... 81 3.1 Representações e habitus dos jornalistas: opções teórico-metodológicas .......................................................... 83 3.2 As condições de trabalho e o “massacre diário” ............................. 93 3.2.1 A organização da produção .................................................... 98 3.3 As transformações nos saberes profissionais .................................104 3.3.1 A pauta e o saber de reconhecimento ............................. 104 3.3.2 A apuração e o saber de procedimento ........................... 111 3.3.3 O texto, a edição e o saber de narração .......................... 115 3.4 As várias faces da apropriação do trabalho ................................... 120 3.5 Uma síntese ........................................................................................127 Jornal A notícia 15x21.indd 9 06/05/17 05:56 4. Monopolização e choques de cultura na empresa ..............................131 4.1 Concentração de propriedade e cultura de empresa .................... 133 4.2 O ofício como referência ................................................................. 141 5. Multifuncionais, superexplorados – e impassíveis ............................ 149 5.1 Mudanças no comando e no perfil do trabalho do jornalista .... 156 5.2 Redação enxuta e funções acumuladas ......................................... 165 5.3 Mexendo no visual para reduzir os gastos e o conteúdo ............. 170 5.4 Apequenamento no Estado, localismo de bandeira e “vínculo” com a comunidade ...................................................... 179 5.5 Em vez de notícias, conteúdo ......................................................... 185 6. Os críticos se conformam ....................................................................... 193 Referências .................................................................................................... 209 Referências bibliográficas ...................................................................... 209 Links e arquivos eletrônicos ................................................................. 213 Depoimentos ..................................................................................................214 Agradecimentos e breve história da pesquisa ........................................ 217 Jornal A notícia 15x21.indd 10 06/05/17 05:56 Introdução E ste livro examina os efeitos de um caso exemplar de concentração da propriedade na mídia no Brasil: a aquisição, pelo Grupo RBS, de um dos jornais mais antigos de Santa Catarina, o diário A Notícia, em 2006. Ao longo de dez anos, os autores acompanharam as mudanças impostas pela RBS ao diário de Joinville (região Norte do Estado), com atenção especial para as consequências sobre os jornalistas. O modo como se dá a transformação no processo de produção do jornalismo em cada veículo afetado pela concentração da propriedade é um tema ainda pouco estudado. Como os jornalistas percebem as mudanças implantadas – na pauta, na apuração, no texto, na captação e no uso das imagens e na edição – após a aquisição de um veículo isolado por um grupo de mídia? Em que medida, por exemplo, as pautas passam a refletir interesses dos novos proprietários, em contraste com os dos antigos? Como reconhecem e interpretam os impactos dessas transformações quanto aos efeitos sociais do jornalismo? Como reagem diante do uso de seu texto ou imagem por outros veículos do grupo? Tais representações apenas corroboram as críticas à concentração da propriedade ou apontam novos temas para a reflexão? A Notícia era um diário de propriedade familiar até ser adquirido pelo Grupo RBS. Desde a transferência do controle, em 1º de outubro de 2006, até a venda para outros controladores, dez anos depois, o jornal adotou transformações editoriais importantes: o formato foi reduzido de standard para tabloide; a tiragem diminuiu quase à metade e a circulação restringiu-se ao Norte do Estado, assim como o 11 Jornal A notícia 15x21.indd 11 06/05/17 05:56 JACQUES MICK | JOÃO KAMRADT escopo da cobertura; mais de uma centena de colunistas, editores e repórteres foram demitidos, reduzindo a redação a um quarto do tamanho original; editorias foram suprimidas ou fundidas, num extenso processo de reestruturação produtiva; intensificou-se a exploração do trabalho dos remanescentes, tanto pela multifuncionalidade, quanto pelo uso do conteúdo produzido pelos profissionais nas diversas mídias do grupo. A percepção dos jornalistas sobre tais transformações é influenciada, como em todo grupo social, pelo pertencimento a um campo (o jornalístico) e pela subordinação às hierarquias que o constituem. As mudanças que afetaram o modo como o jornal é feito envolveram diretamente o saber profissional e o habitus dos jornalistas. Tomamos como referência teórica para a análise as pesquisas de Bourdieu (1979) com trabalhadores argelinos que resultaram na retomada, pelo autor, do conceito de habitus, e as reflexões sobre o conceito e seus usos pelo sociólogo francês em obras posteriores (1983; 1989; 1996; 2007; 2009). No diálogo com Bourdieu, mobilizamos três categorias recolhidas por Traquina (2004; 2005) para constituir esquematicamente a especificidade do saber profissional dos jornalistas: os saberes de reconhecimento, procedimento e narração. *** A posse da mídia no Brasil e no mundo tem se reconfigurado, seguindo um padrão: o aumento da concentração de propriedade desde os anos 1990 é acompanhado pela multiplicação no número de veículos e pela diversificação das mídias. É uma dinâmica complexa, em que se constituem pequenos jornais e revistas, emissoras comunitárias de rádio e TV, com alcance restrito, e na qual a internet viabiliza a emergência de uma variedade de formatos e linguagens para o conteúdo midiático sem a limitação de alcance territorial típica 12 Jornal A notícia 15x21.indd 12 06/05/17 05:56 O FIM DA NOTÍCIA – A MONOPOLIZAÇÃO DA MÍDIA E O TRABALHO DOS JORNALISTAS dos outros canais. Tal variedade de mídias e veículos contrabalança os impactos da concentração da propriedade, que alcança os principais títulos e emissoras e a própria plataforma tecnológica da internet. Sobretudo no Ocidente, a formação de poucos e poderosos oligopólios midiáticos implica em riscos para a diversidade cultural e a democracia, como apontam, unanimemente, os analistas desse fenômeno. Em 1993, Bagdikian projetava em uma dezena o número de grandes empresas de mídia com poder dominante na sociedade. Duas décadas depois, outro levantamento conhecido como Top Thirty Global Media Owners, apontou que a propriedade da mídia global se concentrava nas mãos de vinte conglomerados, com receitas anuais entre US$ 5 bilhões e US$ 37 bilhões. Moraes (2003, p. 198-200) estimava que esses veículos eram responsáveis por dois terços das informações e dos conteúdos culturais que circulavam no planeta. No Brasil, durante a redemocratização, várias das famílias que nas décadas anteriores haviam ostentado poder e riqueza derivados da propriedade de meios de comunicação saíram do ramo, em função principalmente de sua incapacidade de responder a mudanças macroeconômicas (os Bloch, os Caldas e os Nascimento Brito, por exemplo). Surgiram outros players agressivos, com capital proveniente de investimentos ramificados em vários setores, inclusive aqueles que haviam sido objeto de privatização (caso de Nelson Tanure). Alguns conglomerados de mídia com atuação regional, associados a grupos nacionais, lograram reestruturar sua gestão e a equação entre seus custos e receitas, obtendo com isso recursos que fomentaram fusões e aquisições e estenderam os efeitos da oligopolização aos mercados locais. O caso mais completo dessa transformação é o do Grupo RBS. A concentração da propriedade na mídia tem causas sistêmicas, relacionadas às tendências estruturais do capitalismo e a consequências específicas de sua fase atual, caracterizada pela financeirização da riqueza e pela mundialização do capital em escala inédita. Várias 13 Jornal A notícia 15x21.indd 13 06/05/17 05:56 JACQUES MICK | JOÃO KAMRADT pesquisas apontam a concentração como uma tendência relacionada à globalização econômica, à planetarização das políticas e à mundialização cultural (categorias de Dreifuss, 1996). Os conglomerados (midiáticos ou não) surgem em resposta à redução das taxas de retorno, como um passo na direção da retomada de poderes monopólicos (HARVEY, 203, p. 145-148). Essa explicação permite entender melhor o modo como oligopólios locais ou regionais, como a RBS, se relacionam a conglomerados de atuação nacional, a exemplo da Rede Globo, ou transnacional. Há complementaridades e sinergias, mas também superposições, rivalidades e interesses contraditórios, o que reforça a importância de evitar interpretações lineares (sobretudo quanto ao alcance da ação dos conglomerados de mídia na “construção da realidade” ou na “reprodução de representações dominantes”). A tendência à concentração de propriedade, inerente ao capitalismo, foi incrementada, no que diz respeito à mídia, pelo conjunto de inovações tecnológicas e de conhecimento que estão transformando o jornalismo e a vida no planeta desde os anos 1960. A mídia ocupa lugar estratégico na reconfiguração contínua do capitalismo contemporâneo pelos tecnobergs, acróstico sugerido por Dreifuss (2003, p. 107) para sintetizar esquematicamente as inovações nas áreas de teleinfocomputrônica via satélite, engenharia de produção, cognição, nanotecnologia, optoeletrônica, biotecnologia, energias alternativas ou novas, robótica, genética e serviços inteligentes. Sem os tecnobergs, não seriam possíveis a mundialização do armazenamento e distribuição da informação e dos produtos, dos serviços de entretenimento, atendimento e consumo; a globalização da produção, finanças e comércio, que se constituem com seus horizontes de geonomia e gaianomia. E, ainda, faltariam condições para começar o lento, complicado e complexo processo de planetarização da administração e institucionalização (Dreifuss, 2003, p. 113). 14 Jornal A notícia 15x21.indd 14 06/05/17 05:56 A combinação entre a expectativa de lucros e a de influência alimenta a disposição de players globais para investir na mídia (Karam, 2004, p. 227). Os tecnobergs ampliaram a importância estratégica do discurso das mídias de massa, que ocupa espaço crescente desde a emergência da modernidade. Assim, as empresas antes consideradas estritamente jornalísticas adquirem ou se associam a outros ramos da comunicação, como o da telefonia fixa ou celular, o das redes e sub-redes de computadores, o da transmissão de dados ou correio, o do entretenimento. Mais ainda: compram ou associam-se a empresas de fora do setor de comunicação, como o armamentista, o banqueiro e o agropecuário, entre muitos outros (Karam, 2004, p. 227).1 Nesse novo contexto, os grupos de mídia partilham do poder de consagrar, relevante para a indústria cultural (ou para o mercado de bens simbólicos) e para o campo político, entre outras esferas de ação social. Moraes enfatiza as consequências sociais desse domínio da produção de bens simbólicos: as organizações de mídia projetam-se, a um só tempo, como agentes discursivos, com uma proposta de coesão ideológica em torno da globalização, e como agentes econômicos proeminentes nos mercados mundiais, vendendo os próprios produtos e intensificando a visibilidade de seus anunciantes (2003, p. 191). O autor critica o que considera uma estratégia da mídia global, que preserva espaços para respeitar a autonomia de territórios 1 O aprofundamento da convergência digital – a depender da resolução do embate en- tre os principais players mundiais nos canais por onde circulará a informação (ondas de radiodifusão, telefonia celular ou convencional, cabo ou satélite) – pode transformar o cenário atual na direção de ainda maior concentração, como notou Giddens: “À medida que as corporações de mídia passam a ficar cada vez mais concentradas, centralizadas e a ter um alcance global, há motivos para preocupações de que o importante papel da mídia enquanto fórum de livre discurso, expressão e debate acabe sendo reduzido” (2007, p. 387). 15 Jornal A notícia 15x21.indd 15 06/05/17 05:56 JACQUES MICK | JOÃO KAMRADT específicos, sem necessariamente impor conteúdos homogêneos a todos eles. Isso resultaria em “uma concentração de poder sem centralização operacional”: Todavia, não percamos de vista que essa flexibilidade é relativa, pois filiais e subsidiárias permanecem no raio de eventuais reorientações da matriz. A holding desfaz as estruturas piramidais de comando e articula uma rede corporativa constituída por elementos complementares, mas mantém ascendência sobre o todo. Vale-se para isto de mecanismos de controle das metas de produção e lucro viabilizados pela informatização de processos e sistemas (Moraes, 2003, p. 198). A concentração da propriedade da mídia que surpreendeu nações ocidentais nos anos 1990 era tema amplamente conhecido dos brasileiros. “Quando se trata da radiodifusão e da imprensa, na verdade, nos antecipamos à tendência de concentração da propriedade manifestada pela chamada ‘globalização’: a propriedade entre nós sempre foi concentrada e, ademais, segundo parâmetros inexistentes em outros países” (Lima, 2006, p. 112). Há causas sistêmicas e conjunturais para esse pioneirismo. Entre elas, está a legislação multiforme que regulamenta os serviços de comunicação e a radiodifusão no Brasil, e mantém como letra morta o artigo 220 da Constituição Federal, segundo o qual “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. “O padrão universal de concentração de propriedade e a presença dos global players encontram no Brasil um ambiente historicamente acolhedor. Nossos mass media se estabeleceram oligopolisticamente” (Lima, 2001, p. 96). Lima aponta duas características que se combinam à concentração de propriedade no desenho da morfologia da mídia no Brasil: o predomínio da propriedade familiar e as fortes vinculações dos grupos de mídia com as elites políticas. A redemocratização do país, a partir de 1985, teve pouco impacto sobre a concentração de 16 Jornal A notícia 15x21.indd 16 06/05/17 05:56 O FIM DA NOTÍCIA – A MONOPOLIZAÇÃO DA MÍDIA E O TRABALHO DOS JORNALISTAS propriedade na mídia, que continuou a produzir efeitos duradouros na sociedade, no campo jornalístico e no campo acadêmico no país, às vezes em contradição com transformações que afetaram outros campos sociais no período. Estudos de economia política da comunicação analisaram a morfologia da concentração da propriedade da mídia no Brasil e a classificaram como horizontal (quando envolve veículos distintos em uma mesma mídia), vertical (quando um grupo controla uma cadeia produtiva inteira em uma mídia, por meio de várias empresas), cruzada (quando mobiliza veículos de diversas mídias) e de monopólios em cruz. Esta última categoria é utilizada para caracterizar grupos como a RBS. Designa o padrão das redes regionais, em que a concentração de canais em poucos veículos num dado território se agrega à concentração dos mais poderosos desses canais em uma só rede. Os monopólios em cruz constituem a “reprodução, em nível local e regional, dos oligopólios da ‘propriedade cruzada’” (Lima, 2001, p. 103). A conformação é semelhante em quase todos os estados brasileiros, e combina a propriedade de canais de televisão afiliados à Rede Globo com diários dominantes em mercados locais, regionais ou estaduais, emissoras de rádio AM e FM e, mais recentemente, portais de internet. É esta a configuração do Grupo RBS, que acrescenta a tal estrutura canais de TV a cabo e a promoção permanente de eventos e ações de marketing para públicos segmentados.2 É impróprio designar a RBS como um monopólio – circunstância em que a concorrência estaria integralmente eliminada, o que não é o caso –, mas é possível designar as ações do grupo como promotoras de “monopolização”, na medida em que tal expressão designa a progressiva eliminação da competitividade, dada a assimetria entre os players em ação no mercado. 2 Fonseca (2008, p. 130 e ss.) realizou cuidadosa caracterização do caráter monopólico da RBS, sob a perspectiva teórica da economia política da comunicação. 17 Jornal A notícia 15x21.indd 17 06/05/17 05:56 JACQUES MICK | JOÃO KAMRADT Conglomerados regionais se associam, direta ou indiretamente, aos grupos de ação nacional, e estes a players mundiais, numa cadeia de uniformização de conteúdos e rotinas produtivas. Nos canais de televisão de sinal aberto do Grupo RBS, por exemplo, além da grande quantidade de conteúdo transmitido que é gerado pela TV Globo (novelas, filmes, programas de entretenimento e parte do noticiário), a produção local deve se harmonizar ao “padrão Globo de qualidade”. Entre os veículos da RBS, a uniformização se impõe sob a força da hierarquia. O grupo opera com estruturas piramidais de comando, com pouco espaço de autonomia organizacional em cada veículo. Há clara identificação entre os conteúdos produzidos nas diversas mídias do grupo, derivada do uso de marcas comuns; da adoção de pautas semelhantes; da normalização de procedimentos de apuração, formas narrativas, orientações ético-jurídicas; da exploração combinada do trabalho dos profissionais de mídia (jornalistas, colunistas, radialistas ou apresentadores), majoritariamente sub-remunerados, levando em conta a escala de exibição da imagem de alguns deles ou o padrão de apropriação de textos ou fotografias por eles produzidos. (Que essa remuneração seja contrabalançada, na perspectiva dos profissionais, pela visibilidade ou pela consagração relacionadas ao vínculo com um grupo de mídia francamente dominante só reforça a perversidade da relação de trabalho aí constituída, que converte os trabalhadores nas primeiras vítimas do processo de reificação da imagem pública promovido por eles próprios). A sinergia do cluster de mídia se dá também em campanhas e ações de solidariedade, que reforçam os vínculos com a comunidade e contribuem com a legitimação do grupo. As lógicas se impõem graças à obediência às hierarquias, legitimadas pela orientação dos trabalhadores no cumprimento de metas trimestrais (“compensadas” diretamente, como veremos, por um programa de promoções e, indiretamente, por participação nos resultados da empresa). 18 Jornal A notícia 15x21.indd 18 06/05/17 05:56 O FIM DA NOTÍCIA – A MONOPOLIZAÇÃO DA MÍDIA E O TRABALHO DOS JORNALISTAS “Quais as implicações que a propriedade e o controle oligopolísticos do setor de comunicações – na sua dupla lógica econômica e simbólica – e a hegemonia de um único grupo empresarial acarretam para a consolidação democrática no Brasil?”, pergunta Lima (2003, p. 113).3 Vários autores ofereceram respostas à questão, o que nos permite propor uma síntese das principais consequências sociopolíticas dessas configurações. A concentração de propriedade na mídia: a) reduz o acesso do público à informação; como informação é conhecimento e poder, há também concentração de poder; b) amplifica o poder de poucos grupos no campo da produção técnica de imagens aceitas tacitamente como “representações da realidade”4; c) amplia a lucratividade e o poder político de um número limitado de empresas, que com isso podem se beneficiar, de maneira privilegiada, de políticas públicas ou de governo (como nos processos de privatização); d) reduz o mercado para a atuação de jornalistas e outros profissionais de mídia, aviltando-o com salários reduzidos, superexploração da força de trabalho e condições de produção inadequadas; e) afeta a autonomia de agentes políticos locais, face a conglomerados de mídia regionais, nacionais ou internacionais; f) representa ameaça à liberdade de expressão; e, por fim, numa síntese de todos os riscos anteriores, g) representa ameaça à democracia.5 3 Ele considerava que a questão era “historicamente relegada a segundo plano na ciên- cia política e nas teorias da democracia” (idem, p. 113) – situação que mudou desde então, com a emergência de inúmeros estudos sobre a concentração de propriedade em ambos os campos. 4 “Dado que as mediações são inevitáveis, e que na ‘sociedade da comunicação generalizada’ essa mediação se realiza através da mídia, a realidade é a realidade da mídia” (Moretzsohn, 2007, p. 97). 5 Em algumas leituras, é o caráter autoritário da democracia que se evidencia a partir dessa combinação de elementos. Ver Zizek (2003). 19 Jornal A notícia 15x21.indd 19 06/05/17 05:56 JACQUES MICK | JOÃO KAMRADT Os críticos dos impactos da concentração da propriedade sobre o conteúdo jornalístico costumam apontar os riscos de redução na pluralidade das representações do mundo ou, pior, de consolidação de um pensamento único em jornais, revistas, TVs e rádios. Notamse os impactos da concentração sobre o mercado de trabalho, com a redução do número de empregos diretos para jornalistas e outros geradores de conteúdo e a adoção de perfis profissionais mistos, como o repórter-abelha6 nas emissoras de televisão ou o repórter-multimídia na internet e nos conglomerados de mídia. Sindicatos de trabalhadores têm reivindicado remuneração complementar e defendido os direitos autorais, quando conteúdos produzidos por jornalistas para um veículo são utilizados livremente por outros títulos ou emissoras do mesmo grupo. A tais efeitos da concentração de propriedade, pretendemos acrescentar, com este livro, uma análise detida das consequências da monopolização sobre as atividades profissionais dos jornalistas. O argumento é desenvolvido em seis capítulos. No primeiro, recupera-se a história da aquisição de A Notícia pela RBS. São sintetizadas as mudanças editoriais adotadas pelo oligopólio, comparadas ao que o grupo implantara no Jornal de Santa Catarina quatro anos antes e são apresentados alguns dos resultados financeiros desse processo. O conteúdo foi produzido a partir da análise de exemplares do jornal, documentos, entrevistas com o editor-chefe, o antigo dono de A Notícia (principal concorrente da RBS no estado) e informações oficiais da direção do veículo. No segundo capítulo, realiza-se um balanço político dessas mudanças. Analisamos algumas implicações da concentração de propriedade 6 O repórter abelha (ou videorrepórter) pode atuar como produtor, editor, cinegrafista, iluminador e repórter em matérias para a televisão. Esse tipo de profissional multifunção surgiu no final dos anos 1980, atuando tanto como produtores independentes, quanto como empregados de canais de TV. 20 Jornal A notícia 15x21.indd 20 06/05/17 05:56 quanto ao mercado de mídia em Santa Catarina, dialogando com os argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal (MPF-SC) em ação judicial contrária à monopolização. Também apresentamos os resultados de uma pesquisa que comparou as coberturas de A Notícia das eleições municipais de 2004 (quando o veículo estava sob gestão familiar) e de 2008 (já sob o comando da RBS). No longo terceiro capítulo, reunimos as interpretações produzidas pelos jornalistas a respeito das mudanças em A Notícia entre 2006 e 2009. A primeira seção indica alguns limites metodológicos dessa pesquisa qualitativa para a identificação do habitus (realizada entre 2008 e 2009). A segunda recolhe as principais opiniões de nove entrevistados quanto às condições de produção, focando continuidades e rupturas na infraestrutura e na organização do trabalho. A terceira trata das interpretações dos profissionais sobre o que mudou na concepção da pauta, no processo de apuração, na produção e na edição de texto e imagem. A reação dos jornalistas às apropriações de seu trabalho pelos diversos veículos do grupo de mídia são objeto da quarta seção. Ao final, propõe-se uma síntese dos discursos dos profissionais sobre todos esses pontos. O quarto capítulo discute os resultados da pesquisa sob a perspectiva do conceito de cultura de empresa. Interessa-nos o modo como as práticas consolidadas em um grupo empresarial se consagram, superando inclusive outras variáveis da cultura dos trabalhadores (o habitus do pertencimento a um ofício e a tradição vinculada à propriedade familiar), no contexto da concentração de propriedade. Os quatro primeiros capítulos referem-se ao tempo em que Nilson Vargas, o primeiro editor-chefe nomeado pela RBS, comandou o diário – de 2006 a 2009. O quinto capítulo apresenta e analisa as transformações realizadas em A Notícia no período posterior, sob o comando editorial de Domingos Aquino, até 2015. Foram entrevistados dez jornalistas, que atuaram como repórteres e editores; como Jornal A notícia 15x21.indd 21 06/05/17 05:56 JACQUES MICK | JOÃO KAMRADT no capítulo terceiro, nenhum nome é divulgado. Pontos relativos ao comportamento dos jornalistas destacados nos capítulos anteriores são retomados, reiterados ou corrigidos. O último capítulo apresenta as conclusões teóricas do estudo a partir do conceito de habitus, retoma criticamente a metodologia da pesquisa e anota sugestões para novas investigações. O apêndice em que os autores agradecem aos muitos colaboradores dessa pesquisa também conta a curiosa história do livro, escrito em três momentos, entre 2009 e 2016. 22 Jornal A notícia 15x21.indd 22 06/05/17 05:56