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Simulação de trajetória narrativa entre cidades e outras notas em trânsito

2022, Revista Apotheke

https://doi.org/10.5965/24471267822022231 Simulação de trajetória narrativa entre cidades e outras notas em trânsito Simulation of narrative trajectory between cities and other notes in transit Simulación de trayectoria narrativa entre ciudades y otras notas en tránsito Ariane de Almeida Mendes1 João Vilnei de Oliveira Filho2 1 Mestranda em Artes e graduada em Engenharia de Produção Mecânica (2018), ambos pela Universidade Federal do Ceará. Pesquisa interações entre arte e tecnologia. Gerente de projetos e designer de processos, possui interesse na cidade, na produção sustentável e na inovação colaborativa. Lattes:http://lattes.cnpq.br/9551224541269135. ORCID: https://orcid. org/0000-0002-9869-317X. E-mail: arianealmeidamendes@gmail.com. 2 Doutor em Arte e Design pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (2017), com apoio por financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia FCT / POPH / FSE e mestre em Criação Artística Contemporânea pela Universidade de Aveiro (2010). Professor adjunto do curso de Design Digital (2015) e permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes (2017), ambos da Universidade Federal do Ceará. Lattes: http://lattes.cnpq. br/7212307806105123. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9616-6069. E-mail: joaovilnei@gmail.com. v. 8 | n. 2 | p. 231-247 | agosto 2022 231 RESUMO Para a pesquisa de mestrado no PPGARTES-UFC, utilizei o recorte temporal dos anos 2018 a 2020 para delimitar minha coleção de documentos arquivados a serem revistos e pósproduzidos para a criação artística. Justifico a escolha do recorte e descrevo situações, autoanálises e memórias desse período específico. Utilizando técnicas como a identificação de padrões, a filtragem e o agrupamento para rearranjar dados do meu cotidiano, proponho a persona autoficcional Amari, para a qual, neste texto, apresento a trajetória narrativa: um percurso entre cidades e modais de transporte. Para tratar do encontro e das relações entre elementos (tangíveis e intangíveis), uso a imagem de rede (em diferentes abordagens tecnológicas) e adoto os pensamentos de Ingold (2015) sobre peregrinação e modos de conhecer. Através de cinco relatos de experiências pessoais, simulo cenários de crise, exponho a processualidade e busco comunicar o contexto (a visão) em que surge e se desenvolve esta pesquisa. Por fim, este artigo reflete sobre o nomadismo em territórios, em campos do conhecimento e na interação humana com o digital. PALAVRAS-CHAVE Arquivo Pessoal; Deslocamento; Percurso; Rearranjo; Narrativa ABSTRACT For the master’s research at PPGARTES-UFC, I used the time frame from 2018 to 2020 to delimit my collection of archived documents to be reviewed and post-produced for artistic creation. I justify the choice of clipping and describe situations, self-analysis and memories of that specific period. Using techniques such as pattern identification, filtering and grouping to rearrange data from my daily life, I propose the autofictional persona Amari, for which, in this text, I present the narrative trajectory: a journey between cities and modes of transport. To deal with the encounter and the relationships between elements (tangible and intangible), I use the network image (in different technological approaches) and adopt the thoughts of Ingold (2015) on pilgrimage and ways of knowing. Through five reports of personal experiences, I simulate crisis scenarios, expose the process and seek to communicate the context (the vision) in which this research arises and develops. Finally, this article reflects on nomadism in territories, in fields of knowledge and in human interaction with the digital. KEY-WORDS Displacement; Narrative; Personal Archive; Rearrangement; Route. 232 v. 8 | n. 2 | p. 232-247 | agosto 2022 RESUMEN Para la investigación de maestría en PPGARTES-UFC, utilicé el marco temporal de 2018 a 2020 para delimitar mi colección de documentos archivados para ser revisados y postproducidos para la creación artística. Justifico la elección del recorte y describo situaciones, autoanálisis y recuerdos de ese período específico. Utilizando técnicas como la identificación de patrones, el filtrado y la agrupación para reordenar datos de mi vida cotidiana, propongo el personaje autoficcional Amari, para el cual, en este texto, presento la trayectoria narrativa: un viaje entre ciudades y modos de transporte. Para tratar el encuentro y las relaciones entre elementos (tangibles e intangibles), utilizo la imagen de la red (en diferentes enfoques tecnológicos) y adopto los pensamientos de Ingold (2015) sobre la peregrinación y los modos de conocer. A través de cinco relatos de experiencias personales simulo escenarios de crisis, expongo el proceso y busco comunicar el contexto (la visión) en el que surge y se desarrolla esta investigación. Finalmente, este artículo reflexiona sobre el nomadismo en los territorios, en los campos del saber y en la interacción humana con lo digital. PALABRAS-CLAVE Archivo Personal; Desplazamiento; Narrativo; Ruta; Reordenamiento; Ruta. v. 8 | n. 2 p. 233-247 | agosto 2022 233 Introdução Tendo em mente que “o tempo de trabalho é o grande sintetizador do processo criador” (SALLES, 2006, p.32), minha pesquisa de mestrado parte de um desejo central: poder me demorar. Em meio à sufocante sensação de pressa, urgência e instantaneidade da atualidade, me permito gastar tempo em rascunhos e rabiscos, dentre outros esboços acumulados, interessada em perceber e evidenciar conexões entre assuntos que perpassam meus estudos exploratórios. Delimito como recurso artístico o ato de revisitar arquivos pessoais, sobretudo documentos3 de trabalho, gerados e coletados durante os anos de 2018 a 2020. Além das materialidades (e virtualidades) inerentes às notas, imagens e lembranças retomadas desse período, também encaro como objeto de criação o deslocamento: acompanhar do presente, vinculada ao PPGARTES-UFC, os vestígios deixados pelas ações investigativas e incorporá-los em produções estéticas que remetam à ideia de processo. Observando meus arquivos, tenho mergulhado em memórias, volumes de informações, ferramentas de processamento, novos vocabulários e em um intenso explorar do que faço, como faço e porquê faço. Para apropriação de meus documentos, e consequentemente dos elementos espalhados neles, utilizei métodos similares ao trabalho com banco de dados, tais como o ordenamento, a filtragem e o agrupamento. Foram analisados rastros de informação (objetos, textos, imagens, vídeos, números, desenhos) armazenados em cadernos de anotação, plataformas digitais, máquinas de trabalho e no espaço físico do meu ateliê, buscando por padrões e tendências entre os diferentes conteúdos, desenvolvendo parâmetros de seleção e então relacionando-os em conjuntos temáticos. Interessada em abordar o estudo de dados desapegada das expectativas comerciais e também como estratégia para lidar com a variabilidade do arquivo4 (que é material e virtual, estruturado em tabelas, diagramas, texto, áudio, vídeo, pseudocódigo), me provoco a olhar para o processo enquanto um percurso narrativo, uma vez que, além dos números, “também o processo, que remonta ao verbo latino procedere, em virtude da sua funcionalidade, é extremamente pobre de narratividade” (HAN, 2017, p. 72). Percebo a urgência de agregar funções subjetivas a gráficos, visualizações de dados e demais recursos computacionais, especialmente em tramas de interesse público e socialmente compartilhadas, pois “sem um projeto cultural e mais especificamente estético, as máquinas correm o risco de cair rapidamente no vazio” (MACHADO, 1993, p. 28). Ao retornar para o que decidi armazenar, procuro um espaço para sentir os dados colhidos e dar-lhes uma coreografia, uma cenografia, próprias do discurso narrativo (HAN, 2017). Consciente de que “os dados se originam da exploração de comportamentos, 3 Ainda que não os tenha confeccionado pensando num uso posterior específico, identifiquei que os documentos poderiam ser organizados para compartilhamento de experiência e de informação nos campos de conhecimento que venho me inserindo, tais como a produção, a cidade e a linguagem. 4 “We turn our own lives into an information archive by storing our emails, chats, sms (short message services), digital photos, GPS data, favorite music tracks, favorite television shows, and other “digital traces” of our existence.” (MANOVICH, 2008, p. 2) 234 v. 8 | n. 2 | p. 234-247 | agosto 2022 escolhas e ações pessoais” (VIANNA, 2021, p. 124) e de que “os dados tornamse informações apenas quando são colocados em um contexto interpretativo” (DIAMOND, 2011, p. 58), assumo, como ponto de partida, a informação enquanto “resposta que o homem lança contra a morte” (FLUSSER, 2008, p. 28). De acordo com Wurman (1991), estamos rodeados por informação em diferentes graus de urgência em nossas vidas, desde aquelas essenciais à nossa sobrevivência até àquelas de dimensão sociológica: são informações pessoais (internas, do funcionamento do nosso corpo), conversacionais (adquiridas por trocas informais), de referência (como é o caso da ciência e tecnologia), noticiosas (transmitidas pelas mídias) e culturais (que determinam nossas atitudes e crenças enquanto sociedade). Diante deste contexto, Flusser (2008) aponta que: O “artista” deixa de ser visto enquanto criador e passa a ser visto enquanto jogador que brinca com pedaços disponíveis de informação. Esta é precisamente a definição do termo “diálogo”: troca de pedaços disponíveis de informação. No entanto: o “artista” brinca com o propósito de produzir informação nova. Ele delibera. Ele participa dos diálogos a fim de, deliberadamente, produzir algo imprevisto. (FLUSSER, 2008, p. 122) Dados seguem fluxos, estão em movimento e, assim como a vida, tomam sentido ao longo de seu curso: antes que os conteúdos e as mensagens sejam transmitidos, passam a ser considerados a velocidade, o ritmo, a frequência, os intervalos, a natureza das informações complexas (VENTURELLI, 2019). Dados nem sempre são nítidos e são frequentemente relacionados a abstrações. Apesar disso, podem representar o imaginário do tempo corrente, proporcionando indícios para tornar visíveis situações, cenários e problemas invisibilizados. Tornando-os material criativo, o artista evidencia a onipresença dos dados em nossas vidas; exibe números, estatísticas, coordenadas espaciais, variações de temperatura, de luz, de cor etc. Nesse sentido, ao experimentar data art, me coloco a exibir minha experiência pessoal em meio ao bombardeio de informações, utilizando, como recurso e motivação artísticas, formas visuais orientadas a dados. Mapeando tempos, métodos, movimentos e símbolos que se reproduzem regularmente numa sequência contínua em meu próprio fazer, busco refletir sobre a visualização do processo, a atividade mesma de pesquisar e o cenário presente de explosão informacional. Assim, em [2018-2020] apresento uma visão panorâmica do recorte temporal adotado para extração e seleção dos documentos de processo que compõem o conjunto de dados que venho analisando e usando como material artístico. A coleção reúne arquivos pessoais, retratando minha inserção no mundo do trabalho criativo, mais especificamente na pesquisa profissional. Nessa sessão, aponto escritas, imagens, lugares, movimentos, estudos, ilusões, obsessões, sonhos, medos que rondam o contexto especificado. Já em Percurso, encaro as linhas de pensamento, as rotas de trânsito, o emaranhado da vida. Através da prática de guardar memórias com a reinscrição dos documentos, tenho aproximado meu estudo da noção de criação como rede, em v. 8 | n. 2 p. 235-247 | agosto 2022 235 que Salles (2006) propõe a construção de objetos artísticos como instrumentos de comunicação, nos quais atuam as interações, as relações e suas dinâmicas entre si. Uso e abuso das aplicações de rede, pondo em contato seus usos nos transportes, na computação, nas telecomunicações, nos desenhos das cidades, na linguagem operacional, porém intencionando alcançar o que Ingold (2015) trata como malha. Com os cinco relatos da trajetória simulada, destaco o contraste entre grandes centros urbanos e pequenas comunidades locais, tensiono a solidão e a falta de conexão contemporânea, insinuo a onipresença da informação e a inquietação com o futuro. [2018-2020] Retomo os anos de 2018, 2019 e 2020 por ter sido o período no qual me percebi fazendo pesquisa, ou pelo menos tentando. Relembrar esse intervalo de tempo, então, me serviu como argumento para ingressar na investigação em artes e (quase secretamente) como auto-permissão para gastar tempo nas imagens, anotações e rastros acumulados em minhas idas e vindas por estudos exploratórios. Me inseri em metodologias e fui desenvolvendo jeitos de lidar com as incertezas da pesquisa, com as reuniões desmarcadas em cima da hora e com a incompreensão dos outros (que de repente se tornava minha) diante daquilo que vinha fazendo. Circulei entre eventos e conheci pessoas, modos de conduzir mesas de debate, palestras, seminários, conferências, simpósios. Quando vivi a angústia de produzir e morar no mesmo espaço, não esperava que uma pandemia surgisse deixando muitos outros no mesmo status remoto, ausente de limites entre o que é trabalho e o que é descanso. Preguei a cultura do encontro, levantei a voz para defender e reivindicar um senso de comunidade, quando finalmente me toquei que somos interdependentes. Teve quem me conhecesse numa dessas gritarias involuntárias; nem queria me expor, mas lá estava eu vomitando sentenças desesperadas prestes a me engasgar. Foi tempo inquieto, confuso, à flor da pele. Nesse meio tempo: concluí a graduação em engenharia, vi nascer meus sobrinhos, inventei projetos, embarquei em pelo menos 20 aviões, fiz 3 mudanças de casa e 4 de óculos de grau. Morei perto do mar e de outros familiares, colada a pessoas em situação de rua, no apartamento de amigos e às vezes de estranhos, sozinha também e depois acompanhada. Vendi o carro, subi em ônibus sem ter cartão automático, fui de metrô sempre que pude, busquei por rostos repetidos a todo trem tomado no horário marcado, andei para diferentes lugares e serviços contanto que estivessem no raio de 4km. Descobri que sou millennial e que é muito millennial achar que pode mudar o mundo, buscar saídas e propósitos de impacto positivo, quando na verdade isso só quer dizer que cresci com o avanço dos computadores e que sou mais uma personagem da insegurança profissional. Faço aniversário sincronizada com o calendário ocidental e confesso ter enfrentado 2019 inteirinho pensando que iria morrer; na minha cabeça 236 v. 8 | n. 2 | p. 236-247 | agosto 2022 fantasiosa-paranóica, cabia à mim sofrer qualquer tipo de acometimento que encerraria minha vida aos 27 anos tal qual Janis Joplin, Amy Winehouse e Jim Morisson. Queria ser rockstar. Saí da universidade, comemorei como quem supera uma guerra, cuidei dos ferimentos na medida que os fui notando doer e de novo investi tempo+dinheiro+cognição no ensino continuado. Tive aula em prédio chique, em museu, no conhecido departamento de arquitetura e urbanismo, em ambientes virtuais. Aprendi a ser menos besta quando estive na posição de professora, em sala simples, e me deparei com os efeitos das lacunas socioeconômicas na aprendizagem. Caí na real do quanto discursos empreendedores podem ser violentos. Virei pessoa jurídica, apesar dos pesares, prometendo não ser comigo mesma a patroa mais carrasca que já tive na vida. Errei muito testando. Ouvi sei lá quantos nãos e talvez esses tenham sido meus maiores mentores, já que estava com as mãos na tão almejada au-to-no-mia. Senti falta de gente e fui procurar por grupos diversos: para estudar, entender, planejar, militar, estar, curtir, produzir juntas. Procurei por significados contidos em universos conceituais gigantescos, do tipo: O que é a cidade? O que é inteligência? O que é o comum? O que é ser sustentável? O que é ter vida? Até hoje não consigo responder a essas questões sem destravar crises existenciais, mas naquela época eu mal sabia do tanto que eu não sabia. Tinha em mim a prepotência de tentar, ainda que por força selvagem, de me atirar. Vesti perucas coloridas dentro e fora do carnaval, troquei metade do meu volume de roupas e garimpei peças em brechós. Atualizei documentos e, para o novo passaporte, certifiquei que no papel impresso pelo sistema de tráfego internacional não havia cadastro de endereço, data de nascimento, ponto de migração, país, nada disso em meu nome, e por outro lado diz lá que, em 13/04/2018 às 14:34:03, o meu sexo: masculino. Um erro, claramente, embora em certas posições e disputas de poder, ser mulher pareceu precisar se comportar como homem para ser considerada pensante ou para simplesmente estar ali. Foi também nessa temporada que apareci com os cabelos mais curtos, roupas mais largas e mesmo assim com falas interrompidas. Em campo, para descontrair, pintava os olhos como mensagem secreta da alegria entre armaduras e blazers. “Futilidade!” ouvi das críticas, “Linda!” ouvi dos cargos superiores. Fui captada por uma propaganda nas redes sociais e me achei smart. Estive em São Paulo repetidas vezes; na 1ª, tomei animada a ideia de metrópole (metrópole não, MEGALÓPOLE!), brinquei de morar ali por perto; cansei logo na 3ª estadia, de cara arrastada na ilusão moderna. Jurei não voltar tão cedo e quem é que sabe da vida? Me perguntei quando tentava dormir no balanço do ônibus chegando à grande selva de pedra, algum tempo depois. Não imaginei que retornaria a Portugal, nem mesmo que chegaria a conhecer, e lá não estava eu de novo? Me apeguei a histórias ambientadas ou vividas por outras culturas; era cinema russo, fotografia afegã, poesia judaica, normas japonesas, massagem indiana, comida mexicana, novela coreana, dança latina, pedaço de território africano distante a duas poltronas na janela. Tomei v. 8 | n. 2 p. 237-247 | agosto 2022 237 gosto por pequenas coincidências que faziam por um instante tudo isso parecer um único todo. Mudei 13 vezes meu username no Instagram, 10 vezes meu próprio nome, 35 vezes minha própria imagem e fiquei de lenga-lenga alternando meu perfil 8 vezes entre público e privado. Me vi sensível, impermanente, intermediária, infiltrada. Fiz a doida e me meti a procurar (jogar no buscador) as palavras tecnologia e sociedade, tecnologia e política, tecnologia e arte, tecnologia sociedade política arte Google pesquisar, cliquei. Perdi noites de sono tentando encaixar minhas atividades em disciplinas e, das categorias nas quais me colocaram, me perguntei onde queria permanecer. Fui puxando fios temáticos sem imaginar a finalidade concreta, provei conscientemente o doce amargo do processo, desconfiei dos caminhos. Comecei a mexer em softwares, percebi que existem milhares de opções deles (e cada vez mais recente, um novo lançamento), me envolvi com o ritmo acelerado, quis navegar na rede, surfar na internet, coisa básica do computador sinto que aprendi nesses últimos tempos. Criei métodos para pôr em caracteres organizados a bagunça da cabeça. Quis fazer parte do mundo virtual enquanto me desconectava do meu corpo físico. Tive duas arboviroses, uma delas talvez tenha sido uma variante outra que saiu da Amazônia por conta das mudanças climáticas, de acordo com o que li numa matéria de jornal. Caí 3 vezes sem forças no chão e ainda assim insisti em me cuidar sozinha; pensava que ser forte era não precisar de ajuda. Aguardei a pandemia chegar ao Brasil e assustei outros passageiros quando vesti uma máscara no rosto em voo anterior ao primeiro caso nacional confirmado. Encarei a fragilidade da matéria, a superficialidade do material. Entendi na pele o que chamam rede de apoio, me despedi do que foi, tomei banho de chuva e aproveitei o contato com a água para chorar. Parei antes de quase todos serem obrigados a parar. Voltei a dormir, a ser casa, a ler códigos, a manter diários, a brincar com o tempo. Depois voltei a não dormir, a sentir falta da rua, a programar rotinas, a esquecer rituais de cura, a me preocupar com o futuro. Escrevi cartas, e-mails, pautas de reuniões, relatórios, editais, artigos acadêmicos, mensagens instantâneas, legendas, textão, preces e, quando sobraram palavras, rabisquei sonhos. Tirei foto de mar, sol, areia, alimento, padrões naturais e outras vezes artificiais, canteiros de obras, máquinas em serviço, detalhes interiores de prédios e ruas. Capturei imagens de imagens: autorretrato em espelhos, televisão, computador, celular, outdoor, quadro em exposição, muro pintado; printscreens de ilustrações, notícias, rotas, informações para lembrar depois e depois esquecer. Desenhei com formas geométricas, linhas e pontos, vez ou outra com cores; notei que posso usar diagramas para melhor pensar. Fui a shows e ouvi muita música, como sempre; o som foi desde cedo meu contato maior com a arte e dele faço uso religioso. Teve até a noite em que fui ver o Roger Waters no Maracanã, era dia de chuva e congestionamento no Rio, e o taxista por acaso era também um major (quase aposentado) da polícia que conversou durante todo o itinerário passando por assuntos desde “subir a favela de helicóptero e atirar primeiro em mulheres” a “repararam que não consigo olhar nos olhos?”. Descobri nesse dia que são necessários no mínimo seis meses para retornar à sociedade após anos em guerrilha. Enfim… 238 v. 8 | n. 2 | p. 238-247 | agosto 2022 Quero com tanta lista, inclusive, citar que trabalhei com informação: processando, gerando ou distribuindo. Nesse recorte temporal fui coletando pequenos indícios de pesquisa que agora me coloco a pós-produzir. Pouco pude, nos anos citados, ter um vislumbre daquilo para o qual voltava meu olhar. Todas as coisas que construí, projetei, articulei foram se desdobrando como dava, não lembro de ter espaço para contemplar as impressões. A partir de visões germinadas em [2018-2020], proponho agora criações imagéticas, sobrepondo camadas de informação, a fim de ligar pontos soltos e então tecer uma malha de outros sentidos para a manipulação de dados. Percurso5 Atualmente ouvimos dizer constantemente da globalização, da uniformização, da dependência entre os comércios, da rapidez dos meios de transporte e de veiculação das informações, do correio eletrônico, dos ataques terroristas espetaculares, registrados pelas imagens onipresentes na ecologia de nossas cidades. Todos esses fatos políticos, éticos, que ocorrem no mundo atual têm influenciado na arte. (VENTURELLI, 2011, p. 160) Por ter crescido fazendo deslocamentos pendulares, posso dizer que me acostumei com isso de ir e vir. Desde muito nova dentro de ônibus (e, à medida que me tornava mais adulta, em outros modais de transporte), estar ao longo de caminhos influenciou o modo como vivo e, consequentemente, a forma como pesquiso. No meu primeiro trabalho em P&D (pesquisa e desenvolvimento) fora dos braços da universidade, descrevi a observação de longe e de perto enquanto método: me referia às viagens frequentes, mas também à comparação aproximativa e divergente sem necessariamente sair do ponto de apoio geográfico. Sou suspeita para opinar, mas vejo muita poesia nisso. A depender do lugar que ocupo, contar minha trajetória acadêmica causa um certo estranhamento em quem me ouve. Da forma como funcionam hoje as escolas, somos condicionados a separar o conhecimento em disciplinas e a enxergar a tecnologia distante da arte; para alguns, universos diametralmente opostos. Existem outras metodologias de ensino e de fazer, certamente, mas falo aqui de um senso comum. Também aprendi a colocar conteúdos em caixas específicas e só depois de muito tempo dentro de salas de aula que fui começar a entender do que se trata o construtivismo. À medida que avanço nas leituras, nas práticas e nas experiências envolvendo a arte, a segregação entre tecnologia, inovação e humanidades vai ficando mais insustentável. Passo a ver, cada vez mais, as coisas interligadas, temáticas conectadas; vínculos, conexões, laços que vão se modificando e se adaptando de acordo com o 5 “Com o termo ‘percurso’ indicam-se, ao mesmo tempo, o ato da travessia (o percurso como ação do caminhar), a linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura narrativa)” (CARERI, 2013, p. 31). v. 8 | n. 2 p. 239-247 | agosto 2022 239 olhar, o cenário, as condições externas e o funcionamento próprio de cada arranjo. Retorno ao que Da Vinci dizia sobre estudar a ciência da arte e a arte da ciência e dou passos rumo à complexidade. Desconfio que seja um caminho sem volta. Gosto de como Bensusan (2019) inicia sua carta para Krenak dizendo: “Ailton, é de onde você veio até onde eu vim e de onde eu vim até onde você veio que acontece o encontro” (p. 134). Desenho mentalmente: um ponto A (de onde saí), um ponto B (de onde você saiu) e um ponto X (aqui e agora); depois duas linhas, ligando AX e BX; então temos o encontro. O diagrama que imaginei tem influência estética na teoria dos conjuntos, nas matrizes origem-destino dos transportes, nas cidades modernas, nos sistemas de informação. Cada unidade (que pode ser coletiva) é um nó; entre nós, conexões que estabelecem relações. Desse modo, nós viramos duplas, trios, grupos, subgrupos, coleções de elos, e o desenho se aproxima do que comumente entendemos como rede (WASSERMAN & FAUST, 2004). Ingold (2015) descreve a existência humana na terra como peregrinação que se desdobra ao longo de caminhos, em que cada um de nós deixa uma trilha que se cruza com outras trilhas a partir do vínculo de uma vida com a de outro, criando nós entrelaçados. Ao exemplificar seu argumento com desenhos, Ingold defende a formação de “uma malha emaranhada de fios entrelaçados e completamente atados” (p. 224) que diverge da ideia moderna de rede, amplamente empregada no universo dos transportes, das comunicações e da tecnologia da informação. Proponho essa abstração para refletir, dessa vez, ao invés das centralidades, os espaços entre pontos: os caminhos e percursos de um lugar a outro. Ainda que use (e abuse) do imaginário de rede que está profundamente embebido de conceitos do universo tecno-industrial, numérico e programável, ao direcionar meu olhar para as relações6 e contextos, percebo a necessidade de considerar os vínculos numa perspectiva poética e estética. Ao explorar o processo criativo, intenciono formar percursos relacionais, contar histórias ao longo. Abordo a ciência da informação como referência para a criação artística, porém decido abrir mão de modelos ultracomputadorizados e adotar a narrativa7 para lidar com conjuntos de dados (minha intenção, no desenvolvimento da pesquisa, é apoiar que a data art é relacional8). Na busca por visualizações artísticas de dados, manipulando-os além dos valores quantitativos, construo a persona autoficcional chamada Amari. Quando pensava no desenvolvimento de alguma ferramenta automatizada para aprimorar meu trabalho, imaginava um algoritmo que facilitasse a gestão dos meus arquivos digitais, que me auxiliasse na organização de documentos, capaz de identificar na memória digital o que era importante e aquilo que poderia ser jogado 6 “O significado da ‘relação’ tem que ser entendido literalmente, não como uma conexão entre entidades predeterminadas, mas como o retraçar de um caminho através do terreno da experiência vivida.” (INGOLD, 2015, p. 237) 7 Ainda que Manovich (1998) coloque em oposição o formato de banco de dados e o formato narrativo, insisto em contar histórias por serem elas capazes de reunir o que as classificações separam, de constituir relação por meio da atividade em curso (INGOLD, 2015). 8 Sobre isso, ver Venturelli, S., & Melo, M. A. de. (2019). O visível do invisível: data art e visualização de dados. ARS (São Paulo), 17(35), 203 - 214. https://doi.org/10.11606/issn.2178-0447.ars.2019.152451. 240 v. 8 | n. 2 | p. 240-247 | agosto 2022 no lixo. Mesmo que o projeto de um bot não necessariamente esteja vinculado a um gênero específico, “escolho” por fazê-lo mimetizando uma mulher: seria minha nova assistente virtual. Não é esta uma criação surpreendente, disruptiva, nunca antes vista, coisa só realizável em produções sci-fi; hoje em dia já não nos assustamos com a presença de Alexas, Siris ou Samanthas9. Crio a persona a fim de envolver cenários de interesse e inquietação pessoais-coletivos, como a indústria, a ciência, os computadores, as imagens técnicas, a escrita de si, as variações espaço-tempo, a vida e a morte. Amari surgiu da contração do meu nome em bilhetes de viagem, reforçando o sentido de percurso, trajetória, caminhada e movimento que proponho em minha pesquisa artística. Seria como uma nômade digital, função frequentemente romantizada entre profissionais da tecnologia e que é somente possível por conta dos ambientes virtuais, da digitalização dos ativos, do trabalho remoto e da desterritorialização. Já que “a era digital é marcada pelo disembodiment não apenas do corpo, mas também das noções de objeto e materialidade em geral” (VENTURELLI, 2019, p. 205), apresento a persona nômade como virtualização do arranjo narrativo que dei aos meus dados. Figura 1: Simulação da trajetória entre cidades via Google Earth e desenho sugestivo do fluxo narrativo. Fonte: Elaboração da autora (2022). 9 Refiro-me às assistentes virtuais da Amazon, Apple e à inteligência artificial no filme Her (2013). Trago esse assunto como “escolha” já que a voz sintética feminina é frequentemente utilizada nesses dispositivos como estratégia para uma abordagem mais acolhedora da interface, ou melhor, como reforço ao papel de servidão e subserviência historicamente direcionado à figura da mulher (CONSIGLIO, 2021). v. 8 | n. 2 p. 241-247 | agosto 2022 241 Neste artigo foco em cinco relatos que simulam, para Amari, uma trajetória (Figura 1) entre as cidades de Lisboa, Rio de Janeiro, Fortaleza, São Paulo e Paracuru, respectivamente. Misturando provocações em torno dos rastreamentos e vigilâncias digitais, da busca por autonomia e protagonismo, das operações de observação e monitoramento, conto experiências para articular discussões privadas-públicas sobre o mundo povoado por dados. Com os relatos a seguir, pretendo dar o tom, o clima, a atmosfera que rodeia a produção desta pesquisa: a crise10, a hibridização e desmaterialização no contemporâneo. Lost is Found Eis o plano inicial: andar cerca de sete minutos até o ponto onde espero para subir no ônibus que, por sua vez, demora um quarto de hora para chegar ao terminal fluvial; dali tomo a balsa, cruzo o Tejo, desembarco no Cais do Sodré e lá também embarco no comboio rumo a Cascais. O ideal seria chegar antes das 9:20 na paragem Cascavelos para, de lá, pegar carona até a Biblioteca Municipal. Resumindo: pés e pernas, ônibus, balsa, comboio e outro ônibus para começar o dia. O comboio das 8:40 era o último que poderia pegar a tempo de conseguir a carona. Dos dez dias que repeti esse percurso, em uns três perdi a hora ou a cabeça: atrasei no sono ou no passo e, como consequência, tive de incluir mais um tanto de caminhada e outros ônibus para finalmente chegar ao ponto final. Teve até um dia que passei da paragem, de tão longe que estava minha mente. Das vezes que atrasei, não lamentei exatamente as orientações incompletas para as atividades do dia, nem mesmo me culpei pela vergonha que sentiria ao abrir a porta após todos estarem a postos. Segui meu caminho, por mais demorado que fosse, às vezes perguntando direções a pessoas na rua, outras confiando nos aplicativos de transporte para me sinalizar a melhor rota. Foi assim que abriguei-me da chuva em uma igrejinha charmosa, que passei a reconhecer as rotatórias do bairro, que ouvi a rádio local que tocava no interior do ônibus e que, mesmo sem costume, aceitei beber um café na lanchonete que antecede a ladeira íngreme que deveria subir para quase chegar ao meu destino. A verdade é que, mesmo atrasada, poderia recuperar as diretrizes e os objetivos da pesquisa em que estava envolvida, as propostas do grupo, os slides das masterclasses. O meu lamento em perder o comboio na-hora-marcada era não encontrar o casal de idosos que sentavam lado a lado de mãos dadas, a mulher cheia de bolsas aparentemente indo ao trabalho, o semi-conhecido brasileiro que há 10 Sobre isso, Beiguelman (2021) entende a retomada do imaginário da ruína como desdobramento estético de um mundo cada vez mais assombrado pela iminência da catástrofe. “Pixalizadas, corrompidas, fragmentadas, as imagens trazem todas as marcas das interrupções contemporâneas: exílio, nomadismo, deslocamento e falhas de conexão (sociais e afetivas, sobretudo)” (BEIGUELMAN, p. 161, 2021). 242 v. 8 | n. 2 | p. 242-247 | agosto 2022 pouco vivia por ali e os adolescentes fardados sorrindo enquanto mostravam uns aos outros qualquer coisa no celular. Acompanhava-os de longe, imaginando suas rotinas, levantando da poltrona para procurá-los caso, ao invés de mim, fossem eles que não tivessem chegado a tempo. Já em movimento, tento disfarçar a observação daquelas vidas desviando o olhar para as janelas, que também mostram cenários novos e que me causam curiosidade. Carregava sempre comigo o livro que me foi presenteado, por um bello italiano que morava numa das casas que pude chamar de minha nesse período. Entretida com a paisagem, pouco avançava na leitura. Numa dessas folheadas de páginas, vejo o autor declarar seu amor por pessoas e cidades que, tendo aprendido ou não alguma coisa ao passar pelas queimaduras da experiência, mostram suas marcas e cicatrizes. “Elas estão lá, de pé novamente, para nos ensinar algo. O quê? Que é possível perder, até tudo, e continuar” (ROMAGNOLI, 2015, p. 42). Penso que preciso de mais tempo para este livro, o guardo na mochila e dou atenção ao percurso. Despressurização Aterrizei no Galeão, como de costume. O trajeto até o hotel pareceu mais distante que a previsão no celular do motorista. Repassei mentalmente: faria o checkin, deixaria as malas, tomaria um banho e sairia para o hospital. Era a primeira vez, em um bom tempo de trabalho, que minha pesquisa passava numa seleção importante, de relevância nacional, e eu mal conseguia lembrar de sorrir. Subo ao décimo terceiro andar, peço um sanduíche pelo ramal do restaurante e entro no chuveiro quente. Roupão confortável, roupas de cama macias, janelão de vidro com vista para o Porto Maravilha, serviço de quarto, deseja mais alguma coisa, Senhorita? Recebo mensagens me parabenizando pela viagem, pela conquista, pelo reconhecimento. Olho para o céu que denuncia a tempestade por vir e deságuo em sincronia. Visão turva, confusão mental, dificuldade de respirar, as mãos não respondem ao comando de parar de tremer, dor no peito. O quarto standard só aumenta a sensação de vazio: o edredom fofinho não impede meu desespero, o som da TV não distrai meus pensamentos trágicos. Nada nessa suíte me remete ao sucesso. Tudo em volta é reflexo da falta humana. Às vezes a vida nos leva exatamente para onde devemos estar e chegando lá, ela mostra com clareza que dela não temos controle algum. Zero FORTALEZA, plataforma 29 (16:56 interrompo o texto para subir no ônibus das 17h) v. 8 | n. 2 p. 243-247 | agosto 2022 243 Na primeira poltrona uma prima distante. Lá de onde venho todo mundo é parente, até os desconhecidos; e foi assim que eu cresci, achando que família era partir do mesmo ventre. Na verdade, a gente cresce e parece perceber que existem outras leis de origem. Me esquivei e passei mais rápido do que o gentilmente esperado pelos dois corpos que atrapalhavam o meu caminho para longe do semblante familiarausente da minha prima. Não queria mais uma vez responder que “claro, está tudo bem sim”, ainda que me latejem todos os ossos do corpo. Não que eu tenha tentado enganar alguém, mas de repente é menos ruim que contar a verdade e imediatamente entender que nem todo mundo está preparado para ouví-la, piorou encará-la. Antes de ontem respondi “um grande amor morreu dias atrás” e enquanto me abraçavam e me mandavam ficar bem, eu procurava recalcular quantas noites faziam desde aquela em que o sono não veio alertando silenciosamente que algo aconteceu, em algum lugar algo aconteceu. Desse lado do planeta não se prepara para a morte de tanto que tentam preparar para a vida. Desconfio dessa pedagogia. Um fenômeno de tamanha dimensão desequilibra mundos ou finalmente os harmoniza. Tempo Contado Olho o relógio, 13:30, traço a rota no Moovit: 20 minutos contando com a caminhada até a estação de metrô. Me resta uma pequena brecha. Bolsa, celular, cartão, ticket, desenho azul o delineado nos olhos, dou dois tragos no cigarro, desligo a tv, ponho os fones de ouvido, “saindo de casa” envio, procuro as chaves e vou. Desço na rua movimentada que ainda ontem observava pela janela e sigo rumo à linha amarela Paulista que fica na Rua da Consolação para daí baldear debaixo da terra para a linha verde Consolação que fica na Avenida Paulista. Tudo confuso, eu fora do eixo, pela multidão sendo levada, alguns esbarrões, encaradas com as quais sinceramente não consigo me importar, pé direito respira pé esquerdo expira pé direito inspira pé esquerdo expira, insisto em resistir ao ritmo frenético, deixo a esquerda livre e em passos sem pressa busco a plataforma de embarque. O destino final é a Vila Mariana, isto é: da linha amarela à verde e da verde à azul. Decido trocar de metrô na Paraíso, espero as portas abrirem, sinto a multidão expandindo no espaço, escadas, pessoas se encontrando vindas de outras direções, paro e observo as placas de orientação, ninguém me vê, sons de movimento da máquina e da gente em seus trajetos, ignoro os ponteiros do relógio e fico por mais alguns instantes. Me guiaram pela saída lateral e não encontrei o que procuro. Quantos acessos possui essa estação? Ultrapassei o horário combinado, mas não cabe em mim qualquer outro lamento se não este em que vivo a partida. Torço que tenham me esperado. Acho graça do algoritmo que calculou minha rota e não contou com minha latente suscetibilidade pelo caminho desviado. Na verdade, não me sinto totalmente perdida, estou cercada por avenidas, localizo o cruzamento, abraço o poste e danço 244 v. 8 | n. 2 | p. 244-247 | agosto 2022 a música particular em meus ouvidos. Me avistaram de longe. Ainda há tempo. Aprendendo Impermanência 11 O ritmo é outro longe do urbano. Quando fico muito tempo em frente ao computador, como agora, tentando pôr em palavras ou em códigos qualquer lógica que ajude a mim ou ao mundo ou a uma demanda mercadológica, enfim, quando fico exausta de tentar acompanhar o que chamam “futuro”, costumo caminhar até as dunas móveis que um dia cobriram a vila Parazinho, a origem da minha cidade natal. Debaixo da areia, o início de tudo. Debaixo da pista, areia. Gosto de observar pescadores voltando do mar e pensar no tanto que eles não pensam em abstrações (tipo blockchain) que custo a entender. Faço isso como um retorno àquilo que realmente interessa. Não importa o quanto você (que não é exatamente Você) defenda seus cargos, títulos e outras medalhas de honra: só sabemos que morreremos. É o que nos separa dos outros seres, dizem. Temos consciência da nossa efemeridade, ainda que façamos de tudo para esquecer. Considerações finais Este artigo é composto de diferentes momentos da pesquisa e todos eles tratam de certo deslocamento, do trânsito entre eu e o Outro, entre nós e o espaço-tempo que compartilhamos. Sem conseguir encaixar minha coleção de documentos em modelos a serem lidos com eficiência por computadores, fui ao longo do processo de análise criando tabelas disfuncionais: planilhas cheias de vazios, colunas que se sobrepunham, linhas que faziam conexões e cruzamentos não exatamente por fórmulas matemáticas. A união desses relatos não é de forma alguma ilógica: no que venho criando artisticamente (independente da linguagem expressiva), a técnica da montagem faz sua presença. São camadas de informação que sobreponho de propósito para que algo a mais se desprenda das coisas aparentemente cotidianas ou personalizadas demais. Consciente do caráter conectivo da rede, Ingold (2015) sugere, com a ideia de malha, que “cada fio é um modo de vida, e cada nó um lugar” (p. 224). Matematicamente, a linha reta é a menor distância entre dois pontos, porém a visualização desta regra ultimamente me remete à fios tensionados, pouco flexíveis, 11 “Aprendendo impermanência” é o título de um dos capítulos do livro Aqui Estou de Jonathan Froen (2016). Comecei a nomear assim os vídeos que gravava do efeito dos ventos nos mares de areia e água em Paracuru, cidade onde nasci e hoje escrevo. Com o distanciamento social provocado pela crise sanitária da Covid-19, capturei outras imagens da ventania durante caminhadas solitárias na praia. Reuni alguns desses vídeos em: vimeo.com/568210697. v. 8 | n. 2 p. 245-247 | agosto 2022 245 um amarrado otimizado12, embora profundamente frágil de se arranjar unidades vivas e dinâmicas. Para tratar do conhecimento, Ingold (2015) cita o caso de cientistas em um trabalho de campo, que mapeiam pontos de coleta de amostras e vão até os locais de helicóptero. Diferentemente do piloto que encontra o melhor caminho para a rota, “no que concerne aos cientistas, seu transporte de helicóptero é totalmente acessório da principal tarefa de coleta de dados” (Ingold, 2015, p. 226). A partir desse exemplo, o autor distingue o conhecimento produzido (verticalmente) na construção da base de dados, por classificação e tabulação, do conhecimento integrado “longitudinalmente”, ou seja, ao longo das práticas, no movimento de lugar a lugar. Com os cinco relatos busco trazer aquilo que não estava explícito nos dados coletados e no corpo dos estudos que desenvolvi durante os anos citados: através das experiências em trânsito, fazendo uso dos deslocamentos para além do mero transporte, procuro refletir também sobre o conhecer a partir das interações e conectividades entre pessoas, equipamentos, observações, mensurações e resultados obtidos. Por fim, esta é a exibição de ações invisíveis de estar em criação: os caminhos que dão em outros caminhos e os aprendizados que, embora não estivessem previstos ou mapeados, puderam ser escritos, dizíveis, representáveis. Com minha pesquisa de mestrado, me comprometo em viver o processo de criação e em contá-lo ao longo de seu próprio desenvolvimento: a persona autoficcional, as narrativas e as montagens imagéticas são algumas das estratégias para torná-lo acessível ao raciocínio lógico e também ao olhar, ao toque e aos ruídos sensíveis que dele se espalham. REFERÊNCIAS BEIGUELMAN, Giselle. Políticas da imagem: vigilância e resistências na dadosfera. - São Paulo: Ubu Editora, 2021. BENSUSAN, Nurit. Do que é feito o encontro. Ilustrações de Ana Cartaxo. — Brasília, DF : IEB Mil Folhas, 2019. CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética; prefácio de Paola Berenstein Jacques; tradução Frederico Bonaldo. — I. ed. — São Paulo : Editora G. Gili, 2013. CONSIGLIO, Sonia. 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