Revista
ISSN: 1415-0549
e-ISSN: 1980-3729
mídia, cultura e tecnologia
COMUNICAÇÃO POLÍTICA
DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2018.1.28191
Escândalo Político e Narratologia: tecendo os ios
narrativos dos casos Face Oculta e Lava Jato1
Political Scandal and Narratology: weaving the narrative threads of Face
Oculta and Lava Jato cases
Hélder Prior
Universidade da Beira Interior (UBI)
<helder.prior@gmail.com>
RESUMO
ABSTRACT
Este trabalho propõe o uso da teoria da narrativa
para a interpretação dos escândalos midiáticos.
Acreditamos que, juntando notícias sobre um mesmo
tema ou assunto publicadas de forma dispersa durante
vários meses, é possível tecer os ios narrativos de
dois escândalos em particular, os casos Face Oculta
(Portugal) e Lava Jato (Brasil) e, assim, reconigurar
os acontecimentos numa trama que nos permite
compreender melhor a coniguração dos escândalos
políticos nos dispositivos de mediação simbólica.
Prestando especial atenção ao plano da estória e ao
plano do discurso, em um processo de co-construção
da realidade midiática, pretendemos observar o
desenvolvimento do escândalo na imprensa, o seu
desdobramento em plots principais e secundários, a
construção e caracterização das dramatis personae
e os efeitos poéticos ou estéticos inerentes às
estratégias enunciativas do campo do jornalismo no
momento de costurar o acontecimento. Deste modo,
o artigo analisa o momento da eclosão dos dois casos
e a sua posterior reconiguração semântica, deixando
a antever as similaridades e as diferenças da imprensa
portuguesa e brasileira na interpretação e instituição
dos escândalos políticos.
This work aims to analyze the coniguration of the
mediated scandals through the narrative theory.
We believe that by combining news stories about
the same subject or topic published in a dispersive
way for several months, its possible to weave the
narrative threads of two particular scandals: Face
Oculta (Portugal) and Lava Jato (Brazil) and, as
consequence, reconigure the events in a plot that
allows us to understand the political scandals as media
events. Paying particular attention to the discourse
strand (expression plane) and to the story-strand
(chronological events in a narrative), we pretend to
assume that political scandals are complex narratives
that may be interpreted as stories that have a plot,
minor and major episodes, characters and poetic and
aesthetic efects inherent to meaning strategies of
the journalism ield in the moment of converting the
scandal into a media experience. Besides that, we also
verify the similarities and diferences in interpretations
of both cases.
Keywords: Political Scandal. Narrative Theory. Political Journalism.
Palavras-chave: Escândalo Político. Narratologia. Jornalismo Político.
Introdução
Os escândalos políticos têm-se conigurado como uma característica
proeminente da vida pública das democracias contemporâneas, um fenômeno
que, como se sabe, está relacionado com evidentes transformações do espaço
1 Pesquisa inanciada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, República Portuguesa,
Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.
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público, particularmente com a transformação da publicidade ou visibilidade
do poder, com o surgimento do jornalismo de investigação, com a midiatização
da esfera política, mas também com a diluição das fronteiras seculares entre a
esfera pública e a esfera privada. Muitas vezes, os escândalos políticos desvelam
casos de perversão ou corrupção do poder público, concedendo visibilidade a
episódios de corrupção, a patologias ou disfunções das democracias liberais.
Todavia, em outras situações, o que se destaca é o papel dos meios de
comunicação na revelação, publicitação e reconiguração de um acontecimento
que se desenvolve como uma complexa trama midiática que alimenta o
imaginário do público e que converte o fenômeno em um evento complexo
que se reconigura nos dispositivos de mediação simbólica.
Efetivamente, podemos considerar que, ao escândalo, é inerente uma
dinâmica comunicativa que acaba por contribuir para a midiatização e para
a dramatização de um acontecimento urdido pelas estratégias da máquina
narrativa do medium. Assim, este trabalho é uma tentativa de compreender
os escândalos midiáticos à luz dos pressupostos da teoria da narrativa. Em um
primeiro momento, procuraremos deinir o conceito escândalo e identiicar as
suas características tendo em conta o contributo dos principais autores que
trabalharam o fenômeno. Posteriormente, iremos tecer algumas considerações
sobre as relações entre o escândalo e a narratologia, estabelecendo um quadro
teórico que nos possibilitará, no terceiro ponto deste ensaio, realizar uma análise
pragmática dos escândalos Face Oculta (Portugal) e Lava Jato (Brasil).
Para a reiguração narrativa do caso Face Oculta, foram analisadas
as edições publicadas no Semanário Sol de 6 de Novembro de 2009 a 5 de
Novembro de 2010. No que se refere ao escândalo Lava Jato, o período analisado
reporta-se às primeiras denúncias publicadas na edição de 19 fevereiro de
2014 da revista Veja e estende-se até a edição de 29 de outubro do mesmo
ano, publicada na véspera do segundo turno das eleições presidenciais. O
recorte temporal analisado refere-se ao momento da eclosão de ambos os
escândalos até o seu posterior desdobramento numa narrativa mais complexa.
Tal recorte possibilita-nos observar a coniguração inicial dos dois casos, mas
também o papel das denúncias secundárias na reconiguração semântica dos
acontecimentos operada pelo campo do jornalismo. No caso do escândalo Face
Oculta, foram analisadas 25 edições do Semanário Sol e um total de 63 notícias.
Para a reiguração parcial do caso Lava Jato, analisamos 27 edições da revista
Veja e um total de 40 matérias sobre o escândalo. Quer o Semanário Sol, quer
a revista Veja, dedicaram bastante espaço à cobertura dos dois escândalos
de corrupção, desempenhando um papel determinante na progressão dos
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escândalos e no adensar das respectivas narrativas, algo que ajuda a explicar a
escolha dos títulos analisados.
Com efeito, pretendemos concentrar a nossa atenção nas denúncias iniciais
e na posterior reconiguração dos escândalos inerente ao seu desdobramento,
deixando a antever algumas pistas para a interpretação dos escândalos mediante
os pressupostos da narratologia. O objetivo é o de demonstrar que os escândalos
políticos podem ser interpretados como narrativas que têm um enredo, episódios
principais e secundários, personagens que realizam papéis ou funções na trama
e efeitos poéticos ou estéticos inerentes às estratégias enunciativas do campo
do jornalismo no momento de costurar o acontecimento em uma experiência
midiática. Para isso, prestaremos especial atenção a duas instâncias de análise
em particular, o plano da estória (enredo, ações, serialidade e personagens) e o
plano do discurso (ardis enunciativos que visam evocar a realidade), no sentido
de tecer os ios narrativos dos dois escândalos. Os procedimentos operativos
seguem alguns dos movimentos empíricos sugeridos pela análise pragmática
da narrativa jornalística (Motta, 2013) e pela proposta da análise das narrativas
midiáticas apontada por Lits (2008), reunindo contributos da lingüística,
dos estudos literários e da hermenêutica, e considerando o texto em uma
perspectiva sócio semiótica, o que pressupõe um sujeito ativo no processo de
co-construção da realidade midiática.
O Escândalo Político
O escândalo tem uma tradição secular, comprovada, de resto, pela
própria etimologia do conceito oriunda da tradição teológica. A palavra grega
skándalon foi originalmente utilizada para designar uma “ocasião de tropeço”,
uma “armadilha” ou um momento de fraqueza, de “queda no erro”, que pode
conduzir à “queda” ou à “ruína”.2 De acordo com o Antigo Testamento, a expressão
refere uma conduta pecaminosa, uma “indignação produzida pelos maus
exemplos” (Figueiredo, 1996, p. 1015).3
Porém, o conceito acabou por adquirir uma conotação mais sociológica
do que religiosa, passando a signiicar uma ofensa às normas societais dentro
de um determinado contexto cultural, a derrogação dessas normas, ou um
comportamento condenável que pode afetar a reputação dos indivíduos
implicados nesse comportamento. Na atualidade, o escândalo tem sido
compreendido quer como uma ação que viola determinados preceitos éticos,
morais, sociais, culturais ou políticos, quer como a indignação produzida por
2 Não tornemos, pois, a julgar-nos uns aos outros, julgai antes que não se deve proporcionar
ocasião de tropeço ou de queda a um irmão (Carta aos Romanos, 14:13).
3 Conforme a Bíblia (São Lucas, 7:23; Isaías, 8:15).
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essa violação ou derrogação na opinião pública. Do ponto de vista político,
Markovits e Silverstein (1988) deinem o escândalo como a violação dos
procedimentos normativos que regulam o exercício do poder nas democracias
liberais, procedimentos que deinem o jogo político como sendo “aberto” e
“acessível”. Os autores sublinham que o escândalo político resulta da intersecção
entre a lógica do poder, tendencialmente “secreta” e “exclusiva”, e a lógica do
“procedimento devido” que regula o exercício do poder nas democracias,
necessariamente “aberta”, “pública” e “inclusiva” (Markovits; Silverstein, 1988, p. 7).
Porém, enquanto Markovits e Silverstein (1988) colocam a ênfase na
transgressão ou na violação dos procedimentos que regem o exercício do poder,
Jímenez Sanchéz (1995) deine o escândalo como uma“reação da opinião pública
contra a conduta de um determinado agente político responsável por abuso de
poder ou pela violação da coniança social depositada em si pelos cidadãos”4
(Sanchéz, 1995, p. 23, tradução nossa), colocando a ênfase do fenômeno nos
sentimentos de indignação provocados por uma conduta “pecaminosa”.
Todavia, podemos considerar que a deinição mais sistematizada do
conceito nos é oferecida pelo sociólogo britânico John B. Thompson (2001)
na inluente obra O Escândalo Político: poder e visibilidade na era da mídia. Para
Thompson, geralmente os escândalos têm cinco características: a) o escândalo
implica a existência da transgressão de certos valores, normas ou códigos morais;
b) o escândalo implica um certo nível de segredo sobre essa transgressão,
segredo que, no entanto, é desvelado por indivíduos que não estão diretamente
implicados, deinidos como “não participantes”; c) alguns indivíduos reprovam
essas ações ou acontecimentos e podem sentir-se ofendidos pela transgressão;
d) alguns “não participantes” expressam publicamente a sua desaprovação,
tornando públicos os acontecimentos; e) a revelação das transgressões e
a eventual condenação da opinião pública podem afetar a reputação dos
indivíduos que se encontram no epicentro do escândalo5 (Thompson, 2001, p.
32, tradução nossa).
4 No original: cabe deinir el escándalo político como una reacción de la opinión pública contra
un agente político al que se considera responsable de una conducta que es contemplada como
un abuso de poder o una violación de la conianza social sobre la que se basal a posición de
autoridad que mantiene o puede llegar a mantener tal agente.
5 No original: Para ser más exactos, yo sugeriría que, en su uso corriente, escándalo se reiere
principalmente a las acciones, acontecimientos o circunstancias que poseen las siguientes
características: a) su ocurrencia o existencia implica la transgresión de ciertos valores, normas o
códigos morales; b) su ocurrencia o existencia implica un elemento de secreto o de ocultación,
pero ello no obstante llegan a ser conocidos por individuos distintos a los directamente implicados;
o bien esos individuos tienen motivos para creer fundadamente que existen tales elementos
de secreto u ocultación (me referiré a estos individuos con la expresión “no participantes)”; c)
algunos no participantes desaprueban las acciones o los acontecimientos y pueden sentirse
ofendidos por la transgresión; d) algunos no participantes expresan su desaprobación
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Com efeito, nas mais recentes décadas, particularmente a partir dos anos
60, o escândalo político converteu-se em uma característica incontornável da
esfera política de muitas democracias liberais. Em uma explicação mais simplista,
podemos considerar que a prevalência do escândalo político se deve a um
declínio dos preceitos morais dos dirigentes políticos ou da atividade política.
Porém, o próprio Thompson (2007) considera que a proeminência do escândalo
se deve mais a alterações dos códigos morais e das convenções que regem o
exercício do poder, e a uma conseqüente importância cada vez maior desses
códigos e convenções, do que propriamente a um declínio da moral pública. Na
perspectiva do autor, podemos apontar cinco importantes alterações que nos
ajudam a compreender a proeminência do escândalo político nas modernas
democracias liberais: 1) o aumento da visibilidade pública dos dirigentes
políticos; 2) o surgimento de modernas tecnologias de vigilância e controlo;
3) transformações na cultura jornalística; 4) transformações na cultura política;
5) maior legalização dos procedimentos institucionais que regem a atividade
política e o controle do poder público.
Sabemos que o desenvolvimento das formas midiatizadas de comunicação
gerou um novo tipo de visibilidade pública que já não está dependente da
partilha do mesmo sistema de referência espaço-temporal, nem de formas de
interação face a face, como acontecia, por exemplo, no espaço público da era
Moderna pautado por aquilo que Habermas (2006) designou de publicidade
representativa. Naquela época, a visibilidade dos atores políticos dependia da
partilha do mesmo contexto espacial e temporal, mas o desenvolvimento das
formas midiatizadas de comunicação ampliou a visibilidade dos dirigentes
políticos e a conseqüente publicidade das suas ações. Se, por um lado, os
dirigentes políticos passaram a beneiciar de novas formas de comunicação
midiatizada para fazer chegar as suas mensagens a uma audiência bastante
ampla, o lorescimento da nova visibilidade originou um novo tipo de intimidade
na esfera pública, contribuindo para esbater as fronteiras tradicionais entre o
público e o privado. Por conseguinte, a chamada “sociedade da auto-revelação”
contribuiu, de certa forma, para privatizar o espaço público, pois os dirigentes
políticos passaram a revelar aspectos que outrora icavam resguardados na
esfera da privacidade. Como consequência, esta nova forma de exposição
gerou novos riscos para os atores políticos, pois ao apresentarem-se em
público e ao revelarem aspectos relacionados com o seu caráter, cultivando
uma determinada imagem pessoal ou familiar, mais facilmente podem ser
denunciando públicamente las acciones o los acontecimentos; e) la revelación de las acciones o
los acontecimientos y la condena que recae sobre la conducta pueden dañar la reputación de los
individuos responsables (aunque no siempre ni necesariamente sea este el caso).
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condenados ou julgados quando determinadas falhas morais ou transgressões
vêm a público. Na era da visibilidade midiatizada, os dirigentes políticos sabem
perfeitamente que necessitam dos meios de comunicação como palco para
conquistarem visibilidade pública e assentimento junto dos eleitores, mas
deve referir-se que essa visibilidade se pode, perfeitamente, converter em uma
armadilha (Prior, 2011).
O segundo ponto sublinhado por Thompson (2007) está intrinsecamente
relacionado com a transformação da visibilidade. Como se sabe, o
desenvolvimento das modernas tecnologias de vigilância, espionagem e
controle tornou bastante difícil a ocultação de determinadas transgressões e
um certo cultivo do segredo típico dos bastidores da esfera da ação política.
Neste sentido, fatos ou acontecimentos que deveriam permanecer na
esfera secreta são publicitados e explorados pelos meios de comunicação,
eclodindo na esfera pública sob a fórmula do escândalo midiático. Quanto às
transformações ocorridas na cultura jornalística, o sociólogo destaca o papel do
jornalismo de investigação, particularmente a partir dos anos 60 e 70, na criação
de um contexto onde a procura de informações secretas sobre as atividades dos
dirigentes políticos e a sua consequente publicitação na imprensa passou a ter
bastante relevância jornalística, fundamentalmente quando essas informações
se revestem do famigerado interesse público.
De outro modo, existem algumas transformações na própria esfera
política que ajudam a explicar o fato de o escândalo ter adquirido bastante
relevância na vida pública contemporânea. Neste ponto, o autor sublinha que
o escândalo político converte-se em uma espécie de “teste de credibilidade”
(Thompson, 2007, p. 264) para os atores políticos. A vida pública passou a
orientar-se cada vez mais pelo ethos e pela integridade do homo politicus. É
por isso que as transgressões cometidas na esfera privada se converteram em
algo tão relevante no julgamento que o público faz dos dirigentes políticos,
particularmente quando a imagem pública projetada por esses dirigentes não
está de acordo com o comportamento que estes têm na sua vida privada ou
com as convenções sociais tácita ou explicitamente adotadas.
Por último, deve destacar-se o surgimento e a cada vez maior importância
dada aos mecanismos legais e parlamentares de escrutínio da esfera política.
A existência de comissões parlamentares de inquérito destinadas a averiguar
eventuais desvios dos dirigentes políticos, bem como outras formas de controlo
típicas das democracias liberais, também ajudam a explicar a proeminência do
escândalo nas sociedades hodiernas. Neste ponto, autores como Markovits e
Silverstein (1988) consideram mesmo que o escândalo político só pode ocorrer
nas democracias liberais, pois estas sustentam-se fundamentalmente em
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sólidos procedimentos normativos e institucionais que regulam o exercício do
poder político.
Escândalo midiático e narratividade
Interpretar o escândalo político à luz da teoria da narrativa implica o
reconhecimento de alguns problemas conceptuais. Como se sabe, o texto
jornalístico, particularmente o texto noticioso é, por natureza, revestido de uma
linguagem “dura”, uma linguagem objetivada e eminentemente descritiva e
direta (Motta, 2013, p. 95-96).6 A atividade jornalística pressupõe a descrição da
realidade da vida de todos os dias, uma realidade que, muitas vezes, deve ser
“desvelada” ou “descortinada” pelo jornalista, até porque os fatos nem sempre
se encontram à “superfície”, particularmente os fatos sobre a realidade política.
Todavia, a descrição dessa realidade que se quer narrar, a linguagem jornalística,
deve, necessariamente, ter uma relação com o referente ausente, com o referente
empírico. Não devemos esquecer que a intenção comunicativa da linguagem
jornalística é sempre a de produzir um discurso verídico e, consequentemente,
a de despertar os chamados efeitos de real ou efeitos de realidade. É por isso
que a maior parte dos relatos da imprensa que nos surgem no quotidiano são
pautados por um estilo “duro”, “direto”, “conciso”, “objetivo” e pouco permeado
por manifestações subjetivas. O jornalista deve, no chamado lead da notícia,
responder de forma simples e direta às questões “o quê”, “quem”, “quando”, “onde”,
“como” e “por quê”, aproximando o leitor da realidade ou do acontecimento
reportado. Neste sentido, identiicar elementos narrativos, estéticos e poéticos
nas chamadas hardnews, é um desaio aliciante para o analista.
Apesar de alguma imprensa brasileira, sobretudo a revista Veja que, de
resto, nos serve de ilustração empírica, se pautar por certos critérios subjetivos
de atuação, dotando muitas vezes as notícias da realidade política de elementos
narrativos, encontrar a lógica narrativa inerente aos escândalos midiáticos nas
“duras” e “cruas” notícias do dia-a-dia só é possível se nos detivermos sobre o
modo como essas notícias “lidam com o tempo” e o organizam com o objetivo
de reconstruir o acontecimento numa sequência lógica e ordenada. Como
sublinha Gonzaga Motta:
6
Apesar de ser possível identiicar elementos narrativos nas notícias do dia-a-dia,
particularmente nas notícias de interesse humano e nos chamados fait divers, a reportagem é o
gênero jornalístico mais facilmente permeável às estratégias da dramaticidade e aos chamados
efeitos poéticos ou estéticos.
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O tempo no relato jornalístico é difuso, anárquico, invertido. Por
isso, a lógica e a sintaxe narrativas só despontarão se pudermos
reconigurar os relatos como unidades temáticas, intrigas que
contenham princípio, meio e inal de uma estória única (como aliás
fazem, de maneira natural, os leitores, ouvintes e telespectadores nos
atos de recepção) (Motta, 2013, p. 97).
Assim, para encontrarmos uma lógica narrativa nas chamadas
hardnews, particularmente nas notícias sobre acontecimentos políticos,
que são aquelas que aqui nos importa analisar, será necessário, antes de
tudo, agrupar informações ou notícias sobre um mesmo tema, organizar
temporalmente essas informações, pois podem estar separadas por intervalos
de tempo relativamente longos, recompor o enredo, as sequências da intriga,
identiicar as personagens, enim, juntar as pontas da estória e os respectivos
encadeamentos entre essas pontas. Trata-se de “recompor o acontecimentointriga” (Motta, 2013, p. 98) e de dispor os acontecimentos em uma sequência
temporal e causal, em uma sequência lógica. Não devemos esquecer que os
escândalos político-midiáticos começam sempre pelo inal da estória, quando
uma transgressão cometida no passado se publicita, se converte em um
acontecimento público. Tratando-se de narrativas eminentemente complexas,
compete ao analista organizar os antecedentes da estória, contextualizar a
transgressão, posicionar os indivíduos que se encontram no epicentro do
escândalo, recompor a serialidade, os episódios, as sequências da intriga,
identiicar os efeitos de real e os efeitos de sentido inerentes ao ato de reportar
um acontecimento e de o instituir. Só reunindo as notícias que vão surgindo
sobre o acontecimento, na maioria das vezes a conta-gotas, em fragmentos
dispersos e durante um período de tempo relativamente longo, é que podemos
encontrar a totalidade signiicativa dos escândalos midiáticos mais complexos,
embora se deva reconhecer a diiculdade metódica em reunir fragmentos
de estórias sobre escândalos, devido à complexidade, ao desdobramento e
ao desenvolvimento temporal bastante longo da maioria dos escândalos.
Por outro lado, a recomposição das notícias sobre um mesmo tema ou
assunto num produto novo, o “acontecimento-intriga”, permite compreender
a mimese jornalística não apenas como uma atividade de representação do
real, mas fundamentalmente como uma atividade produtora e instituidora
de sentidos (Motta, 2013, p. 99-100). Quando o escândalo político emerge,
constitui-se um complexo processo de comunicação midiática que consiste em
um rol subsequente de revelações, acusações, reações de defesa, que têm uma
característica particular: os acontecimentos são moldados pelos jornalistas e as
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estórias são criadas e reportadas tendo em conta “códigos narrativos” (Canel;
Sanders, 2006). As narrativas jornalísticas são sempre constituídas por elementos
referentes à vida social, mas o narrador desempenha um papel determinante na
seleção e organização temporal das ações ou dos acontecimentos sociais, tendo
sempre em conta um determinado propósito ao narrar ou uma determinada
intenção comunicativa. Para narrar uma estória, particularmente uma estória
complexa como é o caso da maioria dos escândalos, os jornalistas procuram
criar um todo coerente, organizar os acontecimentos tendo em conta uma
lógica espacial e temporal, uma lógica que, naturalmente, se ajusta ao ritmo de
produção das organizações midiáticas. É aquilo a que os narratólogos chamam
de “tessitura da intriga” (Correia, 2012, p. 34), no fundo, a atribuição de sentido a
uma sucessão de ações e de acontecimentos no tempo. Como sublinham Canel
e Sanders, “[...] nos escândalos midiáticos, estórias e personagens são criadas e
qualidades atribuídas; as estórias têm plots e pontos de viragem; elas recebem
uma ordem temporal com vista à criação de um todo coerente”7 (Canel; Sanders,
2006, p. 53, tradução nossa).
Porém, deve reconhecer-se que a sintaxe narrativa dos escândalos
midiáticos diicilmente se revela à primeira vista. Será fundamental recuperar
a sequência episódico-temporal dos acontecimentos, integrar as unidades
temáticas e encontrar as microproposições dispersas recompondo um
acontecimento unitário. Como refere Ricoeur (1986), tecer a intriga permite
conigurar a estória na sua totalidade, combinando as dimensões cronológica
e conigurante, obtendo uma síntese e uma totalidade temática. É necessário,
portanto, construir uma espécie de “composição verbal” que converte um texto
em narração, composição verbal que Ricoeur designa de “intriga” ou melhor,
de “mise-en-intrigue”, de organização da intriga. Correspondente a um plano de
organização macroestrutural do texto, a intriga caracteriza-se pela apresentação
dos eventos segundo determinadas estratégias discursivas que conduzem
à progressão da história (Reis; Lopes, 1988): “[...] a intriga é o conjunto das
combinações pelas quais há acontecimentos que são transformados em história
ou – correlativamente – uma história é tirada de acontecimentos”8 (Ricouer,
1986, p. 16, tradução nossa).
Com efeito, só a partir da recomposição de notícias dispersas em
uma intriga temática é que será possível analisar criticamente o processo de
produção de sentidos inerente à atividade jornalística. Mediante ao encaixe e a
7 No original: In media scandals stories characters are created and qualities attributed. Stories
have plots with turning points; they receive a speciic temporal order to construct a coherent whole.
8 No original: l’intrigue est l’ensemble des combinaisons par lesquelles des événements sont
transformés en histoire ou – corrélativement – une histoire est tirée d’événements”.
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integração das unidades heterogêneas e fragmentadas em um todo homogêneo
e uniicado, o analista conseguirá chegar às signiicações mais profundas da
narrativa jornalística, signiicações impregnadas de subjetividade presentes em
relatos aparentemente objetivos, como é o caso de relatos sobre escândalos
midiáticos. De acordo com Motta (2013, p. 103), trata-se da “[...] experiência
estética da recepção jornalística onde esvaece o mundo fático e manifestase o mundo subjetivo das ideologias, mitos e modelos de mundos”. Na nossa
perspectiva, as narrativas sobre escândalos midiáticos são, particularmente,
propensas ao desencadeamento de efeitos estéticos ou poéticos, de efeitos
dramáticos. Ao referir-se à derrogação de valores morais, sociais, políticos,
normativos ou religiosos, o escândalo midiático questiona a moralidade pública
(Bird, 1997), coloca em causa normas e valores socialmente aceitos e partilhados
e, acima de tudo, desperta efeitos dramáticos no público.
Efetivamente, partindo da análise dos atos de fala do narrador-jornalista
é possível, muitas vezes, descortinar uma mensagem e um fundo ético nas
narrativas sobre escândalos, um plano da estrutura de fundo que ajudará a
compreender o sentido integral do acontecimento convertido em estória.
Como resultado, as narrativas sobre escândalos midiáticos despertam a atenção
pública e, muitas vezes, as “estórias noticiosas sobre escândalos convertem-se
em contos morais”9 (Canel; Sanders, 2006, p. 54, tradução nossa).
Entendamos por isso que uma ação só é um começo numa estória
que ela inaugura. E também que qualquer ação só é um meio se
ela provocar, na estória contada, uma mudança de destino, um
“nó” para desatar, uma “peripécia” surpreendente, uma sucessão
de incidentes “lamentáveis” ou “aterradores”, inalmente, qualquer
ação considerada em si mesma só é um im quando, na estória
contada, ela conclui o curso de uma ação, desata o nó, compensa
a peripécia pelo reconhecimento, sela o destino do herói por um
último acontecimento que clariica toda a ação e produz no ouvinte a
katharsis da piedade e do terror10 (Ricoeur, 1986, p. 16, tradução nossa).
9 No original: as a result media scandal stories become the center of public attention and news
scandal stories become morality tales”.
10 No original: comprenons par là qu’aucune action n’est un commencement que dans une
histoire qu’elle inaugure; qu’aucune action n’est non plus un milieu que si elle provoque dans
l’histoire racontée un changement de fortune, un noeud à dénouer, une “péripétie” surprenant,
una suite d’incidents “pitoyables” ou “effrayants”; aucune action, enin, prise en elle-même, n’est
un in, sinon en tant que dans l’histoire racontée elle conclut un cours d’áction, dénoue un noeud,
compense la péripétie par la recommaissance, scelle le destin du héros par un événement ultime
qui clariie toute l’action et produit, chez l’auditeur, la katharsis de la pitié et de la terreur.
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O Escândalo Face Oculta
Analisando a cobertura do Semanário Sol em um período determinado,
procuraremos compreender de que forma o ato de fala jornalístico organizou o
acontecimento, as suas sequências, a caracterização das personagens envolvidas
na trama e o uso de determinadas artimanhas enunciativas que visaram criar
efeitos de real e efeitos de sentido. Por um lado, a análise permite-nos observar a
recomposição de notícias sobre um mesmo tema ou acontecimento dramático
onde é possível acompanhar a representação do real. Por outro, também nos
permitirá compreender os escândalos midiáticos como narrativas jornalísticas
que se vão desdobrando em episódios aos quais a poética noticiosa vai
acrescentando novos elementos que aumentam a sua complexidade.
No caso particular do escândalo que icou conhecido por Face
Oculta, podemos asseverar que se enquadra, pelo menos de acordo com a
categorização proposta por John Thompson (2001) na tipologia de escândalo
político-inanceiro, uma vez que revelou a existência de laços ocultos entre o
poder político e o poder econômico que serviriam para beneiciar empresas
privadas mediante uma rede de corrupção e tráico de inluências. O escândalo
eclodiu em outubro de 2009 e culminou em setembro de 2014 com a
condenação de todos os argüidos, embora tivesse voltado à agenda midiática
em novembro de 2016.11 Os tribunais deram como provada a existência de uma
organização criminosa de “rede tentacular” que visava beneiciar a empresa O2
do sucateiro Manuel Godinho12, mediante concursos públicos manipulados
nos quais intervieram altos quadros do governo português liderado, na época,
por José Sócrates. Todavia, é interessante constatar que apesar desta aparente
linearidade, o caso se desenvolveu como uma complexa narrativa midiática que
reconigurou substancialmente a compreensão do acontecimento. É que das,
escutas telefônicas realizadas durante as investigações a Armando Vara13, um
11 No dia 22 de novembro, o Jornal I e o Sol on-line noticiaram que a equipa da Operação
Marquês, no âmbito da investigação a outro escândalo envolvendo José Sócrates, descobriu
novas evidências acerca do alegado plano do ex-primeiro-ministro para controlar a estação
televisiva TVI. O plano teria sido batizado de Projeto Aljubarrota, em uma alusão à empresa
espanhola Prisa, detentora da estação televisiva, e à histórica batalha de 1385 que dividiu o
Reino de Portugal do Reino de Castela e Leão.
12 Manuel Godinho foi condenado pelos crimes de associação criminosa, corrupção ativa
para ato ilícito e tráico de inluências. Empresário do sector privado, Manuel Godinho inanciou
campanhas do Partido Socialista.
13 Armando Vara foi deputado na Assembleia da República, secretário de Estado, ministro
da Juventude e do Desporto (2000), e administrador dos Bancos Millennium/Banco Comercial
Português e Caixa Geral de Depósitos, onde exerceu a sua inluência para conceder crédito
ilícito. Esteve envolvido nos processos Face Oculta e Operação Marquês, outro escândalo de
corrupção que envolve a governação de José Sócrates. Foi condenado à prisão efetiva no âmbito
do escândalo Face Oculta por crimes de tráico de inluências.
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dos envolvidos no esquema, faziam parte conversas entre esse personagem
e o primeiro-ministro José Sócrates, conversas que segundo o Ministério
Público levantavam suspeitas de que o governo teria tentado utilizar e empresa
Portugal Telecom (PT) para comprar a estação televisiva TVI e, assim, inluir no
conteúdo das notícias. Isto é, as escutas revelaram a existência de “transgressões
de segunda ordem” que pouco tinham que ver com as revelações iniciais que
estiveram na origem da eclosão do caso e que converteram o Face Oculta numa
complexa trama jurídico-midiática.
Com efeito, a análise da cobertura do Semanário Sol permite-nos recompor
as sequências do escândalo, identiicar as personagens envolvidas, reordenar
a cronologia, recompor o enredo, ligar as partes, reigurando uma estória
jornalística e identiicando uma certa totalidade signiicativa fundamental para
compreendermos o acontecimento. Como, de resto, refere Gonzaga Motta
(2013, p. 99), “[...] a reconiguração do acontecimento-intriga tem o mágico
poder de tecer a totalidade da estória e realizar a função de integração e de
mediação da intriga”. Combinando eventos noticiosos dispersos, é possível
criar uma nova síntese ou um novo acontecimento dramático. É a partir deste
novo acontecimento dramático gerado pela recomposição de notícias fáticas e
dispersas ao longo do tempo que podemos chegar ao micronível dos processos
narrativos, isto é, aos enquadramentos do narrador, à identiicação e disposição
de personagens, aos conlitos, episódios e núcleos temáticos menores e,
também, aos jogos de linguagem e aos efeitos de sentido.
A complexidade e o desdobramento do escândalo Face Oculta tornamse visíveis a partir da edição de 6 de novembro de 2009. O jornal sublinha,
ainda sem grandes desenvolvimentos, que das escutas telefônicas efetuadas
a Armando Vara surgiram “novos indícios” que estariam a ser analisados pelo
então procurador-geral da República relacionados a um negócio que envolvia
e empresa Portugal Telecom e a estação televisiva TVI. Desdobramento que é,
sobretudo, conirmado pelas duas primeiras edições de fevereiro de 2010. A
edição de 5 de fevereiro intitulada “As escutas proibidas”, revela a existência de
um plano que envolvia o primeiro-ministro para controlar a TVI e outros grupos
de imprensa. De acordo com as novas revelações que adensam o caso, o plano
passava por afastar a jornalista Manuela Moura Guedes da TVI, alegadamente
devido à cobertura do Jornal Nacional de Sexta sobre outro escândalo que
envolveu Sócrates, o caso Freeport14. O jornal fala de um plano concebido pelo
14
O caso Freeport eclodiu em 2005, em véspera de eleições legislativas, e refere-se
a alegados subornos para viabilizar o projeto do outlet, aprovado quando José Sócrates era
ministro do Ambiente do governo liderado por António Guterres. A polícia inglesa suspeitou que
o intermediário inglês Charles Smith terá distribuído “luvas” (propina) por várias pessoas, entre
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então primeiro-ministro e por homens da sua coniança, que envolvia a compra
da TVI pela PT, um esquema que coniguraria o crime de atentado contra o Estado
de direito15, já que o governo teria tentado subverter o Estado Constitucional e
colocar em causa a liberdade de imprensa.
Um dos aspectos mais interessantes dos escândalos midiáticos,
particularmente dos escândalos mais complexos, é a identiicação de episódios
que se diluem no interior da intriga, alguns sucedendo-se de forma linear e outros
conigurando-se como escândalos relativamente autônomos. Os escândalos
são narrativas dinâmicas e a identiicação temática é um movimento essencial
na compreensão da sua totalidade signiicativa. Por conseguinte, o caso Face
Oculta é paradigmático na identiicação de unidades temáticas ou de estruturas
semânticas que izeram progredir a estória. Deve referir-se, não obstante, que
estes núcleos temáticos são normalmente articulados pelo narrador-jornalista
com vista à produção de determinados efeitos de sentido.
Os episódios referem-se a sequências coesas com relativa autonomia
no interior de um relato e com início, meio e im. São “unidades semânticas”
que funcionam como organizadores do discurso e que permitem ao leitor
fazer inferências relativas à trama (Motta, 2013, p. 163-164). Se a intriga que
identiicamos é a estrutura maior ou macroestrutura semântica, é o tema
ou assunto do discurso, também designado por Van Dijk (Van Dijk, 1998)
de macroproposição, é possível, todavia, identiicar sequências ou “átomos
narrativos” unidos por uma relação de solidariedade e contiguidade.
Na análise da cobertura do Semanário Sol, são vários os episódios que
conirmam a serialidade dos escândalos midiáticos. Desses “átomos narrativos”,
um dos mais relevantes foi o caso da “mentira parlamentar” de José Sócrates.
Trata-se de uma unidade temática de certa forma autônoma em relação às
“transgressões de primeira ordem”. Num debate parlamentar, o então primeiroministro foi confrontado com a hipótese da PT adquirir a estação televisiva,
tendo em conta notícias que começavam a circular na imprensa sobre o negócio.
Deputados do Centro Democrático Social/Partido Popular (CDS-PP) e do Bloco
as quais Sócrates, para que a construção do centro comercial de Alcochete fosse viabilizada. O
caso foi arquivado, mas teve grande impacto na agenda midiática portuguesa, nomeadamente
no jornal Nacional transmitido pela estação TVI.
15 O crime de atentado contra o Estado de direito está previsto no Art. 9º dos Crimes de
Responsabilidade de Cargos Políticos: “o titular de cargo político que, com lagrante desvio ou
abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio
não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de
direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias
estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e
na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou
de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido”.
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de Esquerda (BE), questionaram se o negócio não poderia ser interpretado
como o regresso do Estado à imprensa privada, mas José Sócrates airmou
que o governo não tinha recebido nenhuma informação sobre o assunto. A
airmação de Sócrates causou alguma estranheza nos políticos da oposição,
com Manuela Ferreira Leite (Partido Social Democrata) e Francisco Louçã (BE)
a considerarem “implausível” e “ingênuo” que o governo desconhecesse um
negócio de 150 milhões de euros que envolvia uma empresa onde o Estado
estava representado. O caso levou ao pronunciamento do então Presidente da
República, Cavaco Silva, que pediu “ética nos negócios” e o governo de Sócrates
acabou por vetar a compra da TVI pela PT no dia 24 de junho, no sentido de
procurar eliminar suspeitas de intromissão do governo nos grupos de mídia.
Não obstante, o caso haveria de voltar à agenda pública em Novembro do
mesmo ano. Segundo o Sol, as escutas do processo “[...] provam que o primeiroministro faltou deliberadamente à verdade” quando disse no Parlamento que
desconhecia o negócio, já que, “conversas havidas entre Vara e Sócrates em março
já versavam sobre este tema” [...] (O Sol, p. 4-5). O episódio da mentira parlamentar
levou à abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a
averiguar se José Sócrates mentira num órgão de soberania, CPI que concluiu
que no dia 24 de junho de 2009 “[...] o governo sabia que o negócio estava em
curso [...]”16 (Relatório, 2010, p. 148). Mas, ao longo da cobertura existem outros
episódios igualmente relevantes e que ajudaram a reforçar a complexidade
e o desdobramento da trama. O im do Jornal Nacional de Sexta e a saída de
Manuela Moura Guedes da estação televisiva17, ou o escândalo Taguspark e
o polêmico apoio do ex-futebolista Luís Figo a José Sócrates nas eleições de
200918 são, podemos dizer, episódios secundários do escândalo Face Oculta.
Deinidos o eixo da estória e os seus episódios, uma outra categoria
narrativa que nos importa tem que ver com a personalização do escândalo. De
acordo com Todorov (1979), na sequência narrativa cada capítulo é constituído
em torno de uma determinada ação e, por conseguinte, de uma personagem,
16 Vide: Relatório inal da Comissão eventual de Inquérito Parlamentar relativa à relação do
Estado com a Comunicação Social e, nomeadamente, à atuação do Governo na compra da TVI.
17 A administração da TVI decidiu suspender a transmissão do Jornal Nacional de Sexta
apresentado por Manuel Moura Guedes e o caso levantou suspeitas de intromissão do governo e
de pressão política. José Sócrates considerou que o jornal era uma “caça ao homem”, devido ao
fato do jornal de sexta-feira apresentar semanalmente novos dados sobre o escândalo Freeport,
que também envolveu o ex-primeiro-ministro. A oposição acusou o governo de censura.
18 O caso Taguspark diz respeito a eventuais contrapartidas que a administração do parque
tecnológico situado em Oeiras, por intermediação de Rui Pedro Soares, teria dado ao exfutebolista Luís Figo para este apoiar a candidatura de José Sócrates nas eleições legislativas
de 2009. O processo foi iniciado na sequência de uma certidão extraída do processo Face Oculta
e em causa estava um contrato no valor de 350 mil euros por ano para que Figo promovesse
internacionalmente a imagem do parque tecnológico.
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isto é, de elementos responsáveis pelo desempenho do enredo, pelos atos
ativos ou passivos no interior de uma narrativa. Tal como sublinha o autor:
“Não há personagens fora da acção, nem acção independente de personagens”
(Todorov, 1979, p. 119). Trata-se do “reino dos homens-narrativas” (Todorov,
1979, p. 123) já que, como sustenta Motta (2013, p. 173), as personagens são
“elementos-chave na projeção da estória e na identiicação dos leitores com o
que está sendo narrado”, sendo que sem personagens não poderia existir estória.
Assim, o escândalo Face Oculta teve, necessariamente, os seus
protagonistas e a personalização do escândalo é visível, por exemplo, na edição
de 6 de novembro de 2009 quando o narrador posiciona as personagens
da intriga recorrendo a um enquadramento lúdico. Com o título “A teia de
inluências do Face Oculta”, (p. 4) o narrador identiica as personagens e os seus
papéis na trama, personaliza o enredo e, simultaneamente, coloca José Sócrates
como “actante dominante” da narrativa. De resto, a centralidade midiática de
José Sócrates é novamente visível na edição de 12 de fevereiro de 2010, num
novo enquadramento lúdico-metafórico. Recorrendo à metáfora do “polvo”, um
dos enquadramentos lúdicos típicos do jornalismo político, particularmente
da cobertura de casos de corrupção, o jornal identiica o ex-primeiro-ministro
como igura central da narrativa, como responsável por uma “rede tentacular”
que visava controlar grupos de comunicação social. Em termos discursivos,
trata-se de um enquadramento metafórico que tem não apenas a função de
“ornamentar” o discurso jornalístico, mas também a função de despertar efeitos
de sentido no público, de captar e reter a sua atenção.
De outro modo, no movimento de identiicação das personagens da
trama, o jornalista-narrador recorre a determinadas estratégias narrativas para
caracterizar as personagens do enredo. A idéia é a de que o leitor, no ato de
apreensão do texto, atribui, consciente ou inconscientemente, um determinado
caráter às personagens que se movem no interior da intriga. Através de “ardis
enunciativos”, o sujeito-narrador vai qualiicando as personagens (Motta, 2013,
p. 177) e estimulando interpretações na audiência. No caso do Face Oculta,
Rui Pedro Soares, administrador da PT nomeado pelo governo e um dos
responsáveis nos bastidores pelo negócio PT/TVI, é caracterizado como um
“boy sem curriculum” (12/02/2010, p. 9) para ocupar o cargo de administrador
da empresa.
Efetivamente, é notório como no projeto dramático do narrador, a
identiicação e caracterização das personagens surge como eminente categoria,
mas sempre mediante ardis enunciativos que permitem identiicar qualidades
ou defeitos, mais defeitos do que, propriamente, qualidades. Ou seja, as
personagens são criadas pelo poder de voz do sujeito narrador que, tal como
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sustenta Mesquita (2002), tende a reduzir a complexidade da descrição ou
caracterização, procurando ilustrar ou conirmar os traços dos quais o narrador
partiu inicialmente. Tal signiica que os procedimentos retóricos aos quais o
sujeito-narrador recorre, simpliicam os traços característicos das personagens,
criando, em alguns casos, actantes estereotipados em uma espécie de “mimesis
rudimentar” que reduz a complexidade dos seres retratados (Mesquita, 2002,
p. 126), e que, simultaneamente, permite que o leitor reconstrua o caráter da
personagem em causa. Assim, é conveniente sublinhar que, se as personagens
assumem determinados papéis e adquirem certas características, isso deve-se
ao relato do narrador e à representação discursiva que este faz de iguras reais,
mas discursivamente construídas.
O Escândalo Lava Jato
Não é despropositado airmar que o escândalo Lava Jato se converteu
no maior escândalo que a vida pública brasileira já conheceu. O caso eclodiu
em março de 2014, a propósito de uma investigação das autoridades policiais
acerca de uma rede criminosa de lavagem de dinheiro que utilizava postos
de abastecimento de combustível e “lava a jato” para movimentar recursos
inanceiros ilícitos. Todavia, o desenvolvimento das investigações revelou
um esquema criminoso que desviou, durante anos, dinheiro da petrolífera
Petrobras, um esquema de corrupção que envolveu dirigentes da empresa,
atores políticos, intermediários inanceiros (doleiros) e grandes empreiteiras
que operavam em “cartel”, manipulando concursos públicos. Para o Ministério
Público Federal, essas empresas pagavam subornos (propina) através de
contratos combinados e superfaturados, dinheiro que era posteriormente
distribuído pelos intermediários do esquema, dirigentes políticos e partidos
com representação parlamentar, alguns da base aliada do governo petista.
O escândalo Lava Jato adquiriu uma nova dinâmica quando Paulo
Roberto Costa, ex-diretor da empresa, e Alberto Youssef, operador do esquema
de lavagem de dinheiro e responsável por distribuir os recursos desviados a
partidos e políticos, acordaram com a justiça “delações premiadas”19, explicando
os pormenores do esquema de corrupção e identiicando os dirigentes políticos
envolvidos, em troca de eventuais reduções nas condenações judiciais.
As primeiras denúncias públicas surgiram, no caso da cobertura da revista
Veja, na edição de 19 de fevereiro de 2014 e referem-se a alegados subornos por
19
A delação premiada está prevista na doutrina jurídica brasileira e refere-se a eventuais
benefícios concedidos a um réu na redução de condenações judiciais. No caso da operação
Lava Jato, os avanços nas investigações muito se devem às denúncias dos investigados que
aceitaram colaborar com a justiça brasileira.
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parte de uma empresa holandesa (SBM), que teria pago “propina” a funcionários
da Petrobras em troca de contratos para a exploração do pré-sal. Segundo
Veja, a empresa holandesa teria pago 30 milhões de dólares para subornar
funcionários da Petrobras (p. 57-59). As denúncias sobre corrupção na estatal
adensam-se no mês seguinte com a publicitação, na edição publicada a 26 de
março, de “negócios nebulosos e denúncias de corrupção” (p. 44) sobre a compra
de uma reinaria em Pasadena, no Texas, aprovada quando Dilma Roussef era
conselheira da estatal. A Petrobras teria pago um valor demasiado elevado
pela usina, o que originou investigações sobre crimes iscais e super-faturação.
Veja envolve a então presidente no negócio, embora na manchete da edição
responsabilize, essencialmente, o “aparelhamento político” da Petrobras pela
corrupção existente na estatal, visando, sobretudo, o Partido dos Trabalhadores.
De acordo com a matéria, Dilma Roussef teria dado aval favorável à compra
da reinaria devido a um “parecer falho” que omitiu cláusulas do contrato que
acabariam por prejudicar a Petrobras.
Como constatamos, o escândalo Lava Jato surge, inicialmente, devido
a pequenas denúncias de corrupção na petrolífera, como o alegado suborno
da empresa holandesa SBM ou o caso da compra da reinaria em Pasadena.
Porém, importantes reconigurações semânticas converteram o caso em um
escândalo político de grandes proporções e que, de resto, ainda se encontra
em desenvolvimento. Segundo denúncias publicadas por Veja nos meses de
setembro e outubro, Paulo Roberto Costa conirmou a existência de um esquema
de pagamento de subornos a deputados federais, senadores, governadores,
um esquema que sustentava a base de apoio ao governo no Congresso e
que teria sido idealizado no primeiro mandato do ex-presidente Lula da Silva.
Por outro lado, na edição de 22 de outubro, Alberto Youssef declarou que a
campanha presidencial do PT das eleições de 2010, que culminou na eleição de
Dilma Roussef, beneiciou de dinheiro desviado da Petrobras, naquela que se
constituiu como uma das denúncias mais marcantes da operação Lava Jato no
período analisado.
Na edição seguinte (24/10/2014), publicada na véspera do segundo turno
das eleições de 2014, Veja coloca Dilma Roussef e Lula da Silva no epicentro do
escândalo com a polêmica manchete “Eles sabiam de tudo”20. De acordo com
a revista, o doleiro da Lava Jato teria revelado à Polícia Federal e ao Ministério
20 Veja antecipou a publicação da sua edição semanal de domingo para sexta-feira, publicando
uma reportagem onde airmava que o doleiro Alberto Youssef teria declarado, no processo de
delação premiada, que Dilma Rousseff e o ex-presidente Lula da Silva tinham conhecimento
dos desvios de dinheiro na Petrobras. No mesmo dia, na propaganda eleitoral da TV, Dilma
Rousseff criticou a revista e classiicou a matéria e a antecipação da publicação como um ato de
“terrorismo eleitoral”.
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Público que Dilma Roussef e Lula da Silva tinham conhecimento das “tenebrosas
transações na estatal”. Deste modo, de acordo com o enquadramento de Veja,
aquilo que se iniciou com pequenas denúncias de corrupção na Petrobras,
converteu-se numa complexa trama onde é visível que o PT, enquanto
personagem coletiva e, sobretudo, Dilma Roussef e Lula da Silva, adquirem uma
notória centralidade, algo forçosamente relacionado com os próprios interesses
editoriais da revista na cobertura do escândalo e no seu enquadramento.
Assim, se as primeiras denúncias concentraram a atenção pública
nas transgressões iniciais, ao caso acabariam por ser acrescentadas novas
denúncias ou “transgressões de segunda ordem” que acabariam por adensar
o debate público e reconigurar o acontecimento. Reconstruída a síntese da
intriga, ou storyline, no que se refere ao período que nos importa analisar, é
possível, com efeito, observar a serialidade temática do escândalo Lava Jato. A
recomposição do “acontecimento-intriga” permite a identiicação de episódios
ou de unidades temáticas, até porque os escândalos midiáticos são, na maioria
dos casos, narrativas complexas que se desdobram em núcleos temáticos
menores diluídos no interior da intriga. A publicitação das primeiras denúncias
e o desenvolvimento das investigações, converteu o caso da Petrobras em
uma complexa narrativa com episódios principais e secundários, como os
casos da compra da reinaria de Pasadena, o episódio do “jatinho” utilizado
por André Vargas21, o caso Labogen22, ou o subescândalo relacionado com a
fraude da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a averiguar os desvios
na empresa. Neste ponto, é interessante ter em conta a noção de episódio tal
como é deinido por Reis e Lopes (1988), isto é, uma unidade narrativa não
necessariamente demarcada exteriormente, de extensão variável, na qual se
narra uma ação autônoma em relação à totalidade da sintagmática narrativa.
Os autores sublinham, ainda, que a coniguração dos episódios se ajusta,
principalmente, a narrativas de composição aberta, o que signiica que eles
podem ser particularmente visíveis nas narrativas sobre escândalos mais
complexos, como aqueles que estamos a analisar.
21 André Vargas viajou com a família para João Pessoa em um jato particular providenciado
pelo pivô da operação Lava Jato, Alberto Youssef. O caso levantou suspeitas, já que Alberto
Youssef estava a ser investigado pelas autoridades policiais pelos crimes de lavagem de dinheiro.
André Vargas acabou por ser condenado a mais de 14 anos de prisão devido ao envolvimento
no escândalo.
22 Na edição 2371 de 30/04/2014, Veja noticia que a Polícia Federal suspeita que o ex-ministro
Alexandre Padilha e mais dois deputados do PT estariam envolvidos “num golpe milionário contra
o Ministério da Saúde” (p. 70), um “golpe” engendrado por Alberto Youssef que teria fundado a
Labogen, uma empresa ictícia, e conseguido um contrato de 31 milhões de reais para fornecer
medicamentos ao Ministério da Saúde. O esquema serviu, essencialmente, para a evasão de
divisas e lavagem de dinheiro, através de negócios ictícios.
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Na nossa perspectiva, um dos episódios mais interessantes do caso Lava
Jato surge na edição de 6 de agosto de 2014 sob a manchete “Fraude na CPI
da Petrobras”. Segundo Veja, a comissão de inquérito entretanto criada para
investigar os desvios da empresa “teria sido montada com o intuito de não
pegar os corruptos”, já que as perguntas feitas pelos senadores foram entregues
aos investigados com antecedência, numa “conjuração” que foi gravada em
vídeo por alguém que participou na comissão. Este caso é paradigmático no
que a serialidade temática do escândalo diz respeito, uma vez que se conigura
como um episódio relativamente autônomo, demarcado no tempo e no
espaço, e com personagens perfeitamente identiicadas, como o ex-presidente
da empresa, Sérgio Gabrielli ou José Eduardo Barrocas, chefe do escritório da
estatal em Brasília. Ao nível de estratégias enunciativas, de notar o recurso à
metáfora do teatro para instituir os acontecimentos, um plano lingüístico
construído pelo narrador que permite a apreensão da realidade: “Teatro: parecia
uma encenação – e era mesmo [...] um escárnio, um teatro” (p. 56-57), conclui o
narrador-jornalista.
Após a recomposição da intriga e a identiicação de alguns dos seus
episódios, podemos analisar a personalização do escândalo e a construção
das dramatis personae. Na perspectiva de Thompson (2001), o escândalo
midiático tem, necessariamente, dramatis personae, ou indivíduos direta ou
indiretamente implicados nas transgressões ou nas denúncias públicas. De
resto, as personagens funcionam como “ios de ligação” entre os diferentes
episódios, elementos que sustentam o desenrolar e a progressão da “estória”
(Reis; Lopes, 1988, p. 154). Elas são o núcleo essencial da progressão narrativa
e do desenrolar da “estória”, sendo consideradas como “unidades funcionais da
narrativa”, isto é, como segmentos que desempenham um papel signiicativo no
desenrolar da diegese (Reis; Lopes, 1988, p. 161).
Por conseguinte, várias edições são, a nosso ver, bastante elucidativas
acerca da construção do caráter das personagens envolvidas no escândalo da
Petrobras, mas também na importância que estas adquirem para a progressão
da estória. A voz do narrador apresenta as personagens como indivíduos com
consideráveis falhas de caráter, como “corruptos” ou “saqueadores”. Alberto
Youssef, por exemplo, é apelidado de “o cliente”, “um velho conhecido da polícia”,
enquanto Paulo Roberto Costa, denominado de “arrecadador”, é identiicado
como “personagem central do escândalo”, o mediador entre “corruptos” e
“corruptores” (02/04/2014, p. 66-67). Já André Vargas, deputado do PT, é descrito
como “típico casca grossa”, como “alguém sempre pronto a servir aos líderes,
aceitando toda a sorte de trabalho sujo, desde que alinhado com o projeto
de poder do PT”, e “entusiasta do controle social da mídia” (p. 54). Na edição
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seguinte, de 16 de abril de 2014, Veja envolve dois ex-presidentes do Brasil no
escândalo. É revelado que a Polícia Federal apreendeu um depósito de 8 mil
reais na conta de Fernando Collor de Mello, caracterizado como “decano da
turma que confunde o público e o privado sempre em benefício do segundo”,
e já no inal do texto é feita referência a Lula da Silva como “outro mestre das
indicações políticas” (p. 70-71).
Por outro lado, Veja recorre frequentemente à identiicação e ao
posicionamento das personagens do escândalo mediante infograias23 e demais
ilustrações que facilitam a compreensão do enredo, algo típico na cobertura
de escândalos políticos, mas também é notório como o narrador as caracteriza
mediante adjetivos e alcunhas, como o “gerente” (Paulo Roberto Costa) ou o
“caixa” do esquema (Alberto Youssef ). É particularmente evidente como a
revista posiciona e caracteriza as personagens do escândalo referindo aspectos
negativos do seu caráter, aspectos psicológicos referenciados que fazem parte
da estratégia da narração, isto é, que permitem identiicar e caracterizar as
personagens como “transgressores”. As narrativas precisam de personagens
que representem determinados papéis no enredo e, no caso de narrativas sobre
escândalos políticos, as personagens são normalmente identiicadas como
“vilões” ou “transgressores”. Tal como constata Gomes (2004):
O personagem político pode ser construído a partir da identiicação
dos elementos constantes, morais e psicológicos, do seu caráter. Os
personagens políticos prediletos do jornalismo-espetáculo são, em
geral, negativos, o seu caráter (literalmente, as marcas estáveis da sua
personalidade) consiste frequentemente em não ter caráter (no sentido
moral do termo). Por isso, a busca da falha gravíssima de conduta,
que gera o desejável escândalo político, ou, ainda mais disseminada,
a busca da indicação das incoerências do político como forma de
identiicação de um defeito seu de caráter (Gomes, 2004, p. 350).
Considerações Finais
Despertando efeitos fáticos ou efeitos poéticos, a reconiguração dos
escândalos produzida pelo campo do jornalismo articula os antecedentes e os
consequentes do acontecimento, a temporalidade e a serialidade do desenrolar
desses acontecimentos, as ações perpetradas por personagens, ordenando e
colocando em relação uma síntese de elementos heterogêneos, dispersos no
tempo e fragmentados que, no entanto, são ordenados, são colocados em
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Vide, por exemplo, o frame visual da edição de 29 de outubro de 2014.
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relação. Como procuramos demonstrar com o seguinte empreendimento, a
reconiguração dos escândalos midiáticos é particularmente sensível a uma
lógica narrativa que possibilita a compreensão do mundo prático da ação através
de uma rede de intersigniicação que integra e articula elementos heterogêneos
numa narrativa dramática. Assim, a compreensão e experimentação do
escândalo faz-se pela via da narratividade e por uma certa atitude argumentativa
do narrador no momento de “costurar” e conigurar o acontecimento. Mediante
um processo de “tessitura da intriga”, o escândalo desenvolve-se, literalmente,
nos meios de comunicação que através de determinadas marcas enunciativas,
transformam o acontecimento em uma “estória” inteligível, numa “estória” que
pode ser apreendida e experienciada pelo público.
Por outro lado, no caso de escândalos midiáticos particularmente
complexos, como os processos Face Oculta e Lava Jato, as investigações iniciais
podem conduzir a novos indícios ou novas transgressões que acabam por
aumentar a complexidade do acontecimento e o próprio quadro enunciativo
do escândalo. Este foi, de resto, um dos nossos objetivos essenciais: concentrar
a atenção na eclosão dos casos e compreender o seu posterior desdobramento
em uma narrativa mais complexa. Acreditamos que, mediante os pressupostos
da narratologia, é possível tecer um todo coerente, costurando notícias dispersas
sobre um mesmo tema e, por conseguinte, discernir aspectos simbólicos dos
escândalos que de outro modo passariam despercebidos. Fios narrativos que,
ligados, permitem conigurar uma trama e visualizar uma sintaxe narrativa entre
notícias dispersas.
Como tivemos oportunidade de constatar, os dois escândalos tiveram
início a partir de denúncias de corrupção que acabaram por se converter,
do ponto de vista da cobertura informativa, em elementos secundários: em
Portugal, a corrupção na adjudicação de obras públicas e a manipulação de
concursos; no Brasil, essencialmente as denúncias de subornos da empresa
holandesa e a compra suspeita da reinaria de Pasadena no Texas. Posteriormente,
importantes reconigurações semânticas transiguraram os dois escândalos em
narrativas mais complexas que acabaram por envolver os governos dos dois
países. De outro modo, é visível como no Face Oculta é a José Sócrates a quem
o jornal atribui maior centralidade, tal como ao Partido Socialista enquanto
personagem coletiva. Já no Lava Jato, há uma clara tentativa de converter Dilma
Roussef, Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores em personagens centrais
da intriga. Em várias edições, os dois veículos culpabilizam o Partido Socialista,
no primeiro caso, e o Partido dos Trabalhadores, no segundo, pela existência de
denúncias de corrupção na vida pública dos dois países, o que deixa a antever
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um determinado posicionamento político e ideológico do Semanário Sol e da
revista Veja face aos dois governos.
Neste ponto, é interessante constatar a prevalência da categoria do
conlito como estrutura dramática (Gomes, 2004; Motta; Guazina, 2010), não só
do conlito evidente entre atores políticos e jurídicos que se confrontam na arena
pública, mas também do conlito bipolar entre a esfera política e o campo da
imprensa. Na base da relação de conlito estabelecida entre a esfera jornalística
e a esfera política, veriica-se a existência de lutas simbólicas pela conquista de
credibilidade, constituindo-se os escândalos como uma forma de legitimação
do discurso jornalístico, dos seus valores e da sua função social de campo
vigilante do poder político e perfeitamente autônomo face à sua inluência.
Por outro lado, na análise à cobertura dos dois escândalos, é notório
como no período analisado ambos os processos se pautaram por uma forte
midiatização da justiça que acabou por alimentar as duas narrativas. O processo
Face Oculta progrediu, essencialmente, devido a fugas de informação e devido à
publicidade das escutas telefônicas que envolviam José Sócrates, tal como o caso
Lava Jato que tem sido alimentado pela publicidade dos processos de “delação
premiada”, como a posterior delação da Odebrecht, que voltou a reconigurar
o caso, e pelo “vazamento” de “grampos” telefônicos. Veriicou-se, ainda, uma
certa circularidade da informação que visou manter os dois casos na agenda
pública. Quando não há novas denúncias, os veículos informativos recuperam
os principais episódios da trama, em um processo que acabou por “alimentar” a
discussão pública sobre os casos, mas que, simultaneamente, também permitiu
a progressão das intrigas mediante uma certa serialidade temática.
Para concluir, queremos sugerir que muitas vezes os escândalos políticos
se convertem em uma representação com enredos e personagens, mas
também com uma dimensão lúdica inerente ao seu cariz extemporâneo que
enche os olhos, que é notável e que, por isso mesmo, permite a spectatio, o
desfrute visual da dramaturgia política. De outro modo, não devemos esquecer
que, na máquina narrativa da mídia, a realidade é mediada por esquemas
comunicacionais que enquadram, moldam, coniguram, “efabulam” (Vattimo,
1992) e, em alguns casos, deformam a realidade. A experiência midiática é uma
realidade em segunda mão e o escândalo não escapa a uma lógica artefatual e
de maquiagem inerente às estratégias e artimanhas enunciativas do medium.
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Recebido em: 8/8/2017
Aceito em: 10/8/2017
Dados do autor:
Hélder Prior | helder.prior@gmail.com
Pós-Doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília (PNPD/CAPES), Doutor (2013) em Ciências da Comunicação pela
Universidade da Beira Interior, Portugal. Membro da junta diretiva da Asociación Latinoamericana de Investigadores en
Campañas Electorales (ALICE). Investigador de Pós-Doutoramento na Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
Laboratório de Comunicação Online da Universidade da Beira Interior
Universidade da Beira Interior (UBI)
Rua Marquês D’Ávila e Bolama
6201-001 – Covilhã – Portugal
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