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Ficha Técnica Editor: Universidade do Porto. Faculdade de Letras Título: Olhares sociológicos sobre a pandemia Autores: Ana Catarina Correia, Rute Lemos, Bruno Rodrigues Alves, Pedro Menezes, Susana Januário, Maria Manuela Restivo, Inês Maia Coordenação: Inês Maia Edição: Instituto de Sociologia da Universidade do Porto ISBN: 978-989-8969-54-5 Design Capa: Jorge Almeida Paginação: José Teixeira Data: junho de 2020 Local de edição: Porto Suporte: Eletrónico Formato: PDF / PDF/A Trabalho financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito da Unidade UIDB/00727/2020 CADERNOS DA PANDEMIA Esta publicação responde à exigência da relevância do conhecimento sociológico neste contexto de pandemia. É urgente analisar e debater a urgência, respeitando as formas, linguagens, métodos e protocolos do campo científico. De repente, algo que os/as sociólogos/as há muito escreveram sobre as dimensões do risco e da incerteza à escala global, toma conta das nossas vidas sob a forma de uma pandemia. Contudo, este fenómeno pouco tem de catástrofe «natural». Na verdade, na multiplicidade de causas que a potenciam e na plêiade de consequências que se experimentam, sobressaem ativamente processos sociais. A relação predadora homem/ Natureza; a fragilidade de serviços públicos, nomeadamente de saúde, ameaçados por políticas austeritárias; o aprofundamento e a ampliação de desigualdades sociais entre países e dentro de cada Nação, aumentaram, em muito, a intensidade do flagelo e as vulnerabilidades humanas e sociais. Sociólogos/as e cientistas sociais têm sido rápidos a construir conhecimento e a instaurar observatórios sobre a emergência. Estabelecem-se redes, lançam-se projetos, ativam-se cumplicidades. O IS-UP faz a sua parte, abrindo caminhos de debate com estes cadernos. O coordenador e a comissão executiva do IS-UP: João Teixeira Lopes Lígia Ferro Idalina Machado 3 ÍNDICE Introdução Covid-19 & Deficiência: evidências de uma conjugação complexa Ana Catarina Correia A amplificação da violência institucional sobre as pessoas mais velhas em contexto de pandemia Rute Lemos Gestão da informação, alarme, cibercondria e solidariedades online em tempos de Covid-19. “Net-surfamos” a Covid-19 da mesma maneira? Bruno Rodrigues Alves A Covid-19 e o Campo Cultural Brasileiro: uma análise do comportamento do poder público diante da crise no setor Pedro Menezes Arte, artopias e pandemias Susana Januário Dançar Forró e Lindy Hop no Porto em tempos de pandemia Maria Manuela Restivo Notas acerca da suspensão da praxe no Porto Inês Maia INTRODUÇÃO1 como a necessidade de medidas políticas de protecção social e garantia de direitos fundamentais. É neste âmbito que Ana Catarina Correia discute o fenómeno da deficiência. Parte de algumas das principais preocupações apontadas por entidades internacionais acerca dos impactos da actual situação sobre as pessoas com deficiência, problematizando os factores que contribuem para que este seja um segmento da população que, porque marcado pela vulnerabilidade e pela propensão para a marginalização e exclusão sociais, está a ser desproporcionalmente afectado. Discute, ainda, o facto de as pessoas com deficiência enfrentarem nesta crise sanitária um potencial aumento do risco de discriminação nas mais variadas esferas das suas vidas (tais como o emprego, a habitação e a mobilidade). Rute Lemos, entendendo a violência sobre pessoas idosas como um problema de saúde pública e de direitos humanos, reflecte acerca do risco de aprofundamento de situações de vulnerabilidade neste segmento populacional. Concentrando-se nos idosos institucionalizados, discute a exposição ao risco de abuso e de negligência nesse contexto, potencialmente maior num momento em que estes se encontram confinados e com restrições no contacto com a família. Aponta o possível aprofundamento de situações de isolamento social e de desenvolvimento de sentimentos de solidão, com implicações para o bem-estar físico e emocional dos idosos. Pondera a necessidade de políticas públicas orientadas para este grupo, dada a urgência em corrigir as debilidades estruturais das instituições que os acolhem. Por sua vez, Bruno Rodrigues Alves discute o papel da utilização da internet no quadro de uma crise de saúde pública. Interroga-se acerca do papel que esta desempenha no esclarecimento de dúvidas ou na troca de informação acerca de questões relacionadas com a saúde das populações. Problematiza ainda as implicações que a sua centralidade pode suscitar. Assumindo que as ferramentas digitais podem ser um meio privilegiado de acesso e troca de dados, este texto apresenta questões relativas à procura, ao consumo, à partilha e à apropriação de informação online sobre saúde. A reflexão incide, especialmente, sobre as Face a uma crise sanitária à escala global, é inevitável que a vida em sociedade se veja confrontada com novos desafios e com o agudizar de outros já existentes. Perante uma problemática que não se esgota em questões de saúde pública, cabe às mais variadas áreas científicas contribuir para compreender a actual situação, discutindo as consequências que dela poderão advir e traçando, ainda, novas linhas de análise e discussão, num exercício que se pretende crítico e interventivo. É com este pano de fundo, um momento chave para a produção de novos olhares acerca das mais variadas dimensões da realidade social, que surge o conjunto de ensaios que aqui apresentamos. Esta colectânea nasce do desafio lançado aos bolseiros de doutoramento integrados no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP), para que pensassem as consequências sociais, culturais e políticas desta pandemia no quadro dos fenómenos que investigam. Nestes textos são discutidas diferentes problemáticas, mobilizados distintos ângulos e escalas de análise e ponderadas múltiplas questões sociais, políticas e éticas. O interesse deste número reside, precisamente, nesta diversidade, que, antes de mais, permite reflectir acerca da complexidade e da multidimensionalidade de um fenómeno sanitário, cujas consequências não se restringem apenas ao campo da saúde pública, antes extravasando para todas as esferas da vida social. Os artigos correspondem, essencialmente, a duas linhas temáticas. A primeira configura-se em torno das questões da saúde, da deficiência e do envelhecimento. Por conseguinte, os textos que nesta se enquadram discutem situações de vulnerabilidade e exclusão de certos grupos sociais, que se viram aprofundadas no actual contexto. São ainda pensadas as consequências de diferentes mecanismos discriminatórios e o potencial aprofundamento das desigualdades sociais, bem 1 A autora não escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico. 5 potenciais consequências negativas desta prática, nomeadamente o aumento da ansiedade e do medo. A segunda linha temática configura-se, de modo geral, em torno de questões de cariz cultural, quer no sentido mais amplo das (re)configurações culturais e sociais que a pandemia tem provocado, com expressão nos mais distintos fenómenos, quer, especificamente, no sentido da criação artística, das práticas culturais e das políticas públicas para esse sector. Nos trabalhos que se enquadram nesta linha, apresentamos diferentes escalas de análise, que permitem discutir desde a situação do sector artístico e cultural no Brasil até especificidades de práticas e grupos ancorados na cidade do Porto. Pedro Menezes discute os impactos da pandemia no campo cultural brasileiro. Partindo do confronto com a suspensão quase total de actividades e com os receios de que a recuperação possa ser demorada, os agentes do sector procuraram improvisar soluções, ainda que confrontados com a falta de apoio estatal. Este texto analisa esta situação, reflectindo sobre as características de um contexto onde a cultura vem sendo, ora atacada, ora abandonada, quer do ponto de vista simbólico, quer no plano institucional. Pensa a trajectória desenhada pelo campo da cultura no Brasil e problematiza as políticas públicas que hoje se manifestam incapazes de responder à crise vivida no meio. Susano Januário centra o olhar no campo artístico e cultural, que, marcado por relações laborais precárias e por um subfinanciamento estatal crónico, foi um dos primeiros a evidenciar os impactos desta pandemia. A resiliência e capacidade de reacção das pessoas cujas actividades se encontram ligadas a esta esfera, ancoradas na sua criatividade, são o foco deste texto. Toma como referência três dos casos de estudo que a autora se encontra a desenvolver, atendendo, particularmente, a algumas iniciativas artísticas e culturais criadas e promovidas em tempos de confinamento. Maria Manuela Restivo pensa os efeitos do coronavírus na prática de duas danças, o Forró e o Lindy Hop – marcadas pela intensa e incontornável proximidade física entre os seus participantes. Começando por delinear o trajecto destas danças no Porto, expõe, a partir dos testemunhos de alguns dos seus principais actores, os caminhos encontrados por três das principais escolas envolvidas no ensino de Forró e Lindy Hop na cidade. São discutidos os obstáculos encontrados, apontados os caminhos de superação e levantadas preocupações de quem, mesmo numa fase marcada pelo desconfinamento, continua a ver distante o regresso a uma prática marcada pela proximidade física. Por último, Inês Maia discute a suspensão do fenómeno da praxe no Porto, numa reflexão que assenta em dois ângulos: por um lado, o da sua excepcionalidade – a suspensão da praxe é algo praticamente inédito na sua história –, o que permite discutir o potencial e/ou as dificuldades de adaptação de um fenómeno marcadamente imobilista; por outro lado, o da suspensão de um fenómeno que é, em si mesmo, um ritual de suspensão, no sentido em que permite aos que nele participam, viver um espaço-tempo com códigos e significados próprios, num processo que, pela primeira vez em décadas, vê a eficácia da sua acção simbólica suspensa. As reflexões aqui apresentadas propõem-se encontrar pistas que permitam responder a novos e a velhos problemas, pondo em relevo a excepcionalidade da situação actual e a urgência em contribuir para que esta seja analisada de modo atento, informado e crítico. Num momento como aquele que hoje vivemos, estes textos são, necessariamente, fruto de dúvidas, incertezas e múltiplas interrogações. Que seja este o seu principal contributo: ensaios que, partilhando as inquietações de quem os escreveu, possam suscitar outras tantas. Inês Maia Porto, 30 de Junho de 2020 6 COVID-19 & DEFICIÊNCIA: EVIDÊNCIAS DE UMA CONJUGAÇÃO COMPLEXA universo maioritário de preocupações sociais partilhadas, não se previa algo com este impacto fortíssimo e avassalador à escala global e em diferentes domínios da vida. Retomando a omnipresença do risco, há que a conectar com aspetos complementares: materializou a presença de uma nítida falha de confiança entre pessoas, entre governos e entre os próprios Estados nação e tem exercido uma incontestável pressão para o aprofundamento de aspetos direcionados para as relações entre os indivíduos (em planos individuais), a intensidade das relações sociais existentes entre estes e a múltiplos questionamentos sobre a vida num cômputo mais geral. É uma crise que não se esgota em preocupações de saúde pública, de ordem ambiental ou de natureza económica: o que estamos na realidade a testemunhar é um momento de agudização da modernidade tardia incorporada, obviamente, num sistema capitalista que continua globalmente fiel a si próprio (Hanafi, 2020). Nesta linha de raciocínio, este momento permite profundas reflexões quer no domínio das ciências sociais, quer nas mais variadas disciplinas científicas. Este é por isso um momento chave de produção de conhecimento. É um momento particularmente pertinente e interessante para o aprofundamento de críticas e análises sobre as mais variadas temáticas que afetam a vida humana quotidianamente e em diferentes escalas. Traduzindo as palavras de Catherine Will “a pandemia de coronavírus no momento oportuno veio demonstrar o compromisso da sociologia em compreender a marginalização em todas as suas formas e as conexões existentes entre práticas e ações governamentais e a experiência do vírus na Europa e no resto do mundo” (the coronavirus pandemic in due course that show sociology’s commitment to understanding marginalisation in all its forms and the connections between government practices and actions and the experience of the virus across Europe and in the rest of the world) (Will, 2020: 967). Este ensaio pretende ser um contributo sobre este recente fenómeno global, levando a cabo uma reflexão alicerçada na sua conjugação com o fenómeno da deficiência. Uma nota importante a Ana Catarina Correia2 Notas introdutórias: inquietações pertinentes “No entrecho deste momento de transição entre o otimismo da “era do espetáculo” e a fragilidade e o medo da nova “era da incerteza”, esta sequência de provações veio revelar uma sociedade que se metamorfoseou e se reinventou” (Faria 2020, apud Fernández-Galiano, 2010). Se há algo novo que a crise sanitária global de COVID-19 trouxe, foi uma profunda mudança em vários domínios da vida social e individual. Compromete interações, fragiliza laços sociais, agudiza situações de desigualdade e profundas discriminações. Instaura o medo e a incerteza, estes já próprios das sociedades contemporâneas, mas que permanecem de forma mais vincada e legitima o isolamento e afastamento humanos. Exige mudanças num plano estrutural e político que até então - pelo menos num domínio de preocupações socialmente partilhadas - não estavam previstas e, portanto, não reclamavam um planeamento musculado. As sociedades defrontam-se com o perigo do desconhecido, vincando ainda mais, as características de uma sociedade global de risco, nas conceções de Beck (2002). No plano da literatura e do conhecimento científico, já existiam alertas e experiências históricas de natureza pandémica. Simplesmente cremos que, naquilo que pode ser designado como um 2 Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) o projeto “Políticas para a deficiência: desafios inerentes à implementação do paradigma de Vida Independente” (SFRH/BD/138530/2018) sob orientação científica da Professora Doutora Alexandra Lopes. E-mail: 200903286@ letras.up.pt 7 reter é que a elaboração deste documento é uma modesta reflexão crítica baseada em alguns contributos de natureza científica e em instrumentos de ordem técnica, política, institucional e organizacional que consideramos de extrema relevância para a linha argumentativa que ambicionamos encetar. Adicionalmente, ocuparemos umas brevíssimas linhas com seis notas prévias relevantes acerca das análises sociológicas sobre a pandemia COVID-19 e que justificam em larga medida a escolha da problemática da deficiência (mobilizando o eixo analítico das desigualdades sociais): (i) muito do que se possa considerar neste momento é de caráter provisório; (ii) o que vier a acontecer num futuro próximo irá depender, necessariamente, da rapidez de recuperação/erradicação da presente crise; (iii) as influências provenientes do contexto internacional terão, certamente, um caráter decisivo no alinhamento de um presente e de um futuro próximo; (iv) as soluções políticas que serão implementadas – continuaremos na perseguição da linha do neoliberalismo? – serão absolutamente definidoras de rumos; (v) reconhecemos que os problemas sociais existentes são claramente multidimensionais pelo que a perpetuação de estratégias e planeamentos única e exclusivamente setoriais constituirão um entrave ou, na melhor das hipóteses, um gigantesco impasse, como já se evidenciava em período pré crise; e (vi) o inevitável reconhecimento de que os cidadãos que estão a ser mais afetados por esta pandemia e vão continuar a sê-lo num futuro próximo são, inequivocamente, os que se encontravam e encontram em situações de maior vulnerabilidade, como alerta Fernando Diogo no âmbito de uma entrevista cedida ao Observatório das Desigualdades (2020). Toda a análise que será aqui construída se alicerçará nestes seis aspetos prévios. A um nível global, fortes consensos dirigem-nos, precisamente, para uma vulnerabilidade e riscos acrescidos da população com algum tipo de deficiência, reconhecendo antecipadamente que o que está aqui presente, embora não nos esgotemos nesta premissa nem a consideremos linear, é uma agudização de determinadas práticas sociais (alimentadas estruturalmente em múltiplas esferas e sob a forte influência e poder de premissas prescritivas e reguladoras da biomedicina, embora não se esgote aí) referentes ao valor da vida e à legitimidade da mesma em contextos de pandemia/crise de saúde pública global. Adicionalmente, observa-se uma preocupação – reclamada por diferentes organismos de ordem global – em prevenir, atenuar e eliminar em toda a medida possível estes riscos (e outros já pré-existentes) assumindo como bússola a dignidade e diversidade humanas, o desenvolvimento humano das sociedades, a justiça e equidade e a coesão social. Ambicionam, nitidamente, um não retrocesso ao que podem ser considerados alguns dos mais significativos avanços civilizacionais que ocorreram com particular ênfase a partir da década de 1960 do século XX. No entanto, há que realçar, estes avanços enfrentam fases e estados diferentes que variam consoante as regiões do globo tendo como um dos seus eixos estruturantes opções de ordem política, económica e institucional e, inevitavelmente, a diferente robustez – ou fraqueza – de Estados Providência (ou regimes de bem-estar). Estes avanços estão diretamente relacionados com um modo de olhar para e de agir sobre a problemática da deficiência, que que vem ganhando forma e sendo perpetuado sob a égide da garantia e proteção de direitos humanos fundamentais, mesmo reconhecendo que os avanços até então se revelam insuficientes. Deficiência enquanto problemática global e com necessidades de ordem multisetorial e multidimensional A problemática da deficiência, como se procurará demonstrar ao longo desta exposição, é considerada por múltiplos domínios e agentes uma problemática de ordem global e que tem vindo a reclamar, ao longo dos tempos, respostas diversificadas que são elas próprias, por um lado, multidimensionais e, por outro, dotadas de exigências específicas de ordem setorial. Atente-se à seguinte frase introdutória presente num dos relatórios mais recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre estas matérias: 8 “A crise global de COVID-19 está a tornar patentes as desigualdades já existentes, pondo a nu a extensão das situações de exclusão e sublinhando que todo o trabalho relativo à inclusão das pessoas com deficiência é um dado imperativo. As pessoas com deficiência – que são mais que um bilião – são um dos grupos socialmente mais excluídos e estão entre os mais atingidos por esta crise no que respeita ao número de mortes” (ONU, 2020: 2). ONU recentemente e publicado em maio de 2020, reconheceu-se especificamente que: (i) este segmento populacional está exposto a um maior risco de contração da infeção; (ii) está exposto igualmente a um maior risco de desenvolvimento de problemas de saúde e a morte por infeção COVID-19; e (iii) as pessoas com deficiência que se encontram institucionalizadas têm maior probabilidade de contração do vírus e apresentam maiores taxas de mortalidade. Relativamente a este último ponto, há que referir, por exemplo, que este segmento populacional (incluindo as pessoas com deficiência mais idosas) representa, em termos globais, a maioria da população institucionalizada. Encontram-se a viver em lares, residências sociais e apoiadas, centros psiquiátricos, prisões, etc. A percentagem de mortes por COVID-19 em lares varia entre 19% e 72% (recorrendo a dados disponibilizados apenas por alguns países), sendo a maioria pessoas idosas com deficiência. Adicionalmente, adverte-se também para um risco de discriminação no acesso aos cuidados de saúde e a procedimentos de salvaguarda da própria vida em contexto de pandemia COVID-19 e para a particular desvantagem de ordem socioeconómica decorrente da pandemia com as quais, potencialmente, estes cidadãos(ãs) se defrontarão. Estes impactos serão visíveis, quer ao nível de um potencial aumento da violência dirigida a estas pessoas, quer em diferentes áreas como o emprego e a proteção social, a educação e os serviços de apoio necessários. Estas orientações internacionais têm latente o que vem sendo reconhecido há décadas: as desigualdades que esta população enfrenta materializam-se, de forma complexa e evidenciam múltiplas facetas, em todos os domínios da vida individual e coletiva. Dentro deste cômputo geral, há que acentuar uma nota importantíssima: a perpetuação e intensidade dessas desigualdades, exclusões e vulnerabilidades varia de país para país, de região para região, consoante a natureza e severidade das incapacidades, o posicionamento dos indivíduos na estrutura social de classes, o género, a idade, a etnia, etc. Não exporemos detalhadamente as medidas propostas em termos de estratégias, mas Facilmente se aceitará o facto de se estar perante uma minoria bastante significativa no espetro da população humana. Por força deste reconhecimento de uma complexa vulnerabilidade e particular propensão à marginalização, exclusão e segregação, não será surpreendente afirmar que esta crise sanitária afetou e afeta desproporcionalmente este segmento da população quando comparado com os restantes. Complementares a esta desproporcionalidade, são pertinentes as seguintes constatações: (i) cerca de 46% das pessoas idosas com mais de 60 anos têm um ou vários tipos de deficiência; (ii) 1 em cada 5 mulheres possui a probabilidade de experimentar a condição de deficiência durante a vida; (iii) 1 em cada 10 crianças tem algum ou vários tipos de deficiência; (iv) das cerca de 1 bilião de pessoas com deficiência (15% da população mundial), aproximadamente 80% vive em países em desenvolvimento (ONU, 2020). É necessário alertar de igual modo para a sua diversidade e heterogeneidade enquanto grupo: “Alguns [subgrupos] estão sujeitos a uma maior marginalização – por exemplo, pessoas com deficiências intelectuais (...) ou pessoas surdas (...) estarão mais sujeitas a serem excluídas da prestação de serviços, de viverem ou serem presas em instituições, de experimentar altos níveis de violência, negligência e abusos” (ONU, 2020: 4). No relatório “Shared Responsibility, Global Solidarity: Responding to the Socio-Economic Impacts of Covid-19”, referenciado no documento já citado e intitulado, na sua versão traduzida para português, “Sumário de políticas: uma resposta inclusiva para as pessoas com deficiência face à pandemia por COVID-19”, produzido pela 9 sublinhamos que complementam medidas mais gerais e estruturais (multidimensionais) com medidas setoriais. Alicerçam-se em valores latentes à equidade e justiça social, reconhecendo as variadíssimas diferenças geográficas. essa] superioridade é, na verdade, decorrente de um complexo quadro sociocultural de produção histórica” (Nogueira, 2018: 1019). A autora considera ainda a existência de 4 pilares de construção da hegemonia da biomedicina na modernidade ocidental. Iremos mencionar 3 que se afiguram relevantes para esta discussão: (i) a ligação umbilical que esta possui com a ciência moderna e a sua trajetória de colonização; (ii) o nascimento da designada clínica e a cumplicidade existente com os ideais modernos e a própria conquista do poder normativo; e (iii) a vincada eficácia comparativa do paradigma biomédico e a sua intrínseca articulação com o capitalismo (Nogueira, 2018). Quanto ao primeiro ponto, é inegável a adoção por parte da biomedicina da racionalidade congnitiva-instrumental da ciência moderna, sabendo-se que a legitimidade conquistada por essa racionalidade lhe cedeu o estatuto de “regime de verdade” na linha foucaultiana, ou de metanarrativa. No segundo ponto, vinca-se um aspeto relacionado com a forma como a biomedicina se compatibilizou com os ideais modernos e conquistou o seu poder normativo/regulador – e que se materializou na designada anatomoclínica – e passou a usufruir de validade e proteção legal por parte dos Estados. Já o terceiro ponto, traduz-se no espaço de legitimidade conquistado e que lhe conferiu um estatuto hegemónico, passando a ser um paradigma “não contestável” (Nogueira, 2018). Ora, esta hegemonia tem levado a significativos consensos nas ciências sociais e em particular, na sociologia. E, se em momentos como o que atravessamos atualmente a medicina assume um lugar central na atenuação de danos e salvação de vidas, também se encontra perante o doloroso e complexo dilema de decidir, de modo seletivo, e perante a escassez de recursos, quais as vidas que “merecem” ser salvas em detrimento de outras. O que pretendemos aqui indiciar é que as pessoas com deficiência, tal como as pessoas mais idosas, se confrontadas com situações de seletividade médica neste contexto particular, correm um maior risco de não serem selecionadas por força da presença das reconhecidas dinâmicas de biomedicalização e patologização da vida como nos diz Michel Foucault (1977). A ambiguidade do paradigma biomédico: um reforço de legitimidade e o reconhecimento de controvérsias “Ao difundir a ideia de que todas as diferenças individuais e coletivas residia na proliferação de germes, a teoria microbiana veio incentivar a intervenção na ordem social – todavia, não enquanto transformações profundas que dirimissem as desigualdades, mas como monitorização de fatores de contágio e propagação de doenças infeciosas pela implementação de medidas de caráter higienista” (Nogueira, 2018: 1026) A escolha deste excerto pretende vincar um dos argumentos estruturantes desta análise. Por um lado, o paradigma da biomedicina é dotado de uma hegemonia tão acentuada que lhe é conferida legitimidade de intervenção na ordem social, com ênfase muito particular em caso de crises de saúde pública como a que vivemos de COVID19. De facto, a designada teoria microbiana que se politiza através da proliferação de medidas de caráter higienista, assume neste momento, em termos globais, um lugar hegemónico de regulação. Mostra-se incontestável o poder e lugar hegemónico que a biomedicina assume na vida humana em diferentes escalas. No momento presente esse poder intensifica-se e assume um papel de entidade reguladora omnipresente. Para além desta omnipresença atual, em momentos pré-crise e ao longo da história, a biomedicina assumiu um papel decisivo na configuração da vida humana e das dinâmicas sociais e, muito particularmente, na vida das pessoas com deficiência. Note-se: “a biomedicina continua a figurar como metanarrativa, como modelo médico epistemologicamente superior, definidor e regulador do que se entende por “saber médico” (...) [e 10 É consensual na literatura a forte e atual presença do paradigma médico em contexto de deficiência. Desde o século XIX, a deficiência reduziu-se a uma explicação médica e reabilitadora que tinha como objetivo central intervir para curar e/ou normalizar. As experiências vividas das pessoas eram reduzidas a explicações de ordem médica e reabilitadora que hierarquizavam e classificavam aptidões e desvios da norma, numa linha pós estruturalista. Estávamos perante, entre outros aspetos, a presença do que Foulcault designou como biopoder: “um poder que age sobre os corpos, definindo-os como apropriados ou inapropriados, e cuja mais alta função não é matar, mas “investir a vida de cima a baixo”” (Foucault, 1999, 131 apud Nogueira, 2018: 1023). Tinha como objetivo, no fundo, distribuir seres humanos consoante valor e utilidade e, para tal, qualificava, media, avaliava e hierarquizava tendo como referência a norma. Perpetuou então dualidades de normal e patológico, de normal e anormal, de puro e impuro, entre outras (Foucault, 1992; Fritsch, 2015). Ora, com base nestas premissas compreende-se a existência de um traço característico da vivência em contexto de deficiência: a existência de universos socialmente partilhados de uma “natural” desvalorização da vida porque associada a tragédia e sofrimento denso (Knight, 2014). Esta lógica legitima, ainda, a latente medicalização destas pessoas, que vêem assim reduzida a sua existência – mediante múltiplos e contraditórios discursos – à sua condição de deficiência, sendo descurados tantos outros planos das suas vidas. Este constitui-se, ainda hoje, como um dos maiores obstáculos a uma robusta implementação de um paradigma de direitos humanos. A intensidade com que estes obstáculos se manifestam varia consoante o contexto e as medidas políticas de proteção social e garantia de direitos que nesse se privilegiem. nos deu a oportunidade de explorar e fornecer uma nova forma de compreender e resgatar a justiça social e o sentido de humanidade. (...) [trouxe] possibilidades de transcender o capitalismo neoliberal e especulativo, de reconectar os indivíduos, as sociedades e a natureza e incorporar a economia nas relações sociais, nos valores culturais e nas preocupações morais” (This global crisis may have prompted fresh strategies to reinforce exploitation, dispossession, and our neoliberal capitalism, and increased the reach of our greed and selfishness, but it has also given us an opportunity to explore and provide new way of understanding and reclaiming our social justice and humanity. (…) possibilities for transcending our neoliberal and speculative capitalism, for reconnecting individuals, societies, and nature, and for embedding the economy in on social relationships, cultural values, and moral concerns) (Hanafi, 2020: 8) Foram estas as intenções que justificaram a escrita do presente ensaio. Reconhecendo as limitações da análise e a escassez de um conjunto amplo de outros argumentos, tentou-se, com reconhecida modéstia, sistematizar alguns dos principais fatores que estão subjacentes às preocupações internacionais – e que depois se refletem em diferentes regiões – referentes aos impactos desproporcionais que a pandemia COVID-19 trouxe para as pessoas com deficiência quando comparadas com as demais. Cremos veemente que, quanto mais se reunirem esforços concertados para a implementação de estratégias que defendam e protejam os direitos e liberdades neste momento crítico para esta população, mais fácil será extravasar estas práticas para as restantes. Defendemos, igualmente, que este poderá ser um momento particularmente rico para se repensarem leituras, medidas e opções políticas em diferentes escalas. A sociologia poderá ter, como é usual em variadíssimas dimensões, um papel particularmente importante de alerta, responsabilidade e ação. Esperemos que assim seja! Será este momento um palco de oportunidades? “Esta crise global pode ter reivindicado novas estratégias para reforçar a exploração, expropriação e o capitalismo neoliberal e aumentou o alcance da ganância e do egoísmo, mas também 11 A AMPLIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL SOBRE AS PESSOAS MAIS VELHAS EM CONTEXTO DE PANDEMIA Referências bibliográficas BECK, Ulrich (2002), Risk Society: Towards a New Modernity, London, SAGE Publications. FARIA, Luís Pinto de (2020), “Espaço e Saúde: responsabilidade e consequência”, Barómetro Social, 1ª Série de 2020 de Artigos de Opinião (março de 2020), [Consult. a 2.6.2020]. 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Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) (OMS, 2020) e o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) (CDC, 2020), não obstante o vírus atingir indivíduos de todas as idades, as pessoas mais velhas apresentam maior risco de severidade da infeção, associado em particular à incidência de múltiplas comorbilidades neste grupo etário. Contudo, sendo a idade uma condição social, a análise do risco não se deverá limitar à dimensão biológica. As vulnerabilidades que estruturalmente afetam este grupo populacional bem como os processos identitários expressos nas (auto)representações sociais sobre ser velho constituem igualmente elementos configuradores da distribuição da infeção na sociedade. A partir da abordagem à violência sobre idosos, um grave problema de saúde pública e de direitos humanos (Pillemer et al., 2016), pretende-se neste texto refletir sobre a dinâmica inter-relacional entre a infeção e os processos sociais. Mais especificamente, aborda-se como as condições sociais pré-existentes contribuem para o maior risco nas pessoas mais velhas e, paralelamente, o impacto da pandemia na amplificação de vulnerabilidades e na (re)configuração das identidades neste grupo. Importa uma nota prévia relativa a aspetos teórico-metodológicos que sustentam a análise que 3 Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) o projeto “A construção subjetiva do abuso de idosos: narrativas e discursos na primeira pessoa” (SFRH/ BD/130439/2017), sob orientação científica da Professora Doutora Isabel Dias e coorientação da Professora Doutora Alexandra Lopes. E-mail: rlemos@letras.up.pt 12 se apresenta. Perante o desafio da sincronia entre a ocorrência dos acontecimentos e o momento da escrita, sem o benefício da retrospetiva, bem como a escassez de dados robustos, o primado da teoria assume-se como guia fundamental na leitura da realidade. Sobre os factos, recorremos a notícias relatadas nos meios de comunicação social. Suportamo-nos, igualmente, nos media claims, reivindicações na esfera pública por parte de agentes da sociedade civil ou institucionais e que expressam uma opinião política, segundo uma lógica de abordagem construtivista sobre como determinados problemas são discutidos e compreendidos (Best, 1987). A violência sobre idosos constitui uma realidade subdeclarada (Berman e Lachs, 2011; Dong, 2015), mas as estatísticas disponíveis (APAV, 2019), bem como os resultados de estudos de prevalência, apontam os filhos/as e os parceiros íntimos como principais agressores, enquadrando o fenómeno predominantemente no contexto de violência familiar (Gil et al., 2014; Luoma et al., 2011; Soares et al., 2010). Por sua vez, é escassa a literatura sobre a violência familiar em tempos de catástrofes, mas alguns estudos realizados evidenciam o seu aumento (Elman et al., 2020). Relativamente à atual situação de pandemia existem, a um nível global, relatos sobre o incremento de violência doméstica, em particular entre parceiros íntimos, associado às medidas de confinamento impostas para controlar a infeção. No entanto, os dados disponíveis não são desagregados por idade, o que limita o conhecimento da extensão do fenómeno na população geriátrica (OMS, 2020). Segundo Elman e colegas (2020) é provável a existência de um padrão de aumento de maus tratos sobre idosos, afetando em particular os que apresentam incapacidade funcional e/ou cognitiva dada a maior dificuldade no acesso a ajuda ou ausência de conhecimento de formas de procura de apoio. No âmbito das medidas de confinamento, os serviços comunitários de apoio aos idosos considerados como não essenciais, como, por exemplo, os centros de dia, foram suspensos. A ausência deste mecanismo de resposta social representa uma maior pressão sobre a família, que poderá também estar a ser afetada por outros problemas sociais e económicos decorrentes da crise pandémica (Elman et al., 2020). A sobrecarga potencia o stress do cuidador, sendo este um fator de risco para a emergência de situações de abuso ou agravamento de maus tratos já existentes (Gil et al., 2014). Este cenário pode ser mais grave no contexto de idosos com demência, na medida em que a interrupção das suas rotinas e longa permanência em ambientes fechados provocam alterações nos seus comportamentos, tornando-se eles próprios violentos (Lim et al., 2020). As pessoas mais velhas que estão em situação de confinamento com familiares ou cuidadores estão por isso, em contexto de pandemia, mais expostas a abuso e negligência (OMS, 2020). Não obstante a vulnerabilidade dos idosos a viver na comunidade, a pandemia está a atingir particularmente os que vivem em contexto institucional. A nível internacional surgem relatos de violência extrema como os acontecimentos em Espanha, em que equipas militares de assistência médica encontraram, em lares privados, idosos mortos e outros sem assistência4. Um dado epidemiológico impactante é o facto de 40% das mortes por COVID-19 em Portugal no início do mês de maio se reportarem a utentes de estruturas residenciais para pessoas idosas (ERPI) 5, um padrão observado igualmente noutros países europeus. A elevada exposição ao risco de infeção e de letalidade nos idosos institucionalizados pode ser percebida como uma dissonância em relação à missão destas instituições, no sentido de proteger a vida e preservar o bem-estar físico e psíquico dos seus utentes. Se tomarmos como referência as abordagens teóricas sobre violência contra idosos, a falha no compromisso destas respostas sociais representa uma forma de violência institucional (Ribeirinho, 4 Spanish minister says older people found ‘dead and abandoned’. Available at https://www.theguardian.com/world/2020/ mar/23/spain-distributes-650000-testing-kits-as-coronavirus-deaths-rise-steeply published on March 23 2020. Acedido a 28 maio 2020. 5 Fonte: https://rr.sapo.pt/2020/05/09/pais/lares-contam-450obitos-por-covid-19/noticia/192304/ DGS boletim epidemiológico número 68. 13 2019). O recurso à definição de abuso de idosos da OMS, designadamente “qualquer ato isolado ou repetido, ou ausência de uma ação apropriada, que ocorre no âmbito de um qualquer relacionamento onde haja expetativa de confiança, causador de dano ou incómodo a uma pessoa idosa” (OMS, 2002), permite o enquadramento da incidência e das mortes por COVID-19 nas ERPI numa perspetiva de violência contra idosos. Importa sublinhar que o conhecimento científico sobre os abusos que ocorrem em contexto institucional é escasso (Castle et al., 2013). Em Portugal, os estudos de prevalência com recurso a amostras representativas integram apenas idosos a viver na comunidade e os dados existentes são sobretudo de estudos realizados em contexto académico para obtenção de grau, baseados em amostra não representativas e com abordagens sobretudo qualitativas. As formas de violência mais reportadas neste contexto são a emocional, em que se inclui a despersonalização e a infantilização, a negligência (Castle et al., 2013), bem como a sobremedicação e o abuso financeiro (Dias, 2005). A abordagem à problemática da violência institucional, enquadrada no momento atual de pandemia, parte do pressuposto de que a política organizacional das ERPI e as respetivas debilidades estruturais, como a ausência de uma política de avaliação de qualidade e de uma política de formação aos cuidadores formais (Gil e Fernandes, 2011), foram limitadoras da sua capacidade de resposta às exigências de um cenário de emergência em saúde pública. Segundo o Comissário dos Direitos Humanos no Conselho Europeu, as estruturas de residência para idosos “mesmo sem a ameaça de um vírus mortal geram frequentemente inúmeras violações dos direitos humanos, incluindo abuso e maus-tratos, principalmente devido ao não uso de uma abordagem baseada nos direitos humanos na conceção e prestação de cuidados de longo prazo e uma falta crónica de recursos”6. Uma dimensão de análise refere-se à escassez estrutural de recursos humanos e sobrecarga de trabalho nestas instituições, particularmente grave perante a crescente sobrelotação das mesmas (Dias, 2005) e o facto de servirem uma população mais idosa e com níveis elevados de dependência na realização das atividades básicas da vida diária (GEP – MTSSS, 2019). A imposição de medidas de confinamento durante o período de estado de emergência agravou, de múltiplas formas, essa debilidade estrutural das ERPI. Se atendermos à feminização do trabalho de prestação de cuidados formais, bem como ao tradicional papel da mulher nos cuidados domésticos e familiares, percebemos que, por exemplo, a suspensão das atividades académicas a 16 de março implicou para algumas funcionárias das ERPI a sua ausência no trabalho de forma a assegurar o apoio a filhos menores. A diminuição de recursos humanos disponíveis aumentou o rácio de número de idosos por cuidador, facto que, associado à implementação de novos modelos de organização do trabalho relativos ao cumprimento das regras de segurança e higiene impostas pela Direção-Geral da Saúde para controlo da epidemia, implicou a sobrecarga e pressão entre o pessoal que permaneceu no exercício das suas atividades, tal como denunciado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Saúde, Solidariedade e Segurança Social (STSSSS)7. Neste cenário, algumas das necessidades de cuidados dos idosos poderiam ter ficado por atender. O Governo reconheceu a escassez de recursos humanos nos lares e instituições para idosos como um problema e para colmatar as falhas avançou com o programa de voluntariado #cuidadetodos. As deficiências nas políticas organizacionais das ERPI e o stress dos cuidadores formais constituem, como descrito na literatura, fatores de risco para a ocorrência de comportamentos abusivos nestas instituições, incluindo negligência (Minayo, 2003). Acresce-se ainda que as medidas impostas de trabalho à distância, que também incluiu o setor 6 Tradução livre. https://www.coe.int/en/web/moscow/-/older-persons-need-more-support-than-ever-in-the-age-of-the-covid-19-pandemic 7 https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-30-Covid-19-Trabalhadores-de-lares-e-IPSS-denunciam-pressoes-e-sacrificio-insano 14 público, podem ter provocado uma quebra nas ações de fiscalização e de intervenção em lares (Elman et al., 2020) e por isso uma menor vigilância sobre eventuais situações de maus tratos. A Associação de Apoio Domiciliário, de Lares e Casas de Repouso de Idosos (ALI) estima existirem 35008 lares ilegais, estruturas caracterizadas por graves debilidades ao nível de recursos humanos qualificados e de equipamentos, constituindo, por isso, lugares com maior risco de abusos e negligência, potencialmente agravado no momento de crise pandémica. Face à identificação dos idosos institucionalizados como grupo de risco para a infeção e doença severa por COVID-19 (CDC, 2020), o governo português, à semelhança de outros países, procedeu à suspensão de visitas nas ERPI seguindo a recomendação da OMS de distanciamento físico/ social. Apesar de a medida ser acompanhada com o incentivo ao recurso a formas alternativas de comunicação entre idosos institucionalizados e seus familiares, como a comunicação digital, o elevado número de denúncias apresentadas à Provedoria da Justiça relativas à dificuldade de as famílias contactarem os idosos, expressa deficiências ao nível da política organizacional das ERPI no cumprimento desse compromisso. A este fator importa acrescentar que se trata de um grupo infoexcluído, marcado pela iliteracia ao nível dos recursos digitais e com falta de capacidade económica para a aquisição de equipamentos. A privação do contacto com familiares poderá ser entendida como forma de violência institucional, conduzindo a situações de isolamento social e desenvolvimento do sentimento de solidão, com implicações para o bem-estar físico e emocional dos idosos, como depressão e comprometimento funcional. O isolamento social superior a 6 meses acelera as doenças cardiovasculares e autoimunes bem como o aparecimento de demência (Armitage e Nellums, 2020). As redes de suporte social, entendidas como fatores protetores de abuso (Pillemer et al., 2016), foram temporariamente quebradas com a pandemia, não apenas com a suspensão de visitas de familiares e amigos, como também pelas medidas de suspensão de saída dos idosos e realização de atividades de grupos no interior das instituições. A pandemia separou os idosos institucionalizados da sua rede familiar, da comunidade e dos outros residentes, o que representou uma suspensão da vigilância informal, enquanto supervisão da qualidade dos cuidados prestados e denúncia de situações suspeitas (Elman et al., 2020), bem como das oportunidades para os idosos procurarem apoio em caso de maus tratos. Em síntese, as múltiplas vulnerabilidades dos idosos institucionalizados amplificaram-se neste tempo de pandemia, entre as quais a exposição ao risco de abuso e negligência, num processo em que as prévias debilidades estruturais das ERPI condicionaram a sua capacidade de resposta a esta catástrofe de saúde pública. No campo das representações sociais, estes acontecimentos podem reforçar o entendimento de que os profissionais dos lares são um dos principais agressores de idosos, bem como agudizar a avaliação negativa sobre estes espaços na concretização da sua missão, com evidentes manifestações de dificuldades no plano organizacional (Gil, 2010 cit. Gil e Fernandes, 2011). No entanto, esta abordagem exige um aprofundamento que põe em relevo, a um nível de análise macro, as políticas públicas como fator de risco de maus tratos sobre idosos (Gil et al., 2015). A este propósito, a atuação do governo português foi criticada por atrasos na testagem de utentes e funcionários das ERPI, na medida em que, tendo o conhecimento da dinâmica de propagação do vírus noutros países que se encontravam em fases de infeção mais avançadas, deveria ter assegurado atempadamente a realização de testes de despistagem. A gestão da pandemia pelo poder político pode ser percebida como uma forma de violência contra pessoas idosas institucionalizadas, pela falta de medidas de proteção da integridade física e emocional destes. Neste processo, é apontada a presença de conteúdos idadistas na esfera do poder político, isto é, a discriminação segundo a idade, expressa na estigmatização em relação 8 https://www.jn.pt/nacional/lares-ilegais-albergam-35-mil-idosos-e-ninguem-sabe-onde-estao--12100813.html 15 às pessoas mais velhas, como ilustra a seguinte declaração de um autarca: “Governo tem de olhar para idosos como pessoas”9. Perante a emergência de implementação de estratégias para conter a infeção no grupo geriátrico, as medidas de confinamento foram privilegiadas, mas sem a participação dos próprios idosos na definição das linhas matrizes dessas. Segundo um estudo recente conduzido na Irlanda, “a perda de voz, agência e autodeterminação e a diminuição do papel e estatuto na sociedade” (Anand et al., 2013: 287) são percebidos pelas pessoas com 60 ou mais anos como formas de abuso de idosos, a par dos tipos de violência descritos na literatura, designadamente o abuso psicológico/emocional, físico, financeiro/material, sexual e negligência. Nesta linha surgem as recomendações das Nações Unidas no sentido da expansão da participação das pessoas mais velhas nos processos de definição de medidas políticas, particularmente nos assuntos que lhes são direcionados (ONU, 2020). Paralelamente, os idosos institucionalizados foram tratados como um grupo homogéneo, reforçando a presença de conteúdos idadistas nos discursos políticos (ONU, 2020). Estes tempos biopolíticos parecem assim reforçar a estigmatização e condicionar os esforços de empoderamento dos mais velhos nas sociedades atuais (Klein, 2020). A crise epidemiológica fortaleceu as (auto)representações das pessoas mais velhas como um fardo para as suas famílias e sociedade em geral, ressaltando a dimensão de descartabilidade no perfil identitário da pessoa idosa. Perante estas evidências de violência institucional e social contra os idosos, vários organismos internacionais, entre os quais as Nações Unidas10, o Conselho Europeu11 e a Plataforma Europeia AGE12, apelaram à não discriminação deste grupo etário. Terminamos com a alusão ao caso, em Espanha, de um veículo que transportava idosos institucionalizados portadores da infeção COVID-19 e que foi apedrejado por populares13, enquanto uma forma de violência social contra os mais velhos, fenómeno que não emergiu com o vírus, mas que é reforçado neste contexto de pandemia. Este tempo que vivemos revigora a urgência da criação e implementação de reformas sociais orientadas para duas dimensões fundamentais, designadamente, assegurar cuidados de qualidade aos mais velhos, bem como garantir a inclusão deste grupo na comunidade. Referências bibliográficas ANAND, Janet; Begley, Emer; O’Brien, Marita; Taylor, Brian; Killick, Campbell (2013), “Conceptualising elder abuse across local and global contexts: implications for policy and professional practice on the island of Ireland”, Journal of Adult Protection, 15(6), pp. 280-289. 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Entende-se que esta “infodemia”, já descrita por muitos como “pandemia paralela”, ao gerar desinformação, pode comprometer a gestão do vírus, acelerar picos de infeção e fragmentar a resposta social coletiva ao mesmo (Kim, Fast e Markuzon, 2019). É claro que a crescente disponibilidade de conteúdos no digital ligados à saúde, é reflexo de uma “biomediatização” (Briggs e Hallin, 2016), isto é, a crescente visibilidade e espaço mediático conquistados pela saúde nos media. Atente-se à cada vez maior presença de rubricas e espaços dedicados à saúde em programas de audiências amplas, como os programas da manhã na televisão. A crise da Covid-19 serviu, a este nível, para reforçar e consolidar este mediatismo da saúde. A Internet tornou-se um mecanismo favorável à difusão da desinformação, algo já constatado em pandemias anteriores, como a do Zika (Venkatraman et al., 2016), ou a do H1N1 (Gostin, 2014). Em contextos sociotécnicos direcionados a uma observação quase constante de informação, nos quais a informação sobre saúde assume importante relevo (Sillence et al., 2007), seja no que diz respeito à prevenção de doenças e educação em saúde genéricas, ou informação mais Bruno Rodrigues Alves14 A partir dos principais debates em torno da utilização da Internet para as questões da saúde, o texto analisa a pandemia por Covid-19, na sua interseção com esta temática. Debate alguns dos conceitos que permeiam a interação entre tecnologia, sociedade e saúde. A proposta deste artigo é discutir, reflexivamente, algumas das questões suscitadas pelos cibercomportamentos a este nível durante a crise pandémica, em três principais eixos temáticos que, sendo distintos, se entrecruzam: 1) a procura, consumo, partilha e apropriação de informação online sobre saúde; 2) a cibercondria; 3) as webs solidariedades em saúde. Alguns destes eixos refletem e estruturam desigualdades digitais, analisadas, sumariamente, no texto. Introdução A pandemia por Covid-19, doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2 (ainda que se tenda a falar mediaticamente no “vírus da Covid”, tendência que este texto acompanha), proporciona um contexto sociológico completamente novo, em magnitude e escala, não anteriormente verificadas nos tempos modernos em pandemia anteriores, comportando um conjunto de desafios vários, também eles inéditos. Um desses desafios, de ordem sociotécnica, é o que se relaciona com a 14 Doutorando do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseiro de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) o projeto “Tendências, Oportunidades e Riscos da procura e consumo de informação sobre saúde na Internet” (SFRH/BD/148257/2019) sob orientação científica da Professora Doutora Alexandra Lopes Gunes e coorientação do Professor Doutor José Manuel Azevedo. E-mail: bruno.clix@sapo.pt 15 Estas declarações foram emitidas na Conferência de Segurança de Munique (MSC) (Edição de 2020), que teve lugar em fevereiro. Acrescente-se que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, aludiu também, na sede das Nações Unidas, a esta pandemia da desinformação. 18 específica, não será de estranhar a procura online por informações sobre a Covid-19. Todavia, tem vindo a chamar-se a atenção para critérios como os da qualidade e confiabilidade desta informação, cujos déficits comportarão variados riscos. Um desses riscos é a cibercondria, fenómeno analisado seguidamente neste texto. Estes tópicos reclamam a atenção dos vários intervenientes e stakeholders (ou partes interessadas), incluindo decisores políticos, profissionais de saúde e público(s). Num quadro em que é propalada a contribuição de todos no combate ao vírus, responder a emergências de saúde pública requer informações precisas, até para evitar o que se designa de “Utilização Problemática da Internet” (Caplan, 2005), que se refere aos efeitos menos positivos desta. Entre estes, destaca-se a sintomatologia iatrogénica (cognitiva, emocional e instrumental), com consequências e impactos a vários níveis (pessoais, familiares, laborais). Ainda assim, a Internet e as redes sociais digitais encerram oportunidades únicas para a participação e mobilização cidadãs no que à saúde e à doença concerne. Nesta web movimentação em saúde, assinalam-se solidariedades, que a crise do novo coronavírus mostrou com especial saliência e que convertem o ciberespaço em esfera pública potenciadora do incremento de ações neste domínio. Estas realidades são reflexo de movimentos e políticas de saúde, direcionados a narrativas de autonomia, capacitação e empoderamento do cidadão, e que têm conduzido a dinâmicas de emancipação cidadã, em formas de modelagem DIY da vida-saúde-doença, numa constelação camaleónica de práticas, algumas positivas e desejáveis, outras nem tanto. Esta crescente aversão ao risco e à incerteza faz notar-se em pesquisas online relacionadas com as características do vírus, formas e fontes de contágio e propagação, sintomatologia associada, grupos e perfis de risco, formas de prevenção da infeção, como atuar em caso de contágio (ou suspeita de), tratamentos e vacinas que estão a ser testados, previsão sobre a duração do vírus, dispositivos e equipamentos médicos necessários ao tratamento do doente, entre outras. Tal aversão consolida a prevenção como importante bio-valor. Nesta decorrência, a obtenção de informação verossímil sobre saúde assumir-se-á como capitalização da segurança e redução da incerteza. Por outro lado, fruto de uma maior reflexividade (Beck, Giddens e Lash, 1994) desencadeiam-se ações, não apenas baseadas na ocorrência concreta de problemas, como na probabilidade, mais ou menos estimada, de os mesmos poderem ocorrer. Em resultado, reconfigura-se o papel do cidadão na promoção da construção de saúde, individual e coletiva: “Seja um agente de saúde pública”, a mensagem promovida pela DGS, constitui um bom exemplo desse envolvimento esperado. Processa-se uma “saúde com o cidadão”, colocando este no “centro do sistema”, enquanto co-(Covid)-produtor de saúde, individual e coletiva. Em linha com este engajamento e imperativo sanitário, e ao mesmo tempo solidário, salienta-se um imperativo informacional. Um cidadão devidamente informado atuará como agente de saúde pública e envolver-se-á na promoção da saúde coletiva, pelo que a informação em saúde se assume como veículo que auxiliará à modelagem de comportamentos que visem, essencialmente, assegurar ganhos em saúde, para o indivíduo, enquanto beneficiário direto, seus próximos, e para as comunidades. A solidariedade é, deste modo, impulsionada e assumida como valor bioético (Prainsack e Buyx, 2011), na valorização de um “capital social” comunitário: genericamente, os níveis de confiança social partilhados numa comunidade, que conduzem à coordenação e cooperação mútuas para a obtenção de benefícios coletivos (Baum, 1999). Deste modo, o ciberespaço tem servido de palco à disseminação de “biopedagogias” (Rodney, 2019), Procura, consumo e partilha online de informação sobre saúde As dinâmicas de procura, partilha, produção e apropriação de informação sobre saúde decorrem de movimentos de democratização do conhecimento médico (Weinstein e Weinstein, 2015) e de crescente aversão ao risco e à incerteza (Zinn, 2008). 19 isto é, ensinamentos na regulação do corpo, e de um “marketing social em saúde” (Vance, Howe e Dellavalle, 2009) na divulgação de mensagens de saúde pública. No caso da Covid-19, mensagens que apelam ao distanciamento entre pessoas (tido por social, ainda que deva utilizar-se a expressão físico), à etiqueta respiratória, ao incentivo ao uso de máscara, à necessidade de confinamento e importância de o respeitar, à necessidade de contactar a Linha Saúde 24 (em Portugal), são disso bons exemplos. Acrescente-se que os organismos públicos da Saúde, organismos de regulação ética em Saúde e em Segurança Cibernética, Ordens Profissionais da Saúde, revistas especializadas, entre outros, dispõem de plataformas online, onde, “facilmente” se pode aceder a estas mensagens e a informação mais específica e, claro, oficial. Todavia, a avalancha informativa relacionada com a doença, provocando um verdadeiro “tsunami covid-informativo”, suscita várias questões. Uma delas prende-se, desde logo, com a qualidade e credibilidade da informação. Outras relacionam-se com as dificuldades na sua interpretação, aos diferenciais de literacia em saúde, mediática e em e-saúde, às possibilidades diferenciadas de apropriação instrumental da informação e, por inerência, aos riscos de algumas apropriações menos desejáveis, como é o caso da cibercondria. Com efeito, se a utilização da Internet, no quadro da Covid-19, pode ter efeitos positivos na obtenção de informação, auxiliando ao esclarecimento público, empoderamento e capacitação do cidadão para realizar escolhas e tomar decisões em saúde informadas e conscientes, haverá que não desconsiderar a “outra face da moeda”. Nesta “outra face” merecem destaque as redes sociais digitais. Plataformas como o Youtube, Twitter, Instagram, WhatsApp, fornecem acesso direto a uma quantidade sem precedentes de conteúdos, nem sempre fiáveis ou alvo de “fact-checking”, o que, frequentemente, promove o pânico (scaremongering). Até porque, a desinformação pode continuar a influenciar crenças e atitudes, mesmo depois de ter sido desmentida, se não for substituída por uma explicação causal alternativa (Nyhan e Reifler, 2015), já para não falar dos chamados “conteúdos zombie” que continuam a ser partilhados mesmo quando a página original deixa de estar ativa. Por isso, se tem apelado à necessidade de, por um lado, os agentes com responsabilidades na matéria, entre os quais os profissionais da Saúde, regularem a informação e, por outro, consciencializar e educar os públicos, apostando na literacia para os media e em e-saúde, para que o cidadão saiba reconhecer a desinformação e não a partilhe. No quadro da Covid-19, a não partilha de desinformação tem sido encarada como um ato moral, ético e solidário. No equilíbrio entre liberdade de expressão e o dever de não propagar desinformação, emerge o debate sobre as tensões entre liberdade individual e biossegurança coletiva. Estas constatações exigem um exame cruzado às desvantagens que a utilização da Internet para a saúde coloca, já que se salientam os riscos que uma utilização incorreta desta comporta a vários níveis, incluindo a não adoção de comportamentos de cidadania em saúde (Leite, Pontes e Pavão, 2015), entendida como um espetro de ações que varia entre a passividade e a proatividade, onde se insere a produção e partilha de conhecimento, o autocontrolo e autonomia no que respeita à saúde individual e coletiva, ou a adesão a medidas recomendadas que, na Covid-19, influencia a contenção da infeção. Todavia, haverá que dizê-lo, nem sempre será fácil fazer esse exercício de adoção de atitudes e comportamentos de cidadania em saúde, dados os baixos índices de literacia informacional, em saúde e em e-saúde, de grande parte da população, nomeadamente entre as gerações mais velhas, mas não só. A aposta nestas literacias releva-se fundamental, já que as mesmas contribuem para a capacitação do indivíduo. Mas a esta aposta deve juntar-se o reforço no acesso às ferramentas digitais, por parte daqueles que ainda não foram “vacinados” contra o “vírus” da infoexclusão. Tal é premente, dada a natureza e especificidades da informação em saúde, de carácter bastante sensível. Porque afinal, é a própria vida do cidadão que pode sair danificada. 20 o número de casos de cibercondria; ainda que, por incrível que possa parecer, em contextos de emergência de saúde pública, esta possa surgir como protetora da saúde individual, ao contribuir, através do medo exacerbado que cria, para a adesão a medidas e comportamentos recomendados, como o autoisolamento (Farooq, Laato e Islam, 2020). Pese a peculiaridade desta situação, a cibercondria pode tornar-se na questão de saúde mais premente, no que diz respeito à procura de informação sobre saúde na Internet, já que se perspetiva o aumento de situações de emergência sanitária, como pandemias (Garrett, 2005); e assim, um acréscimo desta procura. Será por isso fundamental reequacionar-se a educação em saúde, encarando-a como indissociável da educação para os media, acoplando, assim, vários tipos de literacia. Cibercondria Na pandemia por Covid-19, da procura, consumo e partilha de informação online sobre saúde, resultam, fundamentalmente, duas situações ou quadros: 1) a sobrecarga de informação agregada à “infodemia”, dando origem a uma “infoxicação” (Dias, 2014) ou a um “dilema de imersão tóxico” (Castronova, 2005), que resultam do confronto cognitivo, emocional e instrumental entre os benefícios proporcionados e os efeitos potencialmente “tóxicos” (nefastos) dessa imersão; e 2) a cibercondria ou “hipocondria digital”, que é definida como a procura online obsessiva por informação relacionada com a saúde e a doença, tipicamente direcionada a sintomatologia específica (Fergus e Russell, 2016). Esta procura obsessiva, impulsionada por uma necessidade de aliviar a ansiedade, gera reações em cadeia (por temores injustificados) que resultam, ao invés, em mais ansiedade e agudização dos sintomas (Starcevic e Berle, 2013), e exacerbação da angústia psicológica resultante da exposição repetida à informação sobre o vírus (Garfin, Silver e Holman, 2020), no caso da Covid-19. A ela estão associados comportamentos danosos e que colocam em risco a saúde, ou mesmo a vida, do utilizador, como sejam o autodiagnóstico, o autotratamento (medicamentoso e ou de outra índole), ou a compra online de medicamentos, sem, muitas vezes, se assegurar a sua origem e idoneidade. A ambiguidade das informações e a incerteza associada à “novidade” do vírus podem conduzir à perceção errónea das ameaças e de vulnerabilidade (gravidade e suscetibilidade percebidas) ao risco de contrair a doença, e são aspetos que apresentam correlação positiva com a cibercondria (Laato et al., 2020). Estes tópicos elevam a ansiedade e, em consequência, o aumento de procura por informação online (Jungmann e Witthöft, 2020), gerando um círculo vicioso. Tal está em linha com outras crises de saúde pública global: o mesmo ocorreu no contexto da crise H1N1, quando o aumento da incerteza e dos sentimentos de incontrolabilidade aumentaram a ansiedade em saúde (Taha, Matheson, e Anisman, 2014). Antevê-se que, em momentos de grande incerteza, como o da pandemia por Covid-19, aumente Webs solidariedades em saúde. Algumas das Covid-desigualdades Se o ciberespaço é campo da saúde, como vimos, nele sobressaem webs socialidades e solidariedades, em bricolagens de participação multifacetadas. Esta web-movimentação em saúde dá origem a bio militâncias que dotam com saliência @s redes sociais de ação biopolítica, isto é, de ações participativas assentes na saúde-doença-corpo. A participação ou movimentação online em saúde, associadas à Covid-19, entrecruzam razões sanitárias, associadas ao risco de todos poderem ficar infetados, com dimensões psicossociais, relacionadas com o medo, a angústia e a incerteza, mas também com a solidariedade. Atenda-se às narrativas em torno dos mais velhos e dos profissionais de saúde, que enfatizam “um dever especial de proteção” e assinalam políticas de identidade, reconhecimento e justiça social. No quadro da pandemia por Covid-19, estas dimensões fizeram notar-se com especial ênfase. Assistimos igualmente a uma escalada solidária, à escala planetária. Foram e são disso exemplo as várias campanhas de crowdfunding para a aquisição de equipamentos de proteção individual (EPI’S) e outro material, como sejam ventiladores, ou de bens e géneros para grupos desfavorecidos e pessoas 21 2014). Este tipo de trauma (secundário) resultou da empatia gerada em volta daqueles que estiveram, na “primeira linha” ou “linha da frente” submetidos ao trauma (primário), na luta pela sobrevivência dos doentes, nas unidades de cuidados intensivos, que muitos profissionais de saúde, em visível sofrimento, relataram. Defende-se a necessidade de partilhar mais estas histórias para elevar a “moral” do cidadão e mostrar o lado positivo da humanidade (Rathore e Farooq, 2020). Esta necessidade é mediada pelas políticas antes descritas (identidade, reconhecimento e justiça social), perante aqueles que colocaram a sua vida em risco para salvar outras vidas. No contexto visado, o relato destas experiências e as solidariedades geradas à volta delas, criam um valor simbólico, na valorização do trabalho dos profissionais de saúde, um valor material/instrumental, através das várias campanhas de recolha de fundos, como atrás se disse, ou um valor híbrido (simultaneamente simbólico e instrumental), pelos discursos que apelam à aposta política no setor, às críticas a cortes financeiros efetuados neste, à urgência na contratação de mais pessoal. A amplitude de países que aderiram aos aplausos das 20h aos profissionais de saúde, ilustra bem estas tendências e valores, visibilizando mais uma variante da participação online em saúde, em dinâmicas online-offline, rede-rua (ainda que à varanda ou janela). Como estratégias solidárias para contornar o confinamento, ganharam destaque produções DIY, de artistas vários, ou cidadãos comuns, tentando anular a sensação de distância física e de compressão do tempo (de um tempo ordinário, lento, repetido, igual). São disso exemplo as ciberleituras partilhadas, os webs-concertos, improvisados ou organizados, como o “One World: together at home”, considerado por muitos como o “Live Aid” em tempos de Covid, ou variadíssimos e poliédricos vídeos “domésticos” de entretenimento, que servem, entre outros, objetivos de manutenção de um nível ótimo e ou desejável de saúde mental. Nesta moldura, ouviram-se e entoaram-se ‘canções de esperança’: Everything’s Gonna Be Alright; Smile; What a Wonderful World; Somewhere over the rainbow... Todas estas dinâmicas são expressão daquilo que designo de “solidariedade viralizada”: mais atingidas pela crise económica e social associada à pandemia. Estas realidades espelham solidariedade(s) online para a saúde e doença (Demjén, 2016) e são expressão dessa web movimentação em saúde; ao mesmo tempo em que projetam uma “ética da saúde na Covid-19” (Fong e Devanand, 2020) que parte do sentimento e reconhecimento de vulnerabilidades mútuas (Baylis, Kenny e Sherwin, 2008). Visibilizaram-se, em decorrência, práticas partilhadas que refletem um compromisso coletivo de saúde e segurança públicas, em detrimento do interesse individual. Valores como os da partilha, cooperação, dádiva, esperança, são mobilizados para acentuar o papel do capital social comunitário e consolidar a confiança coletiva. Serve esta confiança, a partilha de relatos e de histórias pessoais relacionados com a doença. No caso da Covid-19, sendo ou não pessoa diagnosticada com o vírus e em quarentena domiciliária, sobrevivente à doença, ou cuidadora de pessoa infetada, o ciberespaço foi e tem sido veículo de narrativas que relatam, na primeira pessoa (ou também em nome de outros (já) ausentes), percursos de “sobrevivência”, resistência e resiliência, em estratégias adaptativas de enfrentamento, quer à doença, quer ao confinamento. Estas narrativas podem contribuir para a amenização de entropias associadas ao contexto pandémico. O(a) hashtag #ThanksHealthHeroes16 foi e continua a ser um(a) dos/das comummente usado(a) s em diferentes plataformas de redes sociais, para demonstrações de enaltecimento e gratidão aos profissionais de saúde que, por sua vez, partilham, também eles, experiências e relatos (telling stories) situados e encorpados (nunca melhor dito) de sacrifício e abnegação pessoal, dando origem a mensagens planetárias que os classificam como “heróis” (Bauchner e Easley, 2020). Tanto é assim que, nesta conjuntura, agudizou-se uma “traumatização vicariante”, que se refere aos danos e impactos emocionais que excedem a tolerância psicológica e emocional (Mathieu, 16 Este(a) hashtag foi criado(a) propositadamente no contexto da pandemia por Covid-19. 22 uma solidariedade digitalmente visualizada e ou replicada a larga escala; e “manifestações da solidariedade-espetáculo”, já que as expressões de solidariedade tendem, cada vez mais, a serem impactantes, criativas, inovadoras, e associadas ou conjugadas com exercícios culturais e encenações artísticas, nomeadamente musicais e teatrais. Estes webs movimentos, notados com efervescência na crise da Covid-19, transfiguram o ciberespaço num novo ‘espaço cénico’ e acentuam as tecnologias digitais como instrumento de liberdade, criatividade e superação, reforçando, ao mesmo tempo, a tendência de tecnologização dos tempos livres e dos lazeres. Num quadro paradoxal em que o distanciamento físico e espacial (e não necessariamente social, como foi e tem sido veiculado) aparece como aproximação afetiva (ao demonstrar atenção e solidariedade para com o outro, num registo de “fisicamente distantes, mas emocionalmente próximos”), origina-se uma web “solidão da procura” (Pais, 2006) que se orienta para o estabelecimento de redes de conexão. Tais redes contribuem para esbater a sensação de espacialidade física distanciada, tecendo novas espacialidades, e em que, de repente, as pessoas se tornam “terapeutas” mútuas e da comunidade. O confinamento não será assim sinónimo de “enclausuramento” ou “desenraizamento”, pelo menos, para alguns. O estabelecimento de contactos sociais intergeracionais online afirma-se como uma “solidariedade digital intergeracional” (Peng et al., 2018) que mobiliza dimensões emocionais e instrumentais entre gerações, numa espécie de antídoto digital no combate à solidão e ao isolamento dos mais velhos, e não só, e na utilização das ferramentas online. Para esta utilização, e como forma de minimizar déficits digitais, faz-se, frequentemente, uso das redes sociais mais próximas, também para a procura, e sobretudo para a interpretação partilhada e colaborativa das informações sobre saúde (online ou de outras fontes), naquilo que se designa de “literacia distribuída” (Edwards et al., 2015) em saúde, e que demonstra bem a relação entre saberes e poderes. Ressalve-se, porém, que, em alguns casos, a procura de informação sobre saúde na Internet para pessoas próximas ao utilizador (familiares, por exemplo), pode gerar neste uma “cibercondria por procuração” ou “cibercondria por proximidade” (Aiken e Kirwan, 2013). Por isso, tende já a considerar-se a e-conetividade como determinante social da saúde, podendo influenciá-la positiva, ou negativamente, consoante as utilizações e os perfis de utilizadores. No entanto, estas dinâmicas destapam desigualdades digitais várias. É por isso assinalada, também neste contexto sanitário-info-pandémico, uma ‘desigualdade de participação online’, que comporta a distribuição diferenciada de riscos e benefícios, e a que se “surfe” desigualmente, na esteira de Zygmunt Bauman, “as ondas de uma sociedade líquida” (Bauman, 2001); ou de um vírus obscuro e incerto. Reflexões finais Se é certo que a pandemia por Covid-19 salientou a importância de alterações profundas e significativas na textura quotidiana, de entre as quais a necessidade de des-digitalizar as nossas vidas e desacelerar os seus ritmos, para aprender a viver de outra maneira, revelou, paradoxalmente, tendências contraditórias que apontam rumo a um reforço das tecnologias digitais, às quais não são alheias pressões sociopolíticas e sociotécnicas para integrar o mundo do digital. Com efeito, esta pandemia acentuou a centralidade do digital no quotidiano da grande generalidade das pessoas. Emergiu à luz disso aquilo que designo de “confinamento ciber-espacializado” e que remete para a ubiquidade e preponderância das ferramentas digitais nas vivências do ‘confinamento’ e ‘desconfinamento’, seja ao nível do teletrabalho, na procura, visualização e partilha de informação sobre o vírus, nas compras online, no ensino à distância, na manutenção de interações sociais, na expressão das solidariedades, ou, simplesmente, no preenchimento e ocupação dos tempos de ócio. Se as ferramentas digitais acarretam simultaneamente oportunidades e desafios vários, em diversos quadrantes instiga-se o ciberespaço como esfera pública e espaço diferenciado(r) no quadro da Covid-19, algo que deve merecer a atenção, 23 presente e futura, dos vários stakeholders envolvidos e, desde logo, dos sociólogos. Uma nova governação da informação online sobre saúde, e das práticas em saúde mediadas pela Internet, é necessária e urgente. Esta deve abarcar, cada vez mais, os aspetos sociais e sociológicos das mesmas. Num tempo, dito de unidade e de resposta coletiva, encoraja-se o cidadão a uma utilização responsável e eficiente das tecnologias digitais para a saúde. Este encorajamento assenta em modelos biopsicossociais da saúde, que perspetivam o cidadão como parceiro dos cuidados, e surge associado à ideia de compromisso e de solidariedade, nos princípios bioéticos de não maleficência, beneficência e precaução. Se o cidadão é chamado a assumir tais responsabilidades como agente promotor de saúde, e para que esteja preparado para o fazer, haverá que facilitar os mecanismos e criar os ambientes de apoio à assunção dessas responsabilidades. Medidas públicas, colaborativas e concertadas, devem ser tomadas para consciencializar e proteger o utilizador, sobretudo o mais vulnerável às consequências indesejadas de uma incorreta utilização, no acautelar de iatrogenias resultantes. Nas “sociedades de risco” (Beck, 2015), devem também ser feitos esforços para combater os riscos da desinformação, que pode colocar em causa, no caso da informação sobre saúde, a saúde pública e a segurança individual e coletiva. Até porque, as crises de saúde pública são também crises de informação (desinformação, melhor dito), algo bem demonstrado nesta crise pandémica. A manutenção da confiança pública será fundamental para a consolidação do papel preconizado que o cidadão deve ter, no melhor interesse de ambos, decisores e cidadãos. Para a construção e sedimentação dessa confiança é essencial que se acompanhe, monitorize e avalie o modo como a sociedade percebe as decisões públicas nesta matéria. Tal deve ser acompanhado pela atenção aos microcontextos imersivos dos atores sociais e ao estudo da sua influência mediadora. Esta atenção pode ajudar à conceção de modelos epidemiológicos de educação em saúde que usem estratégias de comunicação mais eficientes, direcionadas aos vários públicos. O foco nos determinantes sociais das práticas online em saúde e nas consequências e impactos sociais destas, acompanha um movimento da própria saúde pública (uma Sociologia da Saúde Pública?…) que tende a centralizar-se nos determinantes e influências ambientais e encorpadas. Para tal serão necessárias estratégias que tenham como alvo os segmentos populacionais mais débeis ao nível do digital, que são também os mais vulneráveis a exclusões encadeadas e interdependentes, com repercussões neste domínio. Assinala-se assim, aquilo que podemos designar por “uma interseccionalidade do digital”, multiplicadora de forças e desigualdades, e em que diferentes usabilidades digitais potenciam diferentes resultados. Se a Internet pode reduzir o atrito do espaço, ela não eliminará a importância do(s) lugar(es). Tal, não impede à regulação17 da informação online sobre saúde, que responderá a objetivos, não somente de saúde pública, mas de defesa da verdade (em tempos de ‘pós-verdade(s)’). Esta deve ser percecionada como mais uma das facetas do ‘investimento na saúde’, tão apregoado em crises sanitárias e ou pandémicas. Numa linha da sociologia crítica, esta é uma matéria que envolve não apenas o entendimento público da informação, mas o envolvimento dos públicos com essa informação. Deve, por isso, estender-se o conceito de cibersegurança e atender às suas dimensões compósitas e fronteiriças, para poder fazer face à evolução da sociedade da informação nos próximos anos, tentando garantir, tal como na pandemia, que “ninguém fique para trás”. O futuro, incerto e ou desejado, que esta crise antecipa, é mobilizado como objeto de reflexão sobre os tempos atuais e sobre os contributos que esta pandemia pode dar a esse(s) futuro(s). Que o compromisso e envolvimento de todos para uma responsável e tão propalada “nova normalidade”, seja seguido de “novas normalidades” no que ao digital concerne. Neste contexto, 17 Efetuada, por exemplo, por plataformas como a do projeto CovidCheck.pt. Este é um projeto de divulgação informativa do MediaLab-ISCTE, em colaboração com a SPP e o CENJOR. O projeto é financiado pela iniciativa Gulbenkian Soluções Digitais Covid-19, promovida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Tal projeto acompanha a tendência de “fact-checking” informativo. 24 BRIGGS, Charles L.; HALLIN, Daniel C. (2016), Making health public: how news coverage is remaking media, medicine, and contemporary life, London and New York, Routledge. CAPLAN, Scott E. (2005), “A social skill account of Problematic Internet Use”, Journal of communication, 55(4), pp.721-736. CASTRONOVA, Edward (2005), Synthetic worlds: The business and culture of online games, Chicago, University of Chicago Press. 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Siglas, acrónimos e abreviaturas SARS-CoV-2 OMS IS-UP MSC ONU H1N1 DIY DGS MEDIALAB ISCTE SPP CENJOR Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 Organização Mundial de Saúde Instituto de Sociologia da Universidade do Porto Munich Security Conference (Münchner Sicherheitskonferenz, em alemão) Organização das Nações Unidas (the influenza type A virus, conhecido como “swine flu” ou “Gripe A”) Do It Yourself (Faça Você Mesmo) Direção-Geral da Saúde Media Laboratório Instituto Universitário de Lisboa Sociedade Portuguesa de Psicanálise Centro Protocolar de Formação Profissional para Jornalistas Referências bibliográficas AIKEN, Mary; KIRWAN, Gráinne (2013), “The psychology of cyberchondria and cyberchondria by proxy”, in Andrew Power e Grainne Kirwan (Edit.), Cyberpsychology and New Media: A Thematic Reader, London, Psychology Press, pp.158-169. BAUCHNER, Howard; EASLEY, Thomas J. 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De acordo com a queixa dos agentes do setor, a cultura enfrenta mudanças especialmente radicais em tempos de quarentena: por um lado, em um curto espaço de tempo esse mercado viu suas atividades se reduzirem a praticamente zero, já que quase todas envolvem aglomeração de pessoas e, portanto, risco de contaminação mais acentuado; por outro lado, os poucos criadores que tinham a possibilidade de disponibilizar sua obra em formato virtual precisaram rapidamente se adaptar a esse modelo, já que essa solução parcial e improvisada parecia ser a única maneira possível de continuar operando. Entre os que dependem do segmento para sobreviver, um lamento é exaustivamente repetido: “os setores criativos estão entre os primeiros que foram afetados pela crise e deverão ser os últimos a se recuperarem dela” (Canedo, et al. 2020). No Brasil, a julgar pela maneira como o governo federal conduz as pastas, tanto da saúde, quanto da cultura, tudo indica que essa situação particularmente frágil do campo cultural durante a pandemia terá um desfecho ainda mais dramático. 18 Doutorando do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseiro de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) o projeto “Transglobal indie: a configuração ds cenas de rock independente de Porto e Fortaleza pelas ruas das cidades (1980 – 2020)” (SRFH/BD/140040/2018) sob orientação científica da Professora Doutora Paula Guerra. E-mail: pedromenezes89@gmail.com 26 Do ponto de vista da saúde, os números revelam que o Brasil é um dos piores países do mundo no que diz respeito ao combate ao coronavírus. De acordo com os dados oficiais disponibilizados pelo Ministério da Saúde em meados de junho, altura em que escrevo esse texto, ocupamos o segundo lugar mundial, tanto em número de casos confirmados, com mais de 800 mil diagnósticos positivo, quanto de óbitos, com as mortes a superar a marca dos 40 mil. Enquanto muitos países veem uma melhoria das suas estatísticas, no Brasil a curva de contaminações e de óbitos ainda é ascendente: já se registram mais de mil mortes por dia e sequer atingimos o pico da doença. Embora o cenário já seja alarmante, a realidade, provavelmente, é muito pior do que sugere esse levantamento, pois, contrastado com a força-tarefa deflagrada em outros países, o Brasil realizou pouquíssimos testes: segundo dados do mês de maio, enquanto os Estados Unidos haviam testado 10 milhões de americanos, no Brasil apenas 735 mil pessoas foram submetidas ao mesmo teste19. Confrontado com essa paisagem, o Presidente da República Jair Bolsonaro vem adotando uma atitude abertamente negacionista: contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de outros especialistas, Bolsonaro subestima a gravidade do coronavírus; critica o isolamento social; exige a reabertura do comércio e o retorno de todas as atividades; estimula, promove e até lidera aglomerações de pessoas; alimenta a teoria conspiratória de que os governadores dos estados e a mídia inflacionam mentirosamente os números com o intuito de desestabilizar a gestão presidencial; e, por fim, defende o uso da hidroxicloroquina como tratamento capaz de curar a covid-19, embora não haja nenhuma comprovação cientifica nesse sentido. Para impedir que Bolsonaro ponha em prática essas medidas rechaçadas pela medicina, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou duas decisões que reduzem as competências do presidente e conferem mais autonomia aos prefeitos das cidades e aos governadores dos estados no que diz respeito à batalha contra o coronavírus20: a primeira decisão, do dia 15 de abril, deu aos chefes dos executivos municipais e estaduais a liberdade de determinar as regras de isolamento que vigorariam em suas respectivas regiões. A segunda decisão, do dia 6 de maio, permitia que esses mesmos gestores pudessem decretar o fechamento das fronteiras da unidade que governam. Com essas resoluções jurídicas, a margem da qual Bolsonaro dispõe para concretizar suas ideias tornou-se mínima. Enquanto isso, na esfera federal, durante a subida vertiginosa do número de casos e de mortes, em menos de um mês, dois ministros da saúde, médicos, foram demitidos ou constrangidos a se demitir por não terem adotado o mesmo discurso presidencial anticientífico, de crítica ao isolamento e defesa dos supostos poderes milagrosos da hidroxicloroquina. Entre os dias 15 de maio e 3 de junho, período em que o país registrou 337.160 novos casos da doença e 14.817 óbitos por ela causados21, o cargo de Ministro da Saúde permaneceu vago. No dia 3 de junho, o Presidente nomeou interinamente para a pasta, Eduardo Pazuello, general do exército sem formação em medicina ou áreas afins. Até o momento, ainda não se sabe quem ocupará o ministério em caráter efetivo. Sob a gestão de Pazuello, o Ministério da Saúde protagonizou mais um escândalo mundialmente noticiado: o órgão retirou do seu site oficial as informações atualizadas sobre o avanço da pandemia no Brasil. Logo depois, as informações voltaram ao ar de maneira parcial e extremamente duvidosa, omitindo os números de contaminação e mortes acumulados e revelando apenas os dados do dia corrente, mas, mesmo esses, 20Politicamente, o Brasil se divide em 27 unidades federativas, sendo 26 estados e um Distrito Federal, e cada um desses estados se divide em cidades. O chefe do executivo das unidades federativas é o governador, e o chefe do executivo das cidades é o prefeito. 21 https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-oficializa-general-pazuello-como-ministro-interino-da-saude-1-24459898 19 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-ultrapassa-marca-de-200-mil-casos-de-coronavirus-apesar-de-ter-numero-baixo-de-testes,70003303538 27 bastante inferiores às médias diárias que vinham sendo até então computadas. Toda essa desinformação atirou em descrédito os dados oficiais publicados pelo Ministério da Saúde, o que levou os mais importantes meios de comunicação do país a se juntar para apurar números mais precisos a partir do somatório dos dados de cada uma das 27 unidades federativas em que o país se divide. Ainda que uma nova decisão do Supremo Tribunal Federal tenha obrigado o governo a voltar a divulgar os números tal como estava sendo feito antes de todo esse imbróglio, hoje boa parte da opinião pública já não acredita nessas informações, e caminha sonâmbula sem saber ao certo em que estágio a doença se encontra. Mesmo com esse quadro, a covid-19 não parece ser uma prioridade do Presidente, que dedica a maior parte dos seus esforços a tentar resolver conflitos palacianos criados por ele mesmo, proteger-se das acusações que cada vez chegam mais perto de si e dos seus filhos políticos, e, principalmente, aparelhar a máquina estatal com militares de sua confiança e promover manifestações semanais de cunho golpista dedicadas a constranger opositores, a imprensa, os demais poderes e outras instituições da República. Por acumular episódios dessa natureza em plena expansão do coronavírus, Bolsonaro atraiu todos os holofotes internacionais para o Brasil e para si, sendo inclusive laureado pelo jornal The Washigton Post com o prêmio de pior chefe de Estado do mundo na cruzada contra a covid-1922. A situação da cultura será, mais detalhadamente, tratada em uma seção própria desse artigo. Por ora, o que pode ser antecipado é que lá o ambiente não é melhor que o da saúde. Ao longo da atual gestão, a cultura vem sendo, ora atacada, ora abandonada, tanto no plano simbólico (enquanto livre manifestação do espírito), quanto no plano institucional (enquanto agenda). No que diz respeito à dimensão simbólica, Bolsonaro ecoa as teorias conspiratórias de um ideólogo brasileiro sem diploma, radicado no estado americano da Virgínia, comportando-se como se estivesse em meio a uma guerra cultural entre, de um lado, sua visão de mundo conservadora, e, de outro, toda e qualquer forma de existência que não se enquadre dentro das rígidas e estreitas arestas desse pensamento retrógrado. Dito em termos definitivos, o presidente metonimicamente confunde uma parcela muito específica do Brasil com o país inteiro e, assim, julga que tudo o que não pertence ao arquétipo do que chama “cidadão de bem” (uma caricatura do homem branco, heterossexual, cristão e de direita), não é brasileiro, mas uma ameaça externa que supostamente desejaria colonizar esse “verdadeiro” Brasil. No aspecto institucional, a pasta foi rebaixada de ministério a secretaria e, a princípio, integrada ao Ministério da Cidadania (mais um Frankenstein burocrático que o presidente criou fundindo ministérios), mas depois jogada para o Ministério do Turismo. Desde a posse de Bolsonaro, quatro secretários já passaram pela cadeira sem que nenhum tenha proposto algo concreto ou com a capacidade de atender às demandas de um país culturalmente diverso e de proporções continentais como é o Brasil. A última ocupante do cargo foi oficialmente exonerada de sua função no dia 10 de junho, três semanas após ter sua saída anunciada e ter parado de trabalhar de fato. Até agora, ninguém foi nomeado para o seu lugar. Nesse sentindo, para os fins de um artigo que intenta analisar as consequências da covid-19 no campo cultural brasileiro e as respostas do poder público para a crise no setor, talvez a primeira informação que precise ser fixada é: saúde e cultura, as duas pastas que interessam mais diretamente ao tema desse estudo, estão acéfalas, sem nenhum gestor efetivo à frente de seus respectivos órgãos. Diante do painel aqui traçado, questiono: Quais serão os efeitos do coronavírus no campo da cultura no Brasil? Como o executivo nacional tem tratado essa questão? Quais serão as consequências da postura do governo federal em face dos problemas que a pandemia traz para a cultura? Ancorada em estudos quantitativos sobre esse mesmo recorte (Canedo, et al. 2020; Machado et 22 https://www.washingtonpost.com/opinions/global-opinions/jair-bolsonaro-risks-lives-by-minimizing-the-coronavirus-pandemic/2020/04/13/6356a9be-7da6-11ea-9040-68981f488eed_story.html 28 al., 2020), a presente análise busca fornecer um complemento qualitativo e diacrônico para essas mesmas interrogações que nortearam esses trabalhos mais técnicos. Para cumprir essa meta, esse texto traçará o seguinte caminho: primeiro, farei um resgate sociogenético da trajetória descrita pelo campo da cultura no Brasil, assumindo como ponto de partida o período em que foram fincadas as bases que o sustentaram até hoje e tomando como ponto de chegada a subida de Bolsonaro ao poder, momento em que esses alicerces estão sendo abalados. Com esse esforço, almejo entender que legado o atual presidente recebeu, para, em seguida, discutir o que ele tem feito com essa herança. Após esses momentos partirei para um debate mais específico sobre os impactos da covid-19 no campo cultural, as estratégias desenvolvidas pelos agentes que compõem a área, as projeções futuras e, principalmente, o comportamento do governo federal diante desse desafio. Nas considerações finais, após o estudo tanto das implicações da pandemia na cultura quanto da conduta do executivo nacional em meio a essa crise, pretendo sublinhar os possíveis desdobramentos dessa problemática em outros agentes de poder da República, notadamente, os prefeitos das cidades, os governadores dos estados, o poder legislativo nacional, o Supremo Tribunal Federal e a imprensa. No Brasil, o campo cultural não se organiza nem da maneira acima descrita, nem da maneira oposta, ou melhor, não se organiza nem só de um jeito, nem só de outro, mas se serve de ambos, mesmo que sejam inversos. Colocando em termos claros, pode-se dizer que, no campo cultural brasileiro, Estado, mercado e artistas nem puramente rivalizam, nem apenas se ajudam, mas duelam e cooperam simultaneamente, firmando um tenso arranjo que consegue a proeza de se equilibrar na própria instabilidade justamente porque transforma forças disruptivas em novas formas de vínculo: as arestas desse triangulo separam e conectam os seus vértices ao mesmo tempo. Estado Os pilares dessa construção foram erguidos durante o período da ditadura militar brasileira (1964-1985). O governo da época estabeleceu com a cultura uma ambivalente relação de apoio na forma e controle no conteúdo: por um lado, o regime implementou todas as medidas técnicas e institucionais para que pudesse florescer no Brasil um mercado massificado de produção e consumo de bens e serviços simbólicos (apoio na forma); mas, por outro lado, o mesmo governo capaz de fazer esse investimento também censurava, perseguia, exilava, prendia, torturava e matava os criadores egressos desse parque industrial de arte e entretenimento que a própria ditadura ajudou a erigir (controle no conteúdo). Nesse contexto, “o Estado deve, portanto, ser repressor e incentivador das atividades culturais” (Ortiz, 2006:116), um paradoxo definido por muitos sociólogos e sociólogas como uma “modernização conservadora”23 (Dias, 2008; Ortiz, 2006; Ridenti, 2014) ou, simplesmente, uma “moderna tradição brasileira” (Ortiz, 2006). O campo da cultura no Brasil: o triângulo Estado-Mercado-Artistas No senso comum, existe a crença de que Estado, mercado e artistas seriam inimigos naturais com interesses antagônicos: o Estado, com sua máquina burocrática hipertrofiada, desejaria engolir todas as atividades; o mercado, inspirado pelo liberalismo econômico, fugiria do controle estatal com o objetivo de lucrar cada vez mais; e os artistas, esses espíritos sensíveis e contestadores, ensejariam uma obra livre que denunciasse a tirania de ambos. Por mais disseminada que seja essa prenoção, a realidade dos fatos é mais complexa do que esse imaginário sugere, como prova a experiência brasileira (Ortiz, 2006; 2012). 23 Segundo Dias, essa é uma “expressão utilizada por MARTINS, L. Pouvoir et développement économique. Paris: Anthropos, 1976, p. 22, inspirando-se na expressão de Barrington Morre para designar o processo de substituição da economia agrário-exportadora pela industrial por meio de um pacto entre Estado e classes dominantes.” (Dias, 2008: 81) 29 “A expansão das atividades culturais se faz associada a um controle estrito das manifestações que se contrapõem ao pensamento autoritário. (...) O movimento cultural pós-1964 se caracteriza por duas vertentes que não são excludentes: por um lado se define pela repressão ideológica e política; por outro, é um momento da história brasileira onde mais são produzidos e difundidos os bens culturais. Isto se deve ao fato de ser o próprio Estado autoritário o promotor do desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada” (Ortiz, 2006: 114-115). Ridenti (2014) segue o mesmo raciocínio de Ortiz, “O processo da revolução burguesa – na sua especificidade autoritária e dependente, numa sociedade com desenvolvimento desigual e combinado, como a brasileira, em que o atraso é estruturalmente indissociável do progresso, o arcaico inseparável do moderno – seria coroado com o movimento de 1964” (Ridenti, 2014:36) Dentre as principais medidas técnicas e institucionais que a ditadura militar tomou para forjar esse mercado cultural, bem como os acontecimentos que se deram em decorrência desse investimento, podemos citar: em 1965, a criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL) e a entrada do Brasil no INTELSAT, o sistema internacional de satélite; em 1966, a criação do Conselho Federal de Cultura, do Conselho Nacional de Turismo, da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (EMBRATUR), do Instituto Nacional de Cinema (INC), e a definição de um política nacional de turismo; em 1967, criação do Ministério das Telecomunicações, do Sistema Nacional de Turismo e a realização do I Encontro Oficial de Turismo Nacional; em 1968, realiza-se a I Reunião dos Conselhos Estaduais de Cultura; em 1969, é criada a Empresa Brasileira de Filmes (EMBRAFILME); em 1970, o Ministério de Educação e Cultura (MEC) passa por uma reforma administrativa que cria, em sua burocracia interna, novos órgãos voltados para a cultura, como o Departamento de Assuntos Culturais (DAC); em 1972, há a criação da Telecomunicações Brasileiras S.A (TELEBRÁS) e se realiza o I Congresso da Indústria Cinematográfica Brasileira; em 1973, o DAC lança o 1° Plano de Ação Cultural; em 1975, inaugura-se a Fundação Nacional de Artes (FUNARTE) e o Centro Nacional de Referência Cultural, o primeiro Plano Nacional de Cultura é publicado, a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro é lançada, realiza-se o I Encontro Nacional dos Dirigentes de Museus, e a EMBRAFILME é ampliada, absorvendo as competências do INC, que, por essa razão, é extinto; em 1976, são fundados o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), a Empresa Brasileira de Comunicação – Radiobrás, e é realizado o I Encontro Nacional de Cultura; em 1979, o DAC é elevado ao estatuto de Secretaria de Assuntos Cultuais, cria-se a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Fundação Pró-Memória e se realizam o I Seminário Nacional de Artes Cênicas e o I Encontro Nacional de Artistas Plásticos Profissionais (Ortiz, 2006). Mas, certamente, a mais relevante de todas essas medidas foi a criação de um sistema de comunicação de micro-ondas – iniciado em 1968 e completado em 1970, quando chega à Amazônia – “que viabiliza a aproximação de todos os cantos do país” (Dias, 2008:55), “permitindo a interligação de todo o território nacional” (Ortiz, 2006:118). Em paralelo a essas medidas de estímulo burocrático e tecnológico à cultura, crescia também o aparato de repressão cultural e política da ditadura, que sufocava o conteúdo produzido pelo campo que o próprio governo ajudou a criar. No dia 13 de dezembro de 1968 é publicado o Ato Institucional 5 (AI-5), resolução do governo militar que radicaliza e escancara a violência do Estado ditatorial. Dentre as muitas medidas repressivas está a institucionalização da censura de obras culturais. É em meio a esses sinais trocados que o mercado massificado de bens e serviços simbólicos e a indústria da arte e do entretenimento se desenvolvem no Brasil. Mercado Com o apoio técnico e institucional do Estado, o comércio da cultura no Brasil muda de nível: abandona-se uma fase aventureira baseada no faro, no instinto e no amadorismo otimista de pioneiros 30 impulsivos que se confundem com suas próprias empresas (Assis Chateuabriand seria o tipo ideal weberiano [2009] mais bem acabado desse empresário), e se inicia um período de maior racionalização, especialização, profissionalização e modernização controlado por figuras impessoais que delegam funções e desaparecem atrás do próprio império midiático (caso de Roberto Marinho). (Ortiz, 2006:135) Para adotar um tom frankfurtiano, pode-se dizer que a cultura brasileira passa a aceitar a lógica sistêmica da economia, convertendo-se em uma “indústria cultural” de fato (Adorno e Horkheimer, 2006). Os dados da época comprovam que o mercado reagiu à injeção do Estado: em 1964, havia 32 empresas de televisão no Brasil, dez anos depois passam a ser 75. Essa subida foi fundamentalmente conduzida pelas novelas: foram lançadas 195 entre 1963 e 1969, fazendo do Brasil a nona audiência mundial de televisão em 1975. O cinema mostra a mesma curva ascendente: entre 1957 e 1966, o Brasil produziu, em média, 32 longa-metragens por ano. Apenas entre 1967 e 1969, esse número salta para 50. Só em 1975 são lançados 89 filmes e em 1980, 103. O número de espectadores nos cinemas brasileiros também cresce: de 203 milhões em 1971 para 250 milhões em 1976. O mercado editorial passa de 43,6 milhões de livros editados em 1966 para 245,4 milhões em 1980, e de 104 milhões de exemplares de revistas em 1960 para 500 milhões em 1985 (Ortiz, 2006). No mercado fonográfico, as vendas também explodiram: a venda de toca-discos cresceu 813% entre 1967 e 1980 e o lucro das empresas fonográficas, entre 1970 e 1976, aumentou 1375%. (Dias, 2008; Morelli, 2009). O setor cresceu 7% em 1970, 19% em 1971 e 26% só no primeiro semestre de 1972 (Morelli, 2009). Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Discos, se em 1966, 5.5 milhões de discos foram vendidos no Brasil, a cifra passou para 52.6 milhões em 1979 (Vicente, 2014), ano em que o Brasil passou a ocupar o 6° lugar no ranking do mercado de discos, tendo saltado oito posições em uma década (Morelli, 2009). Na publicidade, assiste-se à mesma tendência: 152 milhões de cruzeiros são investidos no setor em 1964 (0,8% do Produto Nacional Bruto), sendo que 12 anos depois esse valor passa para 12,6 bilhões (1,28% do Protudo Nacional Bruto). Em 1974, o Brasil é o sétimo mercado de propaganda do mundo, superando países como a Itália, a Holanda e a Áustria. Esse é um período em que várias universidades públicas e privadas abrem cursos de publicidade: Universidade de São Paulo em 1966, Álvares Penteado em 1967, Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1968, ISCM em 1969. É nessa altura também que surgem as associações de profissionais da área: Associação Brasileira de Anunciantes em 1961, Conselho Nacional de Propaganda em 1964, Federação Brasileira de Marketing em 1969; bem como os institutos de pesquisas mercadológicas: Mavibel em 1964, Ipsem e Nopem em 1965, Gallup, Demanda e Simonsen em 1967, Ipape, Audit-TV e Sercin em 1968, Nielson e LPM em 1969 e Grande Parada Nacional em 1973 (Ortiz, 2006; Vicente, 2014). Na fotografia, também se vê a mesma tendência: se o país tinha apenas 7.921 fotógrafos em 1950 e 13.397 em 1960, após o golpe militar os números passaram para 25.452 em 1970 e 48.259 em 1980 (Ortiz, 2006). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o número de domicílios brasileiros com aparelhos de rádio era de 4.776.300 em 1960, 10.383.763 em 1970 e 19.203.907 em 1980, e com aparelhos de televisão 62.919 em 1960, 4.250.404 em 1970 e 14.142.924 em 198024. Enquanto isso, a ditadura militar declarava guerra aos mesmos criadores que ela havia ajudado a criar com seu investimento técnico e institucional no campo da cultura, selando com o mercado da arte e do entretenimento o estranho pacto de apoio formal e controle conteudístico acima mencionado. A indústria tinha a plena consciência que devia sua expansão ao governo militar, por isso, subservientemente, tolerava a intolerância da ditadura e considerava a censura das obras uma espécie de contrapartida justa que os generais cobravam em troca de tanto investimento no setor. Prova disso é o protocolo de autocensura que a TV Globo e a TV Tupi assinaram em 1973, comprometendo-se a censurar internamente suas 24Fonte: censos demográficos do IBGE dos respectivos anos. 31 esquerda propunham um retorno a uma suposta essência original do povo, acreditando que essa matriz virginal seria libertária. Se, para o centauro Estado-Mercado, o passado conservador era o fim da história para onde o progresso nos levaria, para os artistas, o futuro revolucionário estava inscrito no ADN da natureza humana, razão pela qual, à maneira do Angelus Novus de Paul Klee analisado por Walter Benjamin, tentavam “escovar a história a contrapelo” (Benjamin, 1985: 225). Contudo, essa não era uma luta entre duas frentes que se chocavam, mas entre dois círculos concêntricos: o tradicionalismo revolucionário dos artistas era exercido no âmago da máquina tecnocrática da modernização conservadora engendrada por Estado e mercado. “A derrota política de 1964 e o avanço da indústria cultural cobravam seu preço para a sobrevivência dos artistas. Aqueles ligados à música popular – diretamente vinculados à indústria fonográfica e à televisão – parecem ter sido dos primeiros a ver que não teriam como escapar do mercado.” (Ridenti, 2014: 117). Esse triângulo Estado-mercado-artistas continuou balizando o campo da cultura no Brasil, mesmo após a retomada da democracia. próprias produções antes de submetê-las à censura oficial do Estado. “Não há, portanto, um conflito aberto entre desenvolvimento econômico e censura. Evidentemente os empresários têm prejuízo econômico com as peças, livros, programas, filmes censurados, mas eles têm consciência que é o Estado repressor que fundamenta suas atividades” (Ortiz, 2006:121). Ensanduichados entre Estado e mercado, estavam os artistas. Artistas Os artistas que abertamente criticavam a ditadura militar e por ela eram perseguidos produziam suas obras amparados pelas empresas privadas ou estatais que cresceram por conta do investimento técnico e institucional do governo no campo da cultura. “No princípio dos anos 1970, sob o governo Médici, quando se consolidou o processo de modernização conservadora da sociedade brasileira, a atuação dos artistas de esquerda foi marcada por certa ambiguidade: por um lado, a presença castradora da censura e a constante repressão a quem ousava protestar, que implicou a prisão, o exílio e até mesmo a morte de alguns deles; por outro lado, cresceu e consolidou-se uma indústria cultural que deu emprego e bons contratos aos artistas, inclusive aos de esquerda, com o próprio Estado atuando como financiador de produções artísticas e criador de leis protecionistas aos empreendimentos culturais nacionais” (Ridenti, 2014: 286). Ainda segundo Ridenti (2014), a inimizade íntima entre ditadura e indústria cultural era tão explícita que a estratégia empregada pelos artistas de esquerda para combater essa “modernização conservadora” foi uma espécie de “tradicionalismo revolucionário”25; quer dizer: por um lado, a improvável aliança entre Estado e mercado usava a teleologia do progresso como meio de atingir um futuro reacionário; por outro lado, os artistas de Cultura e redemocratização O campo cultural brasileiro se assenta nesse tripé Estado-mercado-artistas criado no período da ditadura militar. Os presidentes civis que sucederam os generais diferiam bastante uns dos outros no que dizia respeito às políticas culturais, contudo, embora cada um conservasse suas idiossincrasias, todos consideravam a cultura uma importante ferramenta de modernização e uma poderosa arma de veiculação de suas ideias, quaisquer que elas fossem, e todos mantiveram a triangulação Estado-mercado-artistas concebida na época da ditadura. Desse modo, independente das respectivas metas de cada chefe do executivo nacional, a cultura sempre esteve a serviço de todos esses diferentes projetos. Uma análise pormenorizada da gestão da cultura levada a cabo por esses outros governos, como foi feito aqui 25 A expressão exata usada por Ridenti é “romantismo revolucionário” (2014), mas adapto aqui para “tradicionalismo revolucionário”, para que fique mais clara a simetria invertida com a “modernização conservadora” de seus opositores. 32 com o período militar, escapa aos objetivos desse texto. Por isso, apenas pontuarei as principais realizações de cada mandatário na área da cultura, para que se tenha uma noção do legado que Bolsonaro herdou. Em 1985, o Presidente José Sarney cria o Ministério da Cultura, e assim finalmente o setor ganha uma pasta própria, pois até então cultura e educação dividiam um mesmo ministério. Na gestão seguinte, a cultura sofre um duro golpe: o recém-criado ministério é rebaixado à condição de secretaria em 1990 pelo Presidente Fernando Collor. Ainda assim, é no mandato de Collor que se dá um importante marco das políticas públicas culturais no Brasil: a assinatura da Lei Federal de Incentivo à Cultura, popularmente conhecida como “Lei Rouanet”, em referência a Sérgio Paulo Rouanet, Secretário de Cultura responsável pela criação da medida. Sancionada em 1991, a Lei Rouanet é a explicitação máxima do triângulo Estado-mercado-artistas em que se funda o campo cultural brasileiro: em linhas gerais, a resolução institui que entidades privadas (pessoas físicas ou jurídicas) que financiarem determinados projetos culturais, previamente aprovados pelo Estado, terão um abatimento em seu imposto de renda. Em 1992, Collor renuncia à presidência da república logo depois da Câmara dos Deputados aprovar a abertura do seu processo de impeachment. No mesmo ano, o vice-presidente Itamar Franco assume o governo federal e recria o Ministério da Cultura. Fernando Henrique Cardoso é eleito presidente em 1994 e, durante os oito anos de seus dois mandatos, acresce uma série de medidas à Lei Rouanet, aumentando seu escopo e fortalecendo o triângulo Estado-mercado-artistas. Entre 2002 e 2016, o Brasil é governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), primeiro com dois mandatos de Lula da Silva, a que se seguiram dois mandatos de Dilma Rousseff, sendo o segundo precocemente interrompido por um golpe de Estado. De um ponto de vista simbólico, dois movimentos significativos marcam a gestão cultural do primeiro partido declaradamente de esquerda a ocupar o executivo nacional desde o fim da ditadura militar: o primeiro gesto ecoa as então recentes resoluções da UNESCO (2002, 2005) para aquele início de milênio, e reconhece institucionalmente a diversidade cultural como uma característica definidora da identidade nacional brasileira. Ao afirmar que o Brasil tem uma “identidade diversa”, o PT mostra que é possível aproximar esses dois termos historicamente imiscíveis – já que a “identidade” sempre remeteu ao monolítico, enquanto a “diversidade” aponta para o polissêmico –, tomando assim a diferença como aquilo que temos em comum e a pluralidade como nosso traço singular (Ortiz, 2015). O segundo gesto, intimamente relacionado ao primeiro, diz respeito à inversão do vetor que media a relação entre Estado e população no que concerne à cultura, ou seja: ao invés de uma cultura oficial professoralmente empurrada do Estado para o povo, de cima para baixo, o Estado abraça a estratégia de simplesmente fornecer os meios para que as diferentes manifestações populares possam se manifestar tais como se enxergam. A política dos “pontos de cultura” dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira ilustra esse movimento de descentralização e de aumento da capilaridade: ao invés de ser uma central irradiadora de cultura, o Ministério se dilui ao longo do território nacional, fomentando uma rede cujos nós são os pontos de cultura. Esses são anos em que a Lei Rouanet é amplamente usada, chegando ao ponto de ser erroneamente tomada como uma criação do Partido dos Trabalhadores. Em 2016, conforme comentado acima, um golpe de Estado depõe Dilma e passa a faixa presidencial para o, até então, vice-presidente Michel Temer, um dos principais artífices do golpe. O curto período de Temer na presidência não se configura como um mandato propriamente dito, já que se prestou mais a interromper o projeto petista e a apagar seu legado, do que a inaugurar um novo governo propriamente dito. Como era de se esperar, esse esforço por desfazer os feitos da esquerda mirou a cultura, e fracassou: assim como Collor, Temer tentou rebaixar o Ministério da Cultura à condição de Secretaria, mas uma onda de manifestações contrárias à decisão obrigou-o a recuar, mostrando que os anos de investimento na pasta a fortaleceram, marcando a cultura fundo no imaginário nacional dos brasileiros. Eis que Bolsonaro se torna presidente do Brasil. 33 As políticas de incentivo à cultura via renúncia fiscal, por exemplo, à maneira da Lei Rouanet, que sempre foram a principal injeção financeira no setor e explicitavam o triângulo Estado-mercado-artistas em que o campo se baseava, passaram a ser estigmatizadas como mecanismos de cooptação para comprar o apoio político de artistas. A decisão que melhor ilustra essa postura do governo Bolsonaro foi aquela que Temer tentou tomar, mas não levou adiante: rebaixar o Ministério da Cultura à condição de Secretaria Especial, uma pasta que já teve quatro ocupantes e que agora está vaga. O penúltimo a assumir o cargo foi demitido após fazer um pronunciamento oficial citando textualmente um discurso de Joseph Goebbels, Ministro de Propaganda da Alemanha nazista. Mesmo as eventuais relações que Bolsonaro mantem com setores da cultura e dos meios de comunicação são baseadas em laços de compadrio altamente personalizados e não em critérios técnicos e racionais. A proximidade que o Presidente mantém com o dono do Grupo Record, o bispo evangélico e fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, e com o dono do grupo SBT, Silvio Santos, ilustram esse tipo de vínculo. Apenas para dar um exemplo: diante da desidratação do seu apoio popular e político, Bolsonaro precisou oferecer cargos em estatais e em ministérios em troca do suporte de parlamentares, uma prática fisiológica que, durante a campanha, ele havia prometido extinguir. Para encontrar um lugar para seus novos credores, o Presidente está recriando pastas que havia encerrado no começo do mandato. Um desses órgãos ressuscitados foi o Ministério das Comunicações, oferecido a Fabio Faria, deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD) e genro de Silvio Santos. Com a chegada da Covid-19 ao país, a situação do campo cultural brasileiro se fragilizou ainda mais. Dada a extensão desse artigo, não pretendo aqui trazer um novo volume de dados estatísticos, mas os levantamentos quantitativos aqui referenciados comprovam a agudeza do quadro (Canedo et al., 2020; Machado et al., 2020). Um dos estudos (Canedo et al., 2020), por exemplo, detectou que 89% dos promotores culturais consultados Bolsonaro, a cultura e a pandemia A chegada de Bolsonaro ao poder representa o fim de uma era, no que diz respeito à gestão federal da cultura. Ao contrário de seus antecessores, o atual Presidente da República e ex-deputado federal por seis mandatos, não enxerga a agenda da cultura como uma ferramenta de desenvolvimento ou um meio para se atingir um fim, independente de qual ele seja. Desde que assumiu o cargo, Bolsonaro tem se dedicado a desarticular a tríade Estado-mercado-Artistas, que organiza o campo da cultura no Brasil desde a ditadura militar. Seja por ironia do destino ou por dialética hegeliana, um ex-capitão do exército declaradamente entusiasta da ditadura militar brasileira se tornou o coveiro de um modelo rascunhado pelo regime totalitário que ele tanto idolatra. O pacote de austeridade neoliberal encabeçado pelo Ministro da Economia Paulo Guedes lastreia esse desmonte da máquina pública. Ao invés de investir nesse campo, Bolsonaro adota métodos de comunicação próprios em suas redes sociais virtuais, coordenadas por um de seus filhos. No momento, essa estratégia heterodoxa está sendo investigada pela justiça, pois há a suspeita de que a família do presidente lidere uma rede de disseminação de notícias falsas financiada com dinheiro público. Como sinalizado na introdução desse texto, a condução da cultura durante o atual governo oscila entre o abandono e o ataque, seja no plano simbólico (com a cruzada contra uma suposta ameaça interna ao “cidadão de bem”), quanto institucional (com o corte de verbas e a desarticulação burocrática da agenda). Enquanto artistas, professores universitários, imprensa e lideranças de grupos historicamente marginalizados são ofendidos pelo presidente e seu círculo, a máquina estatal voltada para a cultura vai sendo paulatinamente enfraquecida: órgãos são extintos, ministérios tem seu estatuto rebaixado, agendas totalmente diferentes são fundidas, departamentos são absorvidos por estruturas burocráticas com quem não tem nenhuma relação, e entidades passam a ser chefiadas por pessoas que dedicaram suas vidas pregressas a combater justamente a bandeira que aquela instituição deveria defender. 34 precisaram cancelar eventos desde o início da pandemia. Além disso, 46% não consegue antecipar o número de possíveis cancelamentos para o segundo semestre desse ano e 52% também não sabe estimar os cancelamentos para 2021. Desde o início desse mandato presidencial, alguns vultos da cultura brasileira faleceram, seja vitimados pelo coronavírus, seja por outras razões (João Gilberto, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Rubem Fonseca, dentre outros), e sequer uma nota de pesar foi divulgada pelo ocupante ocasional da Secretaria Especial de Cultura. Até o momento em que concluo esse texto, o executivo nacional não propôs nenhuma medida para contornar a crise sem precedentes que a pandemia trouxe para o setor. tese de doutoramento, estudo a relação entre os coletivos de músicos independentes de Fortaleza, a capital do estado do Ceará, e o poder público municipal. Lá, há dois editais do governo do estado e um da prefeitura da cidade especificamente pensados para a cultura durante a quarentena. Em entrevista recentemente realizada com dois músicos de uma banda fortalezense, pedi que eles falassem sobre a relação com os governos federal, estadual e municipal, e eles me revelaram que o nível de dependência da banda em relação a essas três esferas é inversamente proporcional à dimensão de cada uma: sobre o governo federal, o apoio “nem existe”, no estadual “há tentativas”, e acerca do centro cultural mantido pela prefeitura de Fortaleza que lançou o edital ao qual a banda recorreu, um dos artistas disse: “Eu acordo todo dia com medo de que ele se acabe”, ao que a outra completou: “Bate na madeira!”, superstição brasileira usada para espantar alguma desgraça dita. Além da questão da cultura, outros atores políticos também tentam preencher a lacuna deixada aberta pelo executivo nacional no que tange a questão do coronavírus: como já citado, o Supremo Tribunal Federal, que deu maior autonomia aos governadores e aos prefeitos, ou os veículos de imprensa, que têm feito uma força tarefa para descobrir os dados reais sobre o avanço da doença. Ao lado desses esforços, os artistas seguem fazendo suas lives e inventando outras táticas de guerrilha para sobreviver, com ou sem apoio, inspirados pelos versos de Aldir Blanc que nos falam que “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”26. Portanto, como se pode ver, a falta de iniciativa do executivo nacional diante dos impactos da pandemia no campo cultural brasileiro, assim como diante de outras áreas, criou um vácuo que rapidamente foi preenchido por toda sorte de figuras (prefeitos das cidades, governadores dos estados, poder legislativo, Supremo Tribunal Federal, imprensa, artistas, etc.), que se viram, involuntária e inesperadamente, catapultadas ao Considerações finais Escrever um artigo sobre a ação do governo federal diante dos impactos da pandemia no campo cultural brasileiro impõe uma grande dificuldade metodológica: analisar algo que não existe. Contudo, a omissão do executivo nacional acerca desse problema acaba por gerar efeitos em outros poderes, reposicionando o espaço dos possíveis que compõem o campo político do país (Bourdieu, 1996), e essa movimentação de placas tectônicas me parece sociologicamente interessante. Saindo da esfera da presidência da república, é possível identificar uma série de medidas destinadas a socorrer a área da cultura em tempos de coronavírus. Há a Lei Aldir Blanc, batizada em homenagem ao compositor morto pela doença, de autoria da deputada federal Benedita da Silva (Partido dos Trabalhadores), relatada na câmara pela deputada Jandira Feghali (Partido Comunista do Brasil) e no senado pelo senador Jaques Wagner (Partido dos Trabalhadores). Aprovada por unanimidade e sem alterações no dia 26 de maio na câmara e 4 de junho no senado, a lei, que ainda aguarda sanção ou veto presidencial, prevê uma injeção de três bilhões de reais na cultura, a serem repassados para Estados e municípios. Os líderes executivos e as câmaras legislativas dos Estados e dos municípios, por sua vez, elaboraram seus próprios editais devotados ao segmento. Em minha 26Trecho da letra de “O Bêbado e a Equilibrista”, de Aldir Blanc e João Bosco 35 nível federal tendo que pensar ações de dimensão nacional, ainda que, oficialmente, ocupem posições de menor envergadura. Sob o risco de incorrer em um otimismo vazio, deve-se reconhecer que essa rearticulação de poder é sim uma grave crise, e que a falta de uma direção unificada em nível nacional gera problemas de desarticulação em toda a cadeia. Contudo, como me confessou a artista fortalezense na entrevista supracitada, “o pessimismo pode ser bom também”, e, se é verdade que as notícias preocupam, também é certo que vivemos em um momento inédito, em um momento em que as posições do campo se movem velozmente, empurradas pelos ventos da mudança. RIDENTI, Marcelo (2014), Em Busca do Povo Brasileiro, São Paulo, Unesp. UNESCO (2002), Declaração Universal Sobre Diversidade Cultural. UNESCO (2005), Convenção Sobre a Proteção e Promoção das Diversidade das Expressões Culturais. 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ORTIZ, Renato (2015), Universalismo e Diversidade, São Paulo, Boitempo. 36 ARTE, ARTOPIAS E PANDEMIAS contestação e na invariável importância da dimensão cultural e artística das organizações humanas. Num momento em que se discutem as vivências, os efeitos e impactos da situação atual de pandemia relativa à doença que indubitavelmente marcará a recém iniciada terceira década deste século – COVID-19 – o que estará na mira das nossas expetativas e reflexões é – uma vez mais – o modelo social vigente, ora na significativamente dubitável oportunidade de superação, ora no mais plausível agravamento das suas características neoliberalizantes, traduzidas numa indelével precariedade económica, social, política e cultural. Que expectativas se desenham face ao arremesso impiedoso de uma grande parte da população para limiares de significativa vulnerabilidade? Serão suficientes as vontades coletivas aparentemente agregadoras “na desgraça” para a sua superação? A constatação imediata e generalizada da necessidade de um Estado providencial e protetor torná-lo-á efetivamente fundamental nas organizações societais contemporâneas? Haverá resistência ativa quanto baste para a mudança que se pensa/defende ser necessária? Oportunidade de transformação radical ou de reforço inexorável? O campo artístico e cultural surge como um dos primeiros a denotar os impactos desta pandemia e respetivas colateralidades. Estas traduzidas no cancelamento de espetáculos, exposições, no encerramento de espaços culturais e artísticos públicos e privados, na cessação de atividades daí decorrentes, no confinamento e na estagnação de outras tantas atividades que podem equacionar-se como laterais ou alternativas para o exercício de atividade remunerada. Na verdade, se estamos perante um periclitante exercício de atividades – essencialmente devido à significativa precariedade a si associada, mas, sobretudo, às relações laborais precárias generalizadas, à intermitência da (irre)solução política sistemática, à persistência de não o encarar na sua especificidade e no seu valor social essencial –, deparamo-nos agora não só com o vislumbre de todas as evidências enunciadas, como com os resultados catastróficos das mesmas. Este tema tem sido objeto contínuo e sistemático de atenção e reflexão. Através de vários meios (académicos, médias, redes sociais, Susana Januário27 Fotografia 1 – Culture Foto: Miguel Januário29 serves Capitalism. Autor: Rero28. Pensar a cultura e as artes implica-nos num exercício de desafio reflexivo amplo, no qual devem caber interpretações possíveis e oxímoros passíveis de contraditório e de discussão. A peça de Rero que abre este ensaio é útil para percebermos o quanto e o quê esta afirmação questiona no que respeita não só à esfera cultural e artística, mas, sobretudo, ao modelo social em si. Efetivamente, se à primeira vista o que estará em questão é a mercantilização da cultura e das artes – e a inerente relativização da sua autonomia –, um segundo olhar implica-nos nos efeitos desta relação no campo cultural, mas também no próprio modelo social, em termos não só da sua consubstanciação, mas também na sua 27 Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) o projeto “Artopia. Trajetos, interseções e circunstâncias das manifestações artísticas urbanas de pendor alternativo no Portugal contemporâneo” (SFRH/ BD/122002/2016) sob orientação científica da Professora Doutora Paula Guerra. E-mail: spjanuario@gmail.com. 28Street-Artist francês (n. 1983), cujo trabalho e intervenções gravitam em torno do que pode designar-se arte urbana e arte concetual. Rero questiona a própria arte e as suas convenções e códigos, colocando em perspetiva, questionando, nomeadamente as noções de propriedade (intelectual/autoral) e imagem. 29A obra em questão foi oferecida a Miguel Januário, artista plástico, criador-autor do Projeto ±MaisMenos±, que gentilmente nos cedeu a foto e autorização de utilização da mesma. 37 como alternativas em espaços (semi) etc.) vai-se tomando conhecimento da públicos urbanos catalisadores de um fragilidade e vulnerabilidades sociais subcampo artístico emergente no Portudas pessoas cujas atividades, no mais gal contemporâneo. Trata-se de maniamplo sentido, estão ligadas à esfera festações que cruzam artes, saberes e cultural e artística. E daqui se comprova disciplinas tradicionalmente menos connão só o quanto se potenciou esta situasagrados pelo cânone artístico e, porção, como o seu resultado que, sem quanto, disruptivas em relação às lógicas rodeios ou eufemismos, desemboca na e cânones instituídos, materializando condição de emergência social. novas formas de criação/produção, receDenota-se a resiliência dos afetação e convenção artísticas. Tomando dos, através da persistência em tornar como referência alguns dos casos em pública, de forma dinâmica e ativista, estudo31, intenta-se salientar algumas a situação, não só a relativa às afeções concretas na vida das pessoas – a cam- Fotografia 2 – Campanha iniciativas artísticas e culturais criadas e panha #unid@s pelo presente e futuro “Unid@s pelo presente e promovidas em tempos de pandemia da cultura em Portugal constituirá o pelo futuro da cultura em e confinamento social. Portugal” exemplo eventualmente mais mobiliza30 dor –, como também às necessárias Da efetivação dos riscos e da modelização recriações no sentido de garantir a possibilidade da arte e da cultura de usufruição da arte e da cultura, demonstrando claramente a sua essencialidade ao nível social. A situação de pandemia que se vivencia constiA resiliência e a capacidade reativa constituem tuirá elemento operatório de verificação empírica objeto essencial desta reflexão. A capacidade criadas abordagens filosóficas e sociológicas que tiva – da qual procuraremos dar conta de forma conceptualizam as sociedades contemporâneas mais incisiva – depara-se com um desafio comnum tempo e espaço para lá da modernidade, plexo que, acima de tudo, exige ativismo e mobiem especial e inevitavelmente as que as perspelização e estes implicam um desafio ainda maior: tivam como sociedade de risco. A noção de risco um necessário coletivo, um agregado consistente surge como fundamental para perceber a cultura que urge urdir e consubstanciar. Mas é, acima de das sociedades atuais e, sobretudo, a criação de tudo, nossa pretensão essencial evidenciar que, cenários possíveis consubstanciados na criação apesar do apontado, houve um esforço imediato de (novas) áreas de imprevisibilidade. Espera-se de artistas, produtores, gestores, técnicos e tantos que as pessoas convivam com uma variabilidade outros em encontrar formas de recriar a sua proconsiderável de riscos globais e pessoais mutuadução e atividade, perante a pandemia e aquilo mente contraditórios, os quais se resumirão à em que a mesma veio a consistir. entrega do destino do indivíduo, cada vez mais Este exercício radica na investigação no âmbito individualizado, a si próprio. A individualização do programa de doutoramento em Sociologia surge como forma social (Beck, 1998). que estamos a desenvolver - Artopia: Trajetos, interseções e circunstâncias de manifestações artísticas urbanas no Portugal contemporâneo. Procura-se compreender manifestações artísticas tidas, pelo menos no momento da sua génese, 31 Os casos de estudo em profundidade privilegiados na investigação em questão são: o Festival Guimarães Noc Noc (Guimarães), o Maus Hábitos (Porto), o Festival Jardins Efémeros (Viseu), o Festival A Porta Leira), o Festival Iminente e a Galeria Zé dos Bois (Lisboa), o LAC – Laboratório de Atividades Criativas (Lagos) e o Festival Walk&Talk (Ponta Delgada). 30 Foto cedida igualmente por Miguel Januário, tendo sido esta a sua forma de expressão relativamente à adesão à campanha em questão. 38 O paradoxo da banalização e a virtualização do risco, por seu turno, acaba por ser a teia que nos faz a todos inconscientes incautos, domesticados na virtude heroica do desafio a que o risco nos arremessa. Sennett (2001), aludindo a Beck, esboça esta interpretação do risco no âmbito do trabalho e das relações laborais, ao afirmar que a “disponibilidade para o risco (...) já não se destina apenas a ser terreno de capitalistas de risco ou de indivíduos extraordinariamente aventureiros. O risco torna-se uma necessidade diária suportada pelas massas” (Sennett, 2001: 125). No que respeita especificamente à arte e cultura, a situação de pandemia confronta-nos a nu com a forma como o setor em Portugal (e de forma generalizada ainda que com algumas nuances diferenciadoras) se (in)sustenta, pela evidência despudorada das consequências da vivência e “disponibilidade” para o risco, e de como o modelo social e económico – neoliberalizante – integrou a arte e a cultura e as instrumentalizou com assentimento e legitimação devidas. Da omissão da cultura e da arte – pelo constrangimento de confinamento e suspensão das atividades e produções artísticas e culturais – resulta a notabilização da sua importância, ao mesmo tempo que se desvela a sua modelização liberal, traduzida na precariedade, fragilidade e fragmentação. Bauman (2013) coloca o problema de forma eloquente, ao afirmar que a cultura – e a sua esfera artística em particular – é modelada de modo a ajustar-se à liberdade de escolha e responsabilidade pela escolha, assumindo como função a garantia de que essa escolha seja uma necessidade contínua e de que a responsabilidade pela mesma recaia – na medida da condição humana líquida-moderna – no indivíduo. Questiona-se se esta individualização não será uma conveniente parangona da elite dominante, “que projeta no indivíduo a ilusão da possibilidade de se autorrealizar” (Bauman, 2013: s/p). McRobbie (2003; 2016), olhando para a cultura enquanto setor, desconstrói de forma incisiva a ideia e narrativa do “empreendedor criativo”, sustentada na autonomização e autossuficiência do indivíduo, livre de qualquer força externa institucional, prejudicial à sua individualidade criativa, como o Estado. Sendo a partir da autorresponsabilização individual que se iliba o Estado de uma (se não a maior) obrigação democrática fundamental – a de zelar pelo bem-estar social da população –, ao mesmo tempo que se protege as grandes empresas corporativas e instituições dos compromissos sociais, ao libertá-las da contratualização de pessoas e inerentes responsabilidades associadas à força de trabalho. Aqui assenta a falácia desoladora e lamentável do Do It Yourself (DIY) em formato neoliberalizado – “ser livre para fazer a sua própria coisa” – e se patenteia a neoliberalização da economia na esfera cultural (McRobbie, 2003)32. É nesta espécie de efabulação que se tem vindo a sustentar, dissimulando, uma área que, ainda que reconhecidas as suas potencialidades no âmbito do amorfo conjunto das indústrias culturais, se carateriza por agregar atividades e serviços significativamente desregulamentados, por baixos retornos de capital e por assentar significativa e generalizadamente no autoemprego e nos baixos salários/rendimentos. Face ao capital cultural considerável que detêm, as pessoas que integram o setor mostram-se capazes de ser individualistas em virtude dos seus ativos, estarão bem colocadas como agentes da nova meritocracia anti-igualitária, onde o lema é “seguir em frente” no que respeita a problemas, investir em contatos sociais e em redes (estar fora do circuito pode significar estar sem emprego) e na autoimagem e imagem – elementos cruciais no ethos fundamental: o do sucesso. Trata-se, no fundo, de um novo estrato da classe média proletarizado, auto-explorado e desprotegido socialmente (McRobbie, 2003). No que respeita a Portugal, salienta-se os trabalhos de Guerra (2013; 2018; Bennett & Guerra, 2019), incidentes sobretudo nas trajetórias de músicos, 32 Veja-se também Campbell (2013) a respeito da atração (dos jovens) pela autonomia do processo criativo, que decorrerá em parte de uma socialização – que dociliza, motiva e estimula – para formas mais autónomas de trabalho/emprego menos convencionais, institucionalizadas e regulamentadas, por isso mais atrativas, mas que consubstanciam trajetórias profissionais caraterizadas pela precariedade e à margem dos sistemas de proteção social. 39 programadores e agentes culturais/musicais portugueses, cujas trajetórias profissionais são transversalmente caraterizadas pela precariedade. A perspetiva do setor e das suas características enquanto tal radicam na problemática mais abrangente que se prende com a esfera global da arte e da cultura no seio das sociedades contemporâneas. E ainda que se possa vislumbrar as diferentes abordagens em conjuntos diferenciados entre si33, não é possível escamotear as modelização e instrumentalização da arte e da cultura na sociedade contemporânea, manifestas, não só na incontornável tendência para valorizar o económico em detrimento do simbólico, como nas “políticas culturais instrumentais” cujos fins se distanciam do essencial, devido à expansão e dispersão de âmbitos, perdendo-se foco e coerência (Morató, 2010). Lopes (2010), seguindo Arantes (2007)34, assinala que parte desta instrumentalização decorre, precisamente, da associação da narrativa capitalista ao cultural turn que, numa segunda fase, viria a desembocar na generalização de que “tudo é cultura”, “onde o estético invade o quotidiano e a cidade, de forma a impor o image making: a cultura como imagem e representação, na senda de um capital volátil e intangível” (Lopes, 2010: 53). Ainda, e desta feita ao nível da criação artística propriamente dita, coloca-se a questão de como dirimir o que alguns assinalam como o desgaste da inovação, a perda de significado e a tendência para a integração da produção artística no mainstreaming e consequente perda da sua dimensão transgressiva (Morató, 2010). A cultura serve a cultura A discussão em torno da modelização da arte e da cultura não pode empurrar-nos para fora da essencialidade, diríamos epistemológica, destas. A reflexividade poderá ser a mais valia a considerar, mas numa nova narrativa, ou seja, fora daquela em que a mesma não passa de um mero elemento de instrumentalização. É da reflexividade que deverão emergir as necessárias novas narrativas que desafiem o neoliberalismo, a exacerbação do individualismo e, consequentemente, façam erigir o coletivismo e cooperação. O reencontro com a criatividade faz-se voltando ao fundamental, uma vez que é, como nos aponta Simmel (1988), através da cultura que o homem pode vincular o exercício pleno da sua reflexividade e da capacidade de se fazer objeto de si mesmo. Daí que, perante a modelização e instrumentalização da criatividade, das condições de trabalho e de criação a que estão sujeitas as pessoas que criam, que cooperam na criação, que medeiam e que operam, insistimos em considerar com veemência que a essência da criatividade é humana e precede qualquer modelo organizativo, seja social ou institucional, e é resiliente em si. E é num manifesto em prol da criação artística e da cultura que procuramos discernir a potencialidade da criação apesar das contingências e vicissitudes. Delas se fará registo com intenção histórica. Acreditamos que daqui se possa compreender, ainda assim, que a arte e a cultura o são em si mesmo um posicionamento sobre a sociedade e não apenas um mero reflexo do tempo contextual (Guerra et al., 2019; Guerra & Januário, 2016). Assim, apresentamos três casos e respetivas iniciativas que acompanhamos de forma casuística durante o período de confinamento devido à pandemia decorrente da COVID-19. 33Ora as que relevam o processo de mercadorização e reificação da arte e da cultura e consequente banalização de uma estetização simulada e indiferenciada (Adorno, 2001; Lipovetsky & Serroy, 2013; Debord,1991; Baudrillard, 2006), ora as que perspetivam a expansão e centralização das questões culturais na concetualização das relações (e respetivas implicações) entre a cultura, a economia e a sociedade (Featherstone, 1991; Jameson, 1991), de que são exemplos as propostas do cultural turn (Chaney, 1994), o processo de artificação defendido por Shapiro (2007) e, ainda, a noção de sociedade da cultura (Morató, 2010). 34ARANTES, O. (2007), “Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas”, in AAVV, A Cidade do Pensamento Único. Desmanchando Consensos, Petrópolis, Vozes. #Festival Iminente Emergency Edition – 4 de abril de 2020 Esta edição especial do Festival Iminente, em live streaming a partir de várias plataformas, consistiu numa mostra artística eclética e multidisciplinar, 40 Quando há 4 anos lançamos o mote “O melhor é ficares em casa” nunca imaginámos que esta pequena ironia, uma espécie de psicologia reversa, viesse ganhar um sentido real. Agora estamos mesmo todos em casa, e o melhor é realmente seguir à risca a instrução. Com vista a animar a malta e ajudar aqueles que estão na linha da frente na luta contra o Covid-19 em Portugal, apresentamos uma edição especial online do Iminente associada a uma campanha de angariação de fundos para os dois hospitais de referência no tratamento desta pandemia. Conversa, música, performance, dança, live painting. É, mais do que nunca, uma experiência de intensa intimidade colectiva. Cada um na sua, mas todos juntos para espantar o medo e abraçar a vida. Contamos contigo! Cartaz 1 – Iminente Emergency (apresentação e line-up) · Fonte: https://www.facebook.com/events/586780408584766/ com vista à usufruição artística, tendo como desígnio a angariação de fundos para dois centros hospitalares de referência na resposta à COVID-19. Esta edição decorreu em direto entre as 16h00 e as 23h20 do dia 4 de abril de 2020. Os propósitos da iniciativa estavam claramente explícitos e funcionaram como estímulos à adesão das pessoas: a dimensão artística e de usufruição “animar a malta”; “uma experiência de intensa intimidade coletiva” – e uma social/de solidariedade – “espantar o medo e abraçar a vida”; “cada um dá o que pode (...) o valor angariado reverte para os hospitais”. Apostou-se em duas dimensões fundamentais da arte e da cultura: a criação artística e usufruição, potencialmente interativa e performativa (Hennion, 1989; Guerra et al., 2019; Acord & DeNora, 2008) e o ativismo, não só representado por algumas das propostas artísticas, como pela intenção de mobilização em torno de uma causa solidária. O line-up desta edição do festival assentou na premissa de multidisciplinaridade e ecletismo artísticos e perpassou as várias rubricas programáticas do Festival (talks, performances, dança, concertos, artistas visuais), representadas por diversos artistas que, na sua maioria, estão de certa forma ligados às várias edições do Iminente35. O Festival Iminente ancorou-se numa estrutura especializada e em consolidação (que se foi materializando ao longo das várias edições) que evidencia um grau crescente de profissionalismo, patente nos vários profissionais que envolve (diretores, diretores executivos, produtores, curadores) e num consistente processo comunicacional, 35Marta Bateira – aka Beatriz Gosta (Talk), Hugo Oliveira (Concerto), ±MaisMenos± (Performance), Julinho KSD (Concerto), Mariana Barros (Performance), Prétu (Concerto), Piny (Dança), Tamara Alves (Artes Visuais), Ana Moura (Concerto), Mayra Andrade (Concerto), Mucha x Wilson Core (Dança/B-boys battle), Dino D’Santiago (Concerto), Shaka Lion (Concerto), DJ Marfox (Concerto). O Festival Iminente foi criado em 2016 com o intuito de reunir a música à arte “numa experiência de intensa intimidade coletiva”. Sendo a expressão multidisciplinar e multicultural – e (sub)cultural – a essência do Festival, o Iminente procura materializar o lugar de mostra de criações artísticas inovadores que vão caracterizando a cena artística urbana portuguesa contemporânea. Ao caráter essencial da promoção da expressão multicultural e urbana, junta-se a intenção de promoção de novos projetos e propostas artísticas nas mais variadas disciplinas, a par de outros já reconhecidos e/ou consagrados.•O Iminente surge pela iniciativa de Alexandre Farto – aka Vhils – e de algumas pessoas que consigo partilham a mesma visão de mundo e experiências vivenciais e artísticas. As primeiras duas edições do Festival, iminentemente experimentais e de pendor informal, acontecerem em Oeiras, tendo em 2018 passado para Lisboa (Panorâmico de Monsanto). A par das edições nacionais, o Festival Iminente estendeu-se a Londres (2017 e 2018), a Xangai e Rio de Janeiro, em 2019. A intenção é criar pontes, apostando na partilha da expressão artística lusófona internacionalmente. 41 a cargo de uma empresa especializada em design e comunicação (Solid Dogma). Tal como as edições físicas – mormente as mais recentes –, a aposta na comunicação evidencia-se na divulgação que os mais diversos órgãos (nos mais diferenciados formatos – redes sociais, canais de televisão, jornais, sítios especializados da Internet) fazem do Festival. #Maus Hábitos – abril e maio de 2020 O Maus Hábitos, espaço de intervenção cultural e artística, situado no Porto, confrontado com o encerramento do seu espaço e cancelamento geral da programação, procurou, entre os meses de abril e maio de 2020, readaptar-se às contingências, recriando parte da sua programação habitual e criando novas propostas de intervenção. Eis alguns exemplos. #Hábitos de Quarentena consiste na disposição online de podcasts que dão continuidade às rubricas programáticas habituais (festas, mixtapes, DJ Set, clubbing) do espaço, sob o lema: “Se não podes ir ao Maus Hábitos, o Maus Hábitos vai a tua casa”. Cartazes 2 e 3 – Hábitos de Quarentena (meses de abril e maio) Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/ Outras Conversas: Entre-vistas com o Baeta – João Baeta, artista plástico e membro da direção da Saco Azul, entrevista vários artistas que expuseram na Mupi Gallery (espaço Mupi dos Maus Hábitos reservada à exposição de trabalhos de artes visuais, sob curadoria do moderador das conversas) – projeto, criado de raiz, pela Saco Azul. Cartaz 4 – Outras Conversas: Entre-vistas com o Baeta Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/ (In)sanidade em Rede – uma “proposta de programação online para estados de emergência. Físicos e mentais”, onde se desafia, por sessão, um convidado a fazer uma leitura de um texto de um artista importante para si. Cartaz 5 – (In)sanidade em rede Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/ 42 #obratório é proposta da Saco Azul para a criação de “um repositório digital participativo das obras que habitam as nossas casas e das histórias que as acompanham, através de um hashtag no Instagram”. Está-se perante o que se pretende que seja um “acervo virtual”, “um repositório aberto” de fotos de obras que cada um possa ter em casa. Convida-se a partilhar essa foto no Instagram com o hashtag #obratorio, indicando o autor e descrição da obra. Cartaz 6 – #obratório Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/ Aposta-se na recriação da agenda física, pela sua transformação em formato digital, à distância – como o apresentado –, e na criação de propostas inéditas de divulgação artística, como são os casos que de seguida se apresenta. Destaca-se que estas iniciativas são, na íntegra, da responsabilidade da Saco Azul – a Associação Cultural (entidade jurídico-formal) que abraça a ideia original de criação e divulgação artísticas do projeto Maus Hábitos. A estrutura do Maus Hábitos evoluiu consideravelmente ao longo do tempo, conferindo ao projeto maior consolidação. De uma dinâmica comunitária informal, encabeçada sobretudo por um grupo de artistas, os quais, numa lógica de DIY, se uniram para levar a cabo os seus próprios projetos artísticos, paulatinamente, o Maus Hábitos transformou-se numa referência cultural local e nacional. O potencial adquirido e consequente institucionalização verificam-se também numa estrutura com recursos humanos, financeiros, organizativos e materiais de robustez significativa, o que justifica a capacidade de resposta imediata ao encerramento do espaço e das suas atividades devido à pandemia. Destes processos resulta, pois, uma tendência, inerente à sua consolidação, para institucionalização do projeto, visível na consagração do mesmo no campo artístico, pelos públicos e pelas estruturas de informação e conhecimento (Januário, 2019). E da profissionalidade construída, destaca-se a gestão do espaço e da comunicação – o domínio desta constituiu a pedra de toque na diferenciação e, obviamente, na resistência e resiliência. A detenção dos meios e recursos inerentes (técnicos e tecnológicos) a esta dimensão comunicacional explicam, também e em grande parte, a mobilização referenciada. Mais uma vez firmam-se determinantes os processos de mediação proclamados por Hennion (Guerra et al., 2019). O espaço Maus Hábitos surge na viragem do século/milénio, num 4º andar de um edifício na baixa do Porto. Descoberto por um dos seus fundadores – Daniel Pires –, o andar é arrendado para levar a cabo, em conjunto com alguns amigos, a concretização de uma ideia: a de criar um espaço onde amigos e artistas se pudessem encontrar e estar juntos e mostrar os seus trabalhos artísticos. O “Maus Hábitos” vai surgindo como lugar de experimentação artística (oficina, exposições, concertos...). Em 2002, é a criada a Associação Saco Azul, uma associação cultural que surge para abraçar a ideia artística original e conferir ao projeto entidade jurídica e estrutura formal. A Associação Saco Azul assume-se como a estrutura artística do projeto que acontece no espaço Maus Hábitos. Destaca-se a abertura à heterogeneidade e diversidade, dando visibilidade a novas propostas artísticas e respetivos autores, na oportunidade de (con)vivência entre estes e os já “na praça”, o que potencia o estabelecimento e progressão de carreiras artísticas. 43 O LAC - Laboratório Actividades Criativas foi obrigado, por força das circunstâncias actuais, a encerrar os seus espaços e suspender e adiar toda a programação em curso. Numa primeira fase, ficámos como que em “estado suspenso”, depois, assim como muitas outras estruturas sentimos a necessidade de aproveitar a vivência destes tempos, sobretudo do que de positivo nos pode trazer - uma outra (ou mais) liberdade de acção associada a duas grandes necessidades; uma, a de encontrar outras experiências imaginativas de programação e produção de modo a continuar a criar oportunidades para criadores, artistas, agentes culturais e equipes técnicas envolvidas que fazem acontecer os eventos, e por outro lado, a de retribuir os manifestos de apoio vindo por parte do público que nos segue, instituições e inúmeras parcerias que construímos ao longo da nossa existência. O LAC – Dia Fechado (Em Casa) irá ser apresentado nos dias 02 e 03 de Maio, em exclusivo nas plataformas digitais Facebook e Instagram do LAC. Assim e dadas as circunstâncias actuais e com um espírito de positividade, convidamos todos, de um modo geral, nesta fase de confinamento, a conhecer de perto o “work in progress” dos criadores e artistas, os novos projectos que estão a ser desenvolvidos e os novos processos e formas de trabalho que tivemos que (re)inventar. Cartaz 7 – LAC – Dia Fechado (Em Casa) Fonte: https://www.facebook.com/lac.lagos/ dos artistas em residência36. Está-se perante uma estrutura, diferentemente das duas anteriores, cuja territorialidade se constitui como inexorável à sua consolidação e reconhecimento. E é desta forma que se assume – uma associação num território “periférico”, mas cuja missão se adequa ao seu espírito fundacional: potenciar um espaço de criação artística, e posterior divulgação na comunidade, de e para artistas locais. A dimensão da sua institucionalização (que existe local e nacionalmente) não é comparável aos dois casos anteriores, mas as lógicas de sustentação, baseadas na resiliência, adaptação e crescimento (inclusive no âmbito da internacionalização, ao promover residências artísticas de artistas estrangeiros), conferem-lhe lugar no mesmo campo, na #LAC – Dia Fechado (Em Casa) – 2 e 3 de maio O LAC – Laboratório de Atividades Criativas, sediado em Lagos, também lançou uma iniciativa multidisciplinar, durante dois dias, em streaming. As intervenções consistiram em imagens, vídeos e diretos da responsabilidade dos vários artistas, que foram mostradas ao longo dos dois dias. A designação da iniciativa LAC – Dia Fechado (Em Casa) funciona como uma espécie de contrário à que o LAC leva a cabo, anualmente – LAC – Dia Aberto – por forma a divulgar de forma aberta e intensiva as suas atividades à comunidade. A divulgação da iniciativa – difundida em vários meios de comunicação, sobretudo na Internet (agendas, sítios de arte e cultura) e em órgãos de comunicação regionais – remete, não só para a oportunidade criada pela conjuntura para renovar experiências e recriar processos, como para a necessidade de dar continuidade ao trabalho ao serviço da comunidade. O programa, multidisciplinar, procurou representar os vários projetos artísticos atualmente em residência no LAC. Dois dias de intensiva atividade apresentada nas plataformas digitais do LAC com imagens, vídeos e diretos (mapeados) 36A. Pedro Correia (Artes Visuais), Annika Synia (Artes Visuais), Carlos Norton (Sonoplastia), Cursed Disciples (Música), João Costa (Teatro de Marionetas), Jorge Pereira Nothanks (Artes Visuais), Lollirockers DJs (Música), Madalena de Campos (Artes Visuais), Millie Wilkins (Artes Visuais), Plasticine (Música), Prayers of Sanity (Música), Raymond Dumas (Escultura), Ricardo Lopes (Cerâmica), RoMP (Escultura), Staccato Limão (Música), Sonda (Música), Tars8Two (Artes Visuais), VIL (Música), Xana (Artes Visuais), Yummy Industries (Artes Visuais). 44 iniciativas/projetos – como são os casos do Maus Hábitos e do Festival Iminente –, por outro, não será de descurar o “agarrar” do desafio por parte de uma estrutura territorialmente demarcada, como no derradeiro caso em apreço, o LAC. Parece-nos evidente, como assinala Morató (2010), ser necessário não perder de vista que a “a criação cultural continua e continuará a ser essencialmente elaborada nos territórios da cultura especializada, ainda que os limites da política cultural cheguem hoje muito mais longe. (...) Convém, pois, preservar sempre a tónica sobre a criação e a excelência nas políticas culturais públicas e que estas reconheçam e respeitem aquilo que são as suas lógicas e os seus fundamentos valorativos específicos, ou seja, a sua autonomia” (Morató, 2010: 49). A potencialidade criativa, de criação, de cumprimento essencial, de forma capaz, autónoma, resiliente e refletida atesta-se nos exemplos considerados, os quais, a par de outros tantos corridos durante a fase de confinamento a que nos reportamos, relevam a importância e significado da arte e da cultura nas organizações sociais, no cumprimento da humanidade. E isso lança os atores e as estruturas perante desafios de inventividade e de criatividade resistentes e resilientes, de luta pela sobrevivência económica, mas também na luta por um lugar ao sol da criação artística, num exercício de cidadania, agência, libertação e ação, como advogam instantemente Bennett e Guerra (2019). A mudança, porém, e uma vez desejável no âmbito autonómico mencionado, passará por um esforço obrigatoriamente coletivo e concertado, de modo a redefinir, recolocando, a esfera artística social e cultural e a delinear a importância do setor no sentido da sua proteção e, sobretudo, daqueles e daquelas que o mesmo integra. Uma mudança integral e radical, portanto, como antevia McRobbie (2016). Uma mudança que provavelmente implica uma transformação maior para melhor, na senda de Campbell (2013), uma vez que a oportunidade surge do confronto duro com a realidade, como aconteceu e acontece nestes tempos de COVID-19. proporcionalidade adequada37. Registe-se ainda que o LAC foi dinamizando outras iniciativas, apelando à colaboração/participação da comunidade. De salientar a de caráter estritamente social e de solidariedade – a adesão à campanha de âmbito nacional, promovida pelo grupo @união audiovisual, “para angariação de alimentos para artistas e técnicos do mundo das Artes”. O LAC – Laboratório de Atividades Criativas, Associação Cultural sem fins lucrativos, surge em 1995, em Lagos, por iniciativa de um grupo de artistas e pessoas ligadas a diversos campos da cultura – Escultura, Pintura, Cerâmica, Música, Arquitetura, Cinema, Museologia, Defesa do Património. A par do desafio de promover a dinamização do edifício da antiga cadeia de Lagos, o LAC assume como objetivo principal da sua ação a dinamização e promoção da criação artística na região do Sudoeste Algarvio. A requalificação do edifício da antiga cadeia de Lagos permite a potenciação paradoxal do espaço de confinamento para criação e experimentação artísticas, ao transformar-se as celas em atelieres para artistas. Tornando-se, em 2001, uma estrutura que privilegia o acolhimento artístico, o LAC alberga anualmente projetos individuais e coletivos num total aproximado de 20 artistas, em áreas tão diversas como a música, pintura, escultura, e/ou outros projetos de cariz alternativo e não comercial”. No âmbito da atividade do LAC, assinale-se o desenvolvimento dos projetos internacionais ARTURb, ROOTS e KICK IN THE EYE. A cultura serve a vida Procurou-se, com esta breve (a)mostra de iniciativas, demonstrar que, apesar da adversidade, diferentes manifestações artísticas e culturais possuem a potencialidade da esfera social que representam, assente em significativas voluntariedade e reinvenção, dimensões fundamentais para ação e subsequente mudança. Se, por um lado, temos a consolidação de uma dianteira que acaba por ser resultado de uma maior institucionalização e profissionalização das 37 Considera-se relevante partilhar o balanço da iniciativa, publicado a 7 de maio na página de Facebook do LAC. Artistas envolvidos 36 Conteúdos apresentados 26 Visualizações 12 286 Interações 2 375 Likes 1 080 Comentários 154 Partilhas 208 45 Resposta a uma sociedade desorientada, Lisboa, Edições 70. LOPES, João Teixeira (2010), “Da cultura como locomotiva da cidade-empresa a um conceito alternativo de democracia cultural”, in Maria de Lourdes Lima dos Santos e José Machado Pais (orgs.), Novos Trilhos Culturais, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, pp. 51- 61. MCROBBIE, Angela (2016), Be Creative: Making a Living in the New Culture Industries, Cambridge, Polity. MCROBBIE, Angela (2003), Everyone is Creative. Artists as Pioneers of the New Economy?, [Consult. a 26/05/2020]. Disponível em: http://www.k3000.ch/becreative/texts/text_5. html. 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Ao contrário da dança teatral ou de palco, que implica uma separação entre quem pratica e quem observa (Fazenda, 2007), as danças sociais desenrolam-se no seguimento da interação social, envolvendo o convívio entre os praticantes, reforçado pela constante troca de pares. Se a dança teatral visa primeiramente a construção de uma performance, que deverá decorrer num lugar particular (tradicionalmente um palco), as danças sociais exigem a comunicação espontânea entre os praticantes, que alternam, no decorrer das músicas, entre o papel de espetadores e performers. A sua prática implica o conhecimento de um conjunto de passos base, normalmente pouco complexos, que depois são adotados livremente pelos diferentes participantes, que desenvolvem o seu estilo individual. As danças sociais surgem em contextos geográficos particulares, refletindo práticas culturais locais, ocorrendo normalmente em situações de festa e convívio. Porém, e à semelhança do que acontece com expressões musicais populares ou tradicionais, alguns estilos de dança com origem local tendem a circular internacionalmente, formando verdadeiras redes transnacionais, tendência que se intensifica através dos múltiplos fluxos migratórios contemporâneos. Este é, precisamente, o caso dos dois estilos de dança aqui analisados que, tendo tido uma origem geograficamente circunscrita, extravasaram múltiplas fronteiras até se tornarem fenómenos globais. Ao contrário dos estilos de danças de salão (tais como a Salsa, o Tango, o Cha cha cha), praticados em Portugal há mais tempo e dinamizados sobretudo em redor de escolas de dança concretas, tanto o Forró como o Lindy Hop se desenvolveram, através de redes informais que se foram, progressivamente, sedimentando, tendo sido apenas, Maria Manuela Restivo38 As danças sociais e as suas especificidades A pandemia do vírus SARS-COV-2 chegou a Portugal nos primeiros dias de março de 2020, trazendo transformações radicais em praticamente todas as áreas da vida quotidiana. O progressivo desconfinamento que se verifica desde o princípio de maio – após um estado de emergência que vigorou de 18 de março a 3 de maio, durante o qual a população portuguesa esteve sujeita a restritas regras de circulação – tem permitido a retoma de algumas atividades profissionais, no contexto do que se tem convencionado denominar como a “nova normalidade”. Porém, e porque as normas de distanciamento físico se mantêm como um dos principais procedimentos a adotar, certos setores têm tido dificuldades acrescidas no regresso das suas atividades. Um dos setores que tem defrontado especiais dificuldades no regresso à atividade é precisamente o das danças sociais, cuja prática não pode ser efetuada sem a intensa proximidade física entre os participantes. Neste pequeno artigo, procuramos pensar os efeitos da pandemia na prática de duas danças sociais no contexto da cidade do Porto – o Forró, nascido no nordeste do Brasil em finais do século XIX, e o Lindy Hop, surgido entre a comunidade afro-americana nova iorquina na década de 1920 –, aproveitando para traçar o circuito, ainda não registado, da chegada 38Doutoranda do 3.º Ciclo em Estudos do Património da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) uma investigação sobre a construção social da arte popular portuguesa, com a referência FCT (SFRH/BD/129435/2017), sob orientação científica da Professora Doutora Alice Duarte. E-mail: mariamanuelarestivo@gmail.com 39Este artigo só foi possível graças aos testemunhos de Helena Cardia, Joaquim Boia Lino, João das Botas, João Guedes, Sérgio Cardoso e Tiago Martins, aos quais agradeço a disponibilidade e a generosidade. Este artigo é igualmente baseado na minha inserção na comunidade do Forró Porto desde 2015 e na frequência de algumas aulas e eventos de Lindy Hop durante o ano de 2019. 47 posteriormente, institucionalizadas em escolas ou associações. Este processo de institucionalização, não representou, contudo, a profissionalização das pessoas envolvidas na dinamização destas danças e dos eventos a estas associados, continuando a maioria destas pessoas a ter outras ocupações profissionais. Na forma que elas têm assumido no Portugal contemporâneo, extensível, de resto, a outros contextos nacionais, as danças sociais vão desenvolvendo e construindo verdadeiras comunidades (Rapport, 2002) – conceito adotado e continuamente utilizado pelos próprios praticantes. Estas comunidades desenvolvem-se em torno de um estilo de dança particular, mobilizando professores de dança, músicos, DJ’s, dinamizadores de eventos ou festivais onde as danças podem decorrer, e o vasto número de praticantes, que vai marcando presença, mais ou menos assiduamente, nos eventos organizados. A comunidade principia e sustenta-se, portanto, no gosto por determinado género de dança (e, por acréscimo, na música que a acompanha), e no conhecimento técnico necessário à sua execução, residindo aqui um dos principais fatores de pertença e identificação. De facto, o domínio dos passos de dança permite que pessoas desconhecidas se juntem para dançar, já que partilham uma linguagem comum. Esta característica, aliada à presença destas danças um pouco por todo o mundo, em especial nos centros urbanos, tem permitido construir comunidades transnacionais: muitos dos praticantes, quando viajam para outros países, aproveitam para frequentar os eventos locais, desenvolvendo conhecimentos pessoais; por outro lado, a inserção nas comunidades de dança funciona frequentemente como uma estratégia conscientemente procurada por muitos dos praticantes em situação de migração. Paralelamente, o circuito internacional de festivais dedicado a estas duas danças, que se foi desenvolvendo nas últimas décadas, permite, além das deslocações frequentes dos praticantes, a constituição de uma vasta rede internacional de professores, bandas e DJs, que circulam entre os vários contextos nacionais. Tanto o Forró, como o Lindy Hop, são descritos pelos praticantes como danças divertidas e informais, que dispensam a etiqueta social e o dress code exigido noutros estilos, como, por exemplo, em algumas danças de salão. Além das aulas disponíveis para vários níveis técnicos, estas danças vivem, sobretudo, dos diversos eventos semanais em que a comunidade se junta para dançar, independentemente à escola à qual pertencem. Sendo, sobretudo, noturnos e realizados em espaços interiores, estes eventos podem decorrer também ao ar livre e durante o dia, em espaços públicos ou jardins, sempre que o tempo o permitir. Sendo a dança o principal objetivo destes encontros e eventos, eles acabam por proporcionar também o desenvolvimento de relações sociais longas e duradouras, razão que contribui, seguramente, para reforçar o sentido de comunidade com que os praticantes se dizem identificar. O Forró no Porto O Forró é um género de música e dança que nasceu no nordeste do Brasil, que terá derivado de um conjunto de danças populares locais, identificadas por alguns investigadores, pelo menos, desde finais do século XIX. Há duas teorias sobre a origem da denominação Forró: uma que defende a sua criação e disseminação pela população inglesa residente no Nordeste, que trabalhava na construção dos caminhos de ferro durante a segunda Guerra Mundial, e que organizava festas “para todos”. Forró terá derivado assim da expressão “for all”, estando associado a este tipo de festas (Lage, 2017; Junior e Volp, 2005). Outra teoria, mais consensual entre os investigadores, é a de que se trata de uma corruptela do termo forrobodó, que significava, genericamente, festa popular, designação oficializada em dicionários desde finais do século XIX (Alves, 2011). Durante várias décadas, o termo apareceria nos dicionários para designar os bailes de classes baixas, associando-se igualmente à ideia de confusão, algazarra, “baile reles”, pagodeira ou desordem. A sua popularização, no formato em que hoje o conhecemos, deve-se substancialmente ao contributo de Luís Gonzaga, bem como ao de músicos que com ele colaboraram, como Jackson do Pandeiro, Marinês 48 e, mais tarde, Dominguinhos (Lage, 2017). De origem pernambucana, Luís Gonzaga migrou para o Rio de Janeiro na década de 1940 para aí desenvolver a sua carreira, difundindo este género musical por todo o Brasil. É a partir destas décadas que o Forró assume a formação instrumental de base que ainda hoje apresenta, juntando a sanfona, o triângulo e a zabumba (ou tambor). Na década de 1960, o crescimento da música popular brasileira (MPB), da Bossa Nova e do Rock’n’roll terão contribuído para uma certa marginalização do Forró, que se mantinha, ainda, associado ao contexto rural, bem como a pessoas mais idosas e de baixa condição social (Lage, 2017). Seria apenas na década de 1990 que o Forró alcançaria maior visibilidade, através do aparecimento de bandas novas como Trio Virgulino, Falamansa ou Rastapé; estas bandas começaram por atuar em eventos ligados à Universidade de São Paulo, formando-se, assim, o que viria a ser denominado por Forró Universitário (Lage, 2017; Junior e Volp, 2005). Além da introdução de outros instrumentos na gravação dos temas tradicionais, estas bandas criaram, igualmente, novas canções, que refletiam a vida urbana contemporânea, ao mesmo tempo que se complexificavam os movimentos da dança, aproximando-os de outras danças latinas de salão. O Forró passa então a designar, simultaneamente, um estilo musical, ou mais propriamente, um conjunto de géneros musicais (tais como o xote, o xaxado, a quadrilha, o baião ou o arrasta pé), e um estilo de dança, a que se associa também o próprio baile ou festa onde se toca, dança e convive. É nesta aceção que o Forró chega à Europa, na maioria dos casos depois do ano 2000, transmitido maioritariamente por imigrantes brasileiros que se fixavam em alguns centros urbanos. À cidade do Porto, o Forró chegou pelas mãos de Igor Fonseca e Carolina Sousa (Lola), um casal de origem brasileira que se estabeleceu na cidade. Começaram, aproximadamente em 2006, a realizar workshops de Forró para pequenos grupos, e, uma vez que não havia ainda eventos exclusivamente dedicados a este género de dança, o Forró começou a ser dançado nas noites latinas do bar/ associação Contagiarte, intercalado com outras danças latinas. Em 2009, começaram a decorrer aulas regulares, orientadas por Sérgio Cardoso e Inês Guedes (que aprenderam os primeiros passos com Igor e Carolina), e as primeiras noites dedicadas exclusivamente ao forró ocorreram na associação Espaço Compasso, por iniciativa de Igor Fonseca e Sérgio Cardoso, continuando posteriormente no bar das Galerias de Paris, já com a colaboração de Tiago Martins. Foram estas três pessoas que, de forma mais consistente e duradoura, contribuíram para o desenvolvimento da comunidade de Forró do Porto, o primeiro enquanto DJ e organizador de eventos de Forró, e os segundos, fundamentalmente, enquanto professores. Sérgio Cardoso manteve aulas regulares entre 2009 e 2019, ensinando centenas de alunos, tendo parado com as aulas em finais do ano passado, por razões profissionais. Tiago Martins começou a ensinar Forró com Joana Ilhão em 2013, tendo fundado recentemente o projeto Dois pra cá, que conta com aulas de Samba e Forró, com uma média de cem alunos por mês. Resulta também da sua iniciativa, juntamente com outras pessoas, a criação, em 2018, do festival Forró Douro, que tem contribuído para colocar a cidade do Porto no mapa da comunidade internacional de Forró. O número de professores, DJ’s e praticantes de Forró, foi crescendo consideravelmente nos últimos anos, alargando e sedimentando a comunidade portuense. Alguns dos eventos semanais realizados podem atingir facilmente mais de 100 pessoas, atestando a vitalidade da prática desta dança na cidade. O Lindy Hop no Porto Ao contrário do que acontece com o Forró, é possível traçar com maior precisão a origem do Lindy Hop. Trata-se de uma dança social que é acompanhada pelo som de música jazz, principalmente big bands, e que nasceu em 1928 no Savoy, um clube de música e dança situado no Harlem, Nova Iorque (Spring, 1997). Desde a sua abertura, em 1926, que o Savoy se afirmou como um espaço privilegiado para o desenvolvimento de diferentes estilos de dança de ascendência predominantemente afro-americana (como o Foxtrot ou o Charleston), 49 ainda que os passos tivessem alguma influência de estilos de danças europeias (Spring, 1997). Entre estes estilos – genericamente denominadas danças swing, porque dançadas ao som dessa música – encontrava-se o Lindy Hop, caracterizado por uma fisicalidade intensiva e por um novo ritmo, mais acelerado que nas anteriores formas musicais (Spring, 1997). Diferenciava-se das outras danças swing pela inclusão de solos dos bailarinos, proporcionados pelo swing out – resultando no distanciamento físico em que a conexão do par é feita apenas por um braço (Vaisman, 2018) – e por passos aéreos e acrobáticos, bastante exigentes do ponto de vista físico. O nome é atribuído a Shorty Snowden, um dos bailarinos da altura, que o terá cunhado numa competição de dança em 1928, ainda que, mais tarde, tenha vindo a admitir que o estilo já existia antes de ser denominado (Spring, 1997). O Lindy Hop foi-se desenvolvendo no Savoy, que podia receber entre 4000 a 7000 pessoas por noite, e onde, desde cedo, os bailarinos, fundamentalmente afro-americanos, competiam entre si para desenvolver movimentos aparatosos, tecnicamente exigentes a nível acrobático, sendo que cada par acabava por desenvolver o seu próprio repertório (Engelbrecht, 1983). O rápido sucesso deste estilo resultou na criação de grupos de dança, que, desde cedo, começaram a viajar e a apresentá-lo em diferentes teatros, propagando-o um pouco por todo o país. Apesar disto, ao longo dos anos e sem nunca ter desaparecido totalmente, o Lindy Hop foi-se tornando praticamente ausente do repertório de danças sociais americanas, até ter sido alvo de um movimento de renascença ocorrido em meados da década de 1980, que se estendeu a diferentes partes do mundo. Impulsionados por alguns filmes e, curiosamente, por um anúncio da marca GAP, recorrentemente referenciados (cf. Vaisman, 2018; Farag, vídeo na bibliografia), grupos de jovens em diferentes países (entre os quais a Suécia, a Inglaterra e os Estados Unidos da América) procuravam resgatar algumas sequências de passos de Lindy Hop, contactando mesmo com antigos bailarinos (com destaque para Frank Manning e Norma Miller), que se revelaram fundamentais na transposição das formas de dança dos anos 1930 para a década de 1990. É em 2007 que este estilo de dança chega a Portugal, pelas mãos da norte-americana Abeth Farag. Tendo-se mudado para o Porto e não encontrando qualquer grupo de praticantes de Lindy Hop, decide procurar fazer crescer esta prática, partilhando, numa primeira fase, vídeos através de DVDs – numa era em que ainda pouco circulava na internet – e, posteriormente, ensinando pequenos grupos, quer no Porto, quer em Lisboa, até a prática se difundir por estas duas cidades. No Porto, Abeth contou com o apoio de João Guedes (DJ Joe), que cedo abraçou esta forma musical, desempenhando um papel essencial na produção de eventos dedicados ao Lindy Hop, servindo simultaneamente como o principal DJ deste género musical no Porto, facto extensível ainda aos dias de hoje. João seria igualmente um dos responsáveis pela criação, em 2010, do Porto Swing Jam, um evento internacional que procura proporcionar momentos de encontro entre os praticantes de danças swing. A crescente procura de novos alunos pelas danças swing leva Abeth a oficializar o projeto, criando a escola Swing Station (2012), responsável, nesta altura, pelo ensino de Lindy Hop, quer no Porto, quer em Lisboa. Pouco depois, Abeth Farag muda-se definitivamente para Lisboa, deixando o ensino desta dança no Porto a cargo de professores que já haviam colaborado consigo. São alguns destes professores (nomeadamente Helena Cardia e Isabel Fonseca) que oficializaram o ensino de Lindy Hop no Porto, criando a Hop Dance Studio (2015), que conta atualmente com uma média de 100-150 alunos mensais. Dois anos depois (2017), João das Botas, que frequentava aulas no Porto desde 2012/2013, funda a Bota Swing, que conta atualmente com cerca de cinquenta alunos. João sublinha a importância de desenvolver uma filosofia de abertura associada à prática do Lindy Hop, procurando romper a barreira da dificuldade técnica sentida por alguns alunos principiantes. Para isso, alerta os seus alunos para a importância de dançarem com toda a gente, independentemente do nível técnico que cada um apresente. 50 prática da dança, bem como apoios específicos para o setor, indubitavelmente um dos mais afetados pela pandemia. Porém, mais até do que o ensino da dança que, mediante algumas medidas de segurança, se prevê que possa vir a ser progressivamente retomado, são os eventos dedicados ao Forró e ao Lindy Hop que parecem verdadeiramente ameaçados. Tal como se pretendeu mostrar neste artigo, as danças sociais não são apenas práticas artísticas e desportivas, elas ativam espaços de lazer e sociabilidade onde as comunidades se concretizam. Os lamentos de quem não dança há mais de três meses – caso da maior parte dos praticantes, excetuando aqueles que o fazem com amigos próximos – vão-se propagando nas redes sociais, multiplicando-se também as suas dúvidas a respeito do momento em que vão puder voltar a dançar. O facto é que a proximidade física envolvida na prática das danças sociais é inultrapassável, e a sua ocorrência, enquanto o vírus continuar a circular na sociedade, não poderá ser feita sem uma certa dose de risco, que caberá a cada praticante medir, aceitando ou recusando as possíveis consequências que daí poderão advir. A pandemia e os seus efeitos nas danças sociais As três principais escolas envolvidas no ensino de Forró e Lindy Hop no Porto, obrigadas a parar as atividades em meados de março, esforçaram-se por encontrar soluções que lhes permitissem não perder a totalidade dos seus rendimentos, ao mesmo tempo que procuravam manter os seus alunos envolvidos na prática regular das respetivas danças. As soluções passaram, essencialmente, pela criação de conteúdos digitais que os alunos pudessem seguir em casa, através de aulas online, em direto ou em diferido, em troca de um valor fixo ou de um donativo facultativo. A Hop Dance Studio rapidamente se adaptou às aulas online, mantendo um calendário semanal de aulas, não só de Lindy Hop, como de outras modalidades que se ensinam na escola, tais como Authentic Jazz, Solo Blues e Solo Shag. Helena Cardia, uma das responsáveis pelo projeto, aguarda informações a respeito das normas necessárias à retoma das aulas presenciais. Paralelamente, refere que irão optar por manter as aulas online, para os alunos que não se sentem ainda confortáveis em realizar aulas presenciais, mantendo, assim, a possibilidade destes o fazerem a partir de casa. A Bota Swing desenvolveu ainda um conjunto de coreografias de swing e blues para partilha na página do Facebook da escola, sendo que os alunos interessados poderiam contribuir através de donativos. Ainda que as reações a esta estratégia se tenham revelado positivas, tal não impediu esta escola de se ver obrigada a abandonar o espaço para aulas que mantinha arrendado, por não haver disponibilidade do senhorio para baixar a renda. João das Botas, porém, depois de forçado a refletir sobre as possibilidades do ensino da dança à distância, manifesta a vontade de usar as plataformas digitais de forma vantajosa, mesmo depois de um regresso à “normalidade”, fazendo com que o Lindy Hop possa chegar a territórios afastados dos centros urbanos. Desconhece-se quando será possível retomar as aulas de danças sociais e os eventos a elas associados. Circula neste momento uma petição pública criada pela Plataforma de Escolas de Dança de Portugal, reclamando medidas concretas para a Referências bibliográficas ALVES, José Francisco (2011), Nota para a história do forró, [Consult. a 15.6.2020]. Disponível em: http://www.ufs.br/ conteudo/2295-nota-para-a-hist-ria-do-forr-. ENGELBRECHT, Barbara (1983), “Swinging at the savoy”, Dance research journal, vol.15, nº 2, pp. 3-10. FAZENDA, Maria José (2007), Dança teatral: Ideias, experiências, acções, Lisboa, Celta Editora. JUNIOR, Antonio Carlos de Quadros; VOLP, Catia Mary (2005), “Forró Universitário: a tradução do forró nordestino no sudeste brasileiro”, Motriz, Rio Claro, vol.11, nº 2, pp.127-130. LAGE, Regiane Sales (2017), Viver (d)o forró: cultura e profissionalização, Dissertação de mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. RAPPORT, Nigel (2002), “Community”, in Alan Barnard e Jonathan Spencer (eds.), Encyclopedia of social and cultural anthropology, London/New York, Routledge, pp. 114-117. SPRING, Howard (1997), “Swing and the lindy hop: dance, venue, media, and tradition”, American Music, vol.15, nº 2, pp. 183-207. VAISMAN, Diana (2018), “Do Harlem para o mundo: O fenómeno do lindy hop entre os jovens de ontem e de hoje”, Fragmentos de cultura, Goiânia, vol.28, nº3, pp. 349-361. 51 NOTAS ACERCA DA SUSPENSÃO DA PRAXE NO PORTO Videografia FARAG, Abeth, (s.d.), The beggining of the Lindy Hop and Swing Dancing in Portugal [Consult. a 11.6.2020]. Disponível em: https://www.swingstation.pt/quem-somos/. GAP (1998), Swing Commercial, [Consult. a 11.6.2020]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XJ735krOiPo Inês Maia40 A 9 de Março de 2020, foi noticiada a suspensão da praxe no Porto. O Magnum Consilium Veteranorum, órgão que dirige a praxe nesta cidade, anunciou a suspensão de todas as actividades por tempo indeterminado. O responsável máximo, Dux-veteranorum Américo Martins, assegurou que toda a praxe seria suspensa, sem excepções. Na semana seguinte, a Federação Académica do Porto anunciou o cancelamento da Semana da Queima das Fitas, afirmando, em comunicado, ter ponderado hipóteses alternativas, mas tendo concluído pela inviabilidade de qualquer uma delas. A decisão foi tomada em articulação com as Associações de Estudantes das diferentes Instituições de Ensino Superior (IES) da cidade. Consequentemente, o trabalho de campo que me encontro a desenvolver ficou, repentinamente, suspenso. Os informantes privilegiados no terreno confirmaram-me essa suspensão. Multiplicavam-se as dúvidas entre estes, quadro que entretanto não se alterou. Sem as cerimónias que, habitualmente, marcam a conclusão do ano lectivo, onde ficam os ritos de passagem que marcam indelevelmente as experiências em praxe, que justificam a ascensão hierárquica na sua estrutura, que servem de argumento legitimador a um amplo conjunto de provas a superar a cada ano? Com incertezas generalizadas em relação ao início do próximo ano lectivo, somam-se às presentes, questões relativas ao futuro: em que moldes surgirá a praxe aos novos estudantes?; será possível a um fenómeno que vive da proximidade e da intensidade 40Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP) o projecto “O fenómeno da praxe em contexto universitário portuense: discursos e práticas” (SFRH/ BD/136101/2018) sob orientação científica do Professor Doutor João Teixeira Lopes e co-orientação da Professora Doutora Lígia Ferro. E-mail: inesmaia949@gmail.com A autora não escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico. 52 da interacção sobreviver ao distanciamento recomendado?; terá a praxe, fenómeno ancorado num discurso em torno da tradição e marcadamente imobilista, vontade e condições para se adaptar? A suspensão da praxe coloca duas questões particularmente relevantes, que nos propomos problematizar. Por um lado, a da sua excepcionalidade – a suspensão da praxe é, como veremos, algo praticamente inédito na sua história –, que contribui para justificar a sensação de estranheza de quem a está a viver, assim como a confrontação com dificuldades em encontrar novos caminhos que possibilitem a adaptação do fenómeno. Por outro lado, a da suspensão de um fenómeno que é, em si mesmo, um ritual de suspensão, no sentido em que permite aos que nele participam viver um espaço-tempo com códigos e significados próprios, onde se vive da exaltação do momento e da negação do futuro, num processo em que os ritos vão cadenciando as experiências e atribuindo-lhes valor simbólico. As mudanças que este processo motivou foram vastas e repercutiram-se em inúmeras esferas da vida estudantil. A alteração dos modos de pensar e agir, marcadamente comprometidos com os problemas sociais e com a oposição ao regime, começaram por se fazer sentir na Latada de 1961/62, onde muitos estudantes empunharam cartazes satíricos de contestação. O Conselho de Veteranos e o Conselho de Repúblicas, organismos intrinsecamente associados ao tradicionalismo da academia coimbrã, destacaram-se no combate ao regime, mobilizando os meios que possuíam nesse sentido: no quadro da luta estudantil, decretaram a suspensão da praxe, o luto académico (o traje passaria a ser usado como num funeral, com a capa descaída pelos ombros, com o colchete da batina apertado no pescoço e com as fitas e insígnias escondidas) e o cancelamento da Queima das Fitas. Neste contexto, também o fado, outro dos símbolos da academia e da própria cidade de Coimbra, passou a dar voz a letras com preocupações sociais, começando aqui a ganhar forma a canção de protesto ou música de intervenção (Cardina, 2008b). Assim, a década de 1960, com especial destaque para as chamadas crises de 62 e 69, foi marcada pela contestação estudantil. Primeiro em torno da exigência de liberdade para o movimento associativo. Depois, fruto do aprofundamento da consciencialização política, somaram-se reivindicações como a da exigência de uma universidade e de um país democráticos e, mais tarde, do fim da guerra colonial. Houve, sobretudo na “crise de 69”, por um lado, a preocupação de transformar o protesto académico em contestação ideológica e, por outro, o desejo de congregar a maioria dos estudantes nesta batalha. O primeiro objectivo foi conseguido através da adopção de um discurso extremamente politizado, onde se associava a luta por uma nova universidade à luta por uma nova sociedade. Por sua vez, o segundo objectivo garantiu-se, por um lado, atribuindo à Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (DG/AAC) a liderança do movimento estudantil e, por outro, através da mobilização de rituais e símbolos da academia coimbrã para o terreno da luta. “A utilização dos rituais e da simbologia praxista A excepcionalidade da suspensão O conjunto de práticas que define hoje a praxe hegemónica nas IES é resultado de um longo percurso de transformações e apropriações, que terá tido início no período imediatamente posterior à fundação da Universidade de Coimbra em 1308 (Cruzeiro, 1979; Frias, 2000, 2003, 2004; Cardina, 2008a, 2008b; Estanque, 2008, 2016). Não cabendo aqui aprofundar o percurso histórico do fenómeno, releva perceber que o lugar da praxe e de um conjunto mais vasto de práticas que determinavam o universo académico coimbrão começaram a sofrer alterações no final da década de 1950 (Cardina, 2008b). As práticas tradicionalmente dedicadas à integração estudantil foram questionadas, fruto de um processo de transformações político-culturais que definiu a década de 1950 e que teve como momentos-chave a movimentação estudantil iniciada em 1956 contra o decreto 40.900, que apontava para o fim da autonomia das Associações de Estudantes e, em 1958, a candidatura presidencial de Humberto Delgado, um foco de oposição ao regime a que os estudantes se juntaram. 53 permitia que a contestação se inserisse no fluxo das vivências tradicionais coimbrãs, o que não só lhes conferia legitimidade como despertava uma certa complacência por parte da elite dirigente nacional, para quem Coimbra era ainda, simultaneamente, o lugar de um certo espírito corporativo, boémio e romântico e uma instituição universitária produtora dos cérebros do regime” (Cardina, 2008a: 117). A dissidência política do meio estudantil face ao regime parece ter-se traduzido na conjugação de novas formas de acção reivindicativa, onde se uniam as componentes políticas e culturais com símbolos da “tradição académica”, como a utilização da capa e da batina, ou através da Queima das Fitas ou do luto académico, “cuja convocação reforçava política e simbolicamente a luta e levava à identificação de camadas estudantis mais conservadoras com o corpo das reivindicações” (Cardina, 2008a: 119). Ou, nas palavras de Frias (2003), “de tradicionalista, enquanto virada para um passado intencionalmente valorizado, conservado ou mitificado, a tradição torna-se num motivo de progresso, ficando associada à esperança da luta” (Frias, 2003: 93). Elementos da chamada tradição coimbrã intervêm assim “enquanto reportórios da acção colectiva, participando da sua eficácia, e, ao mesmo tempo, são registos da identidade da Academia local” (Frias, 2004:12). De um período de mobilização dos símbolos praxistas para o confronto político, passamos para outro, entre 1969 e 1974, num cenário de alargamento das posições anti-colonialistas e anti-capitalistas e de crítica feroz às intenções governativas para o sector da educação (a “reforma Veiga Simão” é entendida como uma mera reorganização dos recursos, muito aquém de uma real democratização do ensino), em que se começou a exigir um corte com a “tradição académica coimbrã” e com as vivências estudantis a esta associadas. Identifica-se, assim, a «incapacidade de harmonizar os fundamentos de um discurso fortemente politizado com práticas que, por atenuadas que fossem, dificilmente deixavam de ser elitistas em relação ao exterior e hierárquicas no seu interior» (Cardina, 2008a:125). Após o luto académico de 1969, o corte com a praxe tornou-se cada vez mais evidente: na abertura do ano lectivo de 1970/71, a DG/AAC criou uma Semana de Recepção aos Novos Alunos com uma série de colóquios e debates sobre os problemas dos estudantes e do país, como forma de substituição da recepção através da praxe (a tónica da integração era assim colocada na consciencialização dos novos estudantes); no mesmo ano, o Conselho de Veteranos aboliu o “rapanço”, prática que envolvia cortar o cabelo e rapar pêlos aos estudantes; o Conselho de Repúblicas, que na sua carta constitutiva de 1948 afirmava que estas se encontravam “unidas pela praxe”, corta com essas práticas, passando a definir-se como espaços de formação e discussão; as Repúblicas recém-criadas, substituíram nas suas representações a moca, a tesoura e a colher de pau, símbolos da praxe, por outros; em 1972, foi criada a República Rosa Luxemburgo, estritamente feminina, contrariando a lógica de um universo até aí exclusivamente masculino; a capa e a batina deixaram de ser usadas nas apresentações ao vivo do Coro Misto e do CELUC (Coral dos Estudantes de Letras da Universidade de Coimbra); o anúncio da AURA (Acção Universitária de Reforma Académica), no início do ano lectivo de 1971/72, de que iria restaurar a praxe, a tentativa de reabilitação da Queima das Fitas, em 1972, e o Festival de Coros do Orfeon, em 1973, foram boicotados e fortemente criticados; na imprensa, desde 1970, eram publicados textos que assumiam o indiscutível desaparecimento da praxe e das reminiscências de um universo tradicionalista em que o estudante surgia como membro de uma elite. Esta rejeição estender-se-ia até ao pós-25 de Abril. Como sintetiza Cardina (2008b), “no processo de contestação às formas tradicionais de integração estudantil importa distinguir dois momentos diferenciados: um primeiro momento, coincidente com um certo arejamento cultural e moral no seio da Academia (…), altura em que se promove a apropriação em sentido progressista da tradição académica; um segundo momento, sucessivo à “crise de 69”, no qual se opera o corte com os resquícios praxísticos ainda existentes” (Cardina, 2008b: 185-186). No caso da Universidade do Porto (UP), identifica-se também um universo estudantil universitário com práticas e simbologia próprias anterior 54 a 1974 (Estanque, 2016; Lopes et al., 2018). Estes autores apontam o seu surgimento no Porto na década de 1950, embora seja possível encontrar informações a respeito da Festa da Pasta, organizada pelos estudantes de Medicina e que consistia na passagem da pasta dos estudantes que estavam a concluir o curso para os que transitavam para o último ano, que remonta a 1920. A Federação Académica do Porto, em página dedicada à história da Queima das Fitas, afirma que essa Festa da Pasta se foi difundido pelas várias faculdades da UP, realizando-se sem interrupções até 1943, ano em que passa a haver uma cerimónia comum a todas as faculdades, designada Queima das Fitas. Em 1944, realizou-se a primeira Missa da Bênção das Pastas na Igreja dos Clérigos. Deste ano até 1971, segundo a mesma fonte, “de uma forma natural, a “Queima das Fitas do Porto” vai evoluindo”41, não sendo, contudo, explicitado em que moldes se traduz exactamente este processo. Encontram-se, ainda, noutros trabalhos, referências a bailes de gala em 1961 e à imposição de insígnias e à garraiada em 1962 (António, 2009). Segundo Cardina (2008b), em 1971, potenciado pela contestação estudantil, de que a Universidade do Porto também foi palco, verificou-se um corte com as práticas estudantis compreendidas como tradicionais, de forma semelhante ao que ocorria em Coimbra, e foi decretado o luto académico na UP. É verosímil a possibilidade de, tal como em Coimbra, antes do corte efectivo, ter havido, pelo menos, uma tentativa de apropriação progressista dessas práticas. Aponta-se esta hipótese fruto de uma referência encontrada acerca do «cariz político» que a Queima das Fitas do Porto passou a assumir a partir de determinado momento (António, 2009: 145). Na mesma obra, é ainda mencionada a agitação política que vigorava por esta altura no seio das Repúblicas, assinalando-se as clivagens e os confrontos aí vividos. Também num texto dedicado ao Orfeão Universitário do Porto (OUP), corroboram-se estas ideias: perda de força destes símbolos e práticas na UP e utilização meramente pontual do traje circunscrita a um reduzido número de estudantes (final da década de 60), contestação à queima das fitas de 1971 e consequente corte com estas práticas (Homem, 2006). Os anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, revelaram-se adversos à recuperação das velhas práticas, muito conotadas com o regime ditatorial e com as suas tradições e moral conservadoras e paternalistas. A restauração da praxe vai ter início em Coimbra apenas no final dessa década. Segundo Estanque (2016) e Lopes et al. (2018), no Porto, dá-se em 1978 a primeira tentativa de reanimação da Queima das Fitas, a chamada Mini-Queima, que contou com um sarau académico cuja organização suscitou uma grande polémica e cuja realização ficou marcada pelo conflito entre pró e anti-praxistas. O primeiro cortejo da Queima acabaria por ocorrer apenas no ano lectivo seguinte, em 1979. Nos anos que se seguiram, somou-se ao cortejo, um leque mais vasto de iniciativas, que ainda hoje compõem a semana da Queima das Fitas do Porto, tais como a serenata, as noites da Queima ou o concerto promenade. Este processo de reabilitação da praxe em Coimbra e no Porto, que se consolidou de forma clara a partir da década de 1980, e se estendeu ao resto do país até aos anos 1990, ocorreu num quadro de mudanças significativas na Universidade e na própria sociedade portuguesa: massificação do acesso e frequência deste nível de ensino; diversificação da rede institucional; surgimento de institutos privados; recuo ao nível das dinâmicas de politização juvenil observadas nas décadas anteriores; alteração ao nível do discurso sobre o papel do Estado (ganha forma uma noção mercantilista, que, no plano da educação, se materializará, logo no início da década de 90, na proposta de aumento das propinas no Ensino Superior). A praxe hoje vivida resulta, no essencial, deste processo de recuperação das práticas onde elas tinham sido suspensas e do alargamento das mesmas a novos contextos, onde, numa lógica de construção identitária e de distinção estratégica face, sobretudo, a Coimbra, se foram criando novas práticas e atribuindo novos significados. A análise deste período, excepcional na história do fenómeno, permite-nos compreender que essa 41 http://www.fap.pt/#historia 55 suspensão resultou de um processo longo, que envolveu vários actores, marcado por um intenso confronto de ideias acerca da praxe, mas, sobretudo, sobre a universidade e o país almejado. A suspensão vivida hoje, porque resultante, não de um processo, mas de uma imposição repentina associada à pandemia, foi decretada unilateralmente e, podendo ter contado com alguma oposição, essa não se tornou vocal, nem consequente. Estas fases de suspensão – a do período antes e pós-25 de Abril e a de hoje – são também excepcionais no sentido em que não houve outras. Uma vez recuperadas as práticas, no final da década de 1970, estas não voltaram a desaparecer. Pelo contrário, o processo de recuperação das mesmas e o seu alargamento a novos contextos permitiu uma nova legitimação do fenómeno e a sua normalização. A praxe não voltaria a ser suspensa, nem quando confrontada com uma oposição pública generalizada, o que aconteceu por diversas vezes nas últimas décadas, quer em momentos em que a rejeição do fenómeno teve expressão no seio das universidades, com movimentos organizados anti-praxe, sobretudo, na década de 1990 e início da seguinte, quer, mais tarde, particularmente na sequência da mediatização do que viria a ficar conhecido como o caso Meco, no final de 2013. da responsabilidade. O ES surge ainda no discurso de muitos como sinónimo de distinção social – os estudantes que partem de contextos de origem escolarizados tendem a assumir a reprodução da posição social ocupada pela família e os estudantes que pertencem à primeira geração da família a frequentar o ES, ou são eles próprios os primeiros, tendem a antecipar a formação superior como meio de ascensão social. É precisamente porque o ES potencia a elevação de status, ou pelo menos alimenta essa ilusão, que, paradoxalmente, a praxe obriga a rebaixar quem conseguiu chegar a essa fase. É um rito que parece simples: “fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a outra” (Gennep, 1978:27). Contudo, porque é um rito que marca a transição entre estados e implica a transformação da identidade de quem nele participa, essa transformação da situação e do estatuto do indivíduo não é simples, nem imediata. Gennep (1978) aponta o rito de passagem como sendo trifásico e Ribeiro (2001) aplica essa noção ao fenómeno da praxe: a primeira fase é composta por ritos de separação e ruptura com a identidade anterior; a segunda fase é constituída por ritos de margem que socializam o indivíduo no novo papel que este deve representar; a última fase supõe ritos de agregação, onde se dá o renascimento simbólico e identitário do indivíduo através da agregação ao novo grupo. É este processo, em especial, os espaços e tempos de ruptura – margem (de segurança) ou período liminar – que realçam a diferença entre a condição social a montante e a jusante do rito (Ribeiro, 2001). É neste sentido que a actual suspensão parece colocar em causa os principais objectivos do fenómeno. O ano lectivo chega ao fim e multiplicam-se os relatos de estudantes desiludidos, quase sempre pelo mesmo motivo: a impossibilidade da comemoração pública da sua transformação. Ou seja, da sua consagração ritual. As etapas a comemorar variam consoante a fase do percurso académico em que o estudante se encontra, sendo particularmente evidente nos casos dos que acabaram de chegar ou dos que se encontram de partida. Os primeiros ansiavam comemorar o final do 1.º ano, que é, na verdade, a celebração da entrada no ES, aprofundada simbolicamente A suspensão de um ritual de suspensão A entrada no Ensino Superior (ES) é experienciada como um momento de transição para uma nova fase da vida, de ruptura com a adolescência e de reforço da autonomia em relação à família e ao contexto de origem – uma fase marcada pelo aumento das redes de sociabilidade, potenciadora de novas e diferentes vivências. As representações que os estudantes tendem a construir antes de ingressarem neste novo ciclo de estudos, vão ao encontro desta noção – o ES surge associado a uma mudança marcante ou mesmo a uma “nova vida”, representação que se justifica através das ideias de aumento significativo da convivialidade e das relações interpessoais, de ruptura com o ensino secundário e, particularmente no caso dos estudantes deslocados, de aumento da liberdade e 56 pela entrada na comunidade de estudantes universitários e que tem (teria) como ponto alto, trajar pela primeira vez. O traje, símbolo máximo de pertença a essa comunidade, ficou, por agora, em suspenso. Os últimos, a concluir ciclos de estudos, aspiravam ao reconhecimento público e simbólico dessa conquista. Esta celebração seria partilhada com aqueles com quem viveram intensamente o trajecto e seria comungada com a família, os amigos e a população da cidade do Porto. Suspender os ritos associados à praxe, que marcam o final dos anos lectivos, parece tirar importância ao que se lhes encontra a montante – os desafios superados para ali chegar – e não permitir usufruir plenamente do que se encontra a jusante – o culminar do processo. Como é evidente, os praxistas, por mais desiludidos que se possam encontrar por não verem realizadas as cerimónias pelas quais tanto ansiaram, não deixam, por isso, de ver concluído o ano lectivo, ou mesmo o ciclo, que se encontravam a frequentar. Contudo, sem a possibilidade de comemoração pública dessas conquistas, o sentimento generalizado é o de que fica algo por cumprir. O cortejo da Queima das Fitas é, a este nível, um exemplo paradigmático – para muitos, o primeiro cortejo, momento pelo qual tinham esperado com entusiasmo e ansiedade, alimentados pelas histórias dos mais velhos, seria vivido com a alegria de quem cumpre as expectativas; para outros, o último cortejo, que marca o final de um ciclo, seria vivido entre o orgulho da afirmação pública do que se conquistou e a nostalgia antecipada. Assinalar estes momentos através da sua ritualização, através de cerimónias altamente performativas e espectacularizadas perante o colectivo, é o que permite a consagração do novo estatuto e, consequentemente, o seu reconhecimento e legitimação, sendo, precisamente aí, que reside a força e eficácia simbólica destes ritos agora suspensos. Esta suspensão expõe, ainda, algo óbvio, mas com o qual não nos tínhamos confrontado. A praxe é um fenómeno que se ancora nos percursos académicos, isto é, a sua existência é obrigatoriamente paralela àqueles. Pelo contrário, os percursos académicos não estão dependentes da praxe, nem do seu calendário ritual. O que a actual suspensão tem de singular é que implicou, pela primeira vez em décadas, que a praxe perdesse a ligação à realidade da qual se alimenta – se é verdade que os percursos em praxe ficaram em suspenso, o mesmo não aconteceu aos percursos académicos em que estes se baseiam, que, como é evidente, não foram condicionados pela suspensão dos primeiros. Esta questão é particularmene relevante por duas razões. Em primeiro lugar, porque expõe a fragilidade da sobrevivência da praxe, apenas possível através de um processo de contínua reprodução, levado a cabo ano após ano, e que pode, pela força de determinadas circustâncias, ser abruptamente suspendido, colocando em causa o que até aí suportava a continuidade do fenómeno. Em segundo lugar, e em estreita ligação com a questão anterior, porque estamos perante a reprodução de normas e de uma estrutura marcadamente imobilista, legitimadas por uma suposta tradição que, neste momento, se vê posta em causa. Notemos que a excepcionalidade da suspensão da praxe comporta esta consequência curiosa: pela primeira vez em décadas, os rituais previamente estabelecidos e partilhados, não puderam ser cumpridos, o que pode colocar em causa a sensação de segurança proporcionada pela repetição daqueles. Sem essa repetição, a ordem que a praxe encerra dentro das fronteiras por si criadas ter-se-á tornado mais frágil? Tendo em conta que a ordem é assegurada pela reprodução contínua do mundo que a suporta, ou seja, pela reprodução de regras, de papéis, de práticas, de discursos e de códigos, poderão estes mecanismos ter perdida força ou ficado carentes de significado? Não pretendemos com isto propôr que a praxe não contém potencial de adaptação e de transformação, capaz de criar novas ordens. Contudo, esse potencial tem-se circunscrito a situações pontuais, sendo mais raramente observado quando estamos perante pilares do fenómeno. Tomemos como exemplo, a ascensão hierárquica na estrutura da praxe. Como se dará esta num ano lectivo em que os ritos para o efeito não tiveram lugar? Estes ritos são também importantes porque marcam etapas dentro de um fenómeno que é, em si mesmo, um ritual de suspensão (Lopes et al., 57 2018), no sentido em que é um espaço-tempo que exalta o momento e a intensidade das sensações que proporciona, isolando e anulando o futuro e as preocupações a este associadas. A etapa da vida em que estes estudantes se encontram, continua a figurar no imaginário de muitos como o último momento em que podem viver sem preocupações, antes do confronto com as responsabilidades da vida. A experiência do “aqui e agora” aprofunda-se ainda mais numa Universidade onde a reflexão e o debate têm vindo a perder força, esvaziando-se a participação democrática e o potencial transformador da intervenção estudantil, num cenário onde ganham força os espaços lúdicos e festivos como principal quadro de sociabilidades. É também neste quadro que a “vida adulta” tende a ser vista como um projecto adiado e condicionado pela conclusão da formação académica, onde a Universidade é vivida como um espaço e um tempo separados das restantes esferas da vida social (sobretudo da profissional) e onde ainda se verifica uma grande dependência destes estudantes em relação à família (Mauritti, 2003). Assim, estes estudantes interiorizam “o atributo de ‘inactivos’ que socialmente lhes é dirigido (…) [e dão] largas ao culto de comportamentos hedonísticos conformes com esse estatuto” (Pais in Mauritti, 2003: 49). É também neste sentido que as expectativas se podem ter visto frustradas – desapareceu o espaço-tempo suspenso, marcado pela quase negação do futuro, apenas possível pela entusiástica vivência de um ritual que bloqueia momentaneamente a vida. A praxe pode também ser lida como ritual de suspensão no sentido em que é um espaço-tempo onde regras consensualmente aceites e cumpridas em sociedade parecem não se aplicar. Suspendem-se, temporariamente, os nomes, para se ganharem nomes de praxe; normalizam-se comportamentos, práticas e discursos que os próprios envolvidos dificilmente tolerariam em qualquer outra esfera das suas vidas; subtraem-se direitos; legitimam-se práticas e discursos machistas e homofóbicos; banaliza-se uma linguagem violenta e/ou sexualizada. Todas estas suspensões parecem justificar-se porque entendidas como parte de uma encenação, uma brincadeira inconsequente, que comportará mais benefícios do que malefícios. Mais uma vez, a aceitação tácita destas suspensões representa a partilha de um mundo próprio, só entendido por quem nele participa, do qual estão excluídos todos os outros, onde tudo se justifica à luz das dinâmicas e do discurso que sustentam o próprio ritual. Mais, a aceitação destas suspensões associa-se ao confronto com desafios e provas, que, uma vez superados, se querem comemorados em público, em momentos de afirmação, onde se verão recompensadas as suspensões aceites e se intensificará o sentimento de pertença a um grupo que as viveu colectivamente. Estes ritos, momentos de performance ritual (Ribeiro, 2001), são experienciados com a intensidade da efervescência colectiva, como identificada por Durkheim – “uma espécie de electricidade” que, em contexto ritual, “vai ressoar, sem resistência, em todas as outras consciências, largamente abertas às impressões exteriores, [servindo] cada uma delas de eco às outras”, contribuindo para “a intensificação do estado que se manifesta” e da constituição de “uma certa ordem que permita o concerto e os movimentos de conjunto” (Durkheim, 2002: 225-226). Estas encenações – porque com papéis atribuídos, um guião consensualmente partilhado e público a assistir – permitem a construção da narrativa desejada e a sua partilha com os outros: os de fora, que a recebem e legitimam, os de dentro, que a reproduzem num exercício contínuo de legitimação colectiva. Num ano lectivo em que parte significativa destes ritos não se cumpriu, onde fica a eficácia da sua acção simbólica? E, mais significativo, que consequências terá esta suspensão para um fenómeno que sobrevive através da reprodução da ordem simbólica que esses ritos instituem? Referências bibliográficas ANTÓNIO, Pedro (2009), A Real República dos LYSOS no seu V Milenário:1959-2009, Coimbra, Gráfica de Coimbra. CARDINA, Miguel (2008a), “Memórias incómodas e rasura do tempo: Movimentos estudantis e praxe académica no declínio do Estado Novo”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 81, pp.111 – 131. 58 CARDINA, Miguel (2008b), A Tradição da Contestação: Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo, Coimbra, Angelus Novus. CRUZEIRO, Maria Eduarda (1979), “Costumes estudantis de Coimbra no século XIX: tradição e conservação institucional”, Análise Social, 15, pp.795 – 838. DURKHEIM, Émile ([1912] 2002), As formas elementares da vida religiosa, Oeiras, Celta Editora. 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