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FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
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Denise Katchuian Dognini
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JACQUES LÊ GOFF
POR AMOR ÀS CIDADES
CONVERSAÇÕES COM JEAN LEBRUN
TRADUÇÃO
REGINALDO CARMELLO CORRÊA DE MORAES
l l ed
UNNESP
Copyright © 1997 by Lês Editions Textuel
Título original em francês: Pour Vamour dês villes.
Entretiens avec Jean Lebrun
ítema integrado
Jibliotecas/UFES
Copyright © 1998 da tradução brasileira
Fundação Editora da UNESP (FEU)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira cio Livro, SP, Brasil)
Lê Goff, Jacques, 1924 Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun; tradução Reginaldo
Carmello Corrêa de Moraes. - São Paulo: Fundação Editora da UNESP,
1998. - (Prismas)
Título original: Pour 1'amour dês villes.
ISBN 85-7139-194-7
1. Cidades-História 2. Cidades medievais 3. Idade Média - História 4.
Urbanismo — História I. Título. II. Série.
98-2165
CDD-711.409
índice para catálogo sistemático:
1. Cidades: Urbanismo: História 711.409
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de America Latina y el Caribe
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Kdiloras Universilárias
Para Thomas.
INTRODUÇÃO
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ífe suas ideias preferidas é que há mais semelhanças entre
a cidade contemporânea e a cidade medieval do que entre a
cidade medieval e a antiga.
Sim, as funções da cidade, seus monumentos mudaram de tal modo que as duas cidades não são
comparáveis. Em primeiro lugar, o templo. Curiosamente, não é mais isso que distingue a cidade
medieval da cidade antiga, porque muitas vezes
ou o templo foi reutilizado como igreja, ou então a
igreja cristã foi construída sobre o local do templo.
Contudo, com a igreja, um elemento fundamentalmente novo sobreveio. Os sinos aparecem e se
instalam no século VII no Ocidente. Eles serão pontos de referência da cidade; em particular na Itália,
onde o sino muitas vezes é instalado não no corpo
do monumento, como seria o caso mais frequente
no resto do Ocidente, mas ao lado, numa torre especial: é o campanário. Quanto ao anfiteatro, ele foi
abandonado, já que o cristianismo ocidental não
Esta representação de Tróia, após
sua reconstrução, mescla a Idade
admite mais o circo; diferentemente de Bizâncio,
Média (muralha, torre) e a
em que a cidade antiga persiste (uma cidade "antiAntiguidade (colunas, amplas
ga" que, é verdade, não data senão do século IV, já
portas). Ela coloca em cena
aqueles que dominam a cidade,
que Constantino fundou-a apenas em 330). O local
príncipe, cavaleiros e caçadores.
serve doravante como depósito de pedras de consIluminura extraída do Roman de
7ro/e, de Benoit de Sainte-Maure,
trução. Se ele subsiste ainda hoje - Nímes, Aries 1340-1360 (manuscrito 1505,
é graças a uma hábil reconstituição. O estádio não
f.23 v.). Roma, Biblioteca
tem mais sua razão de ser: o esporte toma formas
Apostólica do Vaticano.
POR AMOR ÀS CIDADES
Introdução
A pregação dos frades
mendicantes é um dos
momentos fortes da
sociabilidade urbana a partir
do século XIII. Ela combina
discurso religioso e novidades
da vida na cidade. Domenico
Beccafumi, Freche de Saint
Bernardin de Sienne sur Ia Place
de Sienne, 1537. Fragmento da
secção inferior do altar para o
oratório de São Bernardino de
Siena. Paris, Museu do Louvre.
completamente diferentes. Reservado à classe nobre, ele se torna essencialmente exercício militar.
As termas desaparecem, já que se estabelece uma
nova relação com o corpo, assim como novas formas de higiene e de sociabilidade. A Idade Média
não foi um período de imundície. A higiene corporal, em particular, é objeto de cuidados, seja no
âmbito privado, seja mais tarde em estabelecimentos especiais, as saunas, que terão, aliás, má reputação - e em parte merecida - porque desempenhavam também o papel de bordel. Ao lado da
região das termas antigas, em que as pessoas se
lavavam, sentava-se às mesas das tavernas, onde
se discutia: elas também não têm mais razão de
ser. Além do mais, a praça pública muda de estatuto. Nada mais de fórum! Não temos mais o lugar
central em que os cidadãos se encontram, na ausência de instituição urbana comum: apaga-se este
hábito de discutir em conjunto os negócios da
cidade ou os negócios privados. Quando há encontros e discussões, isso se dá com mais frequência nas igrejas, sobretudo na sua parte anterior,
que geralmente é mais desenvolvida e à qual se
dá um nome antigo, o átrio.
O mercado, contudo, resgata a tradição do fórum.
Sim, e um historiador russo muito original, Mikhail
Bakhtin, mostrou isso muito bem, mas se existe
recreação, isso acontece em circunstâncias e sob
formas muito diferentes daquelas da Antiguidade.
10
POR AMOR ÀS CIDADES
O aspecto da cidade construída para os vivos também mudou
quanto ao lugar dos mortos.
Os gregos e os romanos impeliam o morto impuro
para fora da cidade, o mais das vezes, sobretudo
para as pessoas ricas ou importantes, ao longo das
principais vias que partiam da cidade. O cristianismo urbaniza os mortos, e a cidade torna-se também a cidade dos mortos; o cemitério, um lugar de
sociabilidade, alheio a todo respeito religioso: ele
somente terá um estatuto exclusivamente religioso
POR AMOR ÀS CIDADES
11
Introdução
tardiamente, a partir do século XIII. Até então, é
um lugar de encontro e mesmo de diversão.
Nunca se perde tempo exercitando um pouco a etimologia.
"Ville" vem de villa.
Não nos esqueçamos de que a palavra "ville", para
designar aquilo que chamamos de cidade, é muito
tardia. Até os séculos XI e XII, escreve-se quase
que estritamente em latim e, para designar uma
cidade, usa-se "civitas", "cite". Ou urbs, a rigor, mas
basicamente civitas. E, quando as línguas vernáculas
aparecerem, o termo "cite" vai permanecer por muito tempo. "Ville" tomará o sentido urbano apenas
tardiamente, já que, como você lembrou, antigamente a palavra designava de fato um estabelecimento rural importante. Uma "villa" - não se deve
pensar numa casa de subúrbio atual - é o centro
de um grande domínio. Do ponto de vista dos materiais, a construção permanece em geral bastante
modesta, mesmo quando se usa a pedra: não se
Na Idade Média, o castelo, lugar
pode falar de castelo. Enfim, a villa é um domínio
de poder económico e político,
com um prédio principal que pertence ao senhor;
domina a sociedade camponesa.
É muitas vezes contra o poder
em consequência, é um centro de poder, não apesenhorial que a cidade afirmará
nas de poder económico, mas também de poder
sua independência e, depois, sua
em geral sobre todas as pessoas, os camponeses e
influência sobre o campo ao
redor. Lavouras diante do castelo
os artesãos que vivem nas terras ao redor. Desse
de Lusignan (detalhe do
modo, quando se passa a dizer, em francês, "Ia
calendário, com zodíaco, mês de
ville"
(o italiano conservará o termo citta), marcarmarço). Iluminura extraída das
Três riches heures du duc de
se-á bem a passagem do poder do campo para a
Berry, de Pol de Limbourg, século
cidade. O termo "villa", esse se aplicará à aldeia
XV (manuscrito 65/1284, f.3 v.).
Chantilly, Museu Conde.
nascente a partir dos séculos IX e X.
12
POR AMOR ÀS CIDADES
13
AMORAS CIDADES
POR AMOR ÀS CloADES
15
Introdução
A villa da Antiguidade não tem mais razão de ser. E a palavra
"subúrbio", então? Ela manifesta, se continuarmos a exercitar a
etimologia, um fenómeno que diferencia a Idade Média da
Antiguidade: a cidade obtém um poder novo sobre um setor que
depende dela.
Absolutamente. Com a instalação de uma nova classe dominante, originada dos bárbaros ou, com mais
frequência, da fusão entre populações romanas antigas e populações bárbaras estabelecidas no território do antigo Império Romano, aparece uma forma de poder cujas origens são germânicas e que se
; precedentes.
denomina a banalidade, o direito de banalidade. É
2rda,
um direito de comando bastante geral, que inclui
ada de portas, a muralha
espaço urbano no plano
direitos de justiça, mas sobretudo direitos econóil, assegura sua defesa e
micos: a obrigação de moer sua farinha no moinho
? o controle da circulação
do senhor, a obrigação de pagar para poder venexterior. Em horas
inadas, à tarde e pela
der sua colheita no mercado etc. É o direito de
, a cidade se fecha atrás
banalidade. E, a partir do século XI, aproximada; muralhas. A alegoria da
nça sobrevoa a cidade,
mente, esse direito espalha-se essencialmente no
gio Lorenzetti, Effets du
campo, e forma-se uma estrutura que é típica da
luvernement dans Ia ville,
feudalidade, que se chama a "senhoriagem banal".
339 (detalhe: torre da
). Siena, Palácio Público.
Mas esse termo, a banalidade, diz respeito também
ao território urbano e r sobretudo, suburbano. A parta.
tir do século X, mas principalmente do XI, é o grande
v1 põe fim ao
suramento de Paris
período de urbanização - prefiro utilizar esse terirmando as muralhas em
mo mais do que o de renascimento urbano, já que
rés com plantas (os atuais
is Boulevards"). Hoje,
penso que, salvo exceção, não há continuidade
eriférica, muralha oca,
entre a Idade Média e a Antiguidade. Esse deseni cidade para responder a
volvimento urbano faz-se a partir de núcleos. Esova necessidade: melhorar
lação urbana. Bulevar
ses núcleos são dominados ou por um senhor ecleiço de Paris, vista
siástico, o bispo, em geral, nas cidades episcopais,
ta de Champerret.
afia
• , 1974.
ou por um senhor leigo, sobretudo um conde, desPOR AMOR ÀS CIDADES
Introdução
de a época carolíngia. Eles governam a partir de
seu palácio episcopal ou de seu castelo - que na
Itália são frequentemente estabelecidos em lugares
escarpados, que serão chamados de rocca. Em torno desses postos de comando constituem-se dois
tipos de territórios: de um lado, a cidade propriamente dita, cingida em torno deles e entremeada
de campos, e, de outro, os burgos da periferia. Desde o século XII, a evolução das cidades medievais
consistiu na reunião, lenta e numa única instituição, do núcleo primitivo da cidade e de um ou
dois burgos importantes. A cidade vai portanto lançar seu poder sobre certa extensão em volta, na
qual exercerá direitos mediante coleta de taxas: é
isso que se chamará de subúrbio. É certo que já
existiam em Roma os arrabaldes, por exemplo, os
arrabaldes dos marinheiros, da plebe, como a malafamada Suburre; mas a unidade contemporânea
entre cidade e seu subúrbio, tão interdependentes,
data da Idade Média.
Ainda assim a muralha isola a cidade. Com suas portas que
podem se fechar de novo para o subúrbio.
Observe que essas portas dão o ritmo à nova muralha, que é, em Paris, o bulevar periférico, tornando-o ao mesmo tempo tão impermeável e poroso
quanto as velhas muralhas.
;
É a permeabilidade, desde a Idade Média, entre o subúrbio e a
cidade, sobre a qual o senhor gosta de insistir.
Jamais se dirá o suficiente quanto à importância das
ordens mendicantes, dominicanos e franciscanos
POR AMOR ÀS CIDADES
17
Introdução
principalmente, na história das cidades da Idade
Média. Vou contar como os mendicantes utilizaram
a unidade, o vaivém entre cidade e subúrbio. No
século XIII, parecia essencial a essas ordens fazerem-se aceitas dando às populações o exemplo da
pobreza e da humildade; elas extraem as lições
dos movimentos sociais que estão emergindo, nos
quais as pessoas simples da cidade questionam a
atitude dos poderosos e, em particular, a dos senhores, os quais, de seu campo, de suas fortalezas,
continuam a dominar o espaço, incluindo o espaço urbano. Em contraposição, a riqueza se cria de
um modo ainda mais brutal na cidade, com os mercadores, os burgueses, o comércio. Diante da arrogância dos novos ricos e dos antigos poderosos
que estão sempre aí, para convencer o povo, para
não deixá-los rebelar-se contra a ideologia cristã
da época - perdoem-me a expressão -, essas novas ordens mendicantes querem dar o exemplo. É
essa mesma a expressão que eles empregam: "pregar o exemplo". Como, então, eles concebem sua
inscrição no espaço? Eles chegam a uma cidade,
fala-se deles, são novos personagens que provocam uma certa curiosidade. Mas eles ainda não adquiriram prestígio nem poder e, além disso, empenham-se em pôr em prática os ideais que pregam.
Onde vão se estabelecer então? No limite da cidade. E com frequência fora dela, na proximidade de
suas portas. Onde o terreno é barato, onde muitas
vezes recebem de presente uma casa ou um lote
de terra. Como este não tem valor tão alto, não
POR AMOR ÀS CIDADES
Introduçao
A partir do século XIII, a notória
opulência da Igreja suscita a
dúvida em número cada vez maior
de fiéis. São Francisco e São
Domingos estão na origem de
uma renovação da sensibilidade
religiosa. Instalam-se nas portas da
cidade, assumem sua pobreza e
atraem número cada vez maior de
teigos. Na fachada de um hospital,
simbolizando a caridade urbana,
°s fundadores das duas grandes
ordens mendicantes urbanas, no
"ifcio do século XIII, trocam um
abraço que exprime a paz e a
,
fraternidade que fazem reinar na
Cld
ade. Andrea Delia Robbia,
^encontre de Saint François et de
*"nt Dominique, século XV.
Crença, Hospital São Paulo dos
Convalescentes
chega a ser um donativo oneroso o que lhes é concedido. Já não são mais os tempos dos séculos precedentes, em que os ricos senhores davam aos conventos beneditinos, às igrejas vastas terras situadas
no campo e, mais raramente, na cidade.
Os mendicantes, portanto, encontram-se modestamente instalados na periferia, perto da muralha, no
interior, mas às vezes também no exterior, da cidade. Eles manifestam assim o caráter subordinado e
pobre do subúrbio com relação à cidade e ao centro
da cidade. E o que acontece em seguida? Rapidamente, os mendicantes, dominicanos e franciscanos
em particular, tornam-se conhecidos, estimados e poderosos. Não diria ricos, porque recusam sempre a
POR AMOR ÀS CIDADES
19
Introdução
propriedade individual, mas são assessorados por
administradores leigos que gerenciam para eles os
bens importantes, e seus conventos e suas igrejas
aproximam-se pouco a pouco do centro ou, em
todo caso, do interior da cidade. Isso é muito nítido na Itália, em Florença, em Veneza. Na França,
muitos desses conventos foram destruídos quando
da Revolução Francesa. Podemos apenas decifrálos nos nomes dos lugares e ruas, ali onde estavam
instalados, sob a Revolução Francesa, os clubes políticos: o convento dos jacobinos, do qual nada mais
resta, que ficava ao lado do Panthéon, na Rua SaintJacques, e o convento dos cordeliers, cujo vestígio
é, na Universidade de Paris-V, a antiga Faculdade
de Medicina. Como melhor ilustrar a imantação do
subúrbio pelo centro, que a Idade Média colocou
em movimento e a época contemporânea concluiu?
Introdução
nisso lembram as cidades medievais. Ocorre que
estas, no início do século XVI, concentravam talvez
10% da população do Ocidente - 10% apenas. Mas
esses 10% dispunham de um poder criador, um
poder de dominação, um poder de difusão de riquezas, um poder que não era proporcional aos
números da população. Tal como aquelas águas
nas quais se derrama uma gota de corante, que
basta para colorir toda a bacia.
A questão central deste livro consistirá em interrogar a cidade
na longa duração que começa, a seu ver, na Idade Média.
A cidade se estende para todos os lados hoje, e os terrenos
próximos dos aeroportos ou das novas confluências de vias
podem tornar-se mais caros que os do centro. Os equilíbrios
tradicionais da urbanização não foram rompidos em proveito
da periferia?
Você aponta para uma diferença de dimensão que é
preciso desde já esclarecer pela demografia. Hoje, a
maioria da população mundial vive em cidades, o
que não significa que todos os citadinos renunciaram
às atividades agrícolas - pensemos nas cidades da
China, nas do leste da Rússia, ou em Kinshasa, que
POR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
21
A cidade
inovadora,
palco de igualdade
e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A entrada de reis e príncipes
glorifica a função de encontro,
de hospitalidade e de festa
cujo lugar central, material
e simbólico, é a porta da capital.
Carlos IV, o Belo, recebe em Paris
sua irmã Elizabeth, rainha
da Inglaterra, 1325. Iluminura
e
«raída das Cbron/ques
cie s/re Jean Froissart,
século XIV (manuscrito francês
26
43, f.1). Paris,
blioteca Nacional da França.
B|
A cidade contemporânea, apesar de
grandes transformações, está mais próxima
da cidade medieval do que esta última da
cidade antiga. A cidade da Idade Média é
uma sociedade abundante, concentrada
em um pequeno espaço, um lugar de
produção e de trocas em que se mesclam o
artesanato e o comércio alimentados por
uma economia monetária. É também o
cadinho de um novo sistema de valores
nascido da prática laboriosa e criadora do
trabalho, do gosto pelo negócio e pelo
dinheiro. É assim que se delineiam, ao
mesmo tempo, um ideal de igualdade e
uma divisão social da cidade, na qual os
judeus são as primeiras vítimas. Mas a
cidade concentra também os prazeres, os
da festa, os dos diálogos na rua, nas
tabernas, nas escolas, nas igrejas e mesmo
nos cemitérios. Uma concentração de
criatividade de que é testemunha a jovem
universidade que adquire rapidamente
poder e prestígio, na falta de uma plena
autonomia.
POR AMOR ÀS CIDADES
25
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
Em 1300, menos de 20% da população do Ocidente reside em
cidades e a maior aglomeração é, de longe, Paris, com... 200
mil habitantes, não mais.
A importância de Paris decorre da justaposição de
várias populações. De um lado, uma população às
vezes ainda agrícola, artesã e comerciante, e, de
outro, uma população aristocrática. Diferentemente das cidades francesas, em particular do Norte,
onde a nobreza não reside, em Paris residem geralmente as grandes famílias ou os altos prelados, como
o abade de Cluny (daí o Hotel de Cluny), como o
arcebispo de Sens, de quem depende o bispo de
Paris (daí o Hotel de Sens). Essa população aristocrática dispõe de um forte poder de consumo: pode-se
dizer que uma das principais indústrias parisienses
é a indústria suntuária; os ofícios de arte não farão
outra coisa senão se desenvolver até a Revolução,
O Sena ocupa um lugar
concentrados no subúrbio de Saint-Antoine, que nos
maior na vida da capital.
As mercadorias chegam ao
legou marceneiros e lojas de móveis. Essa localiporto de Greve. A cidade que
zação mostra, aliás, que, apesar de tudo, mesmo
exibe seu nome (Parísius) mostra
uma atividade económica tão honorável como a dos
ao mesmo tempo suas funções
defensiva e económica.
ofícios de arte não se situa no coração da cidade-, é
A poderosa corporação dos
fora das muralhas que se encontra o subúrbio de
mercadores-barqueiros está na
origem da autonomia progressiva
Saint-Antoine. As atividades económicas que se
de um poder municipal. Sobre a
instalam no próprio coração da cidade são essencialponte, quatro homens puxam
um barril; no Sena, um barco
mente os locais de abastecimento, como Lês Halles,
de carvoeiro. Iluminura extraída
em Paris.
de La vie de Monseigneur Saint
Três espaços principais dividem a Paris medieDenis, glorieux apôtre de France,
compilada segundo Hilduin pelo
val: o económico, o político e o universitário. O
abade Gilles, século XIV
primeiro é a margem direita, em torno dos mer(manuscrito 2092, f.1). Paris,
Biblioteca Nacional da França.
cados construídos por Philippe Auguste, com o
26
POR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
Religião e economia: um
episódio da vida de São Denis,
padroeiro de Paris; é a
oportunidade para representar a
alimentação da cidade graças
aos numerosos barcos-moinhos,
sob a Grande Ponte, no Sena.
O papa Sisinio mostra a São
Denis, São Rustique e São
Eleutério os corpos dos cristãos
que condenou à morte. No Sena,
os moinhos sob a Grande Ponte
de Paris. Iluminura extraída da La
v/e c/e Monse/gnet/r Saint Denis,
glor/eux apôtre de France,
compilada segundo Hilduin pelo
abade Gilles, século XIV
(manuscrito 2092, f.37 v.). Paris,
Biblioteca Nacional da França.
porto, a Place de Greve, onde se situa também o
mercado da mão-de-obra. Os equipamentos aí são
extremamente rudimentares. O que quer que aconteça (Fluctuat nec mergitur), esse lugar é estimulado pelo comércio por via fluvial - controlado pela
guilda dos mercadores-barqueiros - que sobe o
Sena desde Rouen. Já na Antiguidade, eram poderosos os navegadores parisienses que manejavam os barcos transportando mercadorias, como
pode testemunhar um monumento conservado no
museu de Cluny. A íle de Ia Cite é o lugar do
poder político e eclesiástico, o rei e o bispo, depois o parlamento, a partir do fim do século XIII.
Por fim, na margem esquerda concentra-se a cidade escolar, universitária e intelectual. Essa tripartição marca ainda fortemente a fisionomia de
Paris: basta observar hoje o protesto que suscita o
deslocamento das maisons de moda, tradicionalmente mais numerosas na margem direita, em direção a Saint-Germain-des-Prés!
O que significa que, se pensamos na longa duração, se formos
além mesmo do caso de Paris, as funções essenciais de uma
cidade são a troca, a informação, a vida cultural e o poder.
As funções de produção- o setor secundário - constituem
apenas um momento da história das cidades, notadamente no
século XIX, com a Revolução Industrial, visível sobretudo nos
subúrbios situados na periferia. Elas podem desfazer-se;
a f unção da cidade permanece.
Não estou completamente de acordo com a famosa divisão dos economistas em setores primário,
secundário e terciário. Parece-me que atividades
POR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
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POR AMOR ÀS CIDADES
POR
AMOR
ÀS CIDADES
31
Páginas precedentes.
À esquerda.
Até o século XIX, a cidade é
permeada de jardins, locais de
produção hortícola, de lazer dos
poderosos ou de silêncio em
torno das propriedades
eclesiásticas. Seu bom
ordenamento testemunha a
racionalização da natureza e da
agricultura no ambiente urbano,
no fim da Idade Média. Jardim
de recreação num ambiente
urbano. Os jardineiros se ocupam
sob o olhar do mestre. Iluminura
extraída de Lê livre dês prouffitz
champestres, de Pierre de
Crescens, século XV (manuscrito
5064). Paris, Biblioteca do
Arsenal.
À direita.
Os jardins persistem no século
XX, na periferia parisiense. Sua
produção hortícola beneficia o
cotidiano das famílias operárias.
Jardins operários em Suresnes.
Fotografia, 1943.
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
importantes estão assentadas em dois setores, e penso, em particular, no artesanato. Naturalmente, o
artesanato faz vir de fora as matérias-primas, mas
as transformações são feitas em Paris. O artesanato
é de grande importância, ele é muito produtivo.
São Luís, que pretendeu controlá-lo, descreveu-o
em uma medida disciplinar. Pediu ao preboste de
Paris, Étienne Boileau, que fossem redigidos os estatutos dos ofícios de Paris, aquilo que se denomina Livre dês métiers: há mais de cem deles! Assim,
o artesanato estende-se entre aquilo que se costuma chamar de primário e secundário. Como, aliás,
a produção da farinha, do pão. A este respeito,
Paris, durante muito tempo, foi um grande centro
"industrial". Ainda podem ser vistos, não longe do
centro de Paris, os Grandes Moinhos, que estão
desaparecendo nas amplas transformações atuais.
Da mesma forma que desapareceram há muito tempo os barcos sobre os quais eram fixados os moinhos e que eram amarrados às pontes, às dezenas.
Conservamos miniaturas que nos mostram as pontes de Paris, com as casas construídas em cima e os
moinhos amarrados aos pilares.
XIX, persiste uma certa atividade rural nas cidades
e ela é sempre suscetível de ser retomada em caso
de necessidade. Vi isso recentemente na China: a
casa da família, com o quintalzinho para os legumes, os frutos necessários ao consumo familiar
e que são trocados com os vizinhos. Encontramse assim campos e, principalmente, terrenos onde
podem pastar os rebanhos. A cidade, portanto,
pode ser penetrada pelo campo; não seria pertinente definir, a este respeito, uma separação
absoluta.
Da mesma maneira que se esquece aquilo que foi a função
agrícola das cidades, e que reencontramos em algumas cidades
da África, Bangui, Brazzaville, Kinshasa. Em Bamako, os
criadores peúles guardam as cabras na cidade. Parece que 20%
da população do Cairo pratica a agricultura.
É uma situação medieval. A "desruralização" da cidade é um fenómeno do século XIX. Até o século
32
POR AMOR ÀS CIDADES
Desruralização da cidade no século XIX, desindustrialização no
século XX, a cidade contemporânea perdura, contudo, na sua
essência. E sua essência está em outro lugar, na função da troca.
Páginas seguintes.
A cidade é agrupamento de profissionais, de espeÀ esquerda.
O mercado intra muros é
cialistas. Pensemos naquilo que é hoje, em Paris,
instalado perto da porta por
primeira cidade europeia de congressos, o Salão
onde chega o abastecimento.
Lojas e açougues testemunham a
da Agricultura. A feira e o mercado da Idade Média
influência da arquitetura urbana
ofereciam as mesmas ocasiões de trocas e de oporsobre os estabelecimentos
económicos. Vista do mercado
tunidades de modernização. Os Conselhos das orda porta de Ravena, em Bolonha.
Iluminura extraída de um
dens mendicantes que se tornaram as principais
manuscrito italiano, século XV.
ordens religiosas a partir do século XIII ocorrem
Bolonha, Museu Cívico.
nas cidades e provocam uma grande aglomeração
A direita.
não apenas de religiosos, mas também de todo um
O mercado anima regularmente
as praças urbanas e permanece o
círculo para alimentá-los, fornecer-lhes livros, oblugar dos bons negócios, como
jetos religiosos etc. Na sociedade antiga, o grande
aqui ao pé do Temple Neuf, em
Metz. Na cidade moderna, ele
domínio, a villa, era um centro de produção e de
muitas vezes conservou sua
comercialização que reduzia a função económica
localização central, perto de uma
igreja. Mercado, Praça da
das cidades. Esta começa a se desenhar na Idade
Comédia, em Metz, Moselle.
Fotografia, 1978.
Média nos termos que conhecemos.
POR AMOR ÀS CIDADES
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v
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
Impossível não falar, nesse momento, do dinheiro, da moeda.
O fato fundamental é que se tem muito mais necessidade de dinheiro na cidade do que no campo.
Primeiro, porque muito raramente o camponês é
levado a comprar coisas para as quais precisa de
moeda. De outro modo, as somas, os valores em
questão são muito menores do que na cidade, onde
os gastos, muitas vezes ostentatórios, quer se trate
de casas, aluguéis, alimentação, vestuário, exigem
mais uso de dinheiro. Em suma, a cidade suscita
aqueles que, a partir do século XIV, serão chamados de banqueiros, isto é, pessoas que faziam então operações muito simples, em lugares muito simples, com frequência em espaços exteriores, sobre
bancas ("banqueiro" vem daí). Sua atividade essencial é o câmbio: estamos numa sociedade em
que a grande multiplicidade de moedas dificulta a
economia. É aí que vemos aparecer o papel dos
Estes vitrais reproduzem "a
judeus. Porque eles se tornaram os especialistas
história do judeu e da hóstia",
também chamada "milagre de
não do câmbio (são cambistas bastante modestos),
Billettes", célebre na Idade
mas do empréstimo. Empréstimo a juros e emprésMédia. Uma burguesa parisiense
havia entregue ao judeu Jônatas
timo para consumo. Eles são quase que os únicos
uma hóstia consagrada que ele
que podem dispor de somas sobre as quais cobram
profana. Jônatas foi então preso
e queimado vivo.
um juro, e pelas quais tomam garantias que benefiAqui, as duas primeiras cenas,
ciam fortemente o credor - louças, vestuário, tecique representam a burguesa e o
judeu negociando no mercado.
dos, coisas da vida cotidiana. Aquele que toma emOs judeus na cidade são
prestado dos judeus se despoja e alimenta um ódio
frequentemente ligados à
moeda. Vitral proveniente da
terrível em relação a isso. Contudo, esse ressentiigreja de Santo Elói de Rouen,
mento é consequência da organização da econoséculo XVI. Rouen, Museu
mia e da sociedade. Progressivamente, os judeus
Regional de Antiguidades.
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POR AMOR ÀS CIDADES
L
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
foram expulsos de todos os ofícios. No século XIII,
eles são excluídos da posse da terra, mesmo como
camponeses servos de um senhor; deixam então
os campos.
E também não são bem-vindos na cidade? Pode-se lembrar que
em Estrasburgo há o sino que toca, de manhã, para permitir-lhes
a entrada na cidade e, à tarde, para ordenar-lhes que saiam.
Trata-se de uma instituição relativamente tardia. A
hostilidade com relação aos judeus aparece no fim
do século XI. Os movimentos antijudeus generalizam-se a partir do século XIV e, no fim da Idade
Média, restarão apenas duas soluções para os judeus. Uma é pura e simplesmente a expulsão: não
há mais judeus no reino da França a partir do fim
do século XIV, Charles VI expulsa-os a todos, seguindo o exemplo ainda mais precoce da Inglaterra, desde o início do século XTV. A outra solução,
particularmente na Itália, na Europa central e no
leste europeu, é o gueto.
Os judeus, desse modo enfraquecidos, podem permanecer como
os únicos credores?
Eles não circulam mais a não ser como credores.
As Escrituras predeterminam igualmente essa separação dos papéis: o Antigo Testamento proíbe aos judeus, inicialmente, e, depois, isso foi retomado pelos cristãos - que se empreste a juros a seu
irmão. Portanto, os judeus não praticam o empréstimo entre eles, mas o praticam em relação aos
cristãos, não há nenhuma restrição que pese a esse
respeito. Da mesma forma, durante muito tempo,
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POR AMOR ÀS CIDADES
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
páginas precedentes.
À esquerda.
A cidade é o reino da
construção: as casas dos
poderosos e ricos dão provas
disso, entre os monumentos
urbanos.
Ambrogio Lorenzetti, fffefs du
bon gouvernement dans Ia ville,
1337-1339 (detalhe: arquitetura
e construção de uma casa).
Siena, Palácio Público.
À direita.
Exagera-se a verticalidade
na cidade contemporânea;
as técnicas de construção
sofreram uma revolução.
Mas o homem, o trabalhador
urbano, está sempre ali,
correndo risco de vida.
Fotografia, Estados Unidos,
1934.
Página seguinte.
O século XVI desenvolve ainda a
monumentalidade urbana. Nas
cidades portuárias, a atividade
comercial continua central, entre
economia e religião, entre o
moinho de vento e a capela.
A porta de Palma de Maiorca.
Nissart, Retable de Saint Georges
(detalhe), século XVI. Palma de
Maiorca, Museu da Catedral.
os cristãos não obtêm esse tipo de empréstimo a
juros a não ser com os judeus. Pouco a pouco os
cristãos, em particular os mercadores, também se
tornarão credores. Num estudo de Georges Espinas,
datado de 1933, e consagrado a um grande mercador de Douai, Jehan Boimbroke, vemos de que
modo ele, ao mesmo tempo credor e empregador,
domina e explora toda uma série de dependentes,
de trabalhadores e trabalhadoras. Para não ser um
desocupado, é preciso obter o trabalho junto a um
empregador. Este exige que o operário ou a operária alugue uma moradia da qual ele é proprietário
e, quando ele quer, aumenta o aluguel, sem regulamentação: esta existe para os clérigos, para os
mestres e para os estudantes, mas não existe em
favor dos trabalhadores. Os empregadores aumentam o aluguel ainda que os operários não possam
mais pagá-lo. Fortalecidos por esse sistema infernal, os primeiros não põem os segundos na rua,
mas diminuem a remuneração de seu trabalho e
acabam por fazê-los trabalhar sem pagamento, simplesmente oferecendo-lhes um teto. Isto explica por
que os operários são, então, obrigados a trabalhar
no paralelo, o que não significa trabalhar clandestinamente por causa da ausência de regulamentação. Isto vale ainda mais para as mulheres. Na Idade Média, há duas grandes "indústrias", se é que se
pode chamar assim essas duas grandes atividades,
a construção e a tecelagem. A construção é um mundo à parte que recruta mais frequentemente por
canteiros de obras e que se organiza de tal modo
que daí têm origem as lojas maçónicas. O ramo
POR AMOR ÀS CIDADES
41
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
São Martinho, que desconfiava
das cidades, é aqui integrado na
história urbana. O santo acaba
de cortar seu manto para dar
metade dele a um pobre.
Iluminura extraída das Heures
d'Étienne Chevalier, por Jean
Fouquet, cerca de 1452-1460
(manuscrito 71). Paris, Museu do
Louvre, Coleção dos Desenhos.
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
têxtil é 3. anarquia. Aí, os empregadores podem
obrigar as mulheres a trabalhar apenas para manter sua miserável casa. Para o restante, que se prostituam! Paremos por aí: estas são as páginas mais
vergonhosas da história da burguesia europeia, ainda que no século XIX...
Nunca se imagina suficientemente o quanto as trocas, na Idade
Média, eram feitas, muito mais do que hoje, pelas vias fluviais.
As cidades geralmente eram portos.
Basta um pequeno curso de água, um atracadouro
de madeira. É espantoso encontrar no coração das
terras uma denominação portuária numa cidade
como Clermont-Ferrand, cuja belíssima igreja romana do século XII se chama Notre-Dame-du-Port,
porque era a igreja do bairro portuário, isto é, das
trocas. Um rei como São Luís parte de Paris para a
maioria dos seus locais de residência e retorna a
Paris por barco. Um pesquisador definiu as cidades medievais como pequenas Venezas, com seus
riachos-canais.
Precisamente em Paris, por que a praça atual do Hôtel-de-Ville, à
margem do Sena, se chamava, na Idade Média, Place de Greve?
Voltamos ao tema da troca sem regulamentação. A
Place de Greve é o lugar em que se reúnem, todas
as manhãs, os trabalhadores que não fazem parte
de uma corporação, que não têm emprego fixo.
Temos a imagem de uma Idade Média e de uma
época moderna - é verdade, aliás, que ela é um
POR AMOR ÀS CIDADES
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POR AMOR ÀS CIDADES
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
pouco mais verdadeira para a época moderna do
que para a Idade Média - que seriam totalmente
enquadradas por corporações, mas a maior parte
dos trabalhadores é constituída de operários não
organizados, sem defesas, vulneráveis, que chegam
de manhã para oferecer seu trabalho para o dia todo.
A essas pessoas precarizadas, como diríamos hoje,
resta a revolta - esta é bastante rara, mas haverá
revoltas urbanas muito importantes no século XIV,
espalhadas pela cristandade, em Florença, em Paris -, ou então o recurso de provocar tumultos, os
"taquehans" do francês antigo, e verdadeiras greves. Temos a narrativa do que se passa no fim do
século XII, em Colónia, a respeito de um religioso
que se tornara servente de pedreiro por devoção.
Ele trabalhava gratuitamente com os outros serventes como forma de penitência e de piedade. Desencadeia-se uma greve desses trabalhadores da qual
ele não participa porque, de certo modo, é um falso
operário. O resultado? Os grevistas o lançam no Reno.
Disso nasceu uma lenda segundo a qual dois anjos
o tiraram do Reno; ressuscitado, o homem tornouse santo. Trata-se de um episódio interessante que
mostra as realidades do mercado de mão-de-obra. É
ao mesmo tempo o movimento demográfico e a economia que criam, a partir do século XIII, mas sobretudo a partir do século XIV, esse novo tipo de população urbana que são os marginais, para os quais
é extremamente frágil o limite entre pobreza, miséria e crime, mais ainda para as mulheres, que se
debatem entre a miséria e a prostituição.
POR AMOR ÀS CIDADES
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
Atualmente mal se consegue distinguir entre os trabalhadores
permanentes, isto é, aqueles que têm um trabalho no início do
ano e que nele permanecem até o fim do ano, e aqueles que têm
apenas contratos com duração determinada.
Para os assalariados dos séculos XIII e XIV, seria possível
estabelecer a proporção entre uns e outros? Hoje se chega, na
Alemanha, a uma taxa de 50% e, na França, a uma taxa de
apenas 60% a 70% de trabalhadores permanentes.
Penso que a proporção é mais baixa ainda numa
cidade como Paris, no século XIII ou no XIV; diria
que o número de permanentes deve ser de 30% e
que o restante se dispersa num mercado quase diarista: os mais afortunados podem conseguir contratos por semana. Vemos hoje, aliás, na ação social
dos trabalhadores, os esforços para eliminar esse
mesmo risco de precarização.
Isso que o senhor diz incide sobre nosso debate contemporâneo
sobre o trabalho que, dizem, seria um valor de estabilidade
reconhecida há décadas, mesmo séculos. O historiador agrava
essas afirmações de um modo incisivo.
Pode-se divisar uma evolução, uma trajetória da
noção de trabalho, do valor ligado ao trabalho e,
simplificando as coisas, dizer que na alta Idade Média o trabalho é uma atividade e um valor menosprezados. Por quê? Trata-se sobretudo de trabalho
;
rural e, segundo uma tradição que o cristianismo
apenas reforça com relação à Antiguidade, o camponês é menosprezado. Na Antiguidade, ele é o grosseiro, o rústico, em oposição ao homem da cidade.
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
O martírio de uma santa
transforma-se numa cena de
teatro religioso urbano. Pode-se
aí reconstituir uma representação
do Mystère de Sainte Apolline,
até nos menores detalhes da
encenação, com o cenário
simultâneo dos palcos
coordenando atores, músicos e
cantores entre o "Ceú" e o
"'nferno".
Martírio de Santa Apolônia.
"uminura extraída das Heures
d
'Étienne Chevalier, por Jean
F
°uquet , cerca de 1452-1460
(manuscrito 71). Chantilly, Museu
Conde.
POR AMOR ÀS CIDADES
O camponês não tem sorte com o cristianismo: como
ele é quase que o último a se deixar cristianizar, ele
se torna para os cristãos, que geralmente moram nas
cidades, o pagão por excelência, e o termo pagão,
paganus, quer dizer também camponês (paysari).
Essa identificação camponês-pagão não se faz para
reforçar o prestígio do trabalhador por excelência
que é o camponês, encarnação do homem condenado ao trabalho pelo pecado original. Uma valorização do trabalho vai ocorrer lentamente nos
monastérios. A partir do século IX, a difusão, em
toda a cristandade, da regra de São Bento, que insiste muito na importância do trabalho manual, representa um acontecimento muito importante para
a história do Ocidente. O monge, ele próprio trabalhando, valoriza-o, considerando o trabalho uma
forma de penitência e de oração.
Mas, seja qual for o status depreciado de numerosos trabalhadores que evocamos, a grande valorização do trabalho se dá na cidade. Esta é uma das
funções históricas fundamentais da cidade: nela são
vistos os resultados criadores e produtivos do trabalho. Todos esses curtidores, ferreiros, padeiros...
são pessoas que produzem coisas úteis, boas e, às
vezes, belas, e tudo isso se faz pelo trabalho, à
vista de todo mundo. Inversamente, a ociosidade é
depreciada: o preguiçoso não tem lugar na cidade.
Some-se a isso que, a partir do momento em que
se desenvolve um movimento escolar num certo
número de grandes cidades, o fato de ensinar e
aprender contribui para a valorização do trabalho.
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
Enfim, no plano religioso e espiritual, é nas grandes igrejas das cidades, nas catedrais, como a catedral de Chartres, que se opõem na escultura mas numa oposição de igualdade - a vida ativa e
a vida contemplativa. A vida ativa, a dos trabalhadores - Santa Marta, Santo Elói, o ferreiro... -, é
mostrada como tendo um valor religioso. Marta é
elevada à altura de Maria. Será preciso esperar o
crescimento dos vagabundos, dos desempregados,
dos miseráveis, para que haja novamente um questionamento sobre o valor do trabalho. Vivemos
ainda nessa hesitação, entre a valorização e a condenação do trabalho. Todo o debate do fim do
século XX em torno da diminuição do tempo de
trabalho é muito equivocada do ponto de vista
ideológico, aí se encontram, indestrinçáveis, tanto a valorização dos trabalhadores quanto a depreciação do trabalho.
que a mercadoria entra na cidade, nos tempos antigos, não tendo sido ela objeto de falsificação
pelos pesos e moedas, há poucas possibilidades
de tráfico. O trabalho clandestino não faz parte da
sociedade nem da organização da cidade antiga. O
grande recurso, na cidade, para o pobre ou para o
esperto, é a mendicância e o roubo, que é punido
com severidade. Alguém que se dá bem é alguém
que sabe roubar. A cidade fervilha de ladrões...
A respeito da mendicância urbana, nossa mentalidade evoluiu completamente: eis um ponto em
que sopra o espírito de continuidade. Até a crise
do século XIV, o pleno emprego predomina, mais
ou menos, na cidade medieval; e se o pobre deve
recorrer à mendicância, esta é, se não louvada,
ao menos reconhecida. Na Igreja, as novas ordens do século XIII, dominicanos e franciscanos,
denominam a si mesmas ordens mendicantes. O
mendicante é quase que desejado na cidade, ele
permite ao burguês trabalhar pela sua salvação
oferecendo esmolas. Hoje nos submetemos a um
sistema totalmente distinto. Nas cidades medievais, se os conselhos de cidade tivessem tomado
resoluções proibindo a mendicância, teriam sido
completamente incompreendidos e, provavelmente, teriam suscitado rebeliões. A mendicância tinha, com efeito, um duplo mérito: de um
íado, coloca em evidência a miséria do homem,
e, de outro, para aqueles que se acham do lado
bom da roda da Fortuna, ela dá a oportunidade
de trabalhar por sua salvação mediante a esmola,
Sob a História, com H maiúsculo, existem as histórias; sob as
venturas ou desventuras, existem narrativas individuais e, sob o
trabalho, há o tráfico. A economia da cidade é também uma
economia subterrânea muito difícil de medir. A cidade d'As mil
e uma noites é também a cidade do tráfico. A vida dos portos é
a vida ilegal.
O tráfico económico que você evoca, na Idade Média e sob o Antigo Regime, é essencialmente o contrabando. Ele é feito de preferência fora das cidades, nas montanhas, nas estradas, nos litorais. Dado
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POR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
51
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Páginas precedentes.
No fim da Idade Média, o
comércio torna-se um ofício de
pessoas importantes da cidade,
profissionais que sabem medir,
contar, classificar.
Mercadores. Escola Lombarda,
século XV (manuscrito latino De
Sphera, n.209). Modena,
Biblioteca Municipal.
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
que persiste, e até se desenvolve, como a forma
de caridade que é, de longe, a mais recomendável.
Praticamente se ia à procura dos pobres, fazendoos migrar para a cidade para oferecer ao burguês a
possibilidade de fazer a caridade.
porto báltico, olham com desconfiança a população periódica e selvagem dos marinheiros, que é
preciso controlar. Temos uma coletânea de modelos de sermões, escritos por volta de 1230-1240 por
um pregador célebre na época, Jacques de Vitry,
indicando que, segundo as diferentes profissões,
as pessoas estavam mais sujeitas a cometer tal ou
tal pecado. Os marujos não eram poupados: a imagem que nos é dada nessa coletânea é a de um
mundo selvagem, exterior à sociedade cristã. A tal
ponto que, quando São Luís embarca para a cruzada e vê a horda dos marujos, ele se assusta. Ele os
interroga, percebe que não rezam, não vão nunca
à missa; aliás, nos navios, como poderiam fazê-lo?
Ele havia tomado suas precauções: outorga que se
construa um altar com sacrário. Obriga os marinheiros a seguir a missa, o que muito lhes desagrada. Esses marinheiros são, então, mostrados como
pessoas sem eira nem beira, o que é um grande
erro nas épocas antigas. Uma das virtudes das pessoas das cidades é, durante muito tempo, ter um
lugar. O citadino é alguém que talvez parta em peregrinação, mas que, normalmente, tem um lugar:
frequentemente ele tem uma casa, ao passo que o
camponês pode perder sua terra. Já vimos que mesmo os trabalhadores e as trabalhadoras mais pobres
desdobram-se para ter um teto. Os marinheiros, por
sua vez, não têm teto nem moralidade: a representação positiva que deles fazem hoje as cidades de
beira-mar, quando de seus festivais de veleiros e
velhas equipagens, é relativamente recente.
E o migrante, precisamente, como ele é visto?
O estrangeiro, durante muito tempo, é recebido,
antes, com interesse, curiosidade e honra, do que
como objeto de repulsa e desprezo. Sobretudo o
estrangeiro que traz uma nova maneira de bordar,
uma nova técnica de ourivesaria e que a cidade
adota, ainda mais quando essa técnica pode transformar a habilidade de um indivíduo numa produção em série.
Mas o migrante pobre e desprovido?
Ele deve, no conjunto, sentir-se um pouco menos
pobre na cidade do que no campo, como o camponês da África que prefere amontoar-se nas
Brazzavilles negras. Como este, ele não retorna à
sua aldeia, quaisquer que sejam as humilhações
sofridas na cidade. O camponês urbanizado que
retorna ao campo é algo que se vê muito pouco.
Ainda assim, o joão-ninguém devia ser mal recebido, mais
ainda quando vinha do mar e não da terra.
De fato, Nápoles, Veneza, Génova, Marselha, Londres, Anvers,-Bruges - que é um porto nessa época -, Lúbeck, o grande porto alemão, Riga, o grande
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POR AMOR AS CIDADES
k
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
/\s universidades urbanas que
lecionam teologia constituem
o mais alto grau de ensino.
O mestre é entronizado
na
cátedra como um soberano.
Iluminura extraída de Posti/les
surte Pentateuque, de Nicolas
de Lyre, século XIV
(manuscrito 129, f .32 r.). Troyes,
Biblioteca Municipal.
Ainda que seja excluída esta ou aquela categoria marginalizada,
os judeus de que f alávamos antes e os marinheiros, isso não
impede a constituição, na cidade, de uma opinião pública.
Não há opinião pública no campo, mas, a meu ver,
há uma que se constitui na cidade desde o século
XIII. Em Florença ou em Paris, mesmo que seja
para comentar sobre o Arno, o Sena ou o céu, todo
um povo fala, se comunica, comenta. Veja a agitação provocada pela chegada de um ilustre personagem. A esse respeito, estamos bem informados
sobre a viagem feita a Paris por Henrique III da
POR AMOR ÀS CIDADES
Inglaterra, porque um cronista inglês, Matthew Paris, narrou detalhadamente essa visita. Henrique III
adora passear por Paris. É um rei que todo mundo
hostiliza na Inglaterra, tanto a arraia-miúda das aldeias quanto os barões. Ele fica feliz por encontrar-se num lugar onde lhe fazem festa por ser um
estrangeiro - volto ao fato de que, na época, quase
não existe xenofobia. Pelo contrário, faz-se festa
ao estrangeiro real que vem a Paris. Henrique III,
radiante, impressiona-se com todas as pontes que
são construídas com as casas, o que parece não ter
existido em Londres, nessa época. Ele acha isso
muito surpreendente e belo e, verdadeiramente,
toma aquilo que hoje chamaríamos de banhos de
civilização. E, mais uma vez, ele se impressiona de
poder fazê-lo sem ser hostilizado, e sob aclamações. Uma grande recepção é organizada pelos estudantes ingleses na universidade, que não conta
com instalações próprias mas utiliza aquelas onde
é acolhida. A festa dura um dia e uma noite, e dela
se comenta!
Enfim, falamos de festas! Vai-se à cidade também em razão de
suas festas.
O teatro havia começado a renascer timidamente
nas igrejas e nos monastérios, onde não apenas
eram encenadas peças litúrgicas, mas algumas vezes até mesmo comédias latinas. No século XII, o
Jeu de 1'Antéchríst, as comédias de Terêncio, em
latim, eram encenadas nos monastérios. No século
XIII, isto se finda. O que vai sustentar o grande
POR AMOR ÀS CIDADES
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impulso do teatro, em particular com as famosas
Paixões, que são encenadas diante das catedrais,
é a grande praça das cidades, lugar do renascimento do teatro, de fato um verdadeiro nascimento. A
esse respeito, Arras é uma cidade que se distingue, uma cidade de burguesia poderosa, uma cidade de mercadores, uma cidade de fabricantes
de tecidos que promove as mais interessantes criações teatrais. Foi ali que se apresentou, em 1280,
o J eu de lafeuillée, de Adam de Ia Halle: um de
seus temas fundamentais é a ameaça que a cultura camponesa faz pesar sobre a cidade e sobre a
cultura urbana. Vêem-se fadas, camponeses que
de algum modo vêm invadir, perturbar, corromper a cidade. É um apelo à população urbana para
defender a cultura que ela criou contra o assalto
da rusticidade.
Se se trabalha muito, em contrapartida pode-se desfrutar
numerosos feriados e dias festivos como o carnaval que, apesar
da desconfiança e da vigilância suscitadas pela noite, grávida
de todos os perigos, seja a agressão dos vadios ou a do diabo,
podem se prolongar em noites incomuns.
Sim, as festas, essencialmente religiosas, têm uma
dupla função: de regozijo (e de glorificação de
Deus e de seus santos) e de repouso. Aqui, ainda
uma vez, aparece a inovação. Novas festas são
criadas, especialmente urbanas; a mais importante e que tem grande e rápido sucesso é a festa de
Corpus Chrísti, festa da eucaristia, nascida na ciPOR AMOR ÀS CIDADES
dade de Liège, dando lugar a magníficas procissões, criando novos trajetos e novas formas cerimoniais. O carnaval, que era na alta Idade Média
uma festa rústica, camponesa, com forte conotação
pagã, invade a cidade, urbaniza-se, e aí se introduz uma contestação ideológica. O carnaval transforma-se em algo que se opõe à quaresma, combate a mentalidade penitenciai e ascética da religião cristã, faz triunfar o riso, que volta a ser, como
na Antiguidade, algo próprio do homem, contra o
pranto, expressão da contrição e do arrependimento que devem caracterizar o homem pecador.
E a inovação linguística pode ser medida? Para a França dos
séculos XIX e XX, graças aos atlas linguísticos regionais, pode-se
ver como se difundem as palavras da cidade, como se exerce a
influência de Paris na região parisiense. Poderíamos, já para a
Idade Média, perceber algo?
Este não é um campo em que eu seja muito competente. O que parece é que, tratando-se justamente
de uma cultura escrita, as inovações linguísticas se
dão essencialmente nas cortes principescas. Assim,
na corte de Flandres, na corte de Champagne. Em
definitivo, o francês nasce na corte real e, de preferência, na íle-de-France, mais do que em Paris. Os
reis não estão continuamente em Paris e não é o
ambiente parisiense que cria o francês, e sim o am/ biente da corte real. Além disso, as linguagens não
são, que eu saiba, linguagens típicas .de cidades,
mas linguagens de regiões. Falar-se-á, por exemPOR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
A festa e os jogos participam
da identidade urbana, que
procura se afirmar diante
da cultura camponesa.
Os jovens têm uma
função particular.
Mestre do cassone Adimari,
Jeu du "dvettíno", século XV.
Florença, Palácio Davanzati.
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
pio, o picara. Mas não falamos da linguagem
"parisiense". Contudo, a língua da cidade vai trazer
dois tipos de inovação muito importantes. De um
lado, a linguagem dos artesãos, a linguagem dos
mercadores, e, de outro, a linguagem sobre a qual
Bakhtin insistiu, a da praça pública. No campo, há
o lavadouro, o "parlamento das mulheres" (Lucien
Febvre), há a forja, esse fórum interior dos homens.
Na cidade, há a praça pública, o "tribunal dos flagrantes delírios" em que circulam os contos, as canções e os provérbios pelos quais a Idade Média é
tão ávida.
Em compensação, na cidade há um uso muito maior
da língua escrita que se aprende na escola e nas
universidades. É na praça pública que a arte do
comício faz também sua aprendizagem. No século
XV, numa cidade como Metz, afixam-se chamados
para reuniões que se situam entre a manifestação
religiosa e a manifestação política. Isso também testemunha a criatividade urbana.
Criatividade que não seria compreendida se não fosse
mencionado o papel das tão recentes universidades.
A universidade encontrou na cidade o húmus e as
instituições. Isto é, de um lado, os mestres e os
estudantes, e, de outro, as formas corporativas, que
lhe permitiram existir, funcionar e adquirir poder e
prestígio. Uma universidade completa constituíase de quatro faculdades, aquilo que conhecemos
até um passado recente: as artes, que chamaríamos
POR AMOR ÀS CIDADES
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POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
de letras e ciências; a medicina; o direito, ou mais
exatamente os dois direitos - civil e canónico -, e a
teologia. Duas dessas quatro faculdades não impunham a seus membros nem o celibato nem a abstenção do comércio. Eram o direito e a medicina:
os juristas e os médicos podiam casar-se, constituir
uma família e cobrar pelos seus serviços.
Os teólogos e os juristas eram os personagens importantes, mas os mais inovadores na história das
ideias e na história social foram talvez os médicos. Digo história social, e não história da saúde:
esses médicos eram sábios que tratavam mais com
o livro do que com uma verdadeira ciência. Mas
pelas questões suscitadas pelo seu ensinamento,
com respeito, por exemplo, ao corpo, ao cadáver, à
sexualidade, eles trouxeram, conscientemente ou
não, muitas inovações que não teriam conseguido
manifestar-se num ambiente monástico. Mas as universidades continuam sendo pouco numerosas antes do século XV, na França. Paris, teológica e
dominadora, Orléans, Toulouse, Caen criada pelos
ingleses, e, à margem, Montpellier.
Tem-se a impressão de que o senhor apresenta a relação entre
cidade e universidade como tendo sido sempre o fruto de uma
dinâmica relativamente simples. Mas, afinal, as relações entre a
cidade e a universidade nunca f oram fáceis. Mesmo hoje,
quando se considera a universidade necessária para criar um
"pólo de excelência" nas cidades e facilitar seu desenvolvimento
terciárío. Na Idade Média, a cidade procurava preferencialmente
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
reduzir a autonomia da universidade, que, por seu lado,
queria preservar suas estruturas, suas nações, suas tribos, suas
províncias e, depois, sobretudo, sua faculdade de julgar a si
mesma, de julgar seus resultados.
Uma universidade é, para uma cidade, um bom
negócio, primeiro porque fornece um mercado e
inquilinos para as casas: durante muito tempo, as
universidades não têm seus próprios edifícios e,
quando os tiverem, serão sobretudo destinados ao
ensino, embora já se desenvolva o sistema dos colégios para bolsistas - o mais célebre, em Paris, é
aquele fundado pelo amigo de São Luís, o cónego
Robert de Sorbon, a futura Sorbonne. Os universitários, os estudantes, mesmo aqueles que se dizem
pobres, dispõem, apesar de tudo, de um poder de
compra. Há estudantes de origem camponesa, mas
são raros. A maior parte deles vem, com mais frequência, da pequena nobreza e representa, portanto, consumidores que interessam à cidade e ao
ambiente burguês. Mas, como órgão da Igreja, protegido por ela, a universidade coloca restrições à
liberdade urbana. Aí entra a taxação, por exemplo,
a taxação dos alojamentos. Os burgueses vêem-se
obrigados a alugar diversos alojamentos na cidade
a um preço fixo, uma espécie de HLM [sistema de
habitações populares, de aluguéis moderados], mas
, normalmente de qualidade, e pelos quais os proprietários pensam que poderiam obter mais lucro.
Uma das censuras feitas aos universitários pelos
burgueses é que eles não enriqueciam o fisco urbano porque eram isentos de impostos. A sensa-
POR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
63
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
cão de prestígio trazido à cidade pela universidade
só será percebida lentamente, salvo em Bolonha,
onde, desde o século XII, a cidade se orgulha de
seus estudantes e de seus mestres vindos de muitos lugares da cristandade. Os grandes professores
ali são considerados "senhores das leis".
Sendo difíceis as relações entre universidades e cidades, as
universidades procuram, como as ordens religiosas, proteções
distantes, papado ou Estado, para evitar a tutela muito próxima
das cidades. No fundo, tem-se um pouco a mesma situação
hoje, quando as universidades, não estando dispostas a se
curvar aos desejos das coletividades locais, preferem ser ou
empresas privadas, como nos Estados Unidos, ou
estabelecimentos estatais, como é o caso na França, ou na
Inglaterra, em Oxford.
Na Itália, por exemplo, houve uma "comunalização",
parcial ou total, das universidades que, particularmente em Bolonha, assegurava uma remuneração
a seus quadros. Mas, no conjunto, os universitários
não tinham independência nem financeira nem ideológica. Assim, qualquer que tenha sido seu papel
na história da instrução e do pensamento, eles se
achavam, apesar de tudo, fortemente limitados pela
sua subordinação à Igreja e a uma sociedade muito
controlada. Na Idade Média, para se subtrair à tutela muito próxima das cidades, eles dispunham apenas da proteção do papado, aparentemente vantajosa porque distante. O papel do príncipe só poderá definir-se muito mais tarde, com a laicização e a
Reforma.
64
POR AMOR ÀS CIDADES
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
Por razões evidentes, os universitários perderam
sua autonomia. Primeiro, por motivos ideológicos: a Igreja não podia tolerar o livre-pensamento, ela devia controlar absolutamente o ensino nas
universidades. De outro modo, os mestres não
podiam obter meios de viver a não ser através da
Igreja: aquilo que organizaram no início, a collecta,
a "subscrição" junto aos estudantes, convinha apenas enquanto estes permanecessem pouco numerosos; a partir do momento em que verdadeiramente
se teve um ensino de massa nas universidades, esses jovens - mesmo aqueles que vinham de uma
família nobre - continuavam incapazes de poder
pagar por seu ensino. Além disso, a cidade não
estava disposta a pagar seus mestres, os quais de
forma alguma dela derivavam: eles não eram leigos, mas letrados.
Isso não impede que tivesse curso um certo número de novidades, até mesmo pensamentos ousados. As universidades resistiram às intervenções dos
príncipes e das cidades. Pádua, por exemplo, até o
século XVI, foi um centro de difusão das ideias de
Averróis, que julgaríamos muito avançadas, próximas do livre-pensamento. E, desde o século XIII,
surgiu um slogan sobre o poder, afirmando que o
verdadeiro poder, aquele que os juristas chamavam de potestas no direito romano, apresentava
doravante três aspectos: regnum, a realeza, o governo, isto que chamamos de poder público;
sacerdotium, os padres, o clero e... studium, o saber, isto é, a universidade. Se, em certos aspectos,
POR AMOR ÀS CIDADES
65
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
os universitários não conseguiram ser autónomos,
conseguiram finalmente impor seu prestígio. Quando, no interior da Igreja, se realizavam os concílios
ecuménicos, as universidades eram representadas.
Nos grandes concílios que puseram fim aos cismas
entre vários papas, que despedaçaram a Igreja no
fim do século XIV e, em parte, puderam anunciar o
mundo moderno, isto é, os concílios de Constance
e de Bale, o papel dos universitários foi crucial. De
outro modo, a universidade havia adquirido na cidade e no Estado um poder de opinião. Se havia
conflitos internos na universidade, ela se reunia
como corpo constituído, com o reitor à frente, para
exercer uma espécie de lobby sobre o poder público, com chance de ser ouvida.
A cidade inovadora, palco de igualdade e festa da troca
malvistos. Na verdade, a atitude das cidades com
respeito aos universitários, e sobretudo os estudantes, é ambígua ou, antes, ambivalente. De um lado as
cidades celebram suas universidades e seus universitários porque encontram nisso prestígio e mesmo lucros, mas, de outro, não se aplaca a hostilidade
que se experimenta a seu respeito. Os estudantes
constituem um mundo de jovens, e os jovens da
Idade Média - talvez isto não tenha mudado tanto são agitadores. Como se dizia nas abadias, eles tornam mais difíceis o consenso e o bom governo,
que se buscava tão febrilmente tanto ontem como
hoje. A inovação intelectual e social frequentemente
andava de mãos dadas com a agitação, como em
todos os setores do viveiro urbano.
As cidades são forçadas a ouvir as opiniões, autorizadas, da
universidade, mas sobretudo a ouvir sua vida, tonitruante.
É que os estudantes representam, na cidade, um
corpo estranho e frequentemente encarado com
hostilidade. Curiosamente, talvez sejam eles, entre
os imigrantes vindos para a cidade dos quais você
falava há pouco, os mais malquistos. Faz-se a eles
a mesma censura que hoje se faz àqueles que vêm
das periferias: perturbam a vida dos bons burgueses, dos bons cidadãos.
Eles não estão organizados em famílias, eles são violentos,
Sim, e fazem badernas, têm costumes que perturbam a paz das famílias. São portanto, em geral,
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POR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
67
A cidade em
segurança,
05 bens protegidos
e o bem comum
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
l Os demónios tinham se
í apoderado do coração
• Pervertido dos habitantes da
f cidade de Arezzo. São Francisco
i ex°rciza-o s e expulsa-os para
ln|
aar uma reconquista religiosa
su
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moral a partir da Igreja e de
a ordem, estabelecidas diante
a
massa urbana. É a aparição
"ma imagem inquietante
|da cidade.
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> 1290-1295.
. Basílica de São Francisco
|9reJa superior).
IS
A cidade da Idade Média é um espaço
fechado. A muralha a define. Penetra-se
nela por portas e nela se caminha por ruas
infernais que, felizmente, desembocam em
praças paradisíacas. Ela é guarnecida de
torres, torres das igrejas, das casas dos ricos
e da muralha que a cerca. Lugar de cobiça,
a cidade aspira à segurança. Seus habitantes
fecham suas casas à chave, cuidadosamente, e o roubo é severamente reprimido.
A cidade, bela e rica, é tambémfonte de idealização: a de uma convivência harmoniosa
entre as classes. A misericórdia e a caridade
se impõem como deveres que se exercem nos
asilos, essas casas depobres. O citadino deve
ser melhor cristão que o camponês. Mas os
doentes, como os leprosos que não podem
mais trabalhar, causam medo, e essas estruturas de abrigo não demoram a tornarse estruturas de aprisionamento, de exclusão. As ordens mendicantes denunciam as
desigualdades provenientes dessa organização social urbana e desenvolvem um novo
ideal o bem comum. Mas elas não podem
impedir a multiplicação dos marginais no
fim da Idade Média.
Í^MB»*^
POR AMOR ÀS CIDADES
71
A cidade em segurança, 05 bens protegidos e o bem comum
A necessidade de segurança é um valor comum na Idade Média?
Sim, de certo modo e sob formas variadas, segundo os lugares e a categoria social. Mesmo os homens identificados com a violência, os nobres guerreiros, procuram a segurança nas suas fortalezas. A
partir do ano 1000, a Igreja incentiva um movimento de paz, de não-violência, que responde sobretudo à aspiração das massas camponesas submetidas
à violência feudal. Mas a segurança é, sobretudo,
uma obsessão urbana, muito consciente e muito
viva. A cidade é, com relação ao campo, à estrada
e ao mar, um pólo de atração de segurança.
... E que resulta em qual forma de policiamento?
No século IV antes da era cristã, optando por uma
linas seguintes.
solução curiosa, Atenas apelara a arqueiros citas
squerda.
ás de suas muralhas, a cidade
para garantir o policiamento na cidade, como nos
irmã pouco a pouco de uma
Estados Unidos se apela a policiais negros. Parado:a de segurança encarregada
je\ar pela tranquilidade de
xalmente, confia-se o cuidado de fazer o policias habitantes e de controlar os
mento a pessoas em certa medida menosprezadas.
quês externos. Muros e
nens armados velam pela
Satisfaz-se àquilo que se considera uma necessidade,
ide.
a
segurança, mas, ao mesmo tempo, essa função
dade de Palma. Nissart,
3Ò/e de Saint Georges- não parece muito honrosa: em Atenas, os citas são
:alhe), século XVI. Palma de
bárbaros. E, além do mais, munidos de uma arma
orca, Museu da Catedral.
ignóbil para os gregos: o arco. Uma arma da qual o
ireita.
cidadão não se serve. Acontece praticamente a mesiversão do medo urbano:
;, o medo do perigo está no
ma coisa na Idade Média. Será necessário esperar
rior da cidade e alguns
que certos grupos que se servem do arco obteros urbanos vivem sob forte
anciã.
nham uma promoção social, e sobretudo sucessos
dal vigiando o bairro do
militares, para que os arqueiros se tornem pessoas
lem, em Nova York.
jgrafia, 1972.
mais ou menos respeitadas. É o que aconteceu na
POR AMOR ÀS CIDADES
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
Inglaterra: os arqueiros são inicialmente galeses. Ora
celtas bárbaros, galeses, irlandeses, essas pessoas não
são veneradas. Mas são militarmente muito eficazes, e as vitórias inglesas em particular, obtidas nos
campos de batalha graças aos arqueiros, vão institucionalizar esses guerreiros. Mas estamos nos distanciando da cidade...
E todos estão de acordo quanto àquilo que se deve defender?
Sim, com exceção dos marginais. Mesmo os pobres parecem ter uma preocupação quanto à segurança, ao menos para as pessoas.
Uma mesma hierarquia de crimes era estabelecida para todos? É
preciso defender essencialmente duas coisas: as pessoas e os bens.
O que se combate, condena e julga severamente
são, de um lado, a morte, os ferimentos e as agressões, mesmo que não resultem em morte, e, de outro, o roubo. O roubo era severamente reprimido na
Idade Média, e particularmente nas cidades. Era um
crime considerado muito mais grave e muito mais
duramente punido do que o é na nossa época.
Hoje, estaríamos quase que mais preocupados com as
incivilidades, os desentendimentos quotidianos aparentemente
sem gravidade, as pequenas agressões, os pequenos atritos que
não constituem importantes atentados à legalidade mas que
estabelecem um clima de tensão.
O que é notável na Idade Média, e que reencontraremos mais tarde, existindo ainda em nosso Código Penal, é a defesa do domicílio, e sobretudo do
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
MOR ÀS CIDADES
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
ifres e livros contábeis são
itrumentos de trabalho desses
nqueiros italianos que
atiçam o empréstimo na Idade
;dia.
na no interior de um banco,
ninura extraída do Traité dês
;f viés, fim do século XIV
anuscrito Add. 27695, f.8).
idres. Biblioteca Britânica.
domicílio urbano. Existem ainda muitas casas de madeira, mas a casa tende a ser de pedra. Ela é o lugar
onde se identifica uma família, ao passo que as casas camponesas não são absolutamente guardadas
pelos mesmos sentimentos e os mesmos materiais.
Arrombar uma casa, adentrá-la para roubar, e principalmente uma casa fechada, é algo grave. Tanto
que na cidade os burgueses e os citadinos se trancam cuidadosamente à chave.
Estamos seguros disso, a casa é bem trancada?
Ah, sim!
E em que se vê isto? Nos molhos de chave representados nas
pinturas, nos retratos?
Nas chaves que foram encontradas e nas fechaduras que, quando se trata de casas ricas, podem ser
coisas extraordinárias: o museu da Fechadura, em
Paris, é um museu apaixonante. Durante muito tempo, mesmo entre as pessoas ricas, poderosas, entre
os senhores, encontra-se pouca mobília, geralmente uma mesa, cadeiras sem espaldas e o móvel essencial: o cofre. É nele que são guardadas a louça,
as vestimentas etc., e eles são providos de chaves
notáveis.
Eram os boatos que traziam notícias de roubos, de assaltos, de
crimes... O sentimento de insegurança devia muito a eles.
Sem dúvida alguma. Se os citadinos da Idade Média,
à noite, fecham as portas e, às vezes, põem correntes, é porque temem bandos rurais ou bandos de
POR AMOR ÀS CIDADES
w^
A cidade em segurança, 05 bens protegidos e o bem comum
vagabundos sobre os quais se diz que, de tempos
em tempos, atacam as cidades. Em geral, não são
ataques propriamente militares, organizados; simplesmente grupos de várias dezenas de pessoas entram
na cidade, pilham e saqueiam. Na Itália, particularmente, formam-se bandos urbanos, partidos que não
são políticos (mesmo que os guelfos, partidários do
papa, e os gibelinos, partidários do imperador, apresentem uma organização que deles se aproxima),
mas, antes, quadrilhas armadas, clãs que combatem
entre si muitas vezes, e muito violentamente. É muito difícil para a cidade estabelecer um policiamento
sobre esses bandos. Tanto mais que, com frequência, é um desses bandos que detém o poder. Conseqiientemente, se ele faz reinar a segurança, o faz
em seu único proveito. Houve, em certos momentos, sobretudo na Itália, fenómenos que lembram
um pouco isso que se vê nos westerns, em que o
xerife e aqueles que detêm o poder político se revelam muitas vezes impotentes ou cúmplices.
Hoje, quando a polícia percebe que uma gangue de bairro
decidiu enfrentar uma outra, a rixa pode ser evitada antes que
ocorra. As forças de segurança, na Idade Média, podiam
antecipar-se, pela prevenção e informação?
Sim, verdadeiros espiões das cidades mantinhamse informados na região, e nos ofícios, sobre os
riscos que poderiam surgir. De outro modo, como,
contrariamente àquilo que se acreditou durante muito tempo, o período medieval conheceu intensos
deslocamentos e no qual a comunicação era muito
OR AMOR ÀS CIDADES
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
ativa, estava-se em geral bem informado sobre riscos de violência, mesmo que os boatos muitas vezes os ampliassem. Em 1251, quando São Luís está
no Oriente, na cruzada, bandos denominados
pastorinhos - precisamente porque são compostos
por jovens do campo - dirigem-se a Paris: eles passaram por Orléans, onde praticaram violências; conhecem-se mais ou menos seus avanços, sabe-se
onde eles se encontram e tenta-se tomar medidas
de segurança.
Tenta-se hoje organizar nas periferias - Martine Aubryfaz isso
em Lille, sob o nome de Lilíadas - campeonatos de futebol entre
bandos de jovens para canalizar suas energias; isto se parece
um pouco com o que havia em Veneza, quando um bairro
enfrentava outro, nas justas, nos canais?
Talvez isso tivesse em parte essa função, mas não
estamos informados sobre esse estado de espírito.
Esses combates, que são em parte jogos, em parte
combates sérios, regulam fenómenos de competição entre bairros. Como hoje acontece entre times
de futebol. Trata-se, antes, de uma liberação, do
que violência propriamente dita.
O hilotismojá existia. Em algumas cidades francesas, aliás, ele
ainda se mantém de uma forma quase medieval: a confraria
dos cavaleiros, em Roubaix, os agentes de bairro da dinastia
Alduy, em Perpignan.
Cada ofício devia fornecer regularmente um contingente para a vigilância noturna, devia participar
dessa defesa e da segurança da cidade.
POR AMOR ÀS CIDADES
79
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
O debate contemporâneo apresenta três soluções: executa-se um
policiamento próprio, por pequenos grupos de habitantes, de
co-propríetários, de condóminos? Ou, então, confia-se o
policiamento à municipalidade? Ou, ainda, a um órgão do
Estado que defende valores mais universais?
Parece-me que a autodefesa tem maior incidência
na Idade Média, não deixando de existir para tanto os corpos constituídos no nível do reino e da
cidade.
m
**«,!
A questão d,os transportes não se coloca como hoje. A questão
da polícia, sim. Por quais outros caminhos se constrói a ideia
de serviço do público- não digo-, serviço público.
Pela ideia de misericórdia e de caridade. Um dever
impõe-se a todos os cristãos e talvez mais particularmente aos citadinos, os quais vivem numa comunidade onde não faltam oportunidades de afirmar que
todos os homens são irmãos. Desenvolve-se a construção de bôtels-Dieu ou de asilos; temos uma ideia
também um pouco falsa em relação a isso, reduziEnquanto São Luís está preso
no Egito, bandos de jovens
mos em geral os hôtels-Dieu a hospitais. Não, tratacamponeses marcham em
se de casas para pobres. Na Idade Média, o limite
direção a Paris com o objetivo
entre doença e pobreza é muito fluido: como não
de libertá-lo. O movimento
degenera e os pastorinhos são
existe nenhuma seguridade social e, na cidade, não
exterminados em 1251: eles
funcionam, salvo exceção, as solidariedades familiarepresentam tudo aquilo
res que existem no campo, quem fica doente tornaque é estranho à cidade
e que a ameaça: a rusticidade,
se desempregado, torna-se pobre, e, a partir desse
o nomadismo, a desordem
Comento, revela-se a caridade. É uma caridade confanática.
junta da Igreja e da cidade: os asilos são frequenA cruzada dos pastorinhos.
Iluminura extraída de /.e //Vre cfes
temente construídos pelas municipalidades com o
faiz Monseigneur Saint Louis,
dinheiro da cidade, mesmo quando é a Igreja que
século XVI. Paris, Biblioteca
Nacional da França.
lhes assegura o funcionamento.
OR AMOR ÀS CIDADES
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
Alguns asilos serão muito reputados pela impressão de devoção que produzem, como aquele criado por São Luís em 1260 para os cegos, o hospital
de Quinze-Vingts, cuja capacidade de abrigo (trezentos doentes) impressiona os contemporâneos.
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
páginas seguintes.
O desenvolvimento dos hospitais,
instituições que tratam e
acolhem os pobres, dissimula a
ausência de solidariedades
familiais na cidade.
Originalmente animados por um
espírito de caridade, muitos se
tornarão lugares de isolamento,
Contudo, a passagem do gesto de amor, individual, ao gesto de
assistência, delegado, organizado, é plena de consequências.
Pouco apouco as estruturas de albergaria, tornando-se mais
poderosas, transformam-se em estruturas de aprisionamento.
De início, na Idade Média, não se sabe curar os
doentes e, portanto, liberá-los. Não há médicos bastantes e com conhecimentos suficientes, não há
equipamentos. Dois tipos de tratamentos fundamentais são desde logo realizados em quase todos os
casos: de um lado, praticar a sangria, e, de outro,
examinar as urinas. O exame das urinas, e o diagnóstico que dele resulta, mesmo vindo de pessoas
que haviam adquirido alguma formação, é, segundo nossos critérios, um ato de charlatanismo. Mas
isso é considerado, na Idade Média, um ato científico: o médico que examina as urinas é quase tão
sábio quanto o astrólogo que lê o futuro nas estrelas. Assim, pela falta de conhecimentos suficientes
do ponto de vista médico, não se sabe curar. Ficar
doente é um desastre para o homem, a mulher ou
a criança, e quase que inevitavelmente esse doente
se torna pobre e dependente, quando escapa à
morte. O desemprego propriamente dito quase não
R AMOR ÀS CIDADES
como os leprosários. Constata-se
a presença ostentatória dos
grandes burgueses que
financiam a instituição.
Domenico Di Bartolo, Lês soins
aux blessés donnés à l'hôpital
Santa Maria delia Scala à Sienne.
Afresco, 1443. Siena, Hospital
Santa Maria delia Scala,
Sala dos Peregrinos.
aparece antes do século XIV. É somente nessa época que ele se torna o resultado não apenas da
doença, mas também de uma crise, mas como não
se percebem os mecanismos económicos, pensase que se trata de uma atitude, uma recusa de
trabalhar e, portanto, um perigo. Os não trabalhadores de repente provocam medo. Assim, cada
vez mais, constroem-se esses edifícios equívocos
que, de certo modo, são obras de caridade, mas,
ao mesmo tempo, lugares de aprisionamento, de
exclusão. O mais espetacular é a proliferação das
casas para leprosos. Tanto mais que isso coincide
com a ideia de contágio que se reencontrará no
século XVIII, e que já surgiu no século XIII, o que
pode ser visto particularmente no modo pelo qual
a cúria romana, o papa, os cardeais e seu círculo
evitam as cidades, especialmente Roma, em época de malária. Com a peste negra, a partir de
meados do século XIV, o medo do contágio tornase então um pânico. Acredita-se também que a
lepra é contagiosa e os leprosos são isolados em
leprosários que se denominam "maladreríes" - já
que o termo "ladre", em francês antigo, quer dizer doença (maladiè). Esses leprosários são postos sob a proteção de Maria Madalena; o bairro
onde são construídos, frequentemente na periferia, chama-se o bairro de Madalena. É o caso
de Lille, onde o nome subsiste, e de Paris: lembra-se da paróquia de Madalena, que se tornou
tão chique?
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
No fundo, poderíamos aliar a história do desemprego a uma
epidemiologia. É também quando o desemprego aparece como
uma doença contagiosa que ele começa a inquietar.
E uma lição dos estudos do grande historiador polonês Bronislaw Geremek.
li
O senhor descreve desse modo as casas dos doentes, mas, e as
casas dos pobres, aquelas que aparecem pela primeira vez nas
cidades mais industrializadas, como Bruges, na Planares, ou
Florença, na Itália?
São sempre asilos. Não existem, propriamente falando, casas dos pobres. Elas apareceram somente
depois da mutação das ideias relativas ao trabalho.
Serão, no século XVII, as workhouses inglesas onde
os pobres vão trabalhar. O que manifesta uma forma de desprezo por essa atividade, que se torna a
mais baixa quando é manual: esses trabalhadores
pobres são condenados ao mesmo tempo que são
explorados pela indústria nascente. Este é também
um dos capítulos mais negros da história social da
Europa e da história das cidades, mas posterior à
Idade Média.
Criticava-se, evidentemente, o rei por querer se mostrarem vez
de procurar aliviar de fato a miséria.
Sim, como se faz hoje. São Luís, no século XIII,
defesa, o assédio e a conquista
s cidades têm um importante
empreende verdadeiras viagens de caridade atrapaço na história militar,
vés do domínio real, na Normandia, na íle-dereconquista de Tortosa em
France, em Berry, na Champagne, verdadeiras via48. Iluminura extraída dos
ntiques de Sainte Mane, de
gens organizadas cujo fim é mostrar o rei ocupado
bnso X, o Sábio, de Castela,
com obras de misericórdia. Essa caridade real é
:ulo XIII. Madri, Biblioteca do
jnastério do Escoriai.
exercida em dois lugares essenciais: nos hôtels-Dieu
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POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
e nas cidades onde estes estão situados. Mas ele se
utilizava do palco da estrada, onde era visto avançando solenemente, e do cenário da cidade para
significar um certo tipo de sociabilidade, de relação entre os cidadãos, entre as categorias sociais,
entre os poderosos e os pobres.
o desenvolvimento de uma espécie de terceiro-mundo que viu nascer esses movimentos e comoveu os
soberanos, que se acreditaram obrigados a sustentálos. Não há nada a não ser a visita às prisões, muito
mais sistemática na Idade Média, que encontre um
equivalente hoje. E ainda assim...
Os trinitários consagram-se à redenção dos prisioneiros transformados em escravos pelos muçulmanos. Mas, nas cidades cristãs, sobretudo na bacia
mediterrânea, os citadinos também tinham como
serviçais escravos não-cristãos comprados em mercados especiais. Infelizmente, os estudos que existem sobre as prisões da Idade Média são limitados
aos casos raros daquelas que conservaram arquivos. O país onde mais as encontramos é a Inglaterra, porque os arquivos, frequentemente bem conservados, das instituições judiciárias mais precoces
e mais desenvolvidas que em outros lugares informam sobre os problemas ligados à prisão. A Inglaterra foi também um dos países em que a administração utilizou mais cedo a escrita.
E ele utilizava para obter esse efeito as ordens mendicantes,
como hoje os governos se apoiam sobre os médicos
humanitários. A este propósito, o senhor não acha que existe no
movimento ou, antes, na vocação humanitária algo como a
nostalgia, o lamento das ordens mendicantes?
Não tinha pensado nisso, mas não é impossível: as
obras de misericórdia foram um ponto essencial
do apostolado das ordens mendicantes; os próprios
religiosos dessas ordens, e os fiéis que os escutavam e seguiam seus conselhos, deviam praticá-las
como algo fundamental para sua salvação. Sempre
houve caridade na sociedade cristã desde que o
cristianismo se difundiu. Mas um sistema de caridade, de obras de misericórdia, só aparece a partir
do século XIII, com as ordens mendicantes para as
quais a cidade é o teatro. Parece imperativo alimentar aqueles que têm fome, vestir os que estão
nus, abrigar os que não têm casa. Vou levar mais
adiante sua observação, muito justa; se há movimentos, instituições, que se podem ainda mais precisamente comparar aos nossos movimentos humanitários de hoje, estes são as ordens terceiras
das ordens mendicantes: franciscanos, dominicanos
e, particularmente na Itália, servitas e trinitários. É
AMOR ÀS CIDADES
De tudo isso que o senhor diz, sobressai a ideia de que o citadino
tem muito mais responsabilidade cristã do que o camponês; que
ek se acredita um cristão melhor; que, no fundo, se se mora na
cidade, é porque se crê em Deus de um modo diferente, ou melhor.
Sim. Você sabe, o menosprezo ao camponês é grande no mundo medieval e, conseqúentemente, não
se exige tanto dele, porque se acredita que seja
pouco responsável e pouco capaz. O que dele se
quer é que dê ao senhor e à Igreja aquilo que lhes
POR AMOR ÀS CIDADES
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A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
deve, isto é, o dízimo, as rendas, e que não seja
um criminoso, mas não se pede quase nada mais.
Imagina-se que seus costumes são abomináveis e
não se o concebe colaborando de verdade para o
melhoramento de uma sociedade cristã.
Conservamos um texto extraordinário que data dos
anos de 1260. O grande teólogo e pregador dominicano alemão, Alberto, o Grande, que ensinou em
Colónia e em Paris, um homem típico da cristandade em suma, prega em Augsburgo, na Baviera, uma
série de sermões durante uma semana, organizados em torno de um único tema, a cidade. Eles
constituem um elogio da cidade, mas, ao mesmo
tempo, fornecem uma definição daquilo que deve
ser o ideal urbano. Alberto, o Grande, parte de
uma frase de Cícero que já havia sido retomada
por Santo Agostinho, e que mostra mais um ideal
do que uma realidade: "Uma cidade não é constituída de pedras, mas de homens, de cidadãos".
Note-se que é um dominicano que diz isso. Insisto
em pensar e dizer que há uma Idade Média antes
das ordens mendicantes e uma Idade Média depois dessas ordens. Ora, as ordens mendicantes
são as cidades! Elas é que primeiro desenvolvem
uma verdadeira imagem daquilo que deve ser a
cidade, imagem de paz, de justiça, de segurança.
Aquilo que não são sempre as ruelas sombrias, estreitas, sujas. Alberto, o Grande, compara as ruelas
ao inferno, porém elas desembocam em praças que
são o paraíso. O paraíso do claustro monástico foi
transportado para o paraíso das praças urbanas.
Uma imagem na qual, num primeiro momento, funPOR AMOR ÀS CIDADES
A cidade em segurança, os bens protegidos e o bem comum
ciona o esquema ideal das obras de misericórdia
que os citadinos devem cumprir. Depois, num segundo momento, realça-se uma teoria da cidade
como no ensinamento de Alberto, o Grande, a cidade recupera também o ideal antigo do bem comum, mas o adapta às novas condições. O mundo
feudal é uma pirâmide que tem, embaixo, o camponês, no alto, os senhores, e, no topo, o rei (pois
este também faz parte do sistema feudal). A cidade, ou mais exatamente as pessoas que a encarnam,
isto é, os burgueses, aqueles que têm o direito de
burguesia, é uma sociedade de iguais e isso é uma
revolução. Também é justo falar de revolução
comunal, a despeito das reservas que provoca hoje
essa expressão entre os historiadores. A sociedade
"burguesa" é, ela também, vivamente desigual: os
grandes contra os pequenos (os miúdos), os ricos
contra os pobres, mas o modelo teórico burguês
inicial é aquele dos homens iguais no direito. As
cidades são, portanto, uma revolução, porque, como
já se disse, sua aparência torna os homens livres e
iguais, mesmo que a realidade, com frequência,
permaneça longe do ideal.
Conseguiremos hoje reencontrar um tal ideal de
comunidade urbana fraternal? A cidade medieval
mais reformou do que na verdade reprimiu. À sua
maneira, ela foi um primeiro ensaio para realizar o
t ideal "Liberdade, Igualdade, Fraternidade", mas foi
preparada no modelo feudal da desigualdade,
antidemocrático. A feudalidade diligentemente recuperou a cidade, que contudo conservou um certo caráter de quisto no tecido feudal.
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Sistema integrado
de Bibttotecas/UFES
O ooder na
cidade
o ideal do bom
governo
O poder na cidade, o ideal do bom governo
BI
Um_bispo santo, protetor
da cidade de Perúgia, segura
a iqnagem da cidade em suas
mãos. Os bispos santos
desempenham um papel
de protetor das cidades muito
tempo depois de terem deixado
de dominá-las.
Meo de Siena. La we///e
c/té moyenâgeuse de Pérouse
(detalhe), século XIV. Perúgia,
Galeria Nacional da Úmbria.
Nascido da força e das aspirações dos
mercadores e dos artesãos pela liberdade económica e pela liberdade pura e
simples, o movimento comunal - que
prenuncia nossas municipalidades- arranca o poder aos senhores e consagra
os burgueses. É na cidade que se passa
da família ampliada à família nuclear,
mas os grandes burgueses concebem um
governo à imagem de seus clãs familiares. O "bom governo" tende a imitar o
modelo do príncipe justo, num espaço
mais restrito no qual se podem diversificaras experiências políticas, com a exceção da heresia. A cidade respeita a
Igreja e com frequência se coloca a seu
serviço. A injustiça, mais do que a
corrupção, ao contrário de boje, gera a
indignação dos pobres e dos reformadores. As revoltas urbanas insurgem-se
contra a tendência despótica do príncipe, coletor de impostos, e contra a dominação de algumas famílias que rompem o primitivo contrato comunal de
igualdade.
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O poder na cidade, o ideal do bom governo
A cidade misericordiosa com que sonham as ordens mendicantes
do século XIII, antes dos humanitários e ecologistas do século XX,
nasceu, apesar de tudo, de um choque violento que, certo ou
errado, chamamos ainda de movimento comunal.
A violência da "revolução comunal" é uma resposta à violência feudal. Como lembrei, a cidade
é inicialmente governada segundo um sistema que
perpetua aquele da Antiguidade tardia e da alta
Idade Média, acrescentando-se a isso o sistema
feudal que se constitui desde o ano 1000, aproximadamente. Há um senhor na cidade, e esse senhor, com frequência, é o bispo, que, desde a
dissolução do Império Romano, entre os séculos
IV e VI, dispõe do poder, das riquezas e do prestígio. Depois da queda do Império, ofuscadas as
grandes cidades, os bispos se instalam nas cidades tão logo estas adquiram uma certa importância. Em nossos dias ainda se vê, na Itália por exemplo, essa rede de bispos presentes nas pequenas
cidades, ainda mais que as dioceses retomaram as
fronteiras das divisões administrativas do Império
Romano. Depois, quando aparece a feudalidade,
um senhor vem a dominar cada região. Quer se
estabeleça ou não, ele constrói, na cidade, um
castelo, que aliás é mais um local de poder militar, de controle, do que de residência. Alguns castelos de condes urbanos podem ser muito poderosos. Penso particularmente em Gand, que fazia
parte do reino da França na Idade Média, onde o
castelo dos condes de Flandres é ainda hoje impressionante. Em seguida, produz-se o movimenPOR AMOR ÀS CIDADES
0 poder na cidade, o ideal do bom governo
to de emancipação das cidades: o impulso é dado
no fim do século XI, mas o século essencial é o
XII. Os medievalistas de hoje não gostam mais de
dominá-lo de "movimento comunal". "Comunal",
como "feudal" são adjetivos ambíguos: uma parte
importante dos territórios não eram feudos, e são
os juristas da época moderna que criaram a palavra e a ideia de feudalidade. O mesmo ocorre
com o movimento comunal: a expressão é devida
a historiadores e juristas do século XIX e aos românticos, porque quiseram ver nisso uma evolução quase democrática. Não foram todas as cidades que obtiveram um estatuto jurídico de comuna,
uma "carta comunal".
É verdade que muitas vezes a passagem para um
governo exercido pelos burgueses, porque é deles que se trata, fez-se de modo violento. Temos
uma narrativa célebre da emancipação da cidade
de Laon, no norte da França, no início do século
XII. É uma enorme rebelião, uma revolta dirigida
contra o bispo que é o senhor da cidade. A narrativa
mostra o bispo fugindo dos rebelados, entrando
no pátio de um prédio da cidade, escondendo-se
dentro de um barril; ele é descoberto, arrastado
-para a rua, assassinado, cortam-lhe o dedo que
levava o anel, tomado como símbolo não de sua
função religiosa, mas de seu poder temporal, e
seu corpo é transportado pela cidade exibindo-se
o dedo com o anel. Outras vezes, as coisas se
fazem de modo mais pacífico. Os burgueses, em
todo caso, arrancam ao senhor da cidade, primeiraPOR AMOR ÀS CIDADES
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O poder na cidade, o ideal do bom governo
Ia Tle-de-France, o poder dos
rimeiros capelos apóia-se em
dades importantes como Laon.
sus habitantes libertar-se-ão
a tutela do bispo no curso
3 uma violenta revolta no
>culo XII. O pintor representou
cidade "feudal" entre
; fortalezas: montes e torres,
jgo Capelo faz que o bispo
iselin lhe passe as chaves
i cidade de Laon. Ele depõe
último carolíngio.
iminura extraída
is Chroniques de Saint Denis,
Jean Fouquet, século XV.
ris, Biblioteca Nacional
França.
POR AMOR ÀS CIDADES
O poder na cidade, o ideal do bom governo
mente, privilégios, depois, uma carta, isto é, um
texto dando-lhes jurisdição sobre a cidade. Quem
são essas pessoas e como se organizam? São os
novos poderosos, os novos ricos da cidade. Os
que se põem mais em evidência são os comerciantes. O chamado movimento dito comunal está estreitamente ligado à renovação do comércio. Em
particular do comércio que tem grande raio de
ação, aquele que se pratica entre a Europa do
Norte e a do Sul, entre a Itália e as Flandres, por
exemplo, ou na Alemanha; às vezes mais longe,
no Mediterrâneo, até o mundo muçulmano. Isto
posto, tende-se hoje a matizar a tese do grande
historiador belga Henri Pirenne, que privilegiava
por demais o papel pioneiro dos mercadores. Insiste-se agora na importância dos artesãos, isto é,
das pessoas que também são ligadas a trocas económicas, mas num círculo mais restrito: a cidade,
sua periferia, da qual já falamos, sua região. O
movimento, portanto, reúne um certo número de
pessoas diversas que, tendo arrancado o poder
aos senhores, conservam-no coletivamente e formam um grupo que toma o nome de burgueses,
podendo também estes virem desses burgos, esses subúrbios que representam as novas formas
de moradia e de organização da cidade.
A denominação "comuna" surge quando existe a
outorga, pelo senhor, de uma carta de liberdades e
de privilégios: ela consagra o reconhecimento de
uma forma inédita de organização coletiva.
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