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A divulgação científica sobre células-tronco do cordão umbilical e placentário na imprensa e no cotidiano médico-científico de serviços privados

RESUMO O armazenamento das células-tronco do cordão umbilical e placentário tem produzido um amplo debate nas ciências e na imprensa. Os bancos privados de armazenamento do sangue do cordão umbilical e placentário têm se apresentado às famílias como solução de cura para doenças exis-tentes, patologias que ainda não foram identificadas, e ainda as que possam ser detectadas futu-ramente. Segurança, mitigação de riscos e esperança na cura de doenças são alguns dos objetivos que fazem mães e pais contratarem os referidos bancos. Segundo o Relatório de Produção 2003-2010 dos Bancos de Sangue do Cordão Umbilical e Placentário para Uso Autólogo (BSCUPA), feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), foram armazenadas, no período de sete anos, 45.661 unidades de sangue do cordão para uso autólogo (uso próprio), sendo utili-zadas 8 unidades: 3 para transplante autólogo e 5 para uso aparentado. Já a Rede BrasilCord, que aglutina os bancos públicos de armazenamento, tem 19 mil unidades armazenadas desde 2001, e cerca de 175 já foram usadas em transplantes. Como problema de pesquisa, discutimos os regimes de " esperança " e " verdade " (MOREIRA e PALLADINO, 2005) que estão sempre em tensão ou acoplamento, em processos de ordenação e reordenação em torno da eficácia clínica das células-tronco do cordão umbilical que perpassam transversalmente as publicações na mídia. Este traba-lho pretende analisar as redes que constituem a divulgação científica dessas pesquisas no contexto da mídia impressa e especializada, e estudar a relação entre profissionais da saúde e usuários nos serviços privados. Os dados abrangem o período de 2002 a 2014, e foram levantados nos sites de quatro jornais nacionais de circulação geral (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil) e cinco especializados (Ciência Hoje Online, Revista Pesquisa Fapesp, Agência Fapesp, Agência USP de Notícias e Revista ComCiência). Palavras-chave: células-tronco do cordão umbilical; mitigação de riscos; biossegurança. ABSTRACT The storage of cord blood and placental stem cells has produced an extensive debate both in

A divulgação cientíica sobre células-tronco do cordão umbilical e placentário na imprensa e no cotidiano médico-cientíico de serviços privados Juliana Michaela Leite Vieira 1 Dolores Galindo 2 Benedito Dielcio Moreira 3 RESUMO O armazenamento das células-tronco do cordão umbilical e placentário tem produzido um amplo debate nas ciências e na imprensa. Os bancos privados de armazenamento do sangue do cordão umbilical e placentário têm se apresentado às famílias como solução de cura para doenças existentes, patologias que ainda não foram identiicadas, e ainda as que possam ser detectadas futuramente. Segurança, mitigação de riscos e esperança na cura de doenças são alguns dos objetivos que fazem mães e pais contratarem os referidos bancos. Segundo o Relatório de Produção 20032010 dos Bancos de Sangue do Cordão Umbilical e Placentário para Uso Autólogo (BSCUPA), feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), foram armazenadas, no período de sete anos, 45.661 unidades de sangue do cordão para uso autólogo (uso próprio), sendo utilizadas 8 unidades: 3 para transplante autólogo e 5 para uso aparentado. Já a Rede BrasilCord, que aglutina os bancos públicos de armazenamento, tem 19 mil unidades armazenadas desde 2001, e cerca de 175 já foram usadas em transplantes. Como problema de pesquisa, discutimos os regimes de “esperança” e “verdade” (MOREIRA e PALLADINO, 2005) que estão sempre em tensão ou acoplamento, em processos de ordenação e reordenação em torno da eicácia clínica das células-tronco do cordão umbilical que perpassam transversalmente as publicações na mídia. Este trabalho pretende analisar as redes que constituem a divulgação cientíica dessas pesquisas no contexto da mídia impressa e especializada, e estudar a relação entre proissionais da saúde e usuários nos serviços privados. Os dados abrangem o período de 2002 a 2014, e foram levantados nos sites de quatro jornais nacionais de circulação geral (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Jornal do Brasil) e cinco especializados (Ciência Hoje Online, Revista Pesquisa Fapesp, Agência Fapesp, Agência USP de Notícias e Revista ComCiência). Palavras-chave: células-tronco do cordão umbilical; mitigação de riscos; biossegurança. ABSTRACT The storage of cord blood and placental stem cells has produced an extensive debate both in 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e membro do Laboratório de Tecnologias, Ciências e Criação: Estudos.Pesquisas.Práticas. ((Labtecc/UFMT). 2 Professora doutora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade de Mato Grosso (UFMT). 3 Professor doutor da Faculdade de Comunicação e Artes (FCA) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade de Mato Grosso (UFMT). Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 67 science and in the press. The private banks which store cord blood and placental stem cells have been introduced to families as the solution to cure existing diseases and pathologies that have not yet been identiied or might be detected in the near future. Safety, risk mitigation, and the hope for the cure of diseases are some of the reasons that lead parents to hire the services of such banks. According to the databank (2003-2010) of Bancos de Sangue do Cordão Umbilical e Placentário para uso autólogo (BSCUPA) (Umbilical Cord and Placental Blood Banks for Autologous Use) production report featured by Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), in a seven-year period, 45,661 units of cord blood for autologous use were stored. Of these, only eight units were efectively used– three for autologous transplant and ive for family members. The BrasilCord network, the collection of public banks, owns 19 thousand units, stored since 2001; of these, about 175 units have already been used in transplants. As a study case, we discuss the concepts of “hope” and “truth” (MOREIRA and PALLADINO, 2005), trying to evaluate the way in which the clinical eicacy of umbilical-cord blood stem cells is presented in publications in the media. The speciic aim of this paper is to analyze the networks that establish the scientiic disclosure of these researches in the context of print and specialized media as well as the link between health care workers and users of private services. The data refer to the period from 2002 to 2014, and were collected from four major national news websites (Folha de S. Paulo, Estado de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil) and ive specialized ones (Ciência Hoje Online, Revista Pesquisa Fapesp, Agência Fapesp, Agência USP de Notícias e Revista ComCiência). Keywords: umbilical-cord blood stem cells; risk mitigation; biosecurity. 68 Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 1. Introdução As células-tronco estão presentes em todos os tecidos e órgãos humanos, sendo responsáveis pela manutenção destes e regeneração de pequenas lesões cotidianas que acontecem em nosso corpo. A terapia celular com células-tronco, sejam elas adultas4, embrionárias5 ou pluripotentes induzidas6, gera grandes expectativas quanto ao tratamento de inúmeras doenças (PEREIRA, 2013). As células-tronco adultas estão presentes no sangue do cordão umbilical e placentário (SCUP) e na medula óssea (MO) (LAMARE, 2014, p.31). O sangue do cordão umbilical e placentário contém células-tronco hematopoiéticas (formadoras de sangue), mesenquimais (formadoras de ossos, cartilagens etc.) e endoteliais (formadoras de vasos sanguíneos). A coleta do sangue do cordão umbilical ocorre no momento do parto (vaginal ou cesáreo), depois do corte e clampeamento do cordão. Uma equipe especializada realiza o procedimento e o sangue é colocado numa bolsa própria. O sangue do cordão umbilical tem-se revelado um substituto eicaz para a medula óssea no tratamento de doenças do sangue, por conta disso várias nações do mundo desenvolveram programas públicos para colheita e armazenamento de sangue de cordão umbilical para transplante alogênico. Paralelamente, os bancos privados têm oferecido aos pais a oportunidade de depositar o sangue do cordão umbilical da criança para uso futuro” (WALDBY, 2006). As vantagens das células do sangue do cordão umbilical, conforme apontado por Lamare (2014), são “a ausência de risco para o doador, uma vez que o método de coleta não é invasivo; a disponibilidade imediata para transplante e a característica de ter células mais jovens que possuem maior capacidade de proliferação, diferenciação e tolerância imunitária” (LAMARE, 2014). A coleta e a preservação das células-tronco do cordão umbilical tiveram início nos anos de 1990, com a abertura dos primeiros bancos públicos e privados. Segundo Waldby (2006), o primeiro banco público de sangue do cordão umbilical nos Estados Unidos – New York Blood Center – foi criado em 1993, e no Reino Unido – banco de sangue Londres Cord – em 1996. Nos Estados Unidos, no mesmo ano em que foi criado o banco público, também foi criado o primeiro banco privado de sangue de cordão umbilical – Biocyte Corporation. No Brasil, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) inaugurou no ano de 2001 o primeiro Banco de Sangue do Cordão Umbilical e Placentário (BSCUP), 4 Células-tronco adultas são aquelas derivadas de qualquer tecido de um indivíduo após o nascimento. 5 Células-tronco embrionárias são derivadas de um embrião. 6 Células-tronco pluripotentes são derivadas da pele. Essas células são induzidas por quatro genes (oct4,c-myc,klf4 e sox2) a se transformarem em CT pluripotentes, sendo equivalentes às CT embrionárias. Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 69 “visando aumentar as chances de localização de doadores para os pacientes que necessitam de transplante de medula óssea” (Rede BrasilCord/INCA). Segundo o Relatório de Produção 2003-2010 dos Bancos de Sangue do Cordão Umbilical e Placentário para Uso Autólogo (BSCUPA), feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), foram armazenadas, no período de sete anos, 45.661 unidades de sangue do cordão para uso autólogo (uso próprio), sendo utilizadas 8 unidades: 3 para transplante autólogo e 5 para uso aparentado. Já a Rede BrasilCord, que aglutina os bancos públicos, tem 19 mil unidades armazenadas desde 2001, e cerca de 175 já foram usadas em transplantes (Rede BrasilCord/INCA). O armazenamento das células-tronco do cordão umbilical e placentário tem produzido um amplo debate nas ciências e na imprensa. Neste trabalho, identiicamos a controvérsia médico-cientíica em torno da questão de uso e eicácia do sangue do cordão umbilical, na qual a grande polêmica é como armazenar, se em banco público ou privado. Tendo como foco essa controvérsia, trabalhamos o tema como problema de pesquisa indagando a respeito das tensões, acoplamentos e derivações dos regimes de “esperança” e “verdade” (MOREIRA e PALLADINO, 2005) que fazem parte dessa polêmica e mobilizam e são mobilizadas pela divulgação cientíica das células-tronco do cordão umbilical realizada pela mídia geral e especializada, estando também presente no cotidiano médico e de potenciais usuários (as) dos serviços. O regime de “esperança” (MOREIRA e PALLADINO, 2005) caracteriza-se pela promessa de que novos e melhores tratamentos estão sempre por vir, e a investigação e o desenvolvimento são justiicados pela expectativa de encontrar curas milagrosas para doenças debilitantes. Já o regime de “verdade” (MOREIRA e PALLADINO, 2005) refere-se ao que é positivamente conhecido, ao contrário do que simplesmente pode ser. 2. Levantamento histórico e análise dos veículos de comunicação Foi realizado o levantamento de uma série histórica, de 2002 a 2014, nos portais de quatro jornais de circulação nacional (Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo e Jornal do Brasil) e cinco especializados (Ciência Hoje Online, Revista Pesquisa Fapesp, Agência USP de Notícias, Agência Fapesp e Revista ComCiência), utilizando-se a ferramenta de busca por palavras-chave nos respectivos sites, dos quais foram coletados todos os itens que mencionavam os termos: “células-tronco do cordão umbilical”; “células-tronco”; ou “cordão umbilical”. A busca resultou em 238 matérias/reportagens/notas7 publicadas que tinham correlação 7 70 Pelas barras, entenda-se “ou inclusivo”. Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 ou citavam as pesquisas/tratamento/coleta/armazenamento8 das “células-tronco do cordão GRÁFICO 1 Total geral de matérias/reportagens publicadas umbilical”. Desse total, uma nova análise foi realizada e foram selecionadas 126 matérias/ reportagens/notas que abordavam as pesquisas/ tratamentos/coleta/armazenamento das células-tronco do cordão umbilical. Num período de 12 anos (2002 a 2014), 52,9% das matérias/ reportagens tiveram uma abordagem especíica ou um destaque sobre o tema (Ver gráico 1). Fonte: Elaborado pela autora. Do total geral das 238 matérias encontradas, 183 foram publicadas pelos jornais de grande circulação nacional, o que representa 76,9%, enquanto a imprensa especializada foi responsável por apenas 55 reportagens, o que representa 23,1%. O jornal O Estado de S. Paulo está à frente, com a publicação de 80 matérias/ reportagens, vindo em seguida o jornal Folha de S.Paulo com 60; em terceiro, o Jornal O Globo, com 29; e, por último, o Jornal do Brasil, com 27 matérias publicadas. Já nos veículos especializados, a Revista Pesquisa Fapesp lidera com 18 reportagens, vindo em seguida a revista ComCiência com 15, o site Ciência Hoje com 8, e a Agência USP com apenas 1 matéria. Ao analisar as 126 matérias especíicas que trataram do tema “células-tronco do cordão umbilical”, destacamos as publicações em que esse assunto mereceu maior atenção. Como resultado, detectamos que 117 foram publicadas pelos jornais de circulação nacional, o que representa 92% das publicações, enquanto a imprensa especializada teve 9 matérias publicadas, ou seja, apenas 7,1% do total. Observamos, portanto, que os jornais de circulação nacional têm tratado do tema com mais frequência do que os especializados. Neste trabalho, não trataremos da questão da constância, nem do que diferencia os dois formatos de publicação: grande mídia versus mídia especializada. Os jornais de grande circulação trazem a ciência para o cotidiano, contextualizando-a para a vida de seus leitores. Já os veículos especializados popularizam resultados concretos de pesquisas, de modo que possam ser compreendidos por diferentes leitores, inclusive por jornalistas não especializados em ciência, como é o caso de jornalistas esportivos, políticos, entre outros. Pareceu-nos que não podemos comparar veículos com natureza e objetivos tão distintos. 8 Idem. Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 71 Diante do exposto, foram analisados os seguintes aspectos nas publicações: enquadramento e controvérsias médico-cientíicas, tendo como foco os regimes de “esperança” e “verdade”. 2.1 – Enquadramento das reportagens/matérias Ao realizar o levantamento histórico, constatamos que as publicações repetiam determinados focos ou abordagens. Então, utilizamos a noção de enquadramento proposto por Latour (2000) para os textos cientíicos, em que o autor convida o leitor para ver o que de fato interessa e o que o leitor admite ser discutível. O enquadramento é utilizado como uma metodologia para selecionar o que é interessante, explicando ao leitor o porquê da seleção daquele item, reforçando no texto o que o autor pretende dizer. Diante disso, identiicamos e enumeramos nos textos os seguintes enquadramentos: contexto cientíico, controvérsia cientíica, nova pesquisa/descoberta, mercado/perspectiva econômica, estratégia política, divulgação/marketing, política/regulamentação, ética/moral e patentes/direito de propriedade (Ver gráico 2). No trabalho, veriicamos que em primeiro lugar está o contexto cientíico, com 115 matérias. Essa liderança pode ser explicada pela variação de cadernos sobre o assunto “células-tronco do cordão umbilical”. O tema foi publicado nos cadernos de assuntos gerais, ciência, saúde, política, esportes, cultura, entre outros. Devido ao fato de se tratar de um assunto especíico, surge a necessidade do jornalista de apresentar uma contextualização/apresentação do assunto aos leitores. A controvérsia médico-cientíica vem em segundo lugar, com 93 matérias, trazendo a polêmica em torno da eicácia em se armazenar o sangue do cordão umbilical em banco público ou privado. Já os resultados das pesquisas e descobertas vêm em terceiro lugar, e o mercado/ perspectiva econômica vem em quarto. Um dado interessante são as matérias que identiicamos GRÁFICO 2 Enquadramento das reportagens/matérias Fonte: Elaborado pela autora. 72 Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 como divulgação/marketing, pois apresentam notas dos colunistas sociais que noticiaram os famosos que tiveram ilhos e contrataram o serviço dos bancos privados. No trabalho, iremos nos aprofundar em um dos enquadramentos: “a controvérsia médico-cientíica”, na qual a grande polêmica diz respeito ao armazenamento de sangue do cordão umbilical em banco público ou privado. 2.2 – Controvérsia médico-científica: uma análise através dos regimes de “verdade” e “esperança” Segundo Venturini (2010), as controvérsias são situações em que os atores discordam (ou melhor, concordam com sua discordância). Latour nos ensina a observar as controvérsias e a descrever o que vemos. Seguindo essa orientação, descreveremos as controvérsias. Procedendo nessa lógica, constatamos que a controvérsia sobre “células-tronco do cordão umbilical e placentário” esteve presente no levantamento histórico (2002/2014), e foi identiicada no enquadramento inúmeras vezes. Um exemplo disso é que foram identiicadas 93 matérias consideradas controvérsias, num universo de 126, ou seja, 74%. A controvérsia médico-cientíica se deu em torno da questão da eicácia da coleta, armazenamento e uso das células-tronco do cordão umbilical, em que a grande polêmica gira em torno de se armazenar em banco público ou privado de células-tronco do cordão umbilical e placentário. O trabalho analisou a controvérsia por meio dos regimes de “esperança” e “verdade” (MOREIRA e PALLADINO, 2005). No armazenamento do sangue do cordão no banco público está presente a questão de doação, um relexo da generosidade de pessoas que realizam um gesto como quem dá um presente. Já o armazenamento privado é uma forma de propriedade pessoal, como se o objeto armazenado fosse um capital de risco biológico (WALDBY, 2006). A partir do levantamento da série histórica (2002/2014), selecionamos duas matérias que apresentam esses dois regimes. No dia 26 de agosto de 2012, no Caderno Equilíbrio e Saúde, da Folha de S.Paulo, foi publicada a matéria “Pais congelam células-tronco do tecido do cordão umbilical dos ilhos”. A reportagem mostra que os pais estão congelando as células-tronco do tecido do cordão umbilical de seus recém-nascidos, e que a promessa da ciência está gerando um negócio no Brasil. No texto, ica nítido que os dois regimes (esperança e verdade) entram em divergência, como por exemplo em: n Diretor-médico de um banco privado fala da atuação da empresa. Nota que o material do sangue nos bancos privados só pode ser utilizado pela própria pessoa ou família que contratou o serviço. Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 73 n Quanto aos bancos públicos, ressalta-se que o sangue e derivados icam disponíveis para qualquer pessoa que precise de transplante. n Alguns pesquisadores fazem ressalvas à venda do serviço pelos bancos privados, dado não ser certo que as células irão servir futuramente ou que poderão ser utilizadas no caso de doenças genéticas, dada a escassez de evidências de aplicabilidade. n A matéria traz o depoimento de duas mães que decidiram coletar em um banco privado o sangue do cordão umbilical de seus ilhos. Uma declarou saber que não tem aplicabilidade prática no momento, mas ela acredita no potencial das pesquisas da medicina regenerativa, da mesma forma como paga plano de saúde sem saber se irá utilizar. A outra mãe disse ter procurado um banco privado, pois não queria que as células-tronco fossem jogadas no lixo, tendo contratado o serviço por “segurança”. A outra reportagem é “Preciosidade Descartada”, da Revista Pesquisa Fapesp, do mês de novembro de 2009, mostrando uma pesquisa cientíica brasileira que descobriu terem peris diferentes as células-tronco presentes no sangue do cordão umbilical ou na parede do cordão (tecidos que podem ser armazenados para o caso de futuras necessidades terapêuticas). No texto, também se apresentam os dois regimes (esperança e verdade): n Em relação aos genes encontrados no sangue do cordão umbilical, estão mais ativos os que são ligados à fabricação de ossos e do sistema imunológico. Já nas células do cordão, estão mais ativos os genes responsáveis para produzir neurônios e vasos sanguíneos. n Pesquisadora brasileira reforça no inal da matéria que, se for para guardar o sangue do cordão umbilical, que se guarde o cordão umbilical inteiro, inclusive com sangue, para uma eventualidade futura. Ela critica o procedimento normal dos bancos especializados de armazenar o sangue e descartar o resto. Nas reportagens, identiicamos a controvérsia médico-cientíica entre armazenar num banco público (regime de verdade) ou privado (regime de esperança), no qual o posicionamento dos atores (actantes) é deixado bem claro. O que podemos destacar são os argumentos médico-cientíicos desqualiicando o armazenamento do sangue do cordão umbilical em banco privado, dado como sem utilidade. O banco privado se defende informando que são ações para o futuro, que as pesquisas estão ocorrendo e em breve poderão ser utilizadas em outras doenças que não sejam somente as do sangue, modalidade em que hoje é utilizado. De outro lado, os pesquisadores suscitam dúvidas quanto à venda desse serviço, questionando se ele terá utilidade no futuro e se o uso exclusivo da própria pessoa seria o mais apropriado. Podemos veriicar neste estudo, seguindo os passos de MOREIRA e PALLADINO (2005), que os dois regimes têm formas diferentes de “olhar o paciente”. No regime de esperança, os atores observam o paciente como alguém que deseja tornar-se menos aprisionado por 74 Revista do EDICC (Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura), v. 3, Abr/2017 sua condição física, sempre à espera de novas soluções para o seu aprisionamento. Ao contrário, no regime de verdade, os pacientes se coniguram como consumidores de cuidados da saúde, preocupados em comparar méritos relativos de abordagens farmacológicas e cirúrgicas, tendo em conta eicácia, risco de dano e custo. 3. Considerações inais O trabalho nos mostra com o levantamento histórico (2002/2012) que o debate está acirrado, o que pôde ser constatado pelo resultado do enquadramento das matérias, em que 74% retratam essa controvérsia médico-cientíica, com os regimes de esperança e verdade se confrontando. As reportagens oferecem ao leitor uma esperança na cura que pode ou não surgir, o que arregimenta atores (actantes) em torno desse regime em que atua a medicina regenerativa, e apresenta seus avanços. Nesse regime, a pessoa é responsável por sua saúde e a dos seus entes queridos. Em contrapartida, os bancos públicos e as redes no entorno levam o leitor a reletir sobre esse procedimento, que é colocado como “seguro de vida”, mas que efetivamente gerou poucos transplantes. É apresentada a constatação de que os bancos públicos podem atender a qualquer pessoa, não sendo necessário o pagamento. Nesse regime, o Estado é responsável pela população, atuando na prevenção e no tratamento de doenças. Nas reportagens dos veículos de comunicação de massa, o debate está centrado na polêmica entre armazenar em banco privado ou público, enquanto nos veículos especializados a controvérsia surge a partir dos resultados das pesquisas cientíicas, questionando os procedimentos que são adotados. O trabalho indica posteriores discussões, como análise das editorias publicadas, com ênfase nas colunas sociais, nas quais identiicamos inúmeras notas informando que artistas de televisão tinham coletado o sangue do cordão de seus ilhos. 4. Referências BELTRAME, L. 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