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O Caso da" Coelha Alba" Diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão

2012, artciencia. com

artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 O CASO DA “COELHA ALBA” DIANTE DA BIOSSEGURANÇA: O GOVERNO DA VIDA EM QUESTÃO Dolores Galindo1, Universidade Federal de Mato Grosso, doloresgalindo@ufmt.br. RESUMO A relação entre arte e ciências da vida é antiga, mas apenas recentemente passou a ser pautada, também, pela segurança da vida, o que vem gerando diversas controvérsias entre artistas, instituições artísticas e comitês de biossegurança. Tais desencontros se devem, em grande medida, à migração para o contexto artístico de procedimentos de biossegurança desenvolvidos tendo em vista problemáticas tecnocientíficas. Propomos que a arte biotecnológica, no caso da coelha Alba proposta por Eduardo Kac, sinaliza para a existência de fraturas na racionalidade das avaliações de biossegurança, indicando um necessário esforço de revisão dos princípios que as orientam. PALAVRAS-CHAVE: Bio arte; Eduardo Kac; biossegurança; tecnociência; bioética. ABSTRACT The relation between art and life’s sciences is old, but, recently, it began to be seen as a life security problem. We propose that the control of artistic practices is overall caused by migration to the artistic context of bio-security procedures that have been developed considering scientific problematic. Biotechnological art, showing new dilemmas in techno-science in experimentation and laboratories perspective, signalizes a problematic that goes over the aesthetics question. KEYWORDS: Bio Art; Eduardo Kac; bio-security; techno-science, bioethics. 1 Docente do corpo permanente do Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea ECCO onde coordena a Linha de Pesquisa Epistemes Contemporâneas (2011-2012), e do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso. Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006), com Doutorado Sanduíche na Universidade Autônoma de Barcelona (2004). Atualmente, lidera o Grupo de Pesquisa Ciências, Tecnologias e Contemporâneo – TECC/UFMT. Membro do GT Cotidiano e práticas sociais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Secretária e Membro fundador da Rede Centro-Oeste de Arte, Cultura e Tecnologias Contemporâneas – Rede CO3. Principais interesses de pesquisa: Tecnologias; Ciências; Arte Contemporânea; Epistemologias situadas. 1 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Dolores Galindo Neste artigo discutimos a problematização da arte como uma questão de biossegurança, tornando visíveis as fraturas e conseqüências que advêm da impossibilidade de redução da racionalidade estética que orienta a arte biotecnológica à racionalidade que guia a biossegurança criada para finalidades tecnocientíficas. Tomamos como estudo de caso a controvérsia em torno da coelha Alba no trabalho GFP Bunny do artista brasileiro Eduardo Kac. Ao manipularem a vida por meio de recursos e técnicas biotecnológicas, inevitavelmente, os artistas manipulam não apenas materialidades biológicas, mas também as regulações criadas em seu em torno. O advento da arte biotecnológica coincide com a emergência de desencontros entre estética e segurança da vida. Os princípios e dispositivos criados para avaliar a segurança de procedimentos científicos são trazidos para a avaliação de experimentos artísticos. Porém enquanto a biossegurança se apoia na defesa da segurança da vida cuja conceituação, pelo menos, até ao momento, exclui justificações estéticas, a arte se apoia na defesa da livre expressão estética. Para explorar os desencontros entre arte e segurança da vida, dividimos o presente artigo em três secções. Na primeira, abordamos o conceito de dispositivos de segurança na tradição de estudos foucaultianos sobre governamentalidade. Na segunda, buscamos situar a biossegurança como um dos recentes dispositivos de governo dos excessos. Na terceira, apresentamos alguns elementos que permitem compreender a problematização da arte a partir de dispositivos desenvolvidos no contexto da biossegurança, utilizando como exemplo emblemático a arte transgênica de Eduardo Kac. Certamente, arte e biossegurança operam de modos bastante distintos: os artistas justificam os seus trabalhos por meio de conceitos, freqüentemente, estéticos; os operadores de biossegurança empregam o que nomeamos como argumento biopolítico, isto é, a defesa da saúde da população. Porém, mesmo partindo do reconhecimento das singularidades de cada uma dessas racionalidades, a título de considerações finais, defendemos que a tensão advinda da interface entre arte e biossegurança requer que 2 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 nos movamos para além da dualidade que orienta a emergência dos desencontros entre ambas. Assegurar a vida na perspectiva da governamentalidade Assegurar a vida passou a ser um dos objetivos do governo dos indivíduos quando o controle deixou de se fixar apenas sobre os corpos e se assentou também sobre os processos vitais. Esta mudança, segundo Foucault (1971/1999, 1979/2004) pode ser localizada no século XVIII com o nascimento da biopolítica e do biopoder, termos cunhados por ele para abordar essa transformação na dinâmica do poder. Não há consenso na literatura acerca das relações entre biopoder e biopolítica, o que se deve em grande parte aos diferentes usos dos termos por Foucault que ora os tratou como sinônimos, ora os tratou como distintos. Neste trabalho, optamos pela acepção que inclui a biopolítica e as disciplinas como componentes distintos do biopoder. Adotamos o que alguns autores denominam como abordagem clássica sobre o biopoder que consiste em pensá-lo como um poder sobre a vida que, por meio de agenciamentos concretos, se dá pela articulação das tecnologias disciplinares e biopolíticas (Caliman, 2001; Ortega, 2004). Quando da sua formulação em meados dos anos setenta, o conceito de biopolítica procurava dar conta da emergência de uma nova racionalidade de governo característica do Estado moderno ligada ao liberalismo. Uma racionalidade que operava, fortemente, por meio de instituições disciplinares ligadas à ascensão de algumas ciências (da vida, humanas e medicina clínica) e da compreensão da “vida” como um conjunto de fenômenos passíveis de regulação, a exemplo, da natalidade, mortalidade e morbidade que constituíram um dos primeiros alvos deste novo governo. Neste sentido, de acordo com Foucault (2000), o que deveria ser estudado é o modo como os problemas específicos da vida foram colocados no interior de uma racionalidade de governo baseada na regulação das liberdades individuais e no controle dos fenômenos populacionais. Na segunda metade do século XVIII, a biopolítica veio a somar-se às práticas de controle assentadas nas disciplinas aplicadas aos corpos individuais (Foucault, 1971/1999), criando um novo plano de intervenção representado pela categoria população, usando por instrumentos principais, o cálculo, a norma e os dispositivos de segurança. 3 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 Dolores Galindo O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão A norma possibilitou a articulação dos dois eixos de exercício do biopoder – os corpos individuais e a população. Ao ser extensível aos corpos e à população, articula as duas materialidades sobre as quais se assenta o biopoder. A normalização disciplinar, por meio da observação e do exame, fixa comportamentos normais e anormais que conectam as diversas instâncias institucionais sob uma mesma normatividade. No espaço disciplinar, a norma participa da lógica de individuação, permitindo que as diversas instituições se comuniquem entre si. No governo biopolítico, a normatização está intimamente relacionada ao cálculo que situa o indivíduo como expressão de um conjunto mais amplo de fenômenos. O uso do cálculo estatístico permitiu um maior controlo sobre o futuro (Spink, 2001), gerando estratégias de compensação ou de prevenção de danos identificados probabilisticamente. Ao invés de fixar condutas, a biopolítica opera por distribuição de diversas curvas de normalidade em cujo contínuo podem ser alocadas as condutas individuais. Diferentemente das sociedades disciplinares, as sociedades biopolíticas lidam, cotidianamente, com um controle aberto e contínuo. A biopolítica surgiu quando as disciplinas já não eram suficientes para o governo e estas, por sua vez, emergiram para suprir a inoperância dos dispositivos de poder característicos da soberania. As disciplinas centram-se nos corpos, na sua distribuição espacial e na organização do seu em torno, gerando um campo de visibilidade sobre as práticas de cada um, por meio do exame e da vigilância; permitem o governo do detalhe, mas deixam escapar os fenômenos globais. As disciplinas significaram uma extensão do poder aos corpos individuais pela via do adestramento e da vigilância, tendo como instituições emblemáticas, o quartel, o hospital, a escola e a fábrica. No seu início, eram fracionadas e descontínuas, porém, em menos de um século, se generalizaram alcançando todo o corpo social. A biopolítica, por sua vez, foi uma adaptação do poder no sentido de abarcar os processos biológicos da população, mais difícil que a primeira, por haver demandado órgãos complexos de organização e centralização das ações de controlo (Foucault, 1978/2004). As disciplinas atuam sobre o homem-corpo, a biopolítica atua sobre o homemespécie de modo que a primeira tem um efeito individualizante e a segunda, um efeito totalizante. A biopolítica busca garantir a segurança do conjunto por meio de 4 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 mecanismos de regulação, as disciplinas procuram garantir o adestramento individual dos corpos. O exercício do biopoder foi possível porque os processos vitais tornaram-se passíveis de controlo e modificação. Como argumenta Foucault, o desenvolvimento dos conhecimentos a respeito da vida em geral, a melhoria das técnicas agrícolas, as observações e medidas visando a vida e a sobrevivência dos homens contribuiu para esse afrouxamento: um relativo domínio sobre a vida afastava algumas das iminências da morte (Foucault, 1971/1999, p. 134). O controle sobre a vida e sobre os corpos pressupôs sua materialização na forma de dispositivos de inscrição e de artefatos capazes de prolongar a sua ação no tempo e no espaço. As materialidades estabilizam dinâmicas sociais por meio de sua naturalização como partes da vida cotidiana, gerando efeitos de permanência por meio de sua articulação a práticas de significação (Butler, 2002). Distintas dinâmicas de poder se assentam sobre diferentes superfícies de inscrição. Do final do século XVIII ao século XIX, a medicina possibilitou a expansão do biopoder, desenvolvendo instituições assistenciais e medidas de regulação com respeito aos fenômenos urbanos da coletividade, funcionando juntamente com a estatística e as pesquisas sobre o funcionamento do organismo. Permitiu ainda o desenvolvimento de um olhar clínico sobre os corpos que, simultaneamente, valorizava sua individualidade e os articulava às dinâmicas globais concernentes à saúde da população. A medicina exerceu um papel crucial na adoção dos mecanismos necessários ao governo da população nas cidades, permitindo, ao mesmo tempo, a intervenção no plano das famílias e dos fenômenos coletivos. A racionalidade médica passou a ser parte fundamental do exercício do poder sobre a família e sobre a cidade. Muitos dos problemas de gestão foram convertidos em problemas médicos. Não é aleatório que o termo biopolítica tenha sido usado pela primeira vez durante uma conferência que tinha como tema, justamente, a medicina social (Pelbart, 2003). Além disso, a medicina ofereceu bases científicas para o que, doravante, nomeamos como argumento biopolítico, que seja: justificar ações sobre os corpos e sobre a vida pela enunciação das contribuições das mesmas à promoção da saúde da população. Pode-se intervir sobre a vida de uns poucos para garantir a vida de muitos. A categoria “população” sobrepôs-se como uma realidade capaz de legitimar ações sobre 5 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Dolores Galindo os corpos e as vidas individuais. Tornou-se legítimo conduzir experimentações que expunham algumas pessoas a determinados danos em função da promoção da saúde geral da população. A Biossegurança como um dos dispositivos de governo dos excessos No século XIX, a biopolítica passou a incluir, além da norma e do cálculo, um novo elemento – os dispositivos de segurança. Enquanto na soberania, o controle tomava em consideração, sobretudo, o território e nas disciplinas se fixava nos corpos, os mecanismos de segurança tomam como foco a população, estando vinculados a dinâmicas globalizantes. Os dispositivos de segurança da vida são centrífugos, ou seja, atuam inserindo cada indivíduo no conjunto dos fenômenos da população. Tendem a ampliar e integram sem cessar novos elementos, desenvolvendo circuitos de circulação cada vez maiores. Em contrapartida, as disciplinas são centrípetas, operando do geral para o individual. Concentram, centram, circunscrevem espaços no qual o poder atuará. Trabalham, fundamentalmente, sobre os corpos. Assegurar a vida consiste em maximizar os elementos positivos e minimizar os eventos negativos que podem advir de uma série indefinida de elementos móveis e gerados na dinâmica da cidade. Enquanto as disciplinas trabalham sobre os corpos, os dispositivos de segurança trabalham no plano da natureza das coisas e na diversidade dos interesses humanos. Os dispositivos de segurança operam como uma política de movimentos e não apenas como políticas de estabelecimento de limites e de determinações estritas de comportamentos individuais. Trata-se, sobretudo, de assegurar a circulação de pessoas, de mercadorias, do ar, da água e de outras tantas materialidades que possam interferir sobre a preservação da vida (Foucault, 1978/2004). Como emblema dos dispositivos de segurança, Foucault (1978/2004) recupera o exemplo da inoculação e da vacinação contra a varíola. As inoculações, como medida de saúde, visavam controlar fenômenos globais da saúde da população baseados em cálculos de probabilidade acerca da circulação da varíola. O fato de que um indivíduo, uma vez inoculado viesse a desenvolver a varíola, era compensado pelo argumento de 6 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 que isto contribuía para o controle desta patologia no plano populacional: argumento regulador de natureza eminentemente biopolítica. A partir do século XVIII, a varíola foi problematizada do ponto de vista da segurança e não das disciplinas. O problema fundamental não era impor uma disciplina que apelasse à limpeza ou à exclusão de certos tipos de pessoas, mas levantar os dados acerca das pessoas atacadas pela doença e calcular quais os riscos de que ao aplicar práticas de inoculação os indivíduos viessem a morrer ou a contaminar-se mesmo submetidos a tal prática. Segundo Rose (2001), a racionalidade biopolítica, em sua natureza reguladora, só pode ser compreendida no liberalismo visto como princípio e método de racionalização do exercício de governo. A genealogia da biopolítica encontra-se no poder pastoral, introduzido no Ocidente pelo cristianismo: o poder do pastor sobre o rebanho móvel por meio da atenção à totalidade e a cada ovelha em particular (Foucault, 2000). Os mecanismos de segurança visam proteger o interesse coletivo contra os interesses individuais e proteger estes últimos do excesso de determinação dos interesses coletivos. São partícipes de uma biopolítica assentada no liberalismo no qual a liberdade é uma pré-condição para um governo que se dá sem a exclusão da margem de ação individual, sendo, propriamente, um governo do governo que os indivíduos fazem da sua própria liberdade. Nos séculos XX e XXI, dadas as profundas mutações na racionalidade de governo e no modo como a vida é compreendida, emergem diversos termos para dar conta das mutações na biopolítica: cosmopolíticas (Stengers, 1996), tecnobiopolítica (Haraway, 2005), cinepolítica (Bauman, 1999) ou ainda ethopolítica (Rose, 2001). Não entraremos nesse mérito, de modo que continuaremos a utilizar os termos Biopolítica e biopoder, salientando apenas suas transformações e implicações em termos da conformação dos dispositivos de segurança da vida. No liberalismo, os indivíduos são governados pela criação de condições de autodomínio, autocontrole e auto-regulação. Governa-se cada vez mais o governo que os indivíduos fazem de si mesmos. Tal autogoverno se tornou ainda mais presente no liberalismo avançado contemporâneo (Rose, 2001), no qual as garantias de segurança foram incorporadas à linguagem dos direitos, tornando-se reivindicações coletivas (Gordon, 1991). 7 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Dolores Galindo Observe-se que a higiene do século XIX operava em um corpo sólido cujos movimentos podiam ser esquadrinhados e controlados. Com a introdução da genética, as intervenções, além dos corpos sólidos, passaram também a atuar sobre fluxos de informação onde a materialidade biológica é apenas uma das suas formas transitórias. Alterou-se também o papel do Estado que foi minimizado. Progressivamente, as intervenções compulsórias sobre a população perderam a centralidade que possuíam no século XIX, de modo que este foi assumindo a figura de um facilitador de processos individuais de gestão da própria saúde com crescente atuação de instituições privadas responsáveis pela sua manutenção ou compensação em caso de acidentes (Rose 2001). A distinção binária entre o normal e o patológico, central na biopolítica do século XIX e XX, cedeu espaço ao governo dos riscos e à emergência de uma sociedade cada vez mais obcecada pela segurança (Castel, 1987; Beck, 1998; Rose, 2001). O emblema dessa nova biopolítica passou a ser a identificação de riscos, seu cálculo e intervenções tendo em vista preveni-los, administrá-los quando não podem ser totalmente eliminados (Rose, 2001; Spink, 2001). A biopolítica passou a fixar-se sobre materialidades biológicas que são também mercadorias, de modo que se conectou às regulações comerciais da vida como mercadoria, a exemplo das leis de patentes. A própria vida se tornou um capital gerenciável e administrado, tendo destaque a emergência de toda uma indústria dos seguros privados (Spink et Al, 2004). Nesse contexto, proliferaram empresas de seguro capazes de cálculos cada vez mais detalhados sobre as condutas de cada um e dos grupos de risco aos quais pertencem. Tais empresas adaptam-se aos desafios que lhes são impostos redesenhando riscos e limites das coberturas dos seguros comercializados (Spink et Al, 2004). Como reflete Ewald (1991), não há um limite fixo para as coisas que podem tornar-se seguráveis. A princípio, qualquer evento pode ser um risco e pode ser tratado de acordo com os princípios das tecnologias de seguros. A introdução das tecnologias genéticas é um elemento crucial para a compreensão dos desdobramentos da segurança da vida na contemporaneidade, uma vez que deu lugar a um nível de intervenção sem precedentes sobre a vida. Nesse processo, o nível de intervenção passa dos organismos e da população aos processos genéticos em si mesmos, impedindo ou facilitando a emergência de novos corpos ou 8 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 características inerentes à vida (Rose, 2001). Vida eminentemente plástica e modelável. Adentramos na época do design genético (Tavares, 2005). Como aponta Franklin (2000), a biopolítica contemporânea se dá sobre a vida mesma (life itself), de modo que as conseqüências incluem a aniquilação das condições necessárias à manutenção da própria “vida”. Assegurar a vida passou a implicar, portanto, gestão dos artefatos e técnicas capazes de destruir as condições necessárias à existência dos seres vivos. Podemos afirmar, portanto, que a segurança da vida nas sociedades contemporâneas é, fundamentalmente, um governo dos excessos, com destaque para aqueles inerentes à biotecnologia. O excesso de biopoder aparece quando o homem tem, técnica e politicamente, a possibilidade não só de dispor da vida, mas também de fazê-la proliferar, de fabricar o vivo, o monstruoso, e no limite, vírus incontroláveis e universalmente destrutíveis (Foucault, 1971/1999). É no contexto do governo dos excessos que emerge a biossegurança como uma nova tecnologia de segurança da vida que opera pelo estabelecimento de limites ao biopoder. Herança do movimento mais amplo de reflexão sobre os limites da experimentação com seres humanos que teve impulso com a bioética. Porém, deve-se destacar que o movimento biossegurança/biopoder lembra a saga na qual a serpente termina por engolir o próprio rabo, de modo que os dispositivos de segurança (antigos anteparos) são integrados ao aparato administrativo do biopoder (novos mecanismos de controle). É próprio do biopoder garantir a vida. Após a segunda guerra mundial, surgiu a necessidade de estabelecer limites claros para o que deve ser admitido na experimentação com seres humanos (Caponi, 2004). Ganharam vulto as discussões sobre a experimentação com seres humanos submetidos a situações que punham em risco suas vidas, justificadas pelo incremento da saúde e vigor da população. Dentre os documentos de referência produzidos, podemos destacar o Código de Nüremberg (1947), pelo Tribunal de Guerra e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Garrafa e Prado, 2001). A Bioética como espaço de saber autônomo é herdeira do debate sobre ética médica que, nos anos sessenta, passou a ser mobilizado por profissionais não médicos como filósofos, advogados, sociólogos e psicólogos. Ainda nos anos sessenta ficou patente ser necessário estender o debate bioético para além do contexto da conduta do 9 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Dolores Galindo médico durante as situações da clínica. Deste modo, aspectos relativos aos processos da saúde e doença na sociedade entraram em pauta. Nesta fase podemos destacar a publicação da Declaração de Helsinki – 1942; documento da Associação Médica Mundial; a Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos – 1966 (Assembleia Geral das Nações Unidas) (Garrafa e Prado, 2001). A emergência da Biossegurança, por sua vez, está relacionada simultaneamente à segurança dos trabalhadores nos laboratórios e do ambiente em função dos desenvolvimentos da recente empresa biotecnológica. A problematização da vida na perspectiva da biossegurança ganhou visibilidade, quando os riscos biológicos transcenderam os limites da segurança dos trabalhadores dos laboratórios e se converteram em problemas de segurança coletiva. O marco inicial da biossegurança data dos anos setenta e toma como referência os esforços de internacionalização da gestão dos riscos relacionados aos organismos geneticamente modificados, sendo o documento da Conferência de Asilomar, Califórnia, realizada em 1975, um dos textos emblemáticos deste período. No documento, o termo biossegurança substituiu os termos “biorisco” e “segurança biológica”. Quando comparada à bioética, a biossegurança se assenta numa racionalidade eminentemente técnica, que seja, o de controlar possíveis riscos biológicos. A preocupação com a segurança do trabalhador no laboratório data dos anos quarenta, apesar de os registros de infecções laboratoriais terem sido iniciados no século XIX. Em 1941, Meyer e Eddie publicaram um estudo no qual apontavam que a inalação de poeira contendo a bactéria brucella era potencialmente perigosa para os trabalhadores, o que foi constatado por meio de 74 casos de brucelose associados ao laboratório. Em 1949 e em 1951, Sulkin e Pike publicaram dois novos estudos nos quais mostravam a conexão causal entre infecções virais (algumas fatais) e o manuseio de tecidos e animais infectados. Em 1965 e 1967, os autores atualizaram a pesquisa somando novos casos de infecção, ao que se seguiram novos estudos, com destaque para os publicados por Hanson e colaboradores em 1967 e por Skinholj em 1974 (Brasil, 2005). Porém, tais casos não eram considerados ameaças à segurança da população. Ao contrário das ocorrências documentadas de infecções contraídas por funcionários de laboratórios, esses laboratórios que trabalham com agentes infecciosos não representam uma ameaça à sociedade (Brasil, 2005, p. 15). Ou seja, a ameaça punha em perigo a vida dos trabalhadores, havendo uma delimitação entre o interior e o exterior do laboratório. 10 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 Apesar da racionalidade técnica que marca as condições de emergência da Biossegurança, conformaram-se duas grandes matrizes para falar da mesma que, inclusive, em uma delas busca-se escapar ao cunho tecnicista que marca este campo de práticas, sendo elas: • Uma primeira matriz de cunho tecnicista centrada nas características que podem gerar mais segurança no contexto dos laboratórios centrada em aspectos próprios aos dispositivos disciplinares. Aqui, a segurança é definida por meio do cálculo de riscos e tem como objetivo a sua minimização (Brasil, 2005); • Uma segunda matriz de cunho crítico centrada na discussão sobre os limites das biotecnologias, na qual a segurança é discutida de modo ampliado e não deve ser reduzida ao cálculo de riscos (como exemplo desta perspectiva ver Castiel, 2003, 2006). A biossegurança aplicada aos organismos geneticamente modificados permite visualizar a intensificação da problemática da segurança da vida. Também divisa a emergência de uma racionalidade de governo que reza pela implementação de determinadas tecnologias, mesmo quando estão ausentes resultados acercas dos riscos que lhes são associados. Dá-se, portanto, um deslocamento da racionalidade de governo baseada no risco para uma racionalidade de governo baseada na assunção do imponderável. A reivindicação do imponderável no governo da vida é concomitante ao uso do termo risco com conotações distintas do cálculo e controle do futuro. Conforme apontam as pesquisas anteriores (Spink, 2002, Spink e Menegon, 2004) acerca da linguagem dos riscos em diversas áreas de saber, e nos mídia, o termo risco tem sido usado para falar de novas sensibilidades que não coincidem com o cálculo, mas apontam para a imprevisibilidade, imponderabilidade e complexidade. A arte biotecnológica é um dos novos domínios perpassados pela linguagem dos riscos e, por conseguinte, pela ação dos dispositivos de segurança da vida. Porém, os experimentos artísticos, diferentemente dos científicos, não problematizaram a vida a partir da lógica biopolítica de compensação entre riscos e benefícios à população. São experimentos sem verdade, ou seja, que não procuram comprovar ou negar hipóteses, nem chegar a fatos, logo, não se encontram vinculados à racionalidade que orienta e justifica a biossegurança. Observa-se, portanto, um desencontro entre arte e 11 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 Dolores Galindo O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Biossegurança cujas condições de possibilidade não podem se adstritas ao repertório da censura, pois dizem respeito a uma fratura que pode levar a repensar a racionalidade tecnicista dos dispositivos de biossegurança, lançando luz sobre o que poderia vir a ser uma biossegurança que considere, também, a dimensão estética que, por sua vez, desborda a lógica custo-benefício. No item seguinte, acompanhamos um dos incidentes emblemáticos produzidos pela incongruência entre formas de avaliação em Biossegurança e arte biotecnológica. Desencontro entre Arte e Biossegurança: o caso GFP Bunny de Eduardo Kac O caso do trabalho GFP Bunny, de Eduardo Kac, é exemplar da contenda entre um artista e uma instituição de pesquisa (o Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica – INRA - em França), tendo em vista a restrição à saída de animal experimental do contexto do laboratório para uma exposição de arte. A controvérsia deu-se em contraponto ao posicionamento dos diretores de pesquisa da Unidade de Biologia do Desenvolvimento e Biotecnologia, Louis-Marie Houdebine e Patrick Punet, que, alegando motivos de segurança, não permitiram a liberação de uma coelha transgênica tida como parte do trabalho do artista. «(...) Esse trabalho foi proposto como uma nova forma de arte decorrente do uso de engenharia genética na transferência de genes naturais ou sintéticos para um organismo com o objetivo de criar seres vivos únicos. Um trabalho que requer o máximo de cuidado, de consciência do grau de complexidade das questões que ele provoca e, acima de tudo, de compromisso para respeitar, cuidar e amar a vida criada.» (Kac, 2002, s/p). O trabalho seria exposto no festival Avignon Numerique (Avingnon Digital), realizado entre abril de 1999 e novembro de 2000. Entretanto, antes de sua exibição, houve a impossibilidade de utilização da coelha, proibida de sair do laboratório de pesquisa por razões de segurança, impeditivas da circulação dos animais transgênicos no espaço público. Porém os motivos, segundo o artista, não teriam chegado nunca a ser explicitados com clareza. No site da mostra, consta uma nota na qual o impedimento de saída da coelha é apresentado como uma decisão injustificável, uma censura: «Contra nossa vontade, o programa concernente à arte transgênica, que ocorreria entre 19 e 25 de junho, foi modificado. Uma decisão injustificável nos privou da presença da Bunny, o coelho transgênico fluorescente que nos comprometemos em apresentar ao público e ao conjunto de 12 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 interessados na evolução das práticas artísticas atuais. A despeito desta censura, o artista brasileiro Eduardo Kac, autor deste projeto, está entre nós e apresentará a sua proposta no conjunto dos seus trabalhos. Um debate público permitirá abrir uma grande reflexão sobre as transformações do vivo operadas pelas biotecnologias nos domínios artísticos, jurídicos, éticos e econômicos. (...) Eduardo Kac e a equipe da mostra AVIGNON Numérique (http://www.avignonumerique.com/, tradução livre da autora). O recurso à justificativa baseada na biossegurança funciona como uma fronteira biotecnológica (Kac, 2002), delimitando uma zona de materiais inacessíveis ao artista e, ao mesmo tempo, conferindo legitimidade à ação dos cientistas. A gestão em biossegurança é um campo de forças; mapa estratégico por meio do qual podemos visualizar as relações entre especialistas, legitimados e não legitimados, e que tem como efeito, o reforço do valor conferido à segurança na sociedade contemporânea. De acordo com Eduardo Kac (2002), o projeto GFPB Bunny era multifacetado, possuindo nove objetivos: promoção de interação entre profissionais de diferentes campos; integração do trabalho ao cotidiano aberto à interatividade promovendo a comunicação entre humanos e animais transgênicos; promoção de respeito e reconhecimento da vida emocional e cognitiva dos animais transgênicos; contestação do DNA como princípio da vida; extensão dos conceitos de biodiversidade; evolução das práticas artísticas; exame das noções de heterogeneidade, pureza, hibridismo e alteridade e, por fim, a consideração de uma dimensão não semiótica de comunicação entre espécies, por meio do compartilhamento de material genético (Kac, 2002). Deste modo, ainda que a coelha tenha sido mantida nos limites do laboratório, o trabalho prosseguiu, sendo exposto em várias mostras: GFP Bunny – Paris Intervention, 2000; The Alba Flag, 2001; Free Alba!, 2001 – 2002; It's not easy being green!, 2003; Le Lapin Unique, 2003; The Alba Headline Supercollider, 2004; Rabbit Remix, 2004 e Featherless, 2006. Destas exposições, apenas a penúltima foi realizada no Rio de Janeiro, tendo usado, além da galeria Laura Marsiaj de Arte Contemporânea, alguns relógios públicos que passaram a exibir imagens da coelha. O trabalho terminará quando a coelha passar a residir na casa do artista, em Chicago, tornando-se parte da família. Segundo Kac (2002), a arte transgênica não visaria desenvolver objetos genéticos e sim seres sociais genéticos de modo que a criação, a socialização e a integração doméstica estão incluídas no trabalho. Ou seja, não se trata, como em ciência, de desenvolver animais tendo em vista utilizá-los para uma finalidade terapêutica, e sim de 13 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Dolores Galindo integrar estes novos seres ao mundo da vida; desse modo, Alba faria parte da família do artista. Para Kac (2002), no debate público sobre as tecnologias genéticas, a arte transgênica teria como função introduzir a ambigüidade e a sutileza, ao invés da polaridade dos posicionamentos a favor ou contra. Tal proposição já se fazia presente no Manifesto de Arte Transgênica, lançado em 1998 na revista Leonardo. «Não existe arte transgênica sem um forte compromisso e responsabilidade com a nova forma de vida assim criada. Preocupações éticas são primordiais em qualquer trabalho de arte, e elas se tornam mais cruciais do que nunca no contexto da bioarte. Da perspectiva da comunicação interespécies, a arte transgênica clama por uma relação dialógica entre artista, criatura, e aqueles que entram em contato com ela.» (Kac, 1998/2005, p 111). O manifesto de 1998 define o artista como um programador genético que cria formas de vida, e para quem a segurança no trabalho passa pela escolha de procedimentos técnicos de comprovada eficácia no campo científico. Isto faz com que o projeto de criação de um cachorro transgênico (GFP K - 9), constante do seu texto Manifesto pela Arte Transgênica, ainda não tenha sido posto em andamento. O controlo do artista sobre o procedimento de criação da coelha no laboratório foi delegado aos cientistas. De acordo com Wilson (s/d), os problemas vividos por bioartistas, como Eduardo Kac, são reflexos das dificuldades de acesso a materiais e técnicas em função do caráter esotérico da engenharia genética que os levaria a contratar cientistas para fazer um trabalho para o qual não possuem ainda as habilidades necessárias. Seriam arranjos inevitáveis, mas que deveriam vir a ser superados. Porém em entrevista realizada pela autora, em 2006, Eduardo Kac não corrobora o ponto de vista de Wilson, afirmando ver-se a si próprio como um maestro incumbido de reger diversos processos a serem executados pelos profissionais que possuem a competência técnica sobre o tópico em questão, havendo uma divisão clara do trabalho que cabe aos artistas e aos cientistas. O trabalho GFP Bunny integra uma cadeia maior de projetos desenvolvidos pelo artista, que incluem: GFP K-9, 1998 (criação de um cachorro fluorescente e sua incorporação ao universo familiar do artista); GFP Bunny, 2000 (criação de uma coelha fluorescente, promoção de debate público e sua integração no ambiente familiar); Genesis, 1999 (inclui bactérias geneticamente modificadas e exposição on-line do seu 14 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 crescimento); The Eighth Day, 2001 (ecologia de criaturas fluorescentes expostas num bioreator), Move 36 (inclui planta transgênica e ambiente multimídia). No manifesto de 1998, o artista marcava o caráter inevitável da arte transgênica em função do avanço das tecnologias genéticas, que ampliariam o coletivo de seres transgênicos e demandariam sua integração no cotidiano (Kac, 1998/2005). Durante entrevista concedida em dezembro de 1995, no contexto da exposição do trabalho Move 36, em Franca, o artista foi questionado diretamente se, ao adotar a tecnologia genética, não estaria participando do projeto que ele mesmo refuta (Galerie Biche de Bere, Paris, from September 27 to October 30, 2005 http://www.ekac.org/parisart2005.html). Ao que o mesmo contestou que não porque se tratava de uma tecnologia já consolidada no campo científico. O alinhamento entre o trabalho do artista a uma perspectiva evolucionista quanto ao desenvolvimento das tecnologias genéticas faz com que seja pouco controvertido nos Estados Unidos, não apresentando conflitos intensos. Os quesitos de segurança fazem parte do seu cotidiano e são tratados de modo operacional. Por exemplo, para transportar materiais biológicos, solicita uma permissão do United States Department of Agriculture (USDA). A segurança do procedimento não garante o cumprimento de quesitos éticos; biossegurança e bioética não são necessariamente coincidentes ainda que estejam relacionadas. Ao contrário, o uso da linguagem da segurança pode reforçar o obscurecimento de questões éticas aí implicadas. O conflito gerado entre o artista e a direção do laboratório INRA mostrou que algo de novo foi criado e que excedeu o campo científico quando da migração do animal do contexto científico para o artístico, a saber: os limites entre ética e estética. A linguagem da biossegurança foi utilizada para justificar a retenção de Alba no laboratório, mas foram as questões éticas que mobilizaram o debate público. Como conciliar biossegurança e a manipulação artística da vida não apoiada num argumento biopolítico, conforme proposto pela arte biotecnológica? Em entrevista realizada pela autora a Eduardo Kac, em 2006, sintetiza a agudeza do impasse: «Não entendo por que se pergunta qual o benefício que vai ser extraído de uma obra de arte. O artista pode dizer que é um benefício cultural, filosófico, de revelação de potencialidades até então não vislumbradas no campo da cultura etc. (...) Os pesquisadores e os artistas são profissionais de áreas 15 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 O Caso da “Coelha Alba” diante da Biossegurança: O Governo da Vida em Questão Dolores Galindo distintas. Os médicos têm um vocabulário próprio para explicar fenômenos num nível de detalhe que escapa ao leigo. Toda área tem seu vocabulário próprio.» (Kac, 2006, p. 6). Para Didier Ottinger, uma das principais funções de trabalhos como Alba está em funcionar como uma instância crítica à própria ciência. Não será justamente o perigo de um “futuro eugênico” que a coelha de Kac nos revela na forma de um inofensivo roedor? Não será a função primeira do “GFP Bunny” levar à praça pública, convidando à análise crítica (...)?» (Ottinger, 2004). Posteriormente à controvérsia que discutimos não houve exposição pública da Coelha Alba que recebeu um obituário ao modelo daqueles feitos aos entes queridos. Afinal, Alba havia sido criada para viver na família do artista. Seria ela um animal? Sem dúvida se imputamos a ela uma lógica classificatória herdeira das ciências da vida, porém, preferimos pensar que Alba constitui um ser inapropriado, uma figuração que tem na coelha concreta uma das suas dimensões. Alba transita entre o animal de laboratório sujeito aos dispositivos de segurança da vida e o animal de estimação sujeito às afeições e delicadezas do convívio íntimo – estranha criatura característica da tecnociência contemporânea (Haraway, 2004). Inapropriável, Alba tem a sua imagem transformada em arte, perdida de qualquer referente, questiona-se a sua existência concreta. Tendo ou não existido como animal de laboratório, Alba existe como figuração inquietante. Ilegítima, Alba é infiel às suas origens, componente de um trabalho biopolítico (HARAWAY, 2000). Recorrendo a uma expressão, desenvolvida por Virilio, os dispositivos de segurança da vida integram um amplo conjunto de instituições que compõem uma “justiça experimental” distinta da penal e da civil. Se a arte se apoia na defesa da livre expressão, a biossegurança e a bioética apoiam-se na defesa da segurança da vida cuja conceituação, pelo menos até ao momento, exclui justificações estéticas. Alba não é senão uma interpelação estética às biopolíticas. Considerações finais A arte biotecnológica, como analisado no caso vivido por Eduardo Kac, expõe a demanda por uma reflexão que leve em conta a proliferação da circulação dos produtos e técnicas laboratoriais e a sua consequente vulgarização em determinados contextos. Se 16 www.artciencia.com ISSN 1646-3463 artciencia.com Year VII . Number 15 . May 2012 – November 2012 os artistas reivindicam manipular a vida, os amadores também o fazem bem como algumas crianças que já têm acesso a pequenos laboratórios de genética. Flüsser (1979), de modo irônico, alertava antes da explosão da biotecnologia, para o fato de que, iríamos deparar-nos com um futuro no qual o progresso tecnológico não seria o privilégio de alguns especialistas apropriados pelo aparelho administrativo, mas um jogo no qual qualquer um variaria protótipos livremente. De certo, a arte não se enquadra na chamada “massa” descrita pelo autor, mas se encaixa perfeitamente no que denomina como especialistas exteriores ao aparelho administrativo. Assim, torna-se possível propor que a arte biotecnológica assinala o declínio de um modo de justificar a manipulação da vida, indicando a fragilidade dos aparatos de biossegurança baseados, exclusivamente, na defesa da saúde/segurança da população. Ou, pelo menos, indica a necessidade de reformulação dos princípios que orientam as avaliações de biossegurança em tempos nos quais a vida, em sua materialidade biológica, se torna cada vez mais espaço para criações não somente estéticas, mas certamente, diversas das finalidades tecnocientíficas. Refletir sobre as implicações da apropriação de técnicas e materiais biológicos por pessoas que não pertencem ao contexto da ciência e do laboratório, e que se orientam por finalidades estéticas, constitui uma tarefa necessária em tempos nos quais as biotecnologias passam a integrar o universo dos artefatos cotidianos. Desse modo, mais do que pensar sobre os desencontros entre arte e ciência, devemos ultrapassar a falsa dicotomia entre estes dois regimes, perguntando sobre as lógicas subjacentes aos dispositivos de governo da vida, especialmente, a biossegurança. _____________________ REFERENCES / REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. 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