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Do 'Laboratório-espetáculo' ao 'laboratório-arte': um ensaio sobre as novas relações entre arte e ciência

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DO ‘LABORATÓRIO-ESPETÁCULO’ AO ‘LABORATÓRIO-ARTE’: UM ENSAIO SOBRE AS NOVAS RELAÇÕES ENTRE ARTE E CIÊNCIA FROM ‘SPECTACULAR LABORATORY’ TO ‘ART LABORATORY’: AN ESSAY ABOUT THE NEW RELATIONSHIPS BETWEEN ART AND SCIENCE Dolores Galindo1 RESUMO: O presente ensaio aborda os laboratórios como espaços nos quais são criadas novas relações entre arte e ciência baseadas na apropriação de recursos biotecnológicos por parte da primeira. Espera-se contribuir para o estudo de recentes entrelaçamentos entre cientistas e artistas no contexto da arte que manipula a vida por meio de procedimentos próprios aos laboratórios. Entende-se que a apropriação biotecnológica pela arte implica na instauração de um novo regime ficcional baseado não apenas na imagem (ilustração), mas na vida mesma (código genético). PALAVRAS-CHAVE: Arte, ciência, laboratório, ficção. ABSTRACT: This essay addresses the laboratories as spaces for creation of new relationships between art and science. It is expected to contribute to the study of recent relationships between scientists and artists in the context of art that manipulates the lives through laboratorial procedures. It is understood that the art biotechnology involves the establishment of a new fictional system based not only on image (picture), but in life itself (genetic code). KEYWORDS: art, science, laboratory, fiction. Introdução O laboratório científico teve início como um espetáculo aberto ao público não especializado. A complexificação técnica, a busca por legitimidade e as preocupações com segurança promoveram o fechamento do laboratório (GALINDO, 2006). Progressivamente, a partir do século XIX, o laboratório se tornou uma caixa preta para a audiência não especializada (LATOUR E WOOLGAR, 1987). Nos anos noventa, a arte que envolve o uso de instrumental biotecnológico – nomeada como arte biotecnológica - expõe o interior desta caixa preta, forçando novas questões que dizem respeito à 1 Doutora em Psicologia Social PUCSP, Pesquisadora do Grupo Práticas Discursivas e Produção de Sentidos - Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Social - PUCSP, dolores_galindo@hotmail.com. Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 1 legitimidade e aos limites do emprego de recursos laboratoriais por distintas categorias profissionais (MALINA, 1997). Tendo em vista a emergência da arte biotecnológica e a demanda pela incorporação de procedimentos laboratoriais ao cotidiano artístico, o presente ensaio aborda os laboratórios como espaços nos quais são criadas novas relações entre arte e ciência baseadas da apropriação de recursos biotecnológicos por parte da primeira. Por arte biotecnológica, nomeamos os projetos artísticos realizados nos laboratórios de biotecnologia ou que envolvem recursos do campo, incluindo-se aí uma parcela dos trabalhos agrupados sob os rótulos bioarte, eco arte, arte transgênica e arte da cultura de tecido (GESSET, 1993). No primeiro segmento do texto, a partir das contribuições de Bruno Latour, distinguimos uma tipologia que não pretende ter caráter histórico, ou seja, marcar períodos. Com tal tipologia pretendemos acenar para modos de funcionamento dos laboratórios cujos traços coexistem contemporaneamente. No segundo segmento, apresentamos as principais configurações laboratoriais apontadas: laboratório-espetáculo, laboratório-prova, laboratório-público e o laboratório-arte. No terceiro segmento, detalhamos as configurações laboratoriais, exemplificando-as. Por fim, a guisa se considerações finais, argumentamos que o regime ficcional da arte no contexto dos laboratórios inscreve, ao lado da ética e da segurança, a necessidade de consideração da estética como um vetor indispensável à compreensão dos recentes entrelaçamentos entre arte e ciência mediados por práticas laboratoriais. 1. O laboratório e seu “sistema circulatório”: contribuições de Bruno Latour Compreender o funcionamento de um laboratório científico é uma atividade complexa em função das redes de elementos e pessoas envolvidos. Seria uma tarefa inviável tentar dar conta de todos os elementos e operações articulados pelo laboratório tendo em vista a composição e manutenção de fatos científicos. Segundo Latour (2001), apesar das dificuldades para compreensão dos laboratórios científicos, tal tarefa pode ser auxiliada se tomamos em consideração cinco tipos de circuitos agrupados por ele em um sistema circulatório – o sistema circulatório da ciência. Quais circuitos são estes? Instrumentos (mobilização do mundo), colegas (autonomização), aliados (alianças), público Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 2 (representação pública) e, por fim, os vínculos e nós (evitando a nomeação ‘conteúdo conceitual’). Vejamos a descrição de cada um deles. O primeiro deles, mobilização do mundo, corresponde aos meios pelos quais os não-humanos são transpostos para o discurso e aos lugares onde são reunidos e contidos os objetos mobilizados. Ou seja, os modos pelos quais os não-humanos são tornados móveis, trazidos para as controvérsias e tornados passíveis de argumentação, o que pode ser feito por diversos tipos de mediação (entrevistas, levantamentos, coleta de amostras etc.). A escrita desta história é a do modo como o mundo é transformado em móveis imutáveis2 (LATOUR, 2001) e passíveis de serem combinados. Já a autonomização diz respeito ao modo pelo qual uma profissão ou disciplina torna-se autônoma, independente, sendo responsável por seus próprios critérios de relevância, de avaliação e de circulação do conhecimento/artefato produzido. Este circuito inclui o estudo das profissões científicas e de suas instituições. O terceiro circuito é o das alianças. Aqui, são trazidas pessoas de fora - não apenas colegas para que a disciplina possa ter continuidade e tenha sua existência garantida. Nas alianças, é marcado o ritmo das pulsações, acelerações ou retardamentos no fluxo de informação científica. Este circuito inclui a história de como novos não-humanos mesclam-se a um conjunto de novos humanos a cada dia. A representação pública é a relação dos cientistas com o mundo exterior formado por pessoas comuns. Tal circuito inclui o que é conhecido, como o contato do mundo científico com a sua dimensão exterior. Entretanto, a representação pública não é mais exterior do que os anteriores; o fluxo de informações que circula neste circuito alimenta os demais. Por fim, o circuito chamado vínculos e nós. Trata-se do que é conhecido como conteúdo conceitual da ciência, considerado por boa parte dos estudiosos dos saberes científicos como a parte mais difícil de ser estudada em função do aparente hermetismo dos textos científicos produzidos em áreas distintas daquelas nas quais são formados os pesquisadores. Ao invés da metáfora do núcleo (conteúdo conceitual) e do contexto (demais circuitos), a adotada por Bruno Latour é a de um nó cuja amarração depende da capacidade de manter juntos os elementos arrolados nos circuitos anteriores. 2 Com o termo inscrição, Latour (2001) se refere às transformações que materializam uma entidade, sendo sempre móveis, o que permite novas articulações e translações. Apesar de abertas a mudanças, mantém algumas formas de relação intactas, por isso, são também nomeadas como móveis imutáveis. Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 3 Quanto maior a articulação de uma disciplina científica ou de um fato científico, maior é sua flexibilidade. Se o hospital e a prisão foram duas instituições que permitiram a Foucault estudar a dinâmica de poder na modernidade, o laboratório é uma das instituições que permite pensar a tecnociência contemporânea, como bem perceberam Bruno Latour e Steve Woolgar nos anos setenta ao publicar o seu já consagrado Vida de Laboratório: a construção de fatos científicos (LATOUR & WOOLGAR, 1987). O laboratório, mais do que um espaço de construção de fatos, converte-se em um operador para o pensamento social. Quando perguntado se o laboratório seria um modelo mais adequado que o panóptico para estudar a sociedade atual, Latour (2005) reconheceu o débito dos estudos da ciência em relação ao conceito de panóptico como dispositivo para reverter as escalas micro e macro. Além disto, alçou o laboratório ao estatuto conceitual ocupado pelo panóptico. (...) a disseminação dos laboratórios, sua habilidade para reverter escalas, para reverter, completamente, as ordens macro e micro em muito confirma a tradição Foucaultiana. Mas, claro, há muitos mais dispositivos que o panóptico. (…) Laboratórios num sentido geral, do modo como os definem os estudos da ciência e tecnologia – são um modelo melhor do poder (incluindo os laboratórios de cientistas sociais e outros centros de cálculo). Há uma linha de pesquisa aberta e muito produtiva derivada de Foucault que toma como campos de estudo – os hospitais, burocratas, etc. Este não é um modelo metafísico e sim um modelo operativo por meio do qual podemos realizar estudos empíricos sobre tecnologias sociais e de produção de conhecimento (LATOUR, 2005, tradução da autora). 2. Notas preliminares para uma tipologia acerca dos laboratórios A partir da linha divisória entre o público e o privado, definimos uma tipologia para compreender formas de produção de conhecimento distintas: o laboratório-espetáculo, o laboratórioprova, o laboratório-público e o laboratório-arte. Esta tipologia não pretende ter caráter histórico, ou seja, marcar períodos, mas modos de funcionar em conformações históricas determinadas, cujos elementos ainda coexistem no presente. De fato, quando retomamos o experimento de Robert Boyle, considerado um momento chave da invenção do experimento e do laboratório na qualidade de dispositivo de produção de verdades, deparamo-nos com a descrição de espetáculos, com audiência e livro de assinaturas. A este tipo de funcionamento denominamos laboratório-espetáculo. Neste período, Boyle e Thomas Hobbes Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 4 disputavam acerca do valor da prova laboratorial em relação à existência do vazio e às suas implicações em termos políticos. Até o encerramento da controvérsia, a linha divisória entre o interior e o exterior do laboratório era tênue, no sentido de que o experimento por si só não era capaz de legitimar a existência do vazio. Ao fim da controvérsia, a linha divisória tornou-se mais densa, de modo que provas experimentais, com aparatos cada vez mais precisos, deveriam ser combatidas com provas igualmente experimentais. Neste caso, as testemunhas foram substituídas pela escrita detalhada dos procedimentos, bem como pela escrita e divulgação de textos científicos. Trata-se do laboratório moderno, como descrito por Latour e Wolgar (1987), em Vida em Laboratório ou, na nossa tipologia, o laboratórioprova. Um terceiro tipo visível, sobretudo, depois da moratória da década de 70 em relação à pesquisa com DNA recombinante que culminou com a Conferência de Asilomar (1975), é o laboratório-público. Neste, a prova passa a ser cada vez menos passível de ser decidida por critérios apenas internos aos laboratórios. Se o cotidiano laboratorial nunca funcionou como preconizado pelo laboratório-prova, no laboratório-público isto se torna mais visível. Os híbridos proliferam e os processos decisórios mais claramente tornam-se passíveis da intervenção de diversos atores sociais. E, por fim, um quarto tipo é o que nomeamos laboratório-arte que converge com o laboratóriopúblico no que concerne à demanda pelo exame. Recupera também elementos do laboratórioespetáculo uma vez que são realizadas demonstrações diante de espectadores convidados a estar no laboratório, lembrando as testemunhas de Robert Boyle. Como nova forma de espetáculo, os trabalhos são expostos em mostras de arte em espaços museísticos, gerando entrelaçamentos entre laboratórios e museus de arte. Há toda uma tradição de entrelaçamento entre museus, ciência e recursos artísticos, sobretudo na área de visualização e jogos interativos, que pode ser encontrada nos museus de ciência (ALMEIDA, 2005; LOPES, 2005). No caso do laboratório-arte se trata de um cruzamento feito em museus que não são classificados na categoria museus de ciência e de trabalhos artísticos que não têm a finalidade didática como seu principal objetivo. Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 5 3. Dos laboratórios-espetáculo aos laboratórios-arte 3.1. Laboratórios - espetáculo As primeiras demonstrações feitas por Boyle eram espetáculos não muito distantes em sua tecnologia de funcionamento dos espetáculos que tinham lugar nos teatros de anatomia. Havia, ao centro, a bomba e em seu torno o público selecionado (como acontecia também nos teatros de anatomia) em função de determinados critérios, como por exemplo, o de não se escandalizar com os pássaros mortos por asfixia. Havia, ao mesmo tempo, a criação de um modo de produzir verdades: o experimento, um público educado para participar e testemunhar a seu favor. Além destes dois itens, havia uma autonomização da prova que deveria ser julgada pelos pares - a Academia Real de Ciências. Ainda que os materiais fossem muito próximos dos espetáculos de magia - a redoma de vidro, o pássaro e a tensão mantida até a morte deste por asfixia - o público não podia ter as mesmas reações. Nos espetáculos de magia, os pássaros desapareciam e logo reapareciam como passe de mágica, reacendendo os ânimos. Tratava-se de ilusionismo sem maiores conseqüências para a vida do animal. A participação do público era essencial para a execução do espetáculo: o que seria de um espetáculo de magia sem uma expressão de surpresa ou admiração por parte dos presentes à cena? Veja-se capa do capa do livro “Fortgesetzte Magie”, publicado em 1793, na qual se exibe o truque do pássaro que ressuscita de dentro de uma redoma de vidro. Durante os experimentos de Boyle, gritos diante da morte dos animais retiravam a atenção do que deveria estar em foco; por isso, logo foi dificultada a entrada de mulheres, tidas como mais sensíveis ao fato (HARAWAY, 2005). Existem relatos de interrupção de experimentos por mulheres que pediam a liberação dos pássaros antes que morressem; além disso, os nomes femininos não eram listados entre as testemunhas, estivessem ou não presentes. Uma das formas de restringir o acesso feminino era a realização dos experimentos durante a noite. Haraway (2005) argumenta que o experimento colocava em ação três tecnologias: uma tecnologia material, uma tecnologia literária e uma tecnologia social. Material à medida que estava encarnada no funcionamento da bomba de vazio; literária porque os experimentos se tornavam Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 6 conhecidos pelas pessoas que não estavam presentes por meio de textos escritos; e, por fim, social em função de estar vinculada a convenções quanto à interação das pessoas durante o experimento e como suas testemunhas a posteriori. As convenções excluíam os gritos ou atitudes de repulsa feminina que são retomados na tela de Joseph Wright, de 1768, intitulada “Experiment with the Air Pump”. Nela, muito perto do experimento que ocorre no centro iluminado por uma lamparina, uma das mulheres vira o rosto para não ver o que sucede e é amparada por um braço masculino. Como afirma Haraway (2005), o que estava em jogo nas demonstrações da bomba de vazio de Boyle era muito mais do que a existência do vácuo. As três tecnologias, integradas por recurso metonímico, operavam na bomba de vazio, um instrumento neutro, não-humano e capaz de dizer a verdade. Era um espaço ao mesmo tempo público - eram necessárias testemunhas - e privado - no sentido de restrição do acesso. Ainda seguindo Haraway (2005): O testemunho devia ser público e coletivo, com o fim de multiplicar sua intensidade. Um ato público deve ter lugar em um espaço que possa ser aceito semioticamente, como público, e não como privado. Mas para o estilo de vida experimental, um «espaço público» devia ser rigorosamente definido; não podia entrar qualquer pessoa, nem qualquer pessoa podia dar testemunho de maneira crível (HARAWAY, 2005, s/p). Ao longo do século XVIII, as bombas de vácuo não se restringiram aos laboratórios científicos, permanecendo também entre as atrações que podiam ser expostas em museus de curiosidades. O modelo de uma bomba dupla é mencionado nos catálogos de um museu de curiosidades. Joseph Wright - que pintou a cena do experimento quase um século depois - conhecia este museu e, além disso, teria se esforçado em pintar um pássaro que no seu tempo já não era comum em Londres. O experimento de Boyle, nas palavras de Haraway, está ligado ao laboratório como teatro de persuasão, a um trabalho de mediação da bomba de vácuo e à sua trajetória, de modo que nossa bomba traça a elasticidade do ar, mas também a sociedade do século XVIII e define, igualmente, um novo gênero literário, o da narrativa de experiências em laboratórios (LATOUR, 1994). Foram criadas variações do experimento que não envolviam a morte de animais, porém os autores não precisam a época de desenvolvimento e sua recepção dentre os que se faziam presentes para ver o espetáculo da bomba de vazio. 3.2. Laboratório-prova Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 7 Ao passo que Latour (1994) enfatiza as separações entre natureza/sociedade e humanos/nãohumanos decorrentes da invenção do laboratório, Haraway (2005) enfatiza a constituição desse espaço ao mesmo tempo público e restrito que é o laboratório de Robert Boyle. Foram necessários mais desenvolvimentos para que a presença de uma audiência certificada numa lista de assinaturas se tornasse desnecessária, o que ocorreu com a maior relevância conferida aos dispositivos de inscrição, dando ao laboratório alguma autonomia em relação a instâncias externas. Hobbes, crítico de Boyle, via os experimentos como parte de um espaço privado, quase secreto, e não como parte de um espaço cívico público, logo, não eram prova da existência do vácuo. Para Hobbes, a discussão deveria ser pública e se dar no plano político, não podendo ser decidida por um aparato técnico – a bomba de vazio. Como astutamente aponta Haraway (2005), uma das questões mais relevantes para que o laboratório pudesse vir a existir como dispositivo de conhecimento é a relação entre espaço público e espaço privado. O laboratório devia estar aberto, ser um teatro de persuasão, e, ao mesmo tempo, estar construído para ser um dos espaços mais altamente regulados da «cultura da não cultura». Gerenciar a distinção público/privado tem sido um aspecto crucial para a credibilidade do estilo de vida experimental (HARAWAY, 2005, s/p). No livro Vida em Laboratório (LATOUR E WOLGAR, 1987), assim como em livros posteriores, Latour estuda o cotidiano dos laboratórios de modo etnográfico. No primeiro livro, descobre a importância dos aparatos de inscrição como operadores de reversão de escala entre o micro e o macro, proporcionando aos dados obtidos o valor de verdade. Não havia necessidade de uma grande platéia, como no teatro de anatomia, para a produção de conhecimentos no laboratório: a exibição das provas proporcionadas pelos aparatos de inscrição e redigidas no contexto de artigos era suficiente. Não era necessário um espetáculo público. O laboratório, depois da disputa entre Robert Boyle e Thomas Hobbes, é isolado da vida política. Para que fatos científicos sejam fabricados não seriam necessários, nem relevantes, argumentos políticos: laboratórios contra laboratórios inscritos numa mesma esfera de autonomia em relação à vida pública. Os fatos falariam por meio dos aparatos, dos experimentos. Trata-se de um Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 8 modo de governar que purifica dois entes - de um lado, a natureza, e, do outro, a sociedade ou a política. Com esta dupla operação, a natureza perde seu caráter mágico, podendo ser manipulada no laboratório por meio de experimentos. Ou seja, no laboratório entendido como um dispositivo de reversão de escalas, a natureza é reconstruída na forma do experimento. Feito o experimento, este diz algo sobre a natureza, operando-se uma reversão de escala, sem que seja necessário um debate público sobre os avanços técnicos. As questões científicas são discutidas e finalizadas por meio do experimento, que inicialmente tem a forma de espetáculo e gradativamente assume a forma de uma prática cuja audiência pública sobrevém no momento em que são traduzidos em textos científicos. O laboratório moderno, de acordo com Latour (1994), instaura uma inovação na teoria política, na qual cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e tecnologia (LATOUR, 1994, p. 33-34). Se quiséssemos sintetizar o ideal do laboratório moderno, teríamos que gerar uma zona de opacidade, na qual os fatos científicos poderiam ser construídos sem a necessidade ou implicação política de seus avanços. É o trabalho de purificação que oculta o trabalho de hibridização: opacidade que tornava os fatos científicos coisas apenas para cientistas e gente especializada. O acesso ao laboratório estaria restrito aos cientistas, não cabendo ao mundo exterior ingerir em seu funcionamento. A pesquisa com financiamento, sobretudo estatal permitiria tal autonomização. Ao observar a planta baixa do laboratório estudado por Latour e Wolgar (1987), deparamo-nos com um circuito com um claro espaço para entrada de produtos químicos – informações – animais – correspondências - telefonemas, seu processamento por meio de aparatos de inscrição e a saída de artigos que atestam os fatos criados em seu interior. 3.3. O laboratório-público Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 9 O laboratório-prova teve seu apogeu enquanto forma de produção de fatos e artefatos entre o final do século XIX e meados do século XX. Foi durante a Segunda Guerra Mundial, com o tribunal de Nuremberg, que o laboratório foi aberto novamente à inspeção coletiva. Os entes cuidadosamente produzidos nos laboratórios dos nazistas foram condenados, mobilizados pelo discurso que veio a ganhar força no século XX - a ética na investigação científica. Do laboratório nazista foram retiradas lições para regulação dos demais laboratórios que incluíram sua abertura a inspeções e o seguimento de protocolos locais e internacionais de conduta e manejo de materiais. O laboratório-prova nasce e se alimenta na modernidade, marcada pela linguagem dos riscos, especialmente daqueles ponderáveis, passíveis de previsão e de controle. Com a moratória científica dos anos setenta que objetivava a obtenção de evidências que apontassem para a segurança das tecnologias recém descobertas de DNA recombinante, fatos científicos confinados ao mundo do laboratório tornaram-se públicos, assunto de um debate que instaurou uma zona de comunicação explícita entre política e saberes/artefatos científicos. O ideal deixa de ser o de um laboratório opaco com uma margem de liberdade para operar, passando a ser um laboratório transparente, aberto ao escrutínio especializado e à discussão pública, cujos riscos são repartidos. Hoje, como antigamente, pesquisadores discutem no próprio interior dos laboratórios. Observamos já que o significado da palavra discussão se modifica desde que evocamos os cientistas. Não se pode mais opor, realmente, o mundo científico dos fatos indiscutíveis ao mundo político da eterna discussão. Há sempre mais arenas comuns, nas quais a discussão se alimenta, ao mesmo tempo, de controvérsias entre pesquisadores e da disputa das assembléias (LATOUR, 1999, p. 123). O nível de transparência está intimamente correlacionado ao caráter controverso dos objetos aos quais o laboratório dedica seu espaço de pesquisa e de experimentação. Paradoxalmente, o laboratório transparente é progressivamente mais fechado em termos de acesso a suas instalações. Há movimentos de transposição sobre o que vai ser colocado como transparente, ou seja, como passível de ser visto, pois a inspeção propriamente dita das instalações continua sendo feita por cientistas e técnicos. O laboratório público dá-se no contexto de uma profunda insegurança quanto à imponderabilidade de riscos gerados, em grande parte, por procedimentos técnicos ou científicos. A visibilidade do laboratório-público é apenas aparente. Há sempre uma zona cuidadosamente deixada Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 1 opaca. Lidar com o caráter fluido dos limites entre opacidade e transparência converte-se em habilidade essencial ao cientista do laboratório-público. Transparência não coincide, portanto, com maior democracia nos processos cotidianos do fazer científico. Bruno Latour (2005), por exemplo, tem se dedicado nos últimos anos a encontrar dispositivos capazes de promover práticas mais democráticas, como se pode ver na exposição “From Realpolitik to Dingpolitik – or How to Make Things Public” (LATOUR, 2005). 3.4. O laboratório-arte Dos modelos discutidos, o laboratório-arte, sem dúvida, é o menos freqüente, havendo apenas um que assim possa ser caracterizado. Deste modo, as características que apresentaremos tomam como base este caso único, não podendo ser extensíveis aos laboratórios-arte vindouros. Trata-se do laboratório gerenciado pelo grupo Simbyotica (http://www.SymbioticA.uwa.edu.au/). O referido laboratório, localizado na Austrália, faz pare da Escola de Anatomia e Biologia Humana da University of Western (Austrália) e tem como principal linha de trabalho a cultura de tecido. Até o presente momento é o único grupo artístico a se localizar em um departamento de ciências biológicas que inclui, também, residência para artistas, mestrados e oferece cursos de formação para profissionais interessados no tema. SymbioticA é agora um laboratório de pesquisa como qualquer outro no departamento. A tensão da posição ambígua do SymbioticA com relação as demais disciplinas acadêmicas está gerando colaborações que não ocorreriam em outro lugar. Com SymbioticA, os artistas podem trabalhar nas diferentes áreas dos laboratórios do departamento, tais como Biologia Molecular, Cultura do Tecido, neurociência e nos laboratórios de biomecânica. (...) Os artistas terão também acesso a facilidade de treinamento avançada para cirurgiões (...) (http://www.SymbioticA.uwa.edu.au/info/info.html, adaptação livre da autora). A história do laboratório SymbioticA começou com o reaproveitamento dos materiais que sobravam dos experimentos realizados na escola de medicina – restos de tecido cerebral de ratos. Referindo-se a este momento, os artistas descrevem a si mesmos como comedores de carniça. Num segundo momento, começaram a dispor de materiais não reaproveitados. Como exemplo desta inflexão, encontra-se o projeto “Extra Ear – ¼ escale”, em parceria com o artista Sterlac, exposto pela primeira vez em 2003. Neste caso, o tecido utilizado como meio artístico proveio do artista, integrando Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 1 o seu projeto de questionamento da obsolescência do corpo humano por meio de tecnologias do excesso. O laboratório-arte, em comum com o laboratório-espetáculo, inclui a exposição a um público não especializado durante mostras de arte ou no interior das suas instalações. A exposição em mostras de arte é a forma mais evidente de espetáculo, mas podemos encontrar também descrições de cenas que se realizam no interior do laboratório e que fogem à prova ou demonstração. Porém, diferentemente do laboratório-espetáculo, implica estratégias de legitimação junto à comunidade científica por meio da submissão dos trabalhos a comitês de ética e de biossegurança. 4. Considerações finais A arte biotecnológica pressiona por um novo regime ficcional que se faça sobre a vida mesma. Não se trata da apropriação discursiva de conceitos e gêneros de fala ou da crítica ao trabalho científico no sentido de desnaturalizá-lo, mas da apropriação de técnicas cujas conseqüências se estendem à matéria viva como um novo meio artístico. Introduz-se no laboratório um artista informado e disposto à manipulação de matéria viva, cuja exclusividade, tradicionalmente, é atribuída ao cientista, ao militar e, em certos casos, ao clínico ou cirurgião. Assim, o laboratório ao tornar-se espaço para o exercício ficcional impõe novas práticas de circulação e de apropriação de tecnologias anteriormente restritas ao campo tecno-científico. Redesenha-se o sistema circulatório característico dos laboratórios científicos contemporâneos. Flusser (1979), em “o Jogo das vacas”, de modo jocoso, alertava para o fato de que, iríamos nos deparar com um futuro no qual o progresso tecnológico não seria o privilégio de alguns especialistas apropriados pelo aparelho administrativo, mas jogos dos quais as ‘massas’ participariam, de modo ativo, variando protótipos livremente. O jogo estético interposto pela arte aos limites do laboratório científico conduz à inquietude quanto à apropriação das técnicas biotecnológicas que, antes restritas aos limites de laboratórios fechados, progressivamente, integram-se ao cotidiano. Dolores Galindo – revistatravessias@gmail.com 1 Os deslocamentos da arte biotecnológica em relação aos usos laboratoriais não podem ser reduzidos a questões da ordem da segurança, gerando a punição de artistas por infringirem os limites usuais do laboratório; nem, tampouco, devem ser adscritos ao campo do entretenimento e dos efeitos de alheamento dele decorrentes; ou, ainda, explicados, apenas, pela relevância educativa. (GALINDO, 2006). As práticas artísticas que tomam o código genético como matéria e o laboratório como espaço de trabalho, deslocam-nos das finalidades técnico-científicas originais e inscrevem-se, necessariamente, numa dimensão estética e política. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, A. The personal context of a museum experience: similarities and differences between science and art museums. Hist Cienc Saude Manguinhos. 2005; 12 (Suppl): pp. 31-53. CATTS, O. e BUNT, S. 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