GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
universitária?. In: Daniela Freire; Jader Lopes. (Orgs.). Infância e crianças: lugares em diálogo. 1 ed. Cuiabá: EdUFMT,
2012, v. 1, p. 20-35.
Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca universitária?
Dolores Galindo
Raquel Gonçalves Salgado
Leonardo Lemos de Souza
Morgana Moreira Moura
Estamos vivendo encontros e desencontros intensos entre as cenas em que as
crianças aparecem como protagonistas e as imagens que nós, adultos, ainda desenhamos sobre
elas – retratos de uma infância marcada pela inocência, vulnerabilidade e objeto da tutela
adulta. Imagens essas que se confrontam, cotidianamente, com as práticas das crianças, como
sujeitos concretos e situados, que expressam modos próprios de produção, apropriação e
reinvenção da cultura em que vivem.
O descompasso entre imagens da infância e práticas cotidianas das crianças
constituem uma faceta da contemporaneidade: espaço-tempo de compartilhamento e de
hiatos. Retomemos Michel Serres (2004) que numa imagem simples, a de um lenço, propõe
que qualquer autor pode tornar-se contemporâneo de outro, não havendo distâncias temporais
e espaciais definitivas entre eles. Assim, tornar algo contemporâneo é um exercício ativo.
Serres cria a imagem do lenço para responder a Bruno Latour, que lhe arguia, sobre o seu
trânsito entre autores díspares no tempo cronológico. Como podemos trazer esta potente
imagem topológica de Serres sobre o contemporâneo para falar de diálogos intergeracionais
na infância no contexto de uma brinquedoteca? Afirmemos que a brinquedoteca é um topos a
partir do qual e no qual são produzidas contemporaneidades.
Abordar dinâmicas intergeracionais supõe um movimento de dobras, de inflexões
cuja compreensão não está assentada nem na superfície dos tecidos, nem num conteúdo que,
internamente, as constituiria. As práticas, sentidos e tecnologias – mobilizados nas trocas
geracionais – são, na acepção topológica (SERRES, 2004), exercícios de tornar
contemporâneo. E, também, exercícios possíveis, tão somente, na contemporaneidade
entendida como uma determinada forma de se relacionar com o tempo.
Para falar da contemporaneidade em sua dimensão de relação com o tempo, vale-nos
retomar a reflexão de Agamben (2009) sobre o tempo em que vivemos, na qual afirma que ser
contemporâneo empurra à inatualidade, ao anacronismo, à discronia. Escreve ele:
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo
que adere a este e ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma
dissociação, de um anacronismo (ibid, p.59).
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
universitária?. In: Daniela Freire; Jader Lopes. (Orgs.). Infância e crianças: lugares em diálogo. 1 ed. Cuiabá: EdUFMT,
2012, v. 1, p. 20-35.
Agamben (2009) propõe que contemporâneo é “ser pontual num compromisso ao
qual se pode apenas faltar” (ibid, p. 65). Assumindo essa relação faltante com o tempo,
abordar trocas geracionais em uma brinquedoteca não supõe misturar o que estava separado
(práticas e saberes cotidianos de cada geração), mas a invenção de espaços-tempo
contemporâneos e inatuais, distintos das práticas e saberes produzidos pelos idosos, adultos e
crianças envolvidos. A invenção desses deslocamentos, por sua vez, se define por encontros e
desencontros estabelecidos entre as gerações que na e a partir da brinquedoteca se
concretizam numa relação alteritária, em que o olhar alheio, situado num tempo e num espaço
diverso, lança a possibilidade da diferença, da dúvida e da invenção e, por isso, já implica na
transformação (BAKHTIN, 1992).
Em nossas práticas, a brinquedoteca como espaço-tempo adquire potência educativa
na medida em que se desprende da temporalidade enclausurante da cronologia. A pergunta “o
que pode uma brinquedoteca?” passa a ser desafiadora, não porque indagamos sobre o que
acontece “dentro” de um espaço físico delimitado por paredes, mas porque o entendemos
como uma fenda que dá passagem à invenção. O que chamamos de “trocas geracionais” são,
assim, ações performativas cujos efeitos estão inseparavelmente ligados ao momento nos
quais se concretizam. Na brinquedoteca e/ou a partir dela, as crianças, adultos e idosos
inventam-se e reinventam-se, produzindo o que pode ser assimilado como atinente a uma ou
outra geração: encontros e desencontros.
É no devir desses encontros e desencontros que fazemos um convite a reflexões que
tomam como cenário disparador uma brinquedoteca universitária, implantada na Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT), no Campus de Rondonópolis. Nosso propósito é nos
embrenharmos nos diálogos, práticas e experiências mobilizadas nas trocas, disparadas por
um experimento de pesquisa-intervenção, como subsídio para pensar em brinquedotecas não
restritas ao fechamento da espacialidade física e da temporalidade linear. Para desenvolver
nossas reflexões, tratamos do tema infância a partir do conceito de geração, entendendo-o
como compartilhamento de práticas que se relaciona, de maneira tensional, com uma
concepção de infância cuja faceta de desestabilização não deve ser negada. Por meio da
problematização das noções de temporalidade, dialogia e alteridade, pautando-nos pelo
conceito de Kairós, tratamos o tempo a partir do instante, do repentino, do inesperado,
indagamos sobre as possibilidades de experiência que escapam ao colecionismo de sensações.
Finalizamos o texto com reflexões sobre as relações entre pesquisadores e brinquedotecas
que, abertas ao acontecimento, não nos tutelam.
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
universitária?. In: Daniela Freire; Jader Lopes. (Orgs.). Infância e crianças: lugares em diálogo. 1 ed. Cuiabá: EdUFMT,
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Notas sobre a infância como categoria geracional
Impulsionadas pelas contribuições da sociologia da infância, buscamos desconstruir,
tanto teoricamente quanto metodologicamente, a ideia de uma infância apartada da vida, das
práticas e das culturas produzidas pelas crianças, no sentido de redimensioná-la como um
tempo da vida humana, também, marcado pela linguagem, pelo conhecimento e pela cultura,
um tempo cujo valor e significado não se efetivam prospectivamente, mas se configuram no
próprio exercício de vivê-lo.
É claro que não há aqui o purismo de se pensar nas crianças como um grupo ilhado
que, nas interações com seus pares, pudesse revelar a essência de suas práticas, sentidos e do
tempo de vida em que se encontram – a infância propriamente dita. As singularidades das
infâncias se dão na sua relação com o tempo em que vivem, vejam-se as reflexões sobre a
potência de invenção das crianças frente à adversidade da guerra feitas por Benjamin (1994);
mais recentemente, as de Manuel Sarmento (2002), na Conferência que intitulou “Imaginários
e Culturas da Infância”, sobre os jogos infantis das crianças com destroços de conflitos
bélicos. Ou, ainda, as impactantes imagens de crianças a brincar em meio às rajadas de tiros
que atravessavam comunidades inteiras. Uma espécie de rejeição ativa, de invenção, que não
nega aquilo que está dado e o lança a outro estatuto, o de matéria-tempo para a criação.
Um diálogo da criança com seu povo, seu tempo e sua cultura é a expressão da
brincadeira na visão do filósofo Walter Benjamin. Certamente jamais se chegaria à realidade
ou ao conceito do brinquedo se tentássemos explicá-lo unicamente pelo espírito das crianças.
Se a criança não é nenhum Robinson Crusoé, assim também as crianças não constituem
nenhuma comunidade isolada, mas sim uma parte do povo, do tempo em que vivem e do
tempo por vir. Os brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e especial; são, isso
sim, um mudo diálogo simbólico entre crianças e a cultura da qual são participes
(BENJAMIN, 1984).
O conceito de geração, em destaque, remete à definição de Mannheim (1993[1928]
apud SARMENTO, 2005) – diga-se de passagem, muito cara aos estudos desenvolvidos na
área da Sociologia da Infância que, guardados os matizes - o situa como um fenômeno
essencialmente cultural, caracterizado por pessoas que, nascidas na mesma época, vivem e
compartilham sentidos históricos e culturais no decorrer da vida, dando origem, assim, ao que
o autor denomina de “consciência comum”. Traduzindo essa perspectiva teórica às nossas
reflexões, compreendemos que a infância se afirma como categoria geracional, de caráter
relacional dada às suas múltiplas relações com a vida adulta que guarda singularidades que
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lhes são próprias e constitutivas de culturas lúdicas. Nas práticas cotidianas das crianças em
relação com outras pessoas, estas contribuem tanto para a formação da infância como da
sociedade em que vivem (QVORTRUP, 2011).
Propor a infância como “categoria geracional” traz consigo um risco que se refere a
uma possível associação entre geração e homogeneidade, o que a noção de compartilhamento
de experiências históricas, sociais e culturais nos permite escapar. Neste sentido, a infância,
como categoria geracional relacional, é construída e reconstruída em relações que reafirmam
sua positividade como campo de experiência. Com esta acepção, podemos considerar a
infância, tanto na dimensão das práticas cotidianas de relação com o tempo e espaço em que
vivem quanto na sua dimensão de condição que nos faz, constantemente, questionar as formas
cristalizadas da nossa própria experiência no contemporâneo que, frequentemente, nos coloca
próximos da figura que Bauman (1999) vai chamar de “colecionadores de sensações” –
ávidos, atentos ao novo e, ao mesmo tempo, protegidos de qualquer alteridade.
A infância, concebida como categoria geracional relacional e como um tempo de
vida que se faz, desfaz e refaz na cultura e na história, adquire a potência de desestabilizar, na
esfera do conhecimento produzido na psicologia e na pedagogia, paradigmas, de certa forma,
cristalizados, em prol da construção de outras referências teórico-metodológicas que
permitem lidar com questões, sobretudo no âmbito da educação, que as crianças, nas relações
com a cultura de seu tempo, têm revelado.
É na relação entre crianças e adultos que o conceito de infância se define e redefine,
assim como o conceito de vida adulta (MAYALL, 2003). Não há cotidiano ou sentido da
infância que não se constitua em uma relação alteritária com a vida adulta. Ou seja, tratar da
infância não significa apenas falar das gerações mais novas, mas refletir sobre toda a
sociedade na sua multiplicidade e contradições (SARMENTO, 2005). Por conseguinte, propor
pesquisas-intervenções que permitam experiências de trocas geracionais consiste em ampliar
algo que já está dado na própria constituição da infância. Debruçar-se sobre a infância como
categoria geracional significa, também, compreender os sentidos sobre a infância que
circulam entre os adultos, bem como os modos pelos quais as crianças se apropriam e
respondem a esses discursos, atribuindo-lhes outros sentidos.
Porém, se não nos ativermos, exclusivamente, ao plano do tempo cronológico
(presente, passado e futuro), torna-se sustentável afirmar que adultos podem ser atravessados
por devires-criança (DELEUZE; GUATTARI, 1980). Em diálogo com as teorias de
desenvolvimento e estudos em cognição, Kastrup (2000), ao retomar a noção de devir
criança,emprega as expressões forma-adulto e forma-criança que, para ela, podem ser
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definidas como “apenas estados de coisas, pontos de parada, imagens sucessivas, formas
dispostas ao longo do regime temporal da gênese e da descendência (ibid, p. 376)”.
A noção de “forma-criança” não se opõe, necessariamente, à proposição da infância
como categoria geracional. Permite que indaguemos diante de algumas práticas: Aqui se
configuram gerações? Há momentos de suspensão da dimensão geracional em prol de outras
formas de experiência? Questões que se tornam possíveis.
Uma brinquedoteca universitária
Vivemos em tempos, afirma Arroyo (2008), em que o pensamento pedagógico está
sendo impulsionado a pôr em xeque suas verdades e autoimagens ao se deparar com as
práticas concretas da infância, marcadas pela época e pela cultura em que são produzidas.
Tem se tornado cada vez mais insustentável a manutenção da perenidade de imagens e
discursos sobre a infância que ganharam corpo em algumas vertentes do pensamento em
Psicologia do Desenvolvimento e da prática pedagógica, sem a confrontação com os modos
como as crianças concretas vivem e significam suas próprias práticas. Partindo desta
constatação, o autor problematiza a construção da categoria infância como um processo alheio
às crianças concretas que a vivem, a ponto de esta se tornar, como ele próprio diz, “um objeto
indireto dos estudos que revelam sua constituição” (ibid, p. 124).
As culturas lúdicas não se encontram fechadas em si mesmas. Ao contrário, afirma
Brougère (1998), elas se abrem para o mundo social e cultural que lhes fornece suportes
simbólicos que renovam sua existência. De um lado, são afetadas pelo universo simbólico
mais amplo em que nascem e se realizam, e de outro, caracterizam-se pelos signos que
compõem esse universo e acabam se transformando em referências lúdicas. Como toda
cultura, jamais se apresenta como uma estrutura uniforme ou estática. Por essa razão, crianças
de diferentes idades, gênero, classes sociais, culturas, credos e nações vão compor e participar
de culturas lúdicas diversas.
As brinquedotecas, ao se constituírem como espaços abertos à produção da cultura
lúdica, apresentam-se como um terreno fértil para os diálogos e as práticas intergeracionais.
Brougère (1995, 1998) aborda a cultura lúdica para além das crianças ao defini-la, em uma
dimensão sociológica, como o conjunto de costumes lúdicos, regras, significações e
brincadeiras – individuais, coletivas e geracionais, conhecidas e disponíveis –, que se integra
à vida social em que se realiza.
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De acordo com Hypolitto (2001), cada brinquedoteca apresenta o perfil da
comunidade que lhe dá origem. Inicialmente criada para o empréstimo de brinquedos, as
brinquedotecas podem variar segundo local, instituição mantenedora, faixa etária a que se
destina e até mesmo as finalidades do trabalho. Negrine (1997), ao refletir sobre a
organização das brinquedotecas infantis, destaca que essas podem apresentar várias funções,
tais como: pedagógica, social, comunitária, de comunicação familiar e animador de bairro.
Mas de uma maneira geral, elas têm por propósito o desenvolvimento das atividades lúdicas e
a valorização do brincar (RAMALHO; SILVA, 2004).
Kishimoto (1998) identifica, pelo menos, nove variações de brinquedotecas: a)
brinquedotecas nas creches e escolas, com finalidades pedagógicas e até mesmo com centros
de educação continuada em grandes colégios; b) de comunidades ou bairro, mantidas por
associações, prefeituras ou entidades filantrópicas; c) brinquedotecas para crianças portadoras
de deficiências físicas ou mentais, se especializando até na adaptação de brinquedos para
atender modalidade de deficiência motora; d) brinquedotecas em hospitais, objetivando a
recuperação do paciente pediátrico; e) brinquedotecas circulantes, transportadas em ônibus ou
caminhão para locais onde não há brinquedotecas, como a periferia de algumas cidades; f)
brinquedotecas em clínicas psicológicas; g) em centros culturais; h) junto a bibliotecas; i)
brinquedotecas temporárias, junto a grande lojas e shopping centers; j) brinquedotecas
universitárias, objetivando a formação de recursos humanos, a pesquisa e a prestação de
serviços à comunidade.
Ainda é difícil saber como incluir as brinquedotecas nas universidades sem cair no
risco da assimetria com base em hierarquias de idade e na ausência de crítica que conduz à
utilização do espaço como mera ocupação do tempo. Em parte, essa dificuldade marca a
própria história desse lugar institucional. Brinquedotecas participam da mesma lógica que
preside à formação de lugares para crianças (BERTUOL, 2008). Transitam entre a ocupação
do tempo livre, a oferta de bens simbólicos e a proposição ativa de um espaço crítico e
reflexivo (GALINDO, et. al., 2009).
A brinquedoteca sobre a qual versaremos – também denominada como Laboratório
de Ludicidade – define-se como um programa de extensão universitária em funcionamento no
Campus de Rondonópolis (UFMT) desde 2008. Seu objetivo principal é proporcionar às
crianças, na faixa etária de 4 a 6 anos, matriculadas em escolas de Educação Infantil da rede
pública municipal, localizadas nas imediações do Campus, bem como aos professores que as
acompanham, um espaço de produção da cultura infantil e da realização de práticas
educativas mediadas pelo brincar. Trata-se de uma iniciativa que está diretamente vinculada à
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implementação de uma política pública voltada para a infância e para um direito inalienável
da criança, que é o direito de brincar e o de ter acesso a espaços para o exercício desse direito.
Por se tratar de um espaço que se destina à realização do brincar, a brinquedoteca se
define como um ambiente lúdico, composto por uma variedade de brinquedos que convidam a
criança a explorar, experimentar, sentir, criar e transformar os objetos e todos os elementos
simbólicos com os quais interage nesse contexto.
Para garantir essa diversidade, a brinquedoteca é organizada por cantos temáticos,
que são: canto da fantasia ou do faz de conta, com fantasias, acessórios, cabideiro, espelho,
retalhos de pano, cama, guarda-roupa, maquiagens, bonecas e bonecos de diferentes tipos e
ursinhos de pelúcia; canto da música, com instrumentos musicais em miniatura; canto dos
contos, com livros de literatura infantil, almofadas, tapetes, gibis, revistas, teatros de
fantoches e fantoches; canto da pintura, com papel, tintas guache coloridas, pincéis, giz de
cera colorido, massas de modelar e pincéis atômicos coloridos; canto da cidade, com carros e
caminhões de diferentes tipos e tamanhos e veículos diversos, como jamantas, carros de
bombeiro e de polícia, ambulância, posto de gasolina e placas de sinais de trânsito; canto da
construção, com oficina mecânica e diversas ferramentas, jogos de construção e de montar;
canto dos jogos, com quebra-cabeças, dominós, jogos de tabuleiro, com damas, ludo e xadrez;
canto da cozinha, com cozinhas do tipo americana, incluindo pia, fogão, armários e geladeira,
máquina de lavar, ferros de passar roupa, kit de limpeza e jogos de talheres, pratos, xícaras e
panelas; e canto digital ou cybercanto, com televisão, computador, aparelho de DVD,
aparelho de som, tela para projeção, CDs de música e DVDs.
É claro que a organização dos materiais é rapidamente desfeita no instante em que as
crianças adentram o espaço da brinquedoteca e começam a brincar. Os cantos se desfazem e
refazem, dando origem a outros ordenamentos orientados pelas histórias e os personagens que
constituem as cenas que se desenrolam nesse espaço-tempo.
Dialogismo e alteridade na pesquisa sobre as trocas geracionais
Na brinquedoteca, admitimos que as trocas geracionais estabelecidas, nesse contexto,
são atravessadas por discursos e práticas que são tecidos em relações com vozes e
materialidades que se produzem em situações sociais que extrapolam o espaço-tempo do dito.
Para fundamentar essa compreensão, recorremos à perspectiva bakhtiniana, para a qual todo e
qualquer discurso está imbuído de ecos e lembranças de discursos alheios, por isso, não se
pode pensá-lo fora de uma cadeia de comunicação verbal, posto que não há palavra que não
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tenha sido dita, que não venha de alguém, de um outro. Dado o seu caráter interindividual, o
discurso se situa para além daquele que o expressa, deixando de ser de sua propriedade
exclusiva.
Tendo o dialogismo como um princípio constitutivo da linguagem, Bakhtin (1992)
vê no discurso o encontro, sempre tenso, de vozes, valores e perspectivas sociais que lhe
conferem sentidos. Toda enunciação já encontra seu objeto "desacreditado, contestado,
avaliado, envolvido por uma névoa escura" (idem, 1998, p. 86); ou seja, já o encontra
iluminado por discursos alheios. Assim, o objeto do discurso é penetrado por ideias, pontos de
vista, julgamentos, apreciações de outros e por entonações, frutos das interações sociais e dos
contextos de onde brotam os diálogos.
Como a réplica viva do diálogo – entendido para além de uma interação verbal
situada em um espaço e tempo definidos –, o discurso, para Bakhtin (1992), constitui-se no
entrecruzamento das temporalidades. Refere-se não somente ao que já foi dito, mas também à
resposta futura, ao que virá. Nesse sentido, todo discurso também se baseia no que ainda não
foi dito, na medida em que o provoca e o invoca a tornar-se presente, constituindo-se também
numa orientação prospectiva com relação à resposta antecipada do interlocutor. Assim,
estabelece no seu íntimo um diálogo incessante entre o passado, enquanto memória dos já
ditos, e o futuro, enquanto expectativa do que será dito. O território do discurso, portanto, é
sempre a fronteira entre seu próprio contexto e o contexto alheio. Essa condição fronteiriça
confere ao discurso o seu caráter "semi-alheio" (idem, 1998, p. 100). Não podemos entender a
presença do discurso alheio como uma força avassaladora que se impõe ao discurso daquele
que o realiza, derrubando toda e qualquer intenção que o torna singular, mas sim compreender
esse encontro/confronto entre discursos como algo dinâmico, como um diálogo vivo e
verdadeiro entre visões de mundo e valores contrastantes.
Nessa perspectiva dialógica, a alteridade aparece como um processo constitutivo
tanto da produção discursiva quanto das relações humanas. Da mesma forma como não há
enunciação fora da comunicação verbal, não há existência humana fora desse diálogo
incessante com o mundo e os outros. O sujeito, para Bakhtin, só se funda na relação com o
outro. Não há como existir na categoria do "eu-para-mim" (ibid, 1992), na dimensão do
sujeito encerrado em si mesmo. A pluralidade do humano está no complemento e na alteração
que cada um lança para o outro. Identificar-se com o outro, ver o mundo pelo olhar alheio e
segundo seus valores, colocar-se no lugar do outro sem deixar de retornar a si próprio com o
intuito de dar ao outro acabamento e completar-lhe o horizonte, tudo isso nos remete ao fluxo
vivo da alteridade. “É a partir do outro que tentamos dar-nos vida e forma” (ibid, p. 52).
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O dialogismo e a alteridade não consistem apenas em ferramentas de análise dos
discursos das crianças e dos adultos, mas permitem também a construção de um modo de se
relacionar com o outro e produzir conhecimentos sobre as relações, práticas e experiências
que se constituem no ato e no contexto das pesquisas que acontecem na ou a partir da
brinquedoteca. O próprio ato de investigar já instaura uma relação de alteridade estabelecida
entre o pesquisador e os sujeitos a conhecer, que é mobilizada pelo confronto entre lugares e
perspectivas sociais assumidos no processo de construção do conhecimento (AMORIM,
2001). Neste sentido, a pesquisa em ciências humanas está longe de ser um ato de cognição e
discurso sob a exclusividade do pesquisador, uma vez que o sujeito, objeto do conhecimento,
não se coloca como “coisa muda” (BAKHTIN, 1992, p. 403), mas como alguém que também
fala e responde, alterando o curso dos acontecimentos no decorrer da pesquisa.
Na pesquisa com crianças, a alteridade torna-se ainda mais visível, dada a condição
do pesquisador como adulto. Por outro lado, a criança também se apresenta como o outro
desse adulto, cuja presença inquieta seu olhar e saberes. Como ressaltam Jobim e Souza e
Castro (2008):
os sentidos que emergem de um mesmo objeto cultural, quando articulados e
confrontados nas interações sociais entre adultos e crianças, podem pontuar
questões absolutamente novas sobre o papel das gerações para uma
compreensão crítica das transformações culturais (JOBIM-E-SOUZA;
CASTRO, 2008, p. 53).
As questões surgidas nos encontros e desencontros das gerações, que provocam uma
reflexão crítica sobre o espaço-tempo onde estes acontecem, são o que mobilizam a discussão
aqui posta. O dialogismo em Bakhtin nos empurra a compreender as práticas e discursos para
além da temporalidade do dito, em relação com a grande temporalidade e o tempo do porvir.
A partir da consideração do dialogismo e das gerações como categorias relacionais, cabe-nos
explicitar a singularidade do que propomos em contraste com a tradição dos Programas
Intergeracionais.
O programas intergeracionais (PIs), principalmente difundidos nos Estados Unidos,
em sua maioria, visam promover interações entre idosos e crianças, mantendo-os como
categorias estáveis e delimitáveis cuja interação provoca benefícios mútuos. Como sintetiza
Brandão et. al. (2006):
(...) a ideia é de que crianças e adolescentes melhoram a qualidade de vida
dos idosos, fornecendo entusiasmo, afeto e espontaneidade. Idosos, por sua
vez, fornecem orientação, confiança e apoio, narrando suas experiências de
vida (ibid, p. 101).
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Acreditamos que tais programas assinalam a importância de romper fossos entre
gerações, mas que devemos guardar cautela quanto às concepções de geração e temporalidade
que lhes subjazem. Assim, optamos por nomear nossa pesquisa-intervenção como
experimento estético-educativo de promoção de “trocas geracionais” que nos permite, por um
jogo de palavras, assumir que, em determinados momentos, vivências “como geração” cedem
a experiências que colocam em suspensão delimitações geracionais não contempláveis com a
adição do prefixo “inter” ao termo “geracional”.
A temporalidade kairológica e não linear
Em seu artigo sobre o conceito da história, Walter Benjamin (1985) admite a
existência de um encontro secreto entre as gerações anteriores e a nossa, já que em nossas
vozes podemos escutar os ecos de vozes que se calaram, mas nem por isso deixaram de
existir. É esse encontro secreto, espaço-tempo do que ainda não existe, que buscamos em
nossas incursões nas inflexões geracionais entre crianças e adultos na brinquedoteca. Para
perceber e compreender esse encontro se faz necessário redimensionar a relação com o tempo
e os modos como ele atravessa – e pode atravessar – as relações entre gerações.
Mas, afinal o que é o tempo? Uma unidade de medida? Um dado inscrito na natureza
que nos fornece orientação no devir dos acontecimentos sociais e dos fenômenos físicos e
subjetivos? Agamben (2005) nos adverte dos riscos da oposição dicotômica entre o tempo
linear e a eternidade, apresentando-nos o “instante” – o agora inextenso e inapreensível como ponto de divisão no qual ambos se comunicam. Gagnebin (1997), ao evocar as
reflexões de Santo Agostinho em As Confissões, lembra que a impossibilidade de determinar
um “onde” para o tempo sempre fugidio não significa afirmar a sua inexistência. Para ela, “é a
nossa propensão, quase natural, de falar e de pensar no tempo em termos (em imagens, em
conceitos) espaciais que nos impede de entender sua verdadeira natureza” (ibid., p. 72). A esta
altura, pensando em nossa brinquedoteca, vale a pena transformarmos nossa pergunta “o que é
o tempo?” para as temporalidades produzidas nas práticas e diálogos que a partir dela são
disparados.
Para Elias (1988), aprendemos a nos relacionar com o tempo à medida que este se
transforma em habitus indispensável para o processo civilizador. Aprendemos a experimentálo como um continuum, uma linha reta cujo percurso é impulsionado pelo progresso. Ao tratar
do tempo no processo civilizador, ressalta a sua dimensão simbólica e, assim, o define como
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
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“símbolo social comunicável” (p. 13). O tempo consagra-se como discurso e, na teia das
relações sociais, funda-se como instituição. Nessa visada, o tempo afasta-se do mito e da
natureza e, como símbolo social, assume papel de regulação de modos de perceber, sentir,
agir e pensar.
Legitimado como norma histórica, salienta Benjamin (1985), o progresso é a marcha
em um “tempo vazio e homogêneo” (ibid, p. 229), em um tempo segmentado e estruturado no
antes, no agora e no depois. Marcha esta que apenas ganha sentido no tempo serial e evolutivo
e se consolida na modernidade, na sua versão positivada de progresso técnico-científico e
moral (GOUVÊA; GERKEN, 2010).
Traduzida em discursos e práticas, essa versão do progresso transforma o tempo na
vida social e humana em investimentos e expectativas em relação ao futuro como guardião da
perfeição e da completude e, paradoxalmente, assombrado pela imagem da decadência e da
morte. Instaura-se o tempo da evolução, da utilidade, do aperfeiçoamento e, por conseguinte,
da administração e do controle, tanto da vida social quanto da vida subjetiva. Nessa
perspectiva, a infância configura-se como gênese, como tempo de vida alvo de intervenções
que garantam o progresso individual e, portanto, como um vir-a-ser cuja identidade só
ganhará corpo nas etapas sucessivas da marcha do progresso.
Mas, será essa a única forma de viver e experimentar o tempo? Como escapar da
marcha incessante do tempo homogêneo, pontual e cronometrado? Como aponta Agamben
(2005), “a subserviência a este tempo inapreensível constitui a enfermidade fundamental que,
com o seu adiamento infinito, impede a existência humana de possuir a si mesma como algo
único e completo” (p. 123). Na luta contra essa enfermidade, o autor traz a imagem do tempo
Kairós, como contraponto ao tempo cronológico e linear, que se revela no átimo, na
oportunidade lançada pelo presente, naquilo que é repentino e instantâneo, no inesperado.
Como o tempo da descontinuidade e do prazer, Kairós enfrenta o controle e a
previsibilidade de cronos e, assim, apresenta-se como possibilidade para a invenção. É o
tempo saturado de “agoras”, como destaca Benjamin (1985, p. 229); o espaço-tempo da
história revolucionária que se recusa a entrar no tempo percorrido pela marcha do progresso e
se rebela contra a sujeição da humanidade ao tempo cronos. O tempo da história, argumenta
Agamben (2005), é o Kairós como tempo da liberdade que, ao invés de aguardar ou se
preparar para o previsível, agarra o instante, no sentido de viver o inusitado e fazer dele
espaço-tempo da criação.
Retomando as cenas das trocas geracionais no contexto da brinquedoteca, buscamos
nelas as experiências que se desenrolam no tempo kairós, no próprio instante em que elas se
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
universitária?. In: Daniela Freire; Jader Lopes. (Orgs.). Infância e crianças: lugares em diálogo. 1 ed. Cuiabá: EdUFMT,
2012, v. 1, p. 20-35.
atualizam. Buscamos as dobras produzidas pela alteridade que cada geração provoca na outra,
em seus encontros e desencontros, no espaço-tempo da brinquedoteca.
Com esse olhar, recusamo-nos a entender as trocas geracionais como mistura de
práticas e saberes separados e hierarquicamente estabelecidos pela periodização da vida
humana imposta pelo tempo linear como se as experiências da infância tivessem a
obrigatoriedade de estar em um patamar de subordinação e inferioridade em relação às de
outros grupos etários (adultos e idosos), ou num patamar superior, ao serem aproximadas da
potência de criação que lhes é associada e haveria sido perdida com a adultez – dois pólos em
torno dos quais ainda gravita a reflexão sobre crianças e pedagogias (GAGNEBIN, 1997).
O tempo do encontro é inatual (BENJAMIN, 1985). Na brinquedoteca, a
temporalidade provém da abertura que se instala nas trocas mediadas pelos jogos e
brincadeiras. Ao refletir sobre ritos e jogos, o autor nos põe frente à diferenciação entre
ambos, enquanto o primeiro fixa o calendário, o segundo, literalmente, o destrói. Ao brincar,
“o homem desprende-se do tempo sagrado e o ‘esquece’ no tempo humano” (ibid, p. 85). É ao
tempo da ordem da kairologia, neologismo do autor, que Agamben nos conduz, o tempo que,
na esteira de Benjamin, nos remete não a uma nova cronologia homogênea e vazia, mas a sua
suspensão.
Um experimento estético-educativo ou o que não pode uma brinquedoteca
Na proposta de ter o espaço-tempo da brinquedoteca como matéria prima para pensar
as trocas geracionais, nós compusemos um experimento estético mediado por dispositivos
tecnológicos inspirados na linguagem artística das intervenções urbanas. A ação na
brinquedoteca e a partir da brinquedoteca consistiu na criação de dispositivos estéticos junto
às crianças, jovens e idosos, inicialmente, nos espaços considerados como mais característicos
de um dos segmentos e, em seguida, no espaço aberto da cidade no qual se misturam como
moradores.
A pesquisa-intervenção contemplou sete estratégias complementares: 1) oficinas com
crianças tendo como locus a brinquedoteca (LEMOS-DE-SOUZA; GALINDO, 2008;
GALINDO et. al., 2009); 2) coleta de incidentes vividos por jovens por meio do dispositivo
estético “troca de segredos” no espaço de convivência dos acadêmicos da UFMT; 3) coleta de
memórias dos idosos do Núcleo de Extensão e Atividades da Terceira Idade (NEATI),
empregando o mesmo dispositivo utilizado com os jovens; 4) inscrições no espaço urbano
utilizando os elementos móveis existentes na própria cidade – automóveis; 5) produção de
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
universitária?. In: Daniela Freire; Jader Lopes. (Orgs.). Infância e crianças: lugares em diálogo. 1 ed. Cuiabá: EdUFMT,
2012, v. 1, p. 20-35.
fotografias dos locais mencionados nos incidentes relatados por idosos, crianças e adultos; 6)
anexação de imagens e memórias à plataforma Google Earth associada à produção de vídeo e
7) exposição de vídeo e do Google como Earth em uma feira livre.
As oficinas desenvolvidas na brinquedoteca buscaram abranger o olhar das crianças
sobre o cenário urbano, a fim de capturar suas memórias sobre a cidade. No espaço da
brinquedoteca foi construído um cenário com elementos característicos do espaço urbano:
casas de papelão, escola, igreja, carros, um ônibus, uma ponte e um percurso com semáforo.
As pesquisadoras convidavam as crianças a brincarem de cidade. Nesse contexto, as crianças
traziam memórias no espaço urbano, por exemplo, quando indagadas sobre o percurso do
ônibus, para onde ele ia, a maioria das respostas levava ao shopping, único na cidade e um
dos principais referenciais de entretenimento (LEMOS-DE-SOUZA; GALINDO, 2008).
As oficinas duraram, em média, trinta minutos cada, sendo dividas em três fases:
uma primeira introdutória; uma segunda voltada propriamente à brincadeira; e uma terceira
destinada ao fechamento da atividade. Para orientar o trabalho, foi utilizado um roteiro
dividido em etapas: abertura, desenvolvimento e fechamento. As crianças que participaram
tinham entre 4 (quatro) e 9 (nove) anos, sendo todas matriculadas em escolas da rede pública
municipal. Assim, não houve seleção prévia das crianças que participaram da “brincadeira de
cidade”. Todas aquelas que estavam presentes nas atividades regulares da brinquedoteca,
durante os dias das oficinas, foram convidadas a participar. Cada oficina contou com a
presença de uma média de 10 a 15 crianças, porém, não consistindo em atividade de cunho
disciplinar, nem todas, efetivamente, se envolveram na brincadeira (GALINDO et al., 2009).
Na sessão de abertura, as crianças chegavam acompanhadas das professoras e logo se
espalhavam. Para introduzir a temática, convidávamos as crianças, que o desejassem, a se
sentarem em círculo no centro do espaço, no qual fazíamos algumas perguntas sobre a cidade:
Quem sabe o nome da cidade em que moramos? O que vocês fazem na cidade? O que tem na
cidade? Durante a fase de desenvolvimento, as crianças brincavam livremente em toda a
extensão do espaço da brinquedoteca, utilizando, também, o pequeno cenário da cidade. No
fechamento, compúnhamos um novo círculo e promovíamos a reflexão sobre a localização da
brinquedoteca, a localização da cidade e sua apropriação, com perguntas tais como: O que
vocês fizeram na cidade? Onde fica a brinquedoteca? Onde fica a universidade? Fica em
Rondonópolis? O que a gente faz na universidade? Vocês conhecem outra cidade?
Os principais temas/brincadeiras relacionados à sua lembrança do urbano emergentes
nas oficinas não se restringiram aos elementos disponíveis no pequeno cenário, mas também
se desencadearam a partir das memórias trazidas pelas crianças dos lugares que frequentavam:
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shopping, o rio e a Universidade Federal, que para as crianças se encontrava na brinquedoteca
e não o contrário.
Pesquisadora pergunta a um menino que está dirigindo o ônibus para onde
está indo. Ele responde: “para o shopping” (Oficina 1, Cena 4)
Felipe está com uma vara de pescar no rio, pesquisadora se aproxima e
pergunta o que está pescando. Felipe diz: “Um peixe”. Levanta a vara e
repete: “peguei, peguei, peguei” (Oficina 2, Cena 3)
A pesquisadora pergunta a algumas crianças: “Como chama esse local?”
Rafael responde: “Brinquedoteca, brinquedoteca da Universidade”.
Pesquisador continua: “E qual é a Universidade?”. Rafael: “Universidade
da brinquedoteca” (Oficina1, Cena 15).
Depois dos relatos das crianças que registramos na brinquedoteca, realizamos coleta
denarrativas com jovens e idosos. Por meio das trocas de narrativas sobre a vida na cidade,
emergiram novos sentidos e imagens. Para essa parte da coleta, foi utilizada uma releitura do
dispositivo de “troca de segredos”, proposta de intervenção para o Corpocidade 2008,
organizada pelo coletivo Circulambolar, realizada na Bahia. A interferência urbana, em
Salvador, consistiu na construção de um “carrinho móvel de chaveiro” que circulava por ruas,
praças e no local do evento. O carrinho contava com uma máquina de escrever e caixas onde
eram armazenados os segredos. Depois de coletados, os segredos foram espalhados, nas
gavetas retiradas do carrinho, pela cidade com placas que assinalavam: “aqui tem um
segredo!”. Breve descrição conceitual da proposta:
Se por um lado pensamos na dimensão secreta do segredo como uma história
que não deve ser contada, apostamos que o segredo guarda, paradoxalmente,
potência de multiplicação de uma experiência. Pensamos então que guardar
não se opõe transmitir. Guardar segredos é, antes, não deixar morrer a
experiência. (...) Segredos que podemos experimentar, reinventando sentidos
a medida que ao trocar atualizamos um gesto, um sabor, um caminho, uma
luminosidade (KNIJNIK et. al., 2008, s/p.)
Em nossa releitura do dispositivo, ao invés de uma banca móvel característica dos
chaveiros, nós construímos um painel contendo envelopes onde eram depositados e retirados
segredos. Mantivemos a ideia de um dispositivo capaz de registrar, arquivar, trocar e circular.
Um painel itinerante que transitou em vários contextos. No painel, a pessoa podia colher um
segredo que estava dentro de um dos envelopes, oferecendo em contraponto outro segredo
que colocava em uma caixa à parte. Para que os segredos fossem anônimos, eram transcritos
por uma das pesquisadoras que, em seguida, os colocava em um dos envelopes vazios no
painel, guardando os segredos manuscritos pelos participantes como registros.
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Para dar início ao dispositivo com os jovens, as proponentes da interferência
escreveram seus próprios segredos e colocaram no painel. O dispositivo, utilizado com os
jovens e os idosos, consistiu em pedir que relatassem incidentes vividos – segredos - por cada
um, associando-os ao lugar da cidade no qual ocorreram: ao depositar um segredo, o
participante recebia um segredo escrito por outro que o antecedera. Cada novo incidente
narrado marcou um corte, uma particularização do espaço. O primeiro segredo vinha de outro
lugar, um segredo de uma quase fuga da cidade por uma das pesquisadoras que quase
escapara diante da terra vermelha do cerrado:
Eu lembro que quando cheguei a Rondonópolis, achei a terra vermelha, a
cidade e a universidade abandonadas e fui embora. Em troca, o segredo:
Uma vez eu vim a pé, num sábado de manhã, do centro da cidade até o
Jardim Atlântico porque eu estava triste e queria olhar as coisas que eu
nunca tinha reparado, fiz o mesmo percurso do ônibus e vi um monte de
coisas que nunca reparei.
O dispositivo da “troca de segredos” foi realizado na hora do intervalo, nos períodos
matutinos e noturnos, e no espaço de convivência acadêmica da UFMT, por serem o horário e
local de maior circulação de jovens. As pesquisadoras colocaram o painel de maneira que
ficasse visível a todos, assim, a curiosidade fez com que alguns jovens se aproximassem e
perguntassem o que estavam fazendo. As pesquisadoras indagavam os jovens: “Você quer um
segredo?” Prontamente, eles se dispunham para atividade, entretanto, antes de receberem o
segredo, eram avisados de que deveriam dar um segredo em troca do que receberiam. Com
receio de entregar um segredo, alguns não participaram, mas a maioria integrou atividade
durante o período matutino.
Quando realizada no período noturno, poucos aderiram à proposta. Com
desconfiança, indagavam os motivos da atividade e o que faríamos com o segredo coletado. O
que nos autorizava a conhecer um segredo? Por que nos cederiam partes das suas vidas,
narrando-as? Nos dois períodos, os jovens que depositaram segredos trouxeram relatos de
namoros escondidos, momentos com os amigos e incidentes vergonhosos em público.
Pequenos eventos do cotidiano que quando “trocados” entre as distintas gerações adquiriam
força performativa, vejamos alguns deles:
Pôr do sol com os amigos atrás da biblioteca da UFMT.
Eu caí de salto e de quatro, na esquina da Avenida Ponce de Arruda com a
D. Pedro, às 11 horas da manhã.
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O mesmo dispositivo foi utilizado para a coleta de memórias com os idosos. O painel
de “troca de segredos” foi levado ao Núcleo de Extensão e Atividades da Terceira Idade
(NEATI), no Campus Rondonópolis, da Universidade Federal de Mato Grosso, com os
segredos dos jovens que seriam trocados por segredos dos usuários daquele espaço. De início,
a atividade não chamou muita atenção, pois alguns alegavam “péssima memória” e, assim,
não ofereceriam “bons segredos”. Entretanto, quando alguns ao compartilharem segredos
passaram a receber um segredo alheio, a curiosidade fez com que a maioria participasse da
atividade.
Os usuários do NEATI pareciam indagar: Como narrar eventos que parecem
ordinários tais como um lugar que não existe mais, um salvamento, uma sensação de prazer
na pescaria? Para que falar daquilo sobre o que não se tem explicação ou informação a
agregar? Falar do passado não parecia conferir, como nas comunidades tradicionais, o estatuto
de narrador. Alguns dos usuários não gostaram do segredo que receberam porque estavam,
segundo eles, relacionados às “estripulias” da juventude. Mostravam-se indignados, pois
haviam cedido memórias que consideravam relevantes.
Os “segredos” entregues pelos idosos, em sua maioria, abordavam espaços na cidade
que existiam e que mudaram, significativamente, ao longo dos anos, como o segredo que
segue:
Gosto muito de pescar nos dias de folga. Tenho saudades do antigo rio
Arareal que tinha tanto peixe e hoje está praticamente morto pela poluição.
Hoje se quero pegar um peixe, tenho que andar quilômetros: saudades.
Após a coleta, os “segredos” passariam a circular pela cidade. Era necessário deixar a
exclusividade recursiva da voz. Como? Encontramos o dispositivo numa prática muito
comum nas cidades do interior do Mato Grosso para divulgar show e outros eventos que
consiste em utilizar os vidros traseiros dos automóveis como suporte para inscrições feitas
com tinta branca. Os organizadores dos eventos, geralmente, organizam o que chamam de
“blitz” em semáforos. Com o sinal vermelho do farol de trânsito, munidos de um produto
utilizado para tingimento de sapatos, abordam os motoristas e perguntam se podem escrever
no carro. Alguns organizadores de eventos nem pedem autorização e escrevem nos carros
estacionados sem se importarem com a reação dos motoristas.
Apropriamo-nos do dispositivo de divulgação de eventos, utilizando os vidros
traseiros dos carros para fazer circular os “segredos”, coletados e trocados entre as gerações,
pela cidade. Primeiro, a ação foi realizada com os veículos da UFMT. Pedíamos aos
motoristas - que estavam estacionando ou saindo - para escrever um segredo no carro deles.
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
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Poucos não deixaram, alegando que estragariam os automóveis. Notamos, durante a pesquisaintervenção na universidade, que escrever nos vidros não, necessariamente, interferia no
isolamento dos ocupantes dos automóveis.
Os motoristas mal se importavam com o ato, pois estavam habituados a ceder os
vidros para divulgar eventos. Os carros são espaços-tempo nos quais podemos circular
protegidos pela cidade afora, nos quais controlamos o que nos pode advir ou mesmo atuam
como uma segunda pele da qual cuidamos contra o desgaste. A temporalidade no interior dos
carros não é a mesma temporalidade dos diálogos com quem está fora do vidro que isola os
“de dentro” e os “de fora” (AMORIM, 2006). Como transformar a escrita dos segredos nos
vidros em acontecimentos?
Na Universidade, estranhamentos foram raros, afinal, éramos estudantes e
pesquisadores. Não era suficiente, passamos às ruas da cidade. Atravessamos o alambrado que
isola os de dentro e os de fora da universidade. Fizemos a mesma abordagem em uma das
avenidas mais movimentadas do município no período noturno.
Nas ruas, quando nos aproximávamos das pessoas nos carros, ao acharem que algum
evento seria divulgado, sem indagações, cediam os vidros para as inscrições. Mas, quando
explicávamos que seria escrito um “segredo”, instauravam-se estranhamentos. Alguns
ocupantes permitiram escrever o segredo sem ao menos perguntar o porquê, outros rejeitaram
a ação afirmando que não divulgariam segredo alheio, pois o “dono do segredo” poderia,
numa expressão idiomática local, “tirar satisfações com ele”.
Dos que aderiram à proposta e cederam os vidros traseiros dos seus automóveis,
muitos gostaram do segredo, mas alguns se mostraram desapontados, chegando a dizer que
“aquilo não era um segredo” e sim uma “memória qualquer”. Por algumas semanas seguintes
a “blitz”, ainda podíamos ver, em um ou outro carro, os segredos inscritos. Mesmo na
universidade, pessoas indagavam do que se tratava ao lerem o que pensavam serem anúncios
de eventos.
Após a circulação das memórias-segredos nos vidros dos automóveis, registramos
imagens dos locais mencionados nos “segredos” numa tentativa de utilizar as fotografias
como legenda dos eventos narrados. Como produzir experiências? Não voltamos aos espaços
iniciais de “trocas dos segredos” atinentes às sociabilidades de cada geração (a brinquedoteca,
o NEATI, a cantina), percorremos a cidade, munidos de uma câmera, em busca de lugares
que, mencionados nos incidentes-memórias, em vários casos, principalmente, entre os idosos,
já não correspondiam ao que narraram às pessoas. Por exemplo, um dos idosos relatou: Eu me
lembro de um bosque que tinha na região do Favorito em 1972. Lá era muito gostoso, eu
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
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adorava ir nesse bosque. Porém, como registrado em diário de campo, ao chegarmos ao local
não mais havia vestígios do bosque, em seu lugar foram construídas casas, supermercado e
outros estabelecimentos comerciais. Novas imagens que foram agregadas ao trabalho.
Optamos por realizar composições entre as novas imagens e os segredos antigos,
exercício de justaposição, ou seja, íamos até os espaços mencionados para fotografá-los,
justapondo a imagem do presente à narrativa do passado. Com as memórias-incidentessegredos e as imagens dos locais mencionados nas intervenções realizadas nos diferentes
contextos, montamos um vídeo no qual as imagens eram projetadas ao som das narrativas
dissociadas da voz de quem as havia enunciado – mais um exercício de composição.
Realizado o vídeo, a feira-livre seria o próximo local de circulação e “trocas de
segredos” e “memórias”. Na feira-livre, juntamente com o vídeo, instalamos um dispositivo
interativo composto pela plataforma Google Earth, na qual as imagens e segredos estavam
disponíveis e novas marcas poderiam ser adicionadas pelos frequentadores. As imagens eram
projetadas no telão ao qual estava acoplado um equipamento de som.
Convidávamos as pessoas que circulavam pela feira a contar incidentes-memórias e
explicávamos que o computador era de acesso público. Ao manipularem o programa Google
Earth, as pessoas entravam em contato com locais da cidade que antes não tinham acesso, e
também passavam a ter novos olhares sobre os locais já conhecidos: Consigo ver o horto;
Minha escola fica aqui.
As crianças se envolveram com as possibilidades de uso da plataforma Google Earth
e pediram para marcar suas casas, relataram como gostam de ir ao shopping, jogar com os
brinquedos eletrônicos e ir ao cinema, enfim, do seu prazer em circular pela cidade. Os mais
velhos falaram de quando chegaram à cidade, de como havia crescido e modificado ao longo
dos anos, dos espaços que frequentavam e que já não existiam por haverem cedido lugar às
grandes construções que se erguem a cada ano. Os jovens relatavam momentos de sua
infância, como passeios com a família pela praça principal.
Durante as trocas e interação tecnológica na feira-livre, o espaço nos interpelava para
além dos horizontes geracionais. Éramos frequentadores, estudantes, vendedores... Nas
conversas, entraram desde a comerciante de sapatos ao vendedor de peixes que trabalhavam
no local. A feira atuou, então, como cronotopo, como a unidade indissolúvel do espaço-tempo
do acontecimento (Bakhtin, 1992). Tratava-se de um espaço social, terreno de produção de
sentidos e das vozes que ecoam no discurso e nas práticas, entrelaçado ao tempo histórico e ao
tempo por vir, isto é, um tempo que não se atém aos cortes geracionais pré-estabelecidos.
Estávamos num espaço-tempo de trocas.
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Na pesquisa-intervenção, a cada deslocamento dos “segredos” colocados em
circulação, nos distintos suportes e locais (a brinquedoteca, os espaços de sociabilidade
juvenil, o NEATI, os vidros dos carros, a feira-livre, o Google Earth), instaurou-se uma praça
pública desterritorializada, sendo uma delas a internet. Em suas reflexões sobre
carnavalização, Bakhtin pontua que o espaço de acontecimento é, sobretudo, “a praça pública,
o espaço de todos” (AMORIM, 2006).
A internet é um dos espaços-tempo nos quais podemos interferir de maneira a
participar da sua topografia. Ao interagimos com um programa, como o Google Earth,
podemos visualizar toda a cidade de uma só vez e, ao mesmo tempo, vermos muito pouco o
detalhe. Ver bem não é reter o que está sendo observado ou encontrar-se com o mundo
legendado que nos impele a uma dinâmica de não alteridade. A noção de oligopticon remete
ao que vemos pouco, mas muito bem, ao movimento que segue os filamentos, as conexões
sem perder-se nos detalhes excessivos inapreensíveis como a visão de totalidades (LATOUR;
HERMANT, 2006).
Na busca de segredos no Google Earth, nós fomos instados a mudar escalas, a olhar
em oligopticon, isto é, com atenção aos detalhes, o que nos leva a participar do dispositivo de
trocas. As marcas das casas e as imagens não são índices. Casas de quem? Imagens de onde?
As legendas, deliberadamente, não explicam as imagens. E, assim, deixam vácuos a outras
narrativas, pois estas se fazem como âncoras na experiência e guizos que marcam o ritmo do
porvir.
Poderíamos ter intercambiado as narrativas, os incidentes e as imagens restringindonos, num ciclo finito, aos espaços e pequenos grupos delimitados geracionalmente.
Entretanto, optamos pela criação de espaços-tempo que provocassem zonas de experiência e
não apenas a reunião de incidentes-memórias atribuíveis a cada categoria geracional. Na feira
livre, nos vidros dos carros, a organização em torno de uma cronologia que supõe as faixas
etárias foi posta em zonas de indeterminação. Abrimo-nos ao intempestivo, deixamo-nos
atravessar pelo devir-criança em sua potência de invenção.
A feira-livre, com a utilização do dispositivo de vídeo e de interação com a
plataforma Google Earth, tornou-se um espaço de trocas sem prévia definição de categorias
geracionais ou benefícios a serem alcançados. As pessoas, atraídas pelo dispositivo,
conversavam entre si e com as pesquisadoras sobre sua vida na cidade. Crianças, jovens e
idosos trocavam memórias de locais que não existem mais, que se modificaram ou que só
passaram a existir para uns quando em contato com a memória do outro. E, também,
brincavam de serem outros, de serem atravessados por novos compartilhamentos.
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
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Entre tantas narrativas e práticas que se tecem, em diversos contextos, tomando a
brinquedoteca como ponto de partida, entre experiências na cidade, memórias e segredos,
produzidos em diferentes temporalidades e por pessoas em tempos de vida distintos –
crianças, jovens e idosos –, retomamos a dialogia de Bakhtin para compreender a produção de
discursos e práticas em sua quebra de fronteiras tanto espaciais quanto temporais, razão de seu
inacabamento. A cada resposta ou a cada ato de contemplação dos discursos produzidos, seja
na brinquedoteca ou em outros ambientes da cidade e da Universidade, outros sentidos foram
construídos, fazendo com que o acontecimento assumisse contornos.
Ao circularmos na cidade, não eram as mesmas crianças, não eram os mesmos
adultos, não eram os mesmos idosos que havíamos encontrado nos espaços reservados a cada
uma destas gerações. Também já não éramos os mesmos. Atravessados por um devir-criança,
nós brincamos com o tempo e o espaço mediados pelas tecnologias de registro, visualização e
transporte de imagens, vozes e textos. E, a brinquedoteca tornou-se um ponto de articulação,
ora visível, ora invisível em meio às trocas entre gerações. Tecnologias das quais nos
apropriamos, revertendo suas finalidades, a exemplo das marcas no mapa que não indicavam
locais generalizáveis no plano das informações.
Bakhtin (1992) opõe-se a olhar para os fatos da vida e da arte, incluindo, é claro, toda
e qualquer manifestação de linguagem, como fenômenos já dados e prontos, cuja existência se
encerra no presente. Com isso, concebe-os para além de um tempo linear, em um devir
constante, de modo que seus sentidos não mais pertençam a um futuro temporal, com vistas
para a continuidade, mas a um futuro que rompe com o passado e o presente e se lança em
direção à busca de um novo sentido que transforma a vida e os dispositivos tecnológicos
mobilizados sem qualquer intenção pedagógica fixa a alcançar em aesthesis.
A essa altura talvez possamos dizer o que não pode uma brinquedoteca: fechar-se em
si mesma. Como espaço educativo, a brinquedoteca parece ganhar potência, justamente,
quando se abre ao imprevisível, quando se torna zona de contato entre espaços e tempos
múltiplos, ou seja, justamente, quando se torna menor. Trazer à tona a infância não é
idealização do que foi vivido, mas sim cogitar uma experiência que poderia ter sido diferente,
engajar-se em uma “releitura crítica do presente da vida adulta” (GAGNEBIN, 1997, p. 181).
Releitura crítica que deve passar pelo modo como nos relacionamos com as brinquedotecas.
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Considerações finais
Nas reflexões e relato da pesquisa-intervenção, buscamos pensar a brinquedoteca,
espaço-tempo da infância, na condição de disparadora de produção de sentidos, práticas e
experiências que subvertem a linearidade do tempo e atravessa espaços. Ao abrir trilhas para
encontros e desencontros geracionais, a brinquedoteca, como disparadora de trocas, promove
condições para práticas que poderiam tão somente ocupar o estatuto de vivências
colecionáveis: a brinquedoteca dedica-se à partilha da experiência. Torna-se possível
argumentar que a brinquedoteca adquire potência ao se abrir a movimentos que a extrapolam,
seja na dimensão temporal, seja na dimensão espacial.
Inflexão que dá margem a narrativas, práticas e, também, a experiências, por um
lado, marcadas pelo espaço-tempo que os espaços atribuíveis às gerações delimitam (a
brinquedoteca como lugar de crianças) e, por outro, que extrapolam as suas quatro paredes e
as vinculações entre gerações e localidades fixas, uma vez que atravessam outros espaçostempos: fendas para a emergência de experiências que fogem dos traçados originalmente
gestados.
O movimento do acontecimento lança-se para além da temporalidade em que as
práticas e as narrativas são forjadas, libertando-os das amarras de seu próprio tempo e
inserindo-os no que Bakhtin denomina de grande temporalidade (Bakhtin, 1992). E, também
ao que Benjamin (1994), chama de infinitos agoras nas tantas ágoras ou praças-públicas das
trocas. Isto, talvez, soe um tanto paradoxal.
Quando estávamos na feira-livre, as crianças, ao se depararem com o mapa da cidade
exposto na tela à sua frente, perguntavam: É para mexer no computador? Podemos inserir
nossas casas? Com o mouse nas mãos, as crianças marcaram suas casas no Google Earth.
Hoje, ao acessar a plataforma virtual, as casas estão lá, mas não sabemos quem são as crianças
que as inscreveram. Lá estão as casas das crianças como marcas (que nos ligam a um evento
passado) e como experiências (que abrem sensibilidades). Em nosso experimento estéticoeducativo operamos num presente inatual, kairológico, numa topografia que não correspondia
à geografia real da cidade, em imagens que não aderiam às fotografias possíveis.
Experimentamos uma brinquedoteca aberta a práticas cujos dispositivos de pesquisaintervenção se definiam ao curso da produção de acontecimentos. Como trabalhar por
brinquedotecas que não nos protejam do mundo, que não nos tutelem? Muito se falou da
tutela adulta sobre as crianças, pouco se falou, ainda, sobre a tutela que, enquanto
GALINDO, D; Salgado, R. ; LEMOS-DE-SOUZA, L. ; MOURA, M. . Trocas geracionais: o que pode uma brinquedoteca
universitária?. In: Daniela Freire; Jader Lopes. (Orgs.). Infância e crianças: lugares em diálogo. 1 ed. Cuiabá: EdUFMT,
2012, v. 1, p. 20-35.
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