Ficha Técnica
Editor: Universidade do Porto. Faculdade
de Letras
Título: Olhares sociológicos sobre a pandemia
Autores: Ana Catarina Correia, Rute Lemos,
Bruno Rodrigues Alves, Pedro Menezes, Susana
Januário, Maria Manuela Restivo, Inês Maia
Coordenação: Inês Maia
Edição: Instituto de Sociologia da
Universidade do Porto
ISBN: 978-989-8969-54-5
Design Capa: Jorge Almeida
Paginação: José Teixeira
Data: junho de 2020
Local de edição: Porto
Suporte: Eletrónico
Formato: PDF / PDF/A
Trabalho financiado pela Fundação para a
Ciência e a Tecnologia no âmbito da Unidade
UIDB/00727/2020
CADERNOS DA PANDEMIA
Esta publicação responde à exigência da relevância do conhecimento
sociológico neste contexto de pandemia. É urgente analisar e debater a
urgência, respeitando as formas, linguagens, métodos e protocolos do
campo científico.
De repente, algo que os/as sociólogos/as há muito escreveram sobre as
dimensões do risco e da incerteza à escala global, toma conta das nossas vidas sob a forma de uma pandemia. Contudo, este fenómeno pouco
tem de catástrofe «natural». Na verdade, na multiplicidade de causas
que a potenciam e na plêiade de consequências que se experimentam,
sobressaem ativamente processos sociais. A relação predadora homem/
Natureza; a fragilidade de serviços públicos, nomeadamente de saúde,
ameaçados por políticas austeritárias; o aprofundamento e a ampliação
de desigualdades sociais entre países e dentro de cada Nação, aumentaram, em muito, a intensidade do flagelo e as vulnerabilidades humanas
e sociais.
Sociólogos/as e cientistas sociais têm sido rápidos a construir conhecimento e a instaurar observatórios sobre a emergência. Estabelecem-se
redes, lançam-se projetos, ativam-se cumplicidades.
O IS-UP faz a sua parte, abrindo caminhos de debate com estes cadernos.
O coordenador e a comissão executiva do IS-UP:
João Teixeira Lopes
Lígia Ferro
Idalina Machado
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ÍNDICE
Introdução
Covid-19 & Deficiência: evidências de uma conjugação complexa
Ana Catarina Correia
A amplificação da violência institucional sobre as pessoas mais velhas
em contexto de pandemia
Rute Lemos
Gestão da informação, alarme, cibercondria e solidariedades online
em tempos de Covid-19. “Net-surfamos” a Covid-19 da mesma
maneira?
Bruno Rodrigues Alves
A Covid-19 e o Campo Cultural Brasileiro: uma análise do
comportamento do poder público diante da crise no setor
Pedro Menezes
Arte, artopias e pandemias
Susana Januário
Dançar Forró e Lindy Hop no Porto em tempos de pandemia
Maria Manuela Restivo
Notas acerca da suspensão da praxe no Porto
Inês Maia
INTRODUÇÃO1
como a necessidade de medidas políticas de protecção social e garantia de direitos fundamentais.
É neste âmbito que Ana Catarina Correia discute o fenómeno da deficiência. Parte de algumas das principais preocupações apontadas por
entidades internacionais acerca dos impactos da
actual situação sobre as pessoas com deficiência,
problematizando os factores que contribuem para
que este seja um segmento da população que,
porque marcado pela vulnerabilidade e pela propensão para a marginalização e exclusão sociais,
está a ser desproporcionalmente afectado. Discute, ainda, o facto de as pessoas com deficiência enfrentarem nesta crise sanitária um potencial
aumento do risco de discriminação nas mais variadas esferas das suas vidas (tais como o emprego,
a habitação e a mobilidade).
Rute Lemos, entendendo a violência sobre pessoas idosas como um problema de saúde pública
e de direitos humanos, reflecte acerca do risco de
aprofundamento de situações de vulnerabilidade
neste segmento populacional. Concentrando-se
nos idosos institucionalizados, discute a exposição ao risco de abuso e de negligência nesse contexto, potencialmente maior num momento em
que estes se encontram confinados e com restrições no contacto com a família. Aponta o possível aprofundamento de situações de isolamento
social e de desenvolvimento de sentimentos de
solidão, com implicações para o bem-estar físico
e emocional dos idosos. Pondera a necessidade
de políticas públicas orientadas para este grupo,
dada a urgência em corrigir as debilidades estruturais das instituições que os acolhem.
Por sua vez, Bruno Rodrigues Alves discute o
papel da utilização da internet no quadro de uma
crise de saúde pública. Interroga-se acerca do
papel que esta desempenha no esclarecimento
de dúvidas ou na troca de informação acerca de
questões relacionadas com a saúde das populações. Problematiza ainda as implicações que a sua
centralidade pode suscitar. Assumindo que as ferramentas digitais podem ser um meio privilegiado
de acesso e troca de dados, este texto apresenta
questões relativas à procura, ao consumo, à partilha e à apropriação de informação online sobre
saúde. A reflexão incide, especialmente, sobre as
Face a uma crise sanitária à escala global, é inevitável que a vida em sociedade se veja confrontada
com novos desafios e com o agudizar de outros
já existentes. Perante uma problemática que não
se esgota em questões de saúde pública, cabe
às mais variadas áreas científicas contribuir para
compreender a actual situação, discutindo as consequências que dela poderão advir e traçando,
ainda, novas linhas de análise e discussão, num
exercício que se pretende crítico e interventivo.
É com este pano de fundo, um momento chave
para a produção de novos olhares acerca das mais
variadas dimensões da realidade social, que surge
o conjunto de ensaios que aqui apresentamos.
Esta colectânea nasce do desafio lançado aos bolseiros de doutoramento integrados no Instituto
de Sociologia da Universidade do Porto (IS-UP),
para que pensassem as consequências sociais,
culturais e políticas desta pandemia no quadro
dos fenómenos que investigam. Nestes textos são
discutidas diferentes problemáticas, mobilizados
distintos ângulos e escalas de análise e ponderadas múltiplas questões sociais, políticas e éticas.
O interesse deste número reside, precisamente,
nesta diversidade, que, antes de mais, permite
reflectir acerca da complexidade e da multidimensionalidade de um fenómeno sanitário, cujas consequências não se restringem apenas ao campo
da saúde pública, antes extravasando para todas
as esferas da vida social.
Os artigos correspondem, essencialmente, a
duas linhas temáticas. A primeira configura-se em
torno das questões da saúde, da deficiência e do
envelhecimento. Por conseguinte, os textos que
nesta se enquadram discutem situações de vulnerabilidade e exclusão de certos grupos sociais,
que se viram aprofundadas no actual contexto.
São ainda pensadas as consequências de diferentes mecanismos discriminatórios e o potencial
aprofundamento das desigualdades sociais, bem
1 A autora não escreve segundo as normas do novo acordo
ortográfico.
5
potenciais consequências negativas desta prática,
nomeadamente o aumento da ansiedade e do
medo.
A segunda linha temática configura-se, de modo
geral, em torno de questões de cariz cultural, quer
no sentido mais amplo das (re)configurações culturais e sociais que a pandemia tem provocado,
com expressão nos mais distintos fenómenos,
quer, especificamente, no sentido da criação artística, das práticas culturais e das políticas públicas
para esse sector. Nos trabalhos que se enquadram
nesta linha, apresentamos diferentes escalas de
análise, que permitem discutir desde a situação
do sector artístico e cultural no Brasil até especificidades de práticas e grupos ancorados na cidade
do Porto.
Pedro Menezes discute os impactos da pandemia no campo cultural brasileiro. Partindo do confronto com a suspensão quase total de actividades e com os receios de que a recuperação possa
ser demorada, os agentes do sector procuraram
improvisar soluções, ainda que confrontados com
a falta de apoio estatal. Este texto analisa esta
situação, reflectindo sobre as características de
um contexto onde a cultura vem sendo, ora atacada, ora abandonada, quer do ponto de vista
simbólico, quer no plano institucional. Pensa a trajectória desenhada pelo campo da cultura no Brasil e problematiza as políticas públicas que hoje se
manifestam incapazes de responder à crise vivida
no meio.
Susano Januário centra o olhar no campo artístico e cultural, que, marcado por relações laborais precárias e por um subfinanciamento estatal crónico, foi um dos primeiros a evidenciar os
impactos desta pandemia. A resiliência e capacidade de reacção das pessoas cujas actividades
se encontram ligadas a esta esfera, ancoradas
na sua criatividade, são o foco deste texto. Toma
como referência três dos casos de estudo que
a autora se encontra a desenvolver, atendendo,
particularmente, a algumas iniciativas artísticas
e culturais criadas e promovidas em tempos de
confinamento.
Maria Manuela Restivo pensa os efeitos do coronavírus na prática de duas danças, o Forró e o
Lindy Hop – marcadas pela intensa e incontornável
proximidade física entre os seus participantes.
Começando por delinear o trajecto destas danças no Porto, expõe, a partir dos testemunhos de
alguns dos seus principais actores, os caminhos
encontrados por três das principais escolas envolvidas no ensino de Forró e Lindy Hop na cidade.
São discutidos os obstáculos encontrados, apontados os caminhos de superação e levantadas
preocupações de quem, mesmo numa fase marcada pelo desconfinamento, continua a ver distante o regresso a uma prática marcada pela proximidade física.
Por último, Inês Maia discute a suspensão do
fenómeno da praxe no Porto, numa reflexão que
assenta em dois ângulos: por um lado, o da sua
excepcionalidade – a suspensão da praxe é algo
praticamente inédito na sua história –, o que permite discutir o potencial e/ou as dificuldades de
adaptação de um fenómeno marcadamente imobilista; por outro lado, o da suspensão de um
fenómeno que é, em si mesmo, um ritual de suspensão, no sentido em que permite aos que nele
participam, viver um espaço-tempo com códigos
e significados próprios, num processo que, pela
primeira vez em décadas, vê a eficácia da sua
acção simbólica suspensa.
As reflexões aqui apresentadas propõem-se
encontrar pistas que permitam responder a novos
e a velhos problemas, pondo em relevo a excepcionalidade da situação actual e a urgência em
contribuir para que esta seja analisada de modo
atento, informado e crítico. Num momento como
aquele que hoje vivemos, estes textos são, necessariamente, fruto de dúvidas, incertezas e múltiplas interrogações. Que seja este o seu principal
contributo: ensaios que, partilhando as inquietações de quem os escreveu, possam suscitar outras
tantas.
Inês Maia
Porto, 30 de Junho de 2020
6
COVID-19 & DEFICIÊNCIA: EVIDÊNCIAS DE
UMA CONJUGAÇÃO COMPLEXA
universo maioritário de preocupações sociais partilhadas, não se previa algo com este impacto fortíssimo e avassalador à escala global e em diferentes domínios da vida.
Retomando a omnipresença do risco, há que a
conectar com aspetos complementares: materializou a presença de uma nítida falha de confiança
entre pessoas, entre governos e entre os próprios
Estados nação e tem exercido uma incontestável pressão para o aprofundamento de aspetos
direcionados para as relações entre os indivíduos
(em planos individuais), a intensidade das relações sociais existentes entre estes e a múltiplos
questionamentos sobre a vida num cômputo mais
geral. É uma crise que não se esgota em preocupações de saúde pública, de ordem ambiental ou de
natureza económica: o que estamos na realidade
a testemunhar é um momento de agudização da
modernidade tardia incorporada, obviamente,
num sistema capitalista que continua globalmente
fiel a si próprio (Hanafi, 2020).
Nesta linha de raciocínio, este momento permite profundas reflexões quer no domínio das
ciências sociais, quer nas mais variadas disciplinas científicas. Este é por isso um momento chave
de produção de conhecimento. É um momento
particularmente pertinente e interessante para
o aprofundamento de críticas e análises sobre
as mais variadas temáticas que afetam a vida
humana quotidianamente e em diferentes escalas. Traduzindo as palavras de Catherine Will “a
pandemia de coronavírus no momento oportuno
veio demonstrar o compromisso da sociologia em
compreender a marginalização em todas as suas
formas e as conexões existentes entre práticas e
ações governamentais e a experiência do vírus
na Europa e no resto do mundo” (the coronavirus pandemic in due course that show sociology’s
commitment to understanding marginalisation in
all its forms and the connections between government practices and actions and the experience
of the virus across Europe and in the rest of the
world) (Will, 2020: 967).
Este ensaio pretende ser um contributo sobre
este recente fenómeno global, levando a cabo
uma reflexão alicerçada na sua conjugação com o
fenómeno da deficiência. Uma nota importante a
Ana Catarina Correia2
Notas introdutórias: inquietações pertinentes
“No entrecho deste momento de transição
entre o otimismo da “era do espetáculo” e a fragilidade e o medo da nova “era da incerteza”,
esta sequência de provações veio revelar uma
sociedade que se metamorfoseou e se reinventou” (Faria 2020, apud Fernández-Galiano,
2010).
Se há algo novo que a crise sanitária global de
COVID-19 trouxe, foi uma profunda mudança em
vários domínios da vida social e individual. Compromete interações, fragiliza laços sociais, agudiza situações de desigualdade e profundas discriminações. Instaura o medo e a incerteza, estes
já próprios das sociedades contemporâneas, mas
que permanecem de forma mais vincada e legitima o isolamento e afastamento humanos. Exige
mudanças num plano estrutural e político que até
então - pelo menos num domínio de preocupações socialmente partilhadas - não estavam previstas e, portanto, não reclamavam um planeamento musculado. As sociedades defrontam-se
com o perigo do desconhecido, vincando ainda
mais, as características de uma sociedade global
de risco, nas conceções de Beck (2002).
No plano da literatura e do conhecimento científico, já existiam alertas e experiências históricas
de natureza pandémica. Simplesmente cremos
que, naquilo que pode ser designado como um
2 Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento
FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade
do Porto (IS-UP) o projeto “Políticas para a deficiência: desafios inerentes à implementação do paradigma de Vida Independente” (SFRH/BD/138530/2018) sob orientação científica
da Professora Doutora Alexandra Lopes. E-mail: 200903286@
letras.up.pt
7
reter é que a elaboração deste documento é uma
modesta reflexão crítica baseada em alguns contributos de natureza científica e em instrumentos de
ordem técnica, política, institucional e organizacional que consideramos de extrema relevância para
a linha argumentativa que ambicionamos encetar.
Adicionalmente, ocuparemos umas brevíssimas
linhas com seis notas prévias relevantes acerca das
análises sociológicas sobre a pandemia COVID-19
e que justificam em larga medida a escolha da
problemática da deficiência (mobilizando o eixo
analítico das desigualdades sociais): (i) muito
do que se possa considerar neste momento é de
caráter provisório; (ii) o que vier a acontecer num
futuro próximo irá depender, necessariamente, da
rapidez de recuperação/erradicação da presente
crise; (iii) as influências provenientes do contexto internacional terão, certamente, um caráter decisivo no alinhamento de um presente e de
um futuro próximo; (iv) as soluções políticas que
serão implementadas – continuaremos na perseguição da linha do neoliberalismo? – serão absolutamente definidoras de rumos; (v) reconhecemos
que os problemas sociais existentes são claramente multidimensionais pelo que a perpetuação
de estratégias e planeamentos única e exclusivamente setoriais constituirão um entrave ou, na
melhor das hipóteses, um gigantesco impasse,
como já se evidenciava em período pré crise; e
(vi) o inevitável reconhecimento de que os cidadãos que estão a ser mais afetados por esta pandemia e vão continuar a sê-lo num futuro próximo
são, inequivocamente, os que se encontravam e
encontram em situações de maior vulnerabilidade,
como alerta Fernando Diogo no âmbito de uma
entrevista cedida ao Observatório das Desigualdades (2020). Toda a análise que será aqui construída se alicerçará nestes seis aspetos prévios.
A um nível global, fortes consensos dirigem-nos,
precisamente, para uma vulnerabilidade e riscos
acrescidos da população com algum tipo de deficiência, reconhecendo antecipadamente que o
que está aqui presente, embora não nos esgotemos nesta premissa nem a consideremos linear, é
uma agudização de determinadas práticas sociais
(alimentadas estruturalmente em múltiplas esferas e sob a forte influência e poder de premissas
prescritivas e reguladoras da biomedicina, embora
não se esgote aí) referentes ao valor da vida e à
legitimidade da mesma em contextos de pandemia/crise de saúde pública global.
Adicionalmente, observa-se uma preocupação
– reclamada por diferentes organismos de ordem
global – em prevenir, atenuar e eliminar em toda a
medida possível estes riscos (e outros já pré-existentes) assumindo como bússola a dignidade e
diversidade humanas, o desenvolvimento humano
das sociedades, a justiça e equidade e a coesão
social.
Ambicionam, nitidamente, um não retrocesso ao
que podem ser considerados alguns dos mais significativos avanços civilizacionais que ocorreram
com particular ênfase a partir da década de 1960
do século XX. No entanto, há que realçar, estes
avanços enfrentam fases e estados diferentes que
variam consoante as regiões do globo tendo como
um dos seus eixos estruturantes opções de ordem
política, económica e institucional e, inevitavelmente, a diferente robustez – ou fraqueza – de
Estados Providência (ou regimes de bem-estar).
Estes avanços estão diretamente relacionados
com um modo de olhar para e de agir sobre a problemática da deficiência, que que vem ganhando
forma e sendo perpetuado sob a égide da garantia e proteção de direitos humanos fundamentais,
mesmo reconhecendo que os avanços até então
se revelam insuficientes.
Deficiência enquanto problemática global e
com necessidades de ordem multisetorial e
multidimensional
A problemática da deficiência, como se procurará demonstrar ao longo desta exposição, é considerada por múltiplos domínios e agentes uma
problemática de ordem global e que tem vindo a
reclamar, ao longo dos tempos, respostas diversificadas que são elas próprias, por um lado, multidimensionais e, por outro, dotadas de exigências específicas de ordem setorial. Atente-se à
seguinte frase introdutória presente num dos relatórios mais recentes da Organização das Nações
Unidas (ONU) sobre estas matérias:
8
“A crise global de COVID-19 está a tornar
patentes as desigualdades já existentes, pondo
a nu a extensão das situações de exclusão e sublinhando que todo o trabalho relativo à inclusão
das pessoas com deficiência é um dado imperativo. As pessoas com deficiência – que são mais
que um bilião – são um dos grupos socialmente
mais excluídos e estão entre os mais atingidos
por esta crise no que respeita ao número de
mortes” (ONU, 2020: 2).
ONU recentemente e publicado em maio de 2020,
reconheceu-se especificamente que: (i) este segmento populacional está exposto a um maior
risco de contração da infeção; (ii) está exposto
igualmente a um maior risco de desenvolvimento
de problemas de saúde e a morte por infeção
COVID-19; e (iii) as pessoas com deficiência que
se encontram institucionalizadas têm maior probabilidade de contração do vírus e apresentam
maiores taxas de mortalidade. Relativamente a
este último ponto, há que referir, por exemplo, que
este segmento populacional (incluindo as pessoas
com deficiência mais idosas) representa, em termos globais, a maioria da população institucionalizada. Encontram-se a viver em lares, residências
sociais e apoiadas, centros psiquiátricos, prisões,
etc. A percentagem de mortes por COVID-19 em
lares varia entre 19% e 72% (recorrendo a dados
disponibilizados apenas por alguns países), sendo
a maioria pessoas idosas com deficiência. Adicionalmente, adverte-se também para um risco de
discriminação no acesso aos cuidados de saúde
e a procedimentos de salvaguarda da própria
vida em contexto de pandemia COVID-19 e para
a particular desvantagem de ordem socioeconómica decorrente da pandemia com as quais,
potencialmente, estes cidadãos(ãs) se defrontarão. Estes impactos serão visíveis, quer ao nível
de um potencial aumento da violência dirigida a
estas pessoas, quer em diferentes áreas como o
emprego e a proteção social, a educação e os serviços de apoio necessários.
Estas orientações internacionais têm latente o
que vem sendo reconhecido há décadas: as desigualdades que esta população enfrenta materializam-se, de forma complexa e evidenciam múltiplas
facetas, em todos os domínios da vida individual
e coletiva. Dentro deste cômputo geral, há que
acentuar uma nota importantíssima: a perpetuação e intensidade dessas desigualdades, exclusões e vulnerabilidades varia de país para país, de
região para região, consoante a natureza e severidade das incapacidades, o posicionamento dos
indivíduos na estrutura social de classes, o género,
a idade, a etnia, etc.
Não exporemos detalhadamente as medidas propostas em termos de estratégias, mas
Facilmente se aceitará o facto de se estar perante
uma minoria bastante significativa no espetro da
população humana.
Por força deste reconhecimento de uma complexa vulnerabilidade e particular propensão à
marginalização, exclusão e segregação, não será
surpreendente afirmar que esta crise sanitária afetou e afeta desproporcionalmente este segmento
da população quando comparado com os restantes. Complementares a esta desproporcionalidade, são pertinentes as seguintes constatações:
(i) cerca de 46% das pessoas idosas com mais de
60 anos têm um ou vários tipos de deficiência; (ii)
1 em cada 5 mulheres possui a probabilidade de
experimentar a condição de deficiência durante
a vida; (iii) 1 em cada 10 crianças tem algum ou
vários tipos de deficiência; (iv) das cerca de 1
bilião de pessoas com deficiência (15% da população mundial), aproximadamente 80% vive em países em desenvolvimento (ONU, 2020).
É necessário alertar de igual modo para a sua
diversidade e heterogeneidade enquanto grupo:
“Alguns [subgrupos] estão sujeitos a uma maior
marginalização – por exemplo, pessoas com deficiências intelectuais (...) ou pessoas surdas (...)
estarão mais sujeitas a serem excluídas da prestação de serviços, de viverem ou serem presas em
instituições, de experimentar altos níveis de violência, negligência e abusos” (ONU, 2020: 4).
No relatório “Shared Responsibility, Global
Solidarity: Responding to the Socio-Economic
Impacts of Covid-19”, referenciado no documento
já citado e intitulado, na sua versão traduzida
para português, “Sumário de políticas: uma resposta inclusiva para as pessoas com deficiência
face à pandemia por COVID-19”, produzido pela
9
sublinhamos que complementam medidas mais
gerais e estruturais (multidimensionais) com medidas setoriais. Alicerçam-se em valores latentes à
equidade e justiça social, reconhecendo as variadíssimas diferenças geográficas.
essa] superioridade é, na verdade, decorrente de
um complexo quadro sociocultural de produção
histórica” (Nogueira, 2018: 1019). A autora considera ainda a existência de 4 pilares de construção
da hegemonia da biomedicina na modernidade
ocidental. Iremos mencionar 3 que se afiguram
relevantes para esta discussão: (i) a ligação umbilical que esta possui com a ciência moderna e a
sua trajetória de colonização; (ii) o nascimento da
designada clínica e a cumplicidade existente com
os ideais modernos e a própria conquista do poder
normativo; e (iii) a vincada eficácia comparativa do
paradigma biomédico e a sua intrínseca articulação com o capitalismo (Nogueira, 2018).
Quanto ao primeiro ponto, é inegável a adoção
por parte da biomedicina da racionalidade congnitiva-instrumental da ciência moderna, sabendo-se que a legitimidade conquistada por essa
racionalidade lhe cedeu o estatuto de “regime
de verdade” na linha foucaultiana, ou de metanarrativa. No segundo ponto, vinca-se um aspeto
relacionado com a forma como a biomedicina se
compatibilizou com os ideais modernos e conquistou o seu poder normativo/regulador – e que
se materializou na designada anatomoclínica – e
passou a usufruir de validade e proteção legal por
parte dos Estados. Já o terceiro ponto, traduz-se
no espaço de legitimidade conquistado e que lhe
conferiu um estatuto hegemónico, passando a ser
um paradigma “não contestável” (Nogueira, 2018).
Ora, esta hegemonia tem levado a significativos consensos nas ciências sociais e em particular, na sociologia. E, se em momentos como o que
atravessamos atualmente a medicina assume um
lugar central na atenuação de danos e salvação
de vidas, também se encontra perante o doloroso
e complexo dilema de decidir, de modo seletivo, e
perante a escassez de recursos, quais as vidas que
“merecem” ser salvas em detrimento de outras.
O que pretendemos aqui indiciar é que as pessoas com deficiência, tal como as pessoas mais
idosas, se confrontadas com situações de seletividade médica neste contexto particular, correm um
maior risco de não serem selecionadas por força
da presença das reconhecidas dinâmicas de biomedicalização e patologização da vida como nos
diz Michel Foucault (1977).
A ambiguidade do paradigma biomédico: um
reforço de legitimidade e o reconhecimento de
controvérsias
“Ao difundir a ideia de que todas as diferenças
individuais e coletivas residia na proliferação de
germes, a teoria microbiana veio incentivar a intervenção na ordem social – todavia, não enquanto
transformações profundas que dirimissem as desigualdades, mas como monitorização de fatores
de contágio e propagação de doenças infeciosas
pela implementação de medidas de caráter higienista” (Nogueira, 2018: 1026)
A escolha deste excerto pretende vincar um dos
argumentos estruturantes desta análise. Por um
lado, o paradigma da biomedicina é dotado de
uma hegemonia tão acentuada que lhe é conferida legitimidade de intervenção na ordem social,
com ênfase muito particular em caso de crises de
saúde pública como a que vivemos de COVID19. De facto, a designada teoria microbiana que
se politiza através da proliferação de medidas de
caráter higienista, assume neste momento, em termos globais, um lugar hegemónico de regulação.
Mostra-se incontestável o poder e lugar hegemónico que a biomedicina assume na vida humana
em diferentes escalas. No momento presente esse
poder intensifica-se e assume um papel de entidade reguladora omnipresente.
Para além desta omnipresença atual, em momentos pré-crise e ao longo da história, a biomedicina assumiu um papel decisivo na configuração
da vida humana e das dinâmicas sociais e, muito
particularmente, na vida das pessoas com deficiência. Note-se: “a biomedicina continua a figurar como metanarrativa, como modelo médico
epistemologicamente superior, definidor e regulador do que se entende por “saber médico” (...) [e
10
É consensual na literatura a forte e atual presença
do paradigma médico em contexto de deficiência. Desde o século XIX, a deficiência reduziu-se a
uma explicação médica e reabilitadora que tinha
como objetivo central intervir para curar e/ou normalizar. As experiências vividas das pessoas eram
reduzidas a explicações de ordem médica e reabilitadora que hierarquizavam e classificavam aptidões e desvios da norma, numa linha pós estruturalista. Estávamos perante, entre outros aspetos,
a presença do que Foulcault designou como biopoder: “um poder que age sobre os corpos, definindo-os como apropriados ou inapropriados, e
cuja mais alta função não é matar, mas “investir
a vida de cima a baixo”” (Foucault, 1999, 131 apud
Nogueira, 2018: 1023). Tinha como objetivo, no
fundo, distribuir seres humanos consoante valor
e utilidade e, para tal, qualificava, media, avaliava
e hierarquizava tendo como referência a norma.
Perpetuou então dualidades de normal e patológico, de normal e anormal, de puro e impuro, entre
outras (Foucault, 1992; Fritsch, 2015).
Ora, com base nestas premissas compreende-se
a existência de um traço característico da vivência
em contexto de deficiência: a existência de universos socialmente partilhados de uma “natural” desvalorização da vida porque associada a tragédia e
sofrimento denso (Knight, 2014). Esta lógica legitima, ainda, a latente medicalização destas pessoas, que vêem assim reduzida a sua existência
– mediante múltiplos e contraditórios discursos –
à sua condição de deficiência, sendo descurados
tantos outros planos das suas vidas. Este constitui-se, ainda hoje, como um dos maiores obstáculos
a uma robusta implementação de um paradigma
de direitos humanos. A intensidade com que estes
obstáculos se manifestam varia consoante o contexto e as medidas políticas de proteção social e
garantia de direitos que nesse se privilegiem.
nos deu a oportunidade de explorar e fornecer
uma nova forma de compreender e resgatar a justiça social e o sentido de humanidade. (...) [trouxe]
possibilidades de transcender o capitalismo neoliberal e especulativo, de reconectar os indivíduos,
as sociedades e a natureza e incorporar a economia nas relações sociais, nos valores culturais e
nas preocupações morais” (This global crisis may
have prompted fresh strategies to reinforce exploitation, dispossession, and our neoliberal capitalism, and increased the reach of our greed and
selfishness, but it has also given us an opportunity
to explore and provide new way of understanding
and reclaiming our social justice and humanity.
(…) possibilities for transcending our neoliberal
and speculative capitalism, for reconnecting individuals, societies, and nature, and for embedding
the economy in on social relationships, cultural
values, and moral concerns) (Hanafi, 2020: 8)
Foram estas as intenções que justificaram a
escrita do presente ensaio. Reconhecendo as limitações da análise e a escassez de um conjunto
amplo de outros argumentos, tentou-se, com
reconhecida modéstia, sistematizar alguns dos
principais fatores que estão subjacentes às preocupações internacionais – e que depois se refletem em diferentes regiões – referentes aos impactos desproporcionais que a pandemia COVID-19
trouxe para as pessoas com deficiência quando
comparadas com as demais.
Cremos veemente que, quanto mais se reunirem esforços concertados para a implementação
de estratégias que defendam e protejam os direitos e liberdades neste momento crítico para esta
população, mais fácil será extravasar estas práticas para as restantes. Defendemos, igualmente,
que este poderá ser um momento particularmente rico para se repensarem leituras, medidas
e opções políticas em diferentes escalas. A sociologia poderá ter, como é usual em variadíssimas
dimensões, um papel particularmente importante
de alerta, responsabilidade e ação. Esperemos
que assim seja!
Será este momento um palco de oportunidades?
“Esta crise global pode ter reivindicado novas
estratégias para reforçar a exploração, expropriação e o capitalismo neoliberal e aumentou o
alcance da ganância e do egoísmo, mas também
11
A AMPLIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA
INSTITUCIONAL SOBRE AS PESSOAS MAIS
VELHAS EM CONTEXTO DE PANDEMIA
Referências bibliográficas
BECK, Ulrich (2002), Risk Society: Towards a New Modernity,
London, SAGE Publications.
FARIA, Luís Pinto de (2020), “Espaço e Saúde: responsabilidade e consequência”, Barómetro Social, 1ª Série de 2020 de
Artigos de Opinião (março de 2020), [Consult. a 2.6.2020].
Disponível em: http://www.barometro.com.pt/2020/04/07/
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FRITSCH, Kelly (2015), “Gradations of Debility and Capacity:
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Rute Lemos3
Desde os inícios da pandemia COVID-19, os discursos da comunidade científica na área da saúde,
enquadrados numa lógica de abordagem à infeção enquanto crise sanitária, centraram-se na
premência de identificação de grupos de risco.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
(OMS, 2020) e o Centers for Disease Control and
Prevention (CDC) (CDC, 2020), não obstante
o vírus atingir indivíduos de todas as idades, as
pessoas mais velhas apresentam maior risco de
severidade da infeção, associado em particular
à incidência de múltiplas comorbilidades neste
grupo etário. Contudo, sendo a idade uma condição social, a análise do risco não se deverá limitar à dimensão biológica. As vulnerabilidades que
estruturalmente afetam este grupo populacional
bem como os processos identitários expressos
nas (auto)representações sociais sobre ser velho
constituem igualmente elementos configuradores
da distribuição da infeção na sociedade. A partir
da abordagem à violência sobre idosos, um grave
problema de saúde pública e de direitos humanos (Pillemer et al., 2016), pretende-se neste texto
refletir sobre a dinâmica inter-relacional entre a
infeção e os processos sociais. Mais especificamente, aborda-se como as condições sociais pré-existentes contribuem para o maior risco nas pessoas mais velhas e, paralelamente, o impacto da
pandemia na amplificação de vulnerabilidades e
na (re)configuração das identidades neste grupo.
Importa uma nota prévia relativa a aspetos teórico-metodológicos que sustentam a análise que
3 Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento
FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade
do Porto (IS-UP) o projeto “A construção subjetiva do abuso
de idosos: narrativas e discursos na primeira pessoa” (SFRH/
BD/130439/2017), sob orientação científica da Professora
Doutora Isabel Dias e coorientação da Professora Doutora
Alexandra Lopes. E-mail: rlemos@letras.up.pt
12
se apresenta. Perante o desafio da sincronia entre
a ocorrência dos acontecimentos e o momento
da escrita, sem o benefício da retrospetiva, bem
como a escassez de dados robustos, o primado
da teoria assume-se como guia fundamental na
leitura da realidade. Sobre os factos, recorremos
a notícias relatadas nos meios de comunicação
social. Suportamo-nos, igualmente, nos media
claims, reivindicações na esfera pública por parte
de agentes da sociedade civil ou institucionais
e que expressam uma opinião política, segundo
uma lógica de abordagem construtivista sobre
como determinados problemas são discutidos e
compreendidos (Best, 1987).
A violência sobre idosos constitui uma realidade
subdeclarada (Berman e Lachs, 2011; Dong, 2015),
mas as estatísticas disponíveis (APAV, 2019), bem
como os resultados de estudos de prevalência,
apontam os filhos/as e os parceiros íntimos como
principais agressores, enquadrando o fenómeno
predominantemente no contexto de violência familiar (Gil et al., 2014; Luoma et al., 2011; Soares et al.,
2010).
Por sua vez, é escassa a literatura sobre a violência familiar em tempos de catástrofes, mas alguns
estudos realizados evidenciam o seu aumento
(Elman et al., 2020). Relativamente à atual situação de pandemia existem, a um nível global, relatos sobre o incremento de violência doméstica,
em particular entre parceiros íntimos, associado às
medidas de confinamento impostas para controlar a infeção. No entanto, os dados disponíveis não
são desagregados por idade, o que limita o conhecimento da extensão do fenómeno na população
geriátrica (OMS, 2020). Segundo Elman e colegas
(2020) é provável a existência de um padrão de
aumento de maus tratos sobre idosos, afetando
em particular os que apresentam incapacidade
funcional e/ou cognitiva dada a maior dificuldade
no acesso a ajuda ou ausência de conhecimento
de formas de procura de apoio.
No âmbito das medidas de confinamento, os
serviços comunitários de apoio aos idosos considerados como não essenciais, como, por exemplo,
os centros de dia, foram suspensos. A ausência
deste mecanismo de resposta social representa
uma maior pressão sobre a família, que poderá
também estar a ser afetada por outros problemas
sociais e económicos decorrentes da crise pandémica (Elman et al., 2020). A sobrecarga potencia
o stress do cuidador, sendo este um fator de risco
para a emergência de situações de abuso ou agravamento de maus tratos já existentes (Gil et al.,
2014). Este cenário pode ser mais grave no contexto de idosos com demência, na medida em que
a interrupção das suas rotinas e longa permanência em ambientes fechados provocam alterações
nos seus comportamentos, tornando-se eles próprios violentos (Lim et al., 2020). As pessoas mais
velhas que estão em situação de confinamento
com familiares ou cuidadores estão por isso, em
contexto de pandemia, mais expostas a abuso e
negligência (OMS, 2020).
Não obstante a vulnerabilidade dos idosos a viver
na comunidade, a pandemia está a atingir particularmente os que vivem em contexto institucional.
A nível internacional surgem relatos de violência
extrema como os acontecimentos em Espanha,
em que equipas militares de assistência médica
encontraram, em lares privados, idosos mortos
e outros sem assistência4. Um dado epidemiológico impactante é o facto de 40% das mortes por
COVID-19 em Portugal no início do mês de maio
se reportarem a utentes de estruturas residenciais
para pessoas idosas (ERPI) 5, um padrão observado igualmente noutros países europeus. A elevada exposição ao risco de infeção e de letalidade
nos idosos institucionalizados pode ser percebida
como uma dissonância em relação à missão destas
instituições, no sentido de proteger a vida e preservar o bem-estar físico e psíquico dos seus utentes. Se tomarmos como referência as abordagens
teóricas sobre violência contra idosos, a falha no
compromisso destas respostas sociais representa
uma forma de violência institucional (Ribeirinho,
4 Spanish minister says older people found ‘dead and abandoned’. Available at https://www.theguardian.com/world/2020/
mar/23/spain-distributes-650000-testing-kits-as-coronavirus-deaths-rise-steeply published on March 23 2020. Acedido a 28 maio 2020.
5 Fonte: https://rr.sapo.pt/2020/05/09/pais/lares-contam-450obitos-por-covid-19/noticia/192304/ DGS boletim epidemiológico número 68.
13
2019). O recurso à definição de abuso de idosos
da OMS, designadamente “qualquer ato isolado
ou repetido, ou ausência de uma ação apropriada,
que ocorre no âmbito de um qualquer relacionamento onde haja expetativa de confiança, causador de dano ou incómodo a uma pessoa idosa”
(OMS, 2002), permite o enquadramento da incidência e das mortes por COVID-19 nas ERPI numa
perspetiva de violência contra idosos.
Importa sublinhar que o conhecimento científico
sobre os abusos que ocorrem em contexto institucional é escasso (Castle et al., 2013). Em Portugal,
os estudos de prevalência com recurso a amostras
representativas integram apenas idosos a viver na
comunidade e os dados existentes são sobretudo
de estudos realizados em contexto académico
para obtenção de grau, baseados em amostra não
representativas e com abordagens sobretudo qualitativas. As formas de violência mais reportadas
neste contexto são a emocional, em que se inclui a
despersonalização e a infantilização, a negligência
(Castle et al., 2013), bem como a sobremedicação
e o abuso financeiro (Dias, 2005).
A abordagem à problemática da violência institucional, enquadrada no momento atual de pandemia, parte do pressuposto de que a política
organizacional das ERPI e as respetivas debilidades estruturais, como a ausência de uma política
de avaliação de qualidade e de uma política de
formação aos cuidadores formais (Gil e Fernandes, 2011), foram limitadoras da sua capacidade
de resposta às exigências de um cenário de emergência em saúde pública. Segundo o Comissário
dos Direitos Humanos no Conselho Europeu, as
estruturas de residência para idosos “mesmo sem
a ameaça de um vírus mortal geram frequentemente inúmeras violações dos direitos humanos,
incluindo abuso e maus-tratos, principalmente
devido ao não uso de uma abordagem baseada
nos direitos humanos na conceção e prestação de
cuidados de longo prazo e uma falta crónica de
recursos”6.
Uma dimensão de análise refere-se à escassez
estrutural de recursos humanos e sobrecarga de
trabalho nestas instituições, particularmente grave
perante a crescente sobrelotação das mesmas
(Dias, 2005) e o facto de servirem uma população mais idosa e com níveis elevados de dependência na realização das atividades básicas da
vida diária (GEP – MTSSS, 2019). A imposição de
medidas de confinamento durante o período de
estado de emergência agravou, de múltiplas formas, essa debilidade estrutural das ERPI. Se atendermos à feminização do trabalho de prestação de
cuidados formais, bem como ao tradicional papel
da mulher nos cuidados domésticos e familiares,
percebemos que, por exemplo, a suspensão das
atividades académicas a 16 de março implicou
para algumas funcionárias das ERPI a sua ausência no trabalho de forma a assegurar o apoio a
filhos menores. A diminuição de recursos humanos disponíveis aumentou o rácio de número de
idosos por cuidador, facto que, associado à implementação de novos modelos de organização do
trabalho relativos ao cumprimento das regras de
segurança e higiene impostas pela Direção-Geral
da Saúde para controlo da epidemia, implicou a
sobrecarga e pressão entre o pessoal que permaneceu no exercício das suas atividades, tal como
denunciado pelo Sindicato dos Trabalhadores da
Saúde, Solidariedade e Segurança Social (STSSSS)7. Neste cenário, algumas das necessidades de
cuidados dos idosos poderiam ter ficado por atender. O Governo reconheceu a escassez de recursos
humanos nos lares e instituições para idosos como
um problema e para colmatar as falhas avançou
com o programa de voluntariado #cuidadetodos.
As deficiências nas políticas organizacionais das
ERPI e o stress dos cuidadores formais constituem,
como descrito na literatura, fatores de risco para
a ocorrência de comportamentos abusivos nestas
instituições, incluindo negligência (Minayo, 2003).
Acresce-se ainda que as medidas impostas de
trabalho à distância, que também incluiu o setor
6 Tradução livre. https://www.coe.int/en/web/moscow/-/older-persons-need-more-support-than-ever-in-the-age-of-the-covid-19-pandemic
7 https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-30-Covid-19-Trabalhadores-de-lares-e-IPSS-denunciam-pressoes-e-sacrificio-insano
14
público, podem ter provocado uma quebra nas
ações de fiscalização e de intervenção em lares
(Elman et al., 2020) e por isso uma menor vigilância sobre eventuais situações de maus tratos.
A Associação de Apoio Domiciliário, de Lares
e Casas de Repouso de Idosos (ALI) estima existirem 35008 lares ilegais, estruturas caracterizadas por graves debilidades ao nível de recursos
humanos qualificados e de equipamentos, constituindo, por isso, lugares com maior risco de abusos e negligência, potencialmente agravado no
momento de crise pandémica.
Face à identificação dos idosos institucionalizados como grupo de risco para a infeção e doença
severa por COVID-19 (CDC, 2020), o governo português, à semelhança de outros países, procedeu à suspensão de visitas nas ERPI seguindo a
recomendação da OMS de distanciamento físico/
social. Apesar de a medida ser acompanhada
com o incentivo ao recurso a formas alternativas
de comunicação entre idosos institucionalizados
e seus familiares, como a comunicação digital,
o elevado número de denúncias apresentadas à
Provedoria da Justiça relativas à dificuldade de as
famílias contactarem os idosos, expressa deficiências ao nível da política organizacional das ERPI
no cumprimento desse compromisso. A este fator
importa acrescentar que se trata de um grupo
infoexcluído, marcado pela iliteracia ao nível dos
recursos digitais e com falta de capacidade económica para a aquisição de equipamentos. A
privação do contacto com familiares poderá ser
entendida como forma de violência institucional,
conduzindo a situações de isolamento social e
desenvolvimento do sentimento de solidão, com
implicações para o bem-estar físico e emocional
dos idosos, como depressão e comprometimento
funcional. O isolamento social superior a 6 meses
acelera as doenças cardiovasculares e autoimunes
bem como o aparecimento de demência (Armitage e Nellums, 2020). As redes de suporte social,
entendidas como fatores protetores de abuso
(Pillemer et al., 2016), foram temporariamente
quebradas com a pandemia, não apenas com a
suspensão de visitas de familiares e amigos, como
também pelas medidas de suspensão de saída
dos idosos e realização de atividades de grupos
no interior das instituições. A pandemia separou
os idosos institucionalizados da sua rede familiar,
da comunidade e dos outros residentes, o que
representou uma suspensão da vigilância informal, enquanto supervisão da qualidade dos cuidados prestados e denúncia de situações suspeitas
(Elman et al., 2020), bem como das oportunidades para os idosos procurarem apoio em caso de
maus tratos.
Em síntese, as múltiplas vulnerabilidades dos
idosos institucionalizados amplificaram-se neste
tempo de pandemia, entre as quais a exposição
ao risco de abuso e negligência, num processo em
que as prévias debilidades estruturais das ERPI
condicionaram a sua capacidade de resposta a
esta catástrofe de saúde pública. No campo das
representações sociais, estes acontecimentos
podem reforçar o entendimento de que os profissionais dos lares são um dos principais agressores
de idosos, bem como agudizar a avaliação negativa sobre estes espaços na concretização da sua
missão, com evidentes manifestações de dificuldades no plano organizacional (Gil, 2010 cit. Gil e
Fernandes, 2011).
No entanto, esta abordagem exige um aprofundamento que põe em relevo, a um nível de análise
macro, as políticas públicas como fator de risco
de maus tratos sobre idosos (Gil et al., 2015). A
este propósito, a atuação do governo português
foi criticada por atrasos na testagem de utentes e
funcionários das ERPI, na medida em que, tendo
o conhecimento da dinâmica de propagação do
vírus noutros países que se encontravam em fases
de infeção mais avançadas, deveria ter assegurado
atempadamente a realização de testes de despistagem. A gestão da pandemia pelo poder político
pode ser percebida como uma forma de violência contra pessoas idosas institucionalizadas, pela
falta de medidas de proteção da integridade física
e emocional destes. Neste processo, é apontada
a presença de conteúdos idadistas na esfera do
poder político, isto é, a discriminação segundo
a idade, expressa na estigmatização em relação
8 https://www.jn.pt/nacional/lares-ilegais-albergam-35-mil-idosos-e-ninguem-sabe-onde-estao--12100813.html
15
às pessoas mais velhas, como ilustra a seguinte
declaração de um autarca: “Governo tem de olhar
para idosos como pessoas”9.
Perante a emergência de implementação de
estratégias para conter a infeção no grupo geriátrico, as medidas de confinamento foram privilegiadas, mas sem a participação dos próprios
idosos na definição das linhas matrizes dessas.
Segundo um estudo recente conduzido na Irlanda,
“a perda de voz, agência e autodeterminação e
a diminuição do papel e estatuto na sociedade”
(Anand et al., 2013: 287) são percebidos pelas pessoas com 60 ou mais anos como formas de abuso
de idosos, a par dos tipos de violência descritos
na literatura, designadamente o abuso psicológico/emocional, físico, financeiro/material, sexual
e negligência. Nesta linha surgem as recomendações das Nações Unidas no sentido da expansão
da participação das pessoas mais velhas nos processos de definição de medidas políticas, particularmente nos assuntos que lhes são direcionados
(ONU, 2020). Paralelamente, os idosos institucionalizados foram tratados como um grupo homogéneo, reforçando a presença de conteúdos idadistas nos discursos políticos (ONU, 2020).
Estes tempos biopolíticos parecem assim reforçar a estigmatização e condicionar os esforços
de empoderamento dos mais velhos nas sociedades atuais (Klein, 2020). A crise epidemiológica
fortaleceu as (auto)representações das pessoas
mais velhas como um fardo para as suas famílias
e sociedade em geral, ressaltando a dimensão de
descartabilidade no perfil identitário da pessoa
idosa. Perante estas evidências de violência institucional e social contra os idosos, vários organismos internacionais, entre os quais as Nações
Unidas10, o Conselho Europeu11 e a Plataforma
Europeia AGE12, apelaram à não discriminação
deste grupo etário.
Terminamos com a alusão ao caso, em Espanha,
de um veículo que transportava idosos institucionalizados portadores da infeção COVID-19 e que
foi apedrejado por populares13, enquanto uma
forma de violência social contra os mais velhos,
fenómeno que não emergiu com o vírus, mas que
é reforçado neste contexto de pandemia. Este
tempo que vivemos revigora a urgência da criação e implementação de reformas sociais orientadas para duas dimensões fundamentais, designadamente, assegurar cuidados de qualidade aos
mais velhos, bem como garantir a inclusão deste
grupo na comunidade.
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10 https://www.un.org/en/coronavirus/our-response-covid-19-must-respect-rights-and-dignity-older-people
11 https://www.coe.int/en/web/moscow/-/older-persons-need-more-support-than-ever-in-the-age-of-the-covid-19-pandemic
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13 https://www.noticiasaominuto.com/mundo/1443066/autocarro-que-transportava-idosos-infetados-foi-apredejado-em-espanha
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17
GESTÃO DA INFORMAÇÃO, ALARME,
CIBERCONDRIA E SOLIDARIEDADES
ONLINE EM TEMPOS DE COVID-19.
“NET-SURFAMOS” A COVID-19
DA MESMA MANEIRA?
informação online em saúde, sendo esta uma pandemia que obrigou, na quase totalidade dos países do mundo, a que uma grande parte da população estivesse confinada em casa tendo, por isso,
disponibilidade de tempo acrescida para práticas
online. O Diretor-Geral da OMS, Tedros Adhanom,
proclamou15: “Não estamos apenas a combater
a epidemia do vírus; estamos a lutar contra uma
infodemia (…) Por isso é importante verificar as
informações na Internet para evitar o pânico e a
desinformação associados à doença (…)” (Zarocostas, 2020); aludindo ao facto de o “vírus da
desinformação” se propagar mais depressa que a
própria pandemia, ao ponto de a mesma colonizar o espaço público mediático, sobretudo nas e
pelas redes sociais digitais. Entende-se que esta
“infodemia”, já descrita por muitos como “pandemia paralela”, ao gerar desinformação, pode
comprometer a gestão do vírus, acelerar picos de
infeção e fragmentar a resposta social coletiva ao
mesmo (Kim, Fast e Markuzon, 2019). É claro que
a crescente disponibilidade de conteúdos no digital ligados à saúde, é reflexo de uma “biomediatização” (Briggs e Hallin, 2016), isto é, a crescente
visibilidade e espaço mediático conquistados pela
saúde nos media. Atente-se à cada vez maior presença de rubricas e espaços dedicados à saúde
em programas de audiências amplas, como os
programas da manhã na televisão.
A crise da Covid-19 serviu, a este nível, para
reforçar e consolidar este mediatismo da saúde.
A Internet tornou-se um mecanismo favorável à difusão da desinformação, algo já constatado em pandemias anteriores, como a do Zika
(Venkatraman et al., 2016), ou a do H1N1 (Gostin,
2014). Em contextos sociotécnicos direcionados
a uma observação quase constante de informação, nos quais a informação sobre saúde assume
importante relevo (Sillence et al., 2007), seja no
que diz respeito à prevenção de doenças e educação em saúde genéricas, ou informação mais
Bruno Rodrigues Alves14
A partir dos principais debates em torno da utilização da Internet para as questões da saúde,
o texto analisa a pandemia por Covid-19, na sua
interseção com esta temática. Debate alguns dos
conceitos que permeiam a interação entre tecnologia, sociedade e saúde. A proposta deste artigo
é discutir, reflexivamente, algumas das questões
suscitadas pelos cibercomportamentos a este
nível durante a crise pandémica, em três principais
eixos temáticos que, sendo distintos, se entrecruzam: 1) a procura, consumo, partilha e apropriação
de informação online sobre saúde; 2) a cibercondria; 3) as webs solidariedades em saúde. Alguns
destes eixos refletem e estruturam desigualdades
digitais, analisadas, sumariamente, no texto.
Introdução
A pandemia por Covid-19, doença provocada pelo
vírus SARS-CoV-2 (ainda que se tenda a falar
mediaticamente no “vírus da Covid”, tendência
que este texto acompanha), proporciona um contexto sociológico completamente novo, em magnitude e escala, não anteriormente verificadas
nos tempos modernos em pandemia anteriores,
comportando um conjunto de desafios vários,
também eles inéditos. Um desses desafios, de
ordem sociotécnica, é o que se relaciona com a
14 Doutorando do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Bolseiro de Doutoramento
FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade
do Porto (IS-UP) o projeto “Tendências, Oportunidades e
Riscos da procura e consumo de informação sobre saúde na
Internet” (SFRH/BD/148257/2019) sob orientação científica
da Professora Doutora Alexandra Lopes Gunes e coorientação do Professor Doutor José Manuel Azevedo. E-mail:
bruno.clix@sapo.pt
15 Estas declarações foram emitidas na Conferência de Segurança de Munique (MSC) (Edição de 2020), que teve lugar
em fevereiro. Acrescente-se que o Secretário-Geral da ONU,
António Guterres, aludiu também, na sede das Nações Unidas, a esta pandemia da desinformação.
18
específica, não será de estranhar a procura online
por informações sobre a Covid-19. Todavia, tem
vindo a chamar-se a atenção para critérios como
os da qualidade e confiabilidade desta informação, cujos déficits comportarão variados riscos.
Um desses riscos é a cibercondria, fenómeno analisado seguidamente neste texto.
Estes tópicos reclamam a atenção dos vários
intervenientes e stakeholders (ou partes interessadas), incluindo decisores políticos, profissionais
de saúde e público(s).
Num quadro em que é propalada a contribuição
de todos no combate ao vírus, responder a emergências de saúde pública requer informações precisas, até para evitar o que se designa de “Utilização Problemática da Internet” (Caplan, 2005),
que se refere aos efeitos menos positivos desta.
Entre estes, destaca-se a sintomatologia iatrogénica (cognitiva, emocional e instrumental), com
consequências e impactos a vários níveis (pessoais, familiares, laborais).
Ainda assim, a Internet e as redes sociais digitais encerram oportunidades únicas para a participação e mobilização cidadãs no que à saúde e
à doença concerne. Nesta web movimentação em
saúde, assinalam-se solidariedades, que a crise do
novo coronavírus mostrou com especial saliência
e que convertem o ciberespaço em esfera pública
potenciadora do incremento de ações neste domínio. Estas realidades são reflexo de movimentos
e políticas de saúde, direcionados a narrativas
de autonomia, capacitação e empoderamento
do cidadão, e que têm conduzido a dinâmicas
de emancipação cidadã, em formas de modelagem DIY da vida-saúde-doença, numa constelação camaleónica de práticas, algumas positivas e
desejáveis, outras nem tanto.
Esta crescente aversão ao risco e à incerteza faz
notar-se em pesquisas online relacionadas com as
características do vírus, formas e fontes de contágio e propagação, sintomatologia associada,
grupos e perfis de risco, formas de prevenção da
infeção, como atuar em caso de contágio (ou suspeita de), tratamentos e vacinas que estão a ser
testados, previsão sobre a duração do vírus, dispositivos e equipamentos médicos necessários ao
tratamento do doente, entre outras.
Tal aversão consolida a prevenção como importante bio-valor. Nesta decorrência, a obtenção
de informação verossímil sobre saúde assumir-se-á como capitalização da segurança e redução
da incerteza. Por outro lado, fruto de uma maior
reflexividade (Beck, Giddens e Lash, 1994) desencadeiam-se ações, não apenas baseadas na ocorrência concreta de problemas, como na probabilidade, mais ou menos estimada, de os mesmos
poderem ocorrer. Em resultado, reconfigura-se
o papel do cidadão na promoção da construção
de saúde, individual e coletiva: “Seja um agente
de saúde pública”, a mensagem promovida pela
DGS, constitui um bom exemplo desse envolvimento esperado. Processa-se uma “saúde com o
cidadão”, colocando este no “centro do sistema”,
enquanto co-(Covid)-produtor de saúde, individual e coletiva. Em linha com este engajamento e
imperativo sanitário, e ao mesmo tempo solidário,
salienta-se um imperativo informacional. Um cidadão devidamente informado atuará como agente
de saúde pública e envolver-se-á na promoção da
saúde coletiva, pelo que a informação em saúde
se assume como veículo que auxiliará à modelagem de comportamentos que visem, essencialmente, assegurar ganhos em saúde, para o indivíduo, enquanto beneficiário direto, seus próximos,
e para as comunidades. A solidariedade é, deste
modo, impulsionada e assumida como valor bioético (Prainsack e Buyx, 2011), na valorização de um
“capital social” comunitário: genericamente, os
níveis de confiança social partilhados numa comunidade, que conduzem à coordenação e cooperação mútuas para a obtenção de benefícios coletivos (Baum, 1999).
Deste modo, o ciberespaço tem servido de palco
à disseminação de “biopedagogias” (Rodney, 2019),
Procura, consumo e partilha online de
informação sobre saúde
As dinâmicas de procura, partilha, produção e apropriação de informação sobre saúde decorrem de
movimentos de democratização do conhecimento
médico (Weinstein e Weinstein, 2015) e de crescente aversão ao risco e à incerteza (Zinn, 2008).
19
isto é, ensinamentos na regulação do corpo, e de
um “marketing social em saúde” (Vance, Howe e
Dellavalle, 2009) na divulgação de mensagens de
saúde pública. No caso da Covid-19, mensagens
que apelam ao distanciamento entre pessoas (tido
por social, ainda que deva utilizar-se a expressão
físico), à etiqueta respiratória, ao incentivo ao uso
de máscara, à necessidade de confinamento e
importância de o respeitar, à necessidade de contactar a Linha Saúde 24 (em Portugal), são disso
bons exemplos. Acrescente-se que os organismos
públicos da Saúde, organismos de regulação ética
em Saúde e em Segurança Cibernética, Ordens
Profissionais da Saúde, revistas especializadas,
entre outros, dispõem de plataformas online, onde,
“facilmente” se pode aceder a estas mensagens e
a informação mais específica e, claro, oficial.
Todavia, a avalancha informativa relacionada com
a doença, provocando um verdadeiro “tsunami
covid-informativo”, suscita várias questões. Uma
delas prende-se, desde logo, com a qualidade e
credibilidade da informação. Outras relacionam-se com as dificuldades na sua interpretação, aos
diferenciais de literacia em saúde, mediática e em
e-saúde, às possibilidades diferenciadas de apropriação instrumental da informação e, por inerência, aos riscos de algumas apropriações menos
desejáveis, como é o caso da cibercondria.
Com efeito, se a utilização da Internet, no quadro
da Covid-19, pode ter efeitos positivos na obtenção de informação, auxiliando ao esclarecimento
público, empoderamento e capacitação do cidadão para realizar escolhas e tomar decisões em
saúde informadas e conscientes, haverá que não
desconsiderar a “outra face da moeda”. Nesta
“outra face” merecem destaque as redes sociais
digitais. Plataformas como o Youtube, Twitter, Instagram, WhatsApp, fornecem acesso direto a uma
quantidade sem precedentes de conteúdos, nem
sempre fiáveis ou alvo de “fact-checking”, o que,
frequentemente, promove o pânico (scaremongering). Até porque, a desinformação pode continuar
a influenciar crenças e atitudes, mesmo depois de
ter sido desmentida, se não for substituída por
uma explicação causal alternativa (Nyhan e Reifler, 2015), já para não falar dos chamados “conteúdos zombie” que continuam a ser partilhados
mesmo quando a página original deixa de estar
ativa.
Por isso, se tem apelado à necessidade de, por
um lado, os agentes com responsabilidades na
matéria, entre os quais os profissionais da Saúde,
regularem a informação e, por outro, consciencializar e educar os públicos, apostando na literacia
para os media e em e-saúde, para que o cidadão
saiba reconhecer a desinformação e não a partilhe.
No quadro da Covid-19, a não partilha de desinformação tem sido encarada como um ato moral,
ético e solidário. No equilíbrio entre liberdade de
expressão e o dever de não propagar desinformação, emerge o debate sobre as tensões entre
liberdade individual e biossegurança coletiva.
Estas constatações exigem um exame cruzado
às desvantagens que a utilização da Internet para
a saúde coloca, já que se salientam os riscos que
uma utilização incorreta desta comporta a vários
níveis, incluindo a não adoção de comportamentos de cidadania em saúde (Leite, Pontes e Pavão,
2015), entendida como um espetro de ações que
varia entre a passividade e a proatividade, onde se
insere a produção e partilha de conhecimento, o
autocontrolo e autonomia no que respeita à saúde
individual e coletiva, ou a adesão a medidas recomendadas que, na Covid-19, influencia a contenção da infeção.
Todavia, haverá que dizê-lo, nem sempre será
fácil fazer esse exercício de adoção de atitudes e
comportamentos de cidadania em saúde, dados
os baixos índices de literacia informacional, em
saúde e em e-saúde, de grande parte da população, nomeadamente entre as gerações mais
velhas, mas não só. A aposta nestas literacias releva-se fundamental, já que as mesmas contribuem
para a capacitação do indivíduo. Mas a esta aposta
deve juntar-se o reforço no acesso às ferramentas
digitais, por parte daqueles que ainda não foram
“vacinados” contra o “vírus” da infoexclusão.
Tal é premente, dada a natureza e especificidades da informação em saúde, de carácter bastante sensível. Porque afinal, é a própria vida do
cidadão que pode sair danificada.
20
o número de casos de cibercondria; ainda que, por
incrível que possa parecer, em contextos de emergência de saúde pública, esta possa surgir como
protetora da saúde individual, ao contribuir, através do medo exacerbado que cria, para a adesão a
medidas e comportamentos recomendados, como
o autoisolamento (Farooq, Laato e Islam, 2020).
Pese a peculiaridade desta situação, a cibercondria pode tornar-se na questão de saúde mais premente, no que diz respeito à procura de informação sobre saúde na Internet, já que se perspetiva
o aumento de situações de emergência sanitária,
como pandemias (Garrett, 2005); e assim, um
acréscimo desta procura. Será por isso fundamental reequacionar-se a educação em saúde, encarando-a como indissociável da educação para os
media, acoplando, assim, vários tipos de literacia.
Cibercondria
Na pandemia por Covid-19, da procura, consumo e
partilha de informação online sobre saúde, resultam,
fundamentalmente, duas situações ou quadros: 1) a
sobrecarga de informação agregada à “infodemia”,
dando origem a uma “infoxicação” (Dias, 2014) ou a
um “dilema de imersão tóxico” (Castronova, 2005),
que resultam do confronto cognitivo, emocional e
instrumental entre os benefícios proporcionados e
os efeitos potencialmente “tóxicos” (nefastos) dessa
imersão; e 2) a cibercondria ou “hipocondria digital”,
que é definida como a procura online obsessiva por
informação relacionada com a saúde e a doença,
tipicamente direcionada a sintomatologia específica
(Fergus e Russell, 2016).
Esta procura obsessiva, impulsionada por uma
necessidade de aliviar a ansiedade, gera reações
em cadeia (por temores injustificados) que resultam, ao invés, em mais ansiedade e agudização
dos sintomas (Starcevic e Berle, 2013), e exacerbação da angústia psicológica resultante da exposição repetida à informação sobre o vírus (Garfin,
Silver e Holman, 2020), no caso da Covid-19. A ela
estão associados comportamentos danosos e que
colocam em risco a saúde, ou mesmo a vida, do
utilizador, como sejam o autodiagnóstico, o autotratamento (medicamentoso e ou de outra índole),
ou a compra online de medicamentos, sem, muitas vezes, se assegurar a sua origem e idoneidade.
A ambiguidade das informações e a incerteza
associada à “novidade” do vírus podem conduzir
à perceção errónea das ameaças e de vulnerabilidade (gravidade e suscetibilidade percebidas)
ao risco de contrair a doença, e são aspetos que
apresentam correlação positiva com a cibercondria (Laato et al., 2020). Estes tópicos elevam a
ansiedade e, em consequência, o aumento de procura por informação online (Jungmann e Witthöft,
2020), gerando um círculo vicioso. Tal está em
linha com outras crises de saúde pública global: o
mesmo ocorreu no contexto da crise H1N1, quando
o aumento da incerteza e dos sentimentos de
incontrolabilidade aumentaram a ansiedade em
saúde (Taha, Matheson, e Anisman, 2014).
Antevê-se que, em momentos de grande incerteza, como o da pandemia por Covid-19, aumente
Webs solidariedades em saúde. Algumas das
Covid-desigualdades
Se o ciberespaço é campo da saúde, como vimos,
nele sobressaem webs socialidades e solidariedades, em bricolagens de participação multifacetadas. Esta web-movimentação em saúde dá origem a bio militâncias que dotam com saliência @s
redes sociais de ação biopolítica, isto é, de ações
participativas assentes na saúde-doença-corpo.
A participação ou movimentação online em
saúde, associadas à Covid-19, entrecruzam razões
sanitárias, associadas ao risco de todos poderem
ficar infetados, com dimensões psicossociais, relacionadas com o medo, a angústia e a incerteza,
mas também com a solidariedade. Atenda-se às
narrativas em torno dos mais velhos e dos profissionais de saúde, que enfatizam “um dever especial de proteção” e assinalam políticas de identidade, reconhecimento e justiça social. No quadro
da pandemia por Covid-19, estas dimensões fizeram notar-se com especial ênfase. Assistimos
igualmente a uma escalada solidária, à escala planetária. Foram e são disso exemplo as várias campanhas de crowdfunding para a aquisição de equipamentos de proteção individual (EPI’S) e outro
material, como sejam ventiladores, ou de bens e
géneros para grupos desfavorecidos e pessoas
21
2014). Este tipo de trauma (secundário) resultou
da empatia gerada em volta daqueles que estiveram, na “primeira linha” ou “linha da frente” submetidos ao trauma (primário), na luta pela sobrevivência dos doentes, nas unidades de cuidados
intensivos, que muitos profissionais de saúde, em
visível sofrimento, relataram. Defende-se a necessidade de partilhar mais estas histórias para elevar a “moral” do cidadão e mostrar o lado positivo da humanidade (Rathore e Farooq, 2020).
Esta necessidade é mediada pelas políticas antes
descritas (identidade, reconhecimento e justiça
social), perante aqueles que colocaram a sua vida
em risco para salvar outras vidas. No contexto
visado, o relato destas experiências e as solidariedades geradas à volta delas, criam um valor simbólico, na valorização do trabalho dos profissionais
de saúde, um valor material/instrumental, através
das várias campanhas de recolha de fundos, como
atrás se disse, ou um valor híbrido (simultaneamente simbólico e instrumental), pelos discursos
que apelam à aposta política no setor, às críticas a
cortes financeiros efetuados neste, à urgência na
contratação de mais pessoal. A amplitude de países que aderiram aos aplausos das 20h aos profissionais de saúde, ilustra bem estas tendências
e valores, visibilizando mais uma variante da participação online em saúde, em dinâmicas online-offline, rede-rua (ainda que à varanda ou janela).
Como estratégias solidárias para contornar o
confinamento, ganharam destaque produções DIY,
de artistas vários, ou cidadãos comuns, tentando
anular a sensação de distância física e de compressão do tempo (de um tempo ordinário, lento,
repetido, igual). São disso exemplo as ciberleituras partilhadas, os webs-concertos, improvisados
ou organizados, como o “One World: together at
home”, considerado por muitos como o “Live Aid”
em tempos de Covid, ou variadíssimos e poliédricos vídeos “domésticos” de entretenimento, que
servem, entre outros, objetivos de manutenção de
um nível ótimo e ou desejável de saúde mental.
Nesta moldura, ouviram-se e entoaram-se ‘canções de esperança’: Everything’s Gonna Be Alright;
Smile; What a Wonderful World; Somewhere over
the rainbow... Todas estas dinâmicas são expressão
daquilo que designo de “solidariedade viralizada”:
mais atingidas pela crise económica e social associada à pandemia. Estas realidades espelham
solidariedade(s) online para a saúde e doença
(Demjén, 2016) e são expressão dessa web movimentação em saúde; ao mesmo tempo em que
projetam uma “ética da saúde na Covid-19” (Fong
e Devanand, 2020) que parte do sentimento e
reconhecimento de vulnerabilidades mútuas (Baylis, Kenny e Sherwin, 2008).
Visibilizaram-se, em decorrência, práticas partilhadas que refletem um compromisso coletivo
de saúde e segurança públicas, em detrimento do
interesse individual. Valores como os da partilha,
cooperação, dádiva, esperança, são mobilizados
para acentuar o papel do capital social comunitário e consolidar a confiança coletiva. Serve esta
confiança, a partilha de relatos e de histórias pessoais relacionados com a doença.
No caso da Covid-19, sendo ou não pessoa diagnosticada com o vírus e em quarentena domiciliária, sobrevivente à doença, ou cuidadora de pessoa infetada, o ciberespaço foi e tem sido veículo
de narrativas que relatam, na primeira pessoa (ou
também em nome de outros (já) ausentes), percursos de “sobrevivência”, resistência e resiliência, em estratégias adaptativas de enfrentamento,
quer à doença, quer ao confinamento. Estas narrativas podem contribuir para a amenização de
entropias associadas ao contexto pandémico.
O(a) hashtag #ThanksHealthHeroes16 foi e continua a ser um(a) dos/das comummente usado(a)
s em diferentes plataformas de redes sociais, para
demonstrações de enaltecimento e gratidão aos
profissionais de saúde que, por sua vez, partilham,
também eles, experiências e relatos (telling stories) situados e encorpados (nunca melhor dito)
de sacrifício e abnegação pessoal, dando origem
a mensagens planetárias que os classificam como
“heróis” (Bauchner e Easley, 2020).
Tanto é assim que, nesta conjuntura, agudizou-se uma “traumatização vicariante”, que se refere
aos danos e impactos emocionais que excedem
a tolerância psicológica e emocional (Mathieu,
16 Este(a) hashtag foi criado(a) propositadamente no contexto
da pandemia por Covid-19.
22
uma solidariedade digitalmente visualizada e ou
replicada a larga escala; e “manifestações da solidariedade-espetáculo”, já que as expressões de
solidariedade tendem, cada vez mais, a serem
impactantes, criativas, inovadoras, e associadas ou
conjugadas com exercícios culturais e encenações
artísticas, nomeadamente musicais e teatrais. Estes
webs movimentos, notados com efervescência na
crise da Covid-19, transfiguram o ciberespaço num
novo ‘espaço cénico’ e acentuam as tecnologias
digitais como instrumento de liberdade, criatividade
e superação, reforçando, ao mesmo tempo, a tendência de tecnologização dos tempos livres e dos
lazeres.
Num quadro paradoxal em que o distanciamento físico e espacial (e não necessariamente social,
como foi e tem sido veiculado) aparece como aproximação afetiva (ao demonstrar atenção e solidariedade para com o outro, num registo de “fisicamente
distantes, mas emocionalmente próximos”), origina-se uma web “solidão da procura” (Pais, 2006) que
se orienta para o estabelecimento de redes de conexão. Tais redes contribuem para esbater a sensação
de espacialidade física distanciada, tecendo novas
espacialidades, e em que, de repente, as pessoas se
tornam “terapeutas” mútuas e da comunidade.
O confinamento não será assim sinónimo de “enclausuramento” ou “desenraizamento”, pelo menos,
para alguns.
O estabelecimento de contactos sociais intergeracionais online afirma-se como uma “solidariedade
digital intergeracional” (Peng et al., 2018) que mobiliza dimensões emocionais e instrumentais entre
gerações, numa espécie de antídoto digital no combate à solidão e ao isolamento dos mais velhos, e
não só, e na utilização das ferramentas online. Para
esta utilização, e como forma de minimizar déficits digitais, faz-se, frequentemente, uso das redes
sociais mais próximas, também para a procura, e
sobretudo para a interpretação partilhada e colaborativa das informações sobre saúde (online ou
de outras fontes), naquilo que se designa de “literacia distribuída” (Edwards et al., 2015) em saúde,
e que demonstra bem a relação entre saberes e
poderes. Ressalve-se, porém, que, em alguns casos,
a procura de informação sobre saúde na Internet
para pessoas próximas ao utilizador (familiares, por
exemplo), pode gerar neste uma “cibercondria por
procuração” ou “cibercondria por proximidade”
(Aiken e Kirwan, 2013).
Por isso, tende já a considerar-se a e-conetividade como determinante social da saúde, podendo
influenciá-la positiva, ou negativamente, consoante
as utilizações e os perfis de utilizadores.
No entanto, estas dinâmicas destapam desigualdades digitais várias. É por isso assinalada, também neste contexto sanitário-info-pandémico, uma
‘desigualdade de participação online’, que comporta a distribuição diferenciada de riscos e benefícios, e a que se “surfe” desigualmente, na esteira
de Zygmunt Bauman, “as ondas de uma sociedade
líquida” (Bauman, 2001); ou de um vírus obscuro e
incerto.
Reflexões finais
Se é certo que a pandemia por Covid-19 salientou
a importância de alterações profundas e significativas na textura quotidiana, de entre as quais a
necessidade de des-digitalizar as nossas vidas e
desacelerar os seus ritmos, para aprender a viver
de outra maneira, revelou, paradoxalmente, tendências contraditórias que apontam rumo a um
reforço das tecnologias digitais, às quais não são
alheias pressões sociopolíticas e sociotécnicas
para integrar o mundo do digital. Com efeito, esta
pandemia acentuou a centralidade do digital no
quotidiano da grande generalidade das pessoas.
Emergiu à luz disso aquilo que designo de “confinamento ciber-espacializado” e que remete para
a ubiquidade e preponderância das ferramentas
digitais nas vivências do ‘confinamento’ e ‘desconfinamento’, seja ao nível do teletrabalho, na procura, visualização e partilha de informação sobre o
vírus, nas compras online, no ensino à distância, na
manutenção de interações sociais, na expressão
das solidariedades, ou, simplesmente, no preenchimento e ocupação dos tempos de ócio.
Se as ferramentas digitais acarretam simultaneamente oportunidades e desafios vários, em diversos quadrantes instiga-se o ciberespaço como
esfera pública e espaço diferenciado(r) no quadro
da Covid-19, algo que deve merecer a atenção,
23
presente e futura, dos vários stakeholders envolvidos e, desde logo, dos sociólogos. Uma nova governação da informação online sobre saúde, e das práticas em saúde mediadas pela Internet, é necessária
e urgente. Esta deve abarcar, cada vez mais, os
aspetos sociais e sociológicos das mesmas.
Num tempo, dito de unidade e de resposta coletiva, encoraja-se o cidadão a uma utilização responsável e eficiente das tecnologias digitais para
a saúde. Este encorajamento assenta em modelos biopsicossociais da saúde, que perspetivam
o cidadão como parceiro dos cuidados, e surge
associado à ideia de compromisso e de solidariedade, nos princípios bioéticos de não maleficência,
beneficência e precaução. Se o cidadão é chamado
a assumir tais responsabilidades como agente promotor de saúde, e para que esteja preparado para
o fazer, haverá que facilitar os mecanismos e criar
os ambientes de apoio à assunção dessas responsabilidades. Medidas públicas, colaborativas e concertadas, devem ser tomadas para consciencializar
e proteger o utilizador, sobretudo o mais vulnerável às consequências indesejadas de uma incorreta
utilização, no acautelar de iatrogenias resultantes.
Nas “sociedades de risco” (Beck, 2015), devem
também ser feitos esforços para combater os riscos
da desinformação, que pode colocar em causa, no
caso da informação sobre saúde, a saúde pública
e a segurança individual e coletiva. Até porque, as
crises de saúde pública são também crises de informação (desinformação, melhor dito), algo bem
demonstrado nesta crise pandémica. A manutenção da confiança pública será fundamental para a
consolidação do papel preconizado que o cidadão
deve ter, no melhor interesse de ambos, decisores e
cidadãos. Para a construção e sedimentação dessa
confiança é essencial que se acompanhe, monitorize e avalie o modo como a sociedade percebe as
decisões públicas nesta matéria. Tal deve ser acompanhado pela atenção aos microcontextos imersivos dos atores sociais e ao estudo da sua influência
mediadora. Esta atenção pode ajudar à conceção de
modelos epidemiológicos de educação em saúde
que usem estratégias de comunicação mais eficientes, direcionadas aos vários públicos.
O foco nos determinantes sociais das práticas
online em saúde e nas consequências e impactos
sociais destas, acompanha um movimento da
própria saúde pública (uma Sociologia da Saúde
Pública?…) que tende a centralizar-se nos determinantes e influências ambientais e encorpadas. Para
tal serão necessárias estratégias que tenham como
alvo os segmentos populacionais mais débeis ao
nível do digital, que são também os mais vulneráveis a exclusões encadeadas e interdependentes, com repercussões neste domínio. Assinala-se
assim, aquilo que podemos designar por “uma
interseccionalidade do digital”, multiplicadora de
forças e desigualdades, e em que diferentes usabilidades digitais potenciam diferentes resultados.
Se a Internet pode reduzir o atrito do espaço, ela
não eliminará a importância do(s) lugar(es).
Tal, não impede à regulação17 da informação
online sobre saúde, que responderá a objetivos,
não somente de saúde pública, mas de defesa da
verdade (em tempos de ‘pós-verdade(s)’). Esta
deve ser percecionada como mais uma das facetas do ‘investimento na saúde’, tão apregoado em
crises sanitárias e ou pandémicas.
Numa linha da sociologia crítica, esta é uma matéria que envolve não apenas o entendimento público
da informação, mas o envolvimento dos públicos
com essa informação. Deve, por isso, estender-se
o conceito de cibersegurança e atender às suas
dimensões compósitas e fronteiriças, para poder
fazer face à evolução da sociedade da informação
nos próximos anos, tentando garantir, tal como na
pandemia, que “ninguém fique para trás”.
O futuro, incerto e ou desejado, que esta crise
antecipa, é mobilizado como objeto de reflexão
sobre os tempos atuais e sobre os contributos
que esta pandemia pode dar a esse(s) futuro(s).
Que o compromisso e envolvimento de todos
para uma responsável e tão propalada “nova normalidade”, seja seguido de “novas normalidades” no que ao digital concerne. Neste contexto,
17 Efetuada, por exemplo, por plataformas como a do projeto CovidCheck.pt. Este é um projeto de divulgação informativa do MediaLab-ISCTE, em colaboração com a SPP e
o CENJOR. O projeto é financiado pela iniciativa Gulbenkian Soluções Digitais Covid-19, promovida pela Fundação
Calouste Gulbenkian. Tal projeto acompanha a tendência de
“fact-checking” informativo.
24
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a crise pandémica pode representar, ela própria,
um catalisador de transformações e da mudança
social. No digital, ela deve servir para o “desconfinamento” de alguns dos arquétipos e obstáculos
que a rodeiam.
A sociologia pode, e deve dar, nestas matérias,
contributos assinaláveis, para a análise de fenómenos, cuja natureza é tão multiforme, quanto a
da pandemia.
Siglas, acrónimos e abreviaturas
SARS-CoV-2
OMS
IS-UP
MSC
ONU
H1N1
DIY
DGS
MEDIALAB
ISCTE
SPP
CENJOR
Severe acute respiratory syndrome coronavirus 2
Organização Mundial de Saúde
Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
Munich Security Conference (Münchner Sicherheitskonferenz, em alemão)
Organização das Nações Unidas
(the influenza type A virus, conhecido como “swine
flu” ou “Gripe A”)
Do It Yourself (Faça Você Mesmo)
Direção-Geral da Saúde
Media Laboratório
Instituto Universitário de Lisboa
Sociedade Portuguesa de Psicanálise
Centro Protocolar de Formação Profissional para
Jornalistas
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A COVID-19 E O CAMPO CULTURAL
BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DO
COMPORTAMENTO DO PODER PÚBLICO
DIANTE DA CRISE NO SETOR
Pedro Menezes18
Introdução
Este artigo objetiva analisar os impactos da Covid-19
no campo cultural brasileiro, bem como discutir
a postura do poder público diante dos efeitos da
pandemia nessa área.
De acordo com a queixa dos agentes do setor, a
cultura enfrenta mudanças especialmente radicais
em tempos de quarentena: por um lado, em um
curto espaço de tempo esse mercado viu suas atividades se reduzirem a praticamente zero, já que
quase todas envolvem aglomeração de pessoas e,
portanto, risco de contaminação mais acentuado;
por outro lado, os poucos criadores que tinham
a possibilidade de disponibilizar sua obra em formato virtual precisaram rapidamente se adaptar a
esse modelo, já que essa solução parcial e improvisada parecia ser a única maneira possível de
continuar operando. Entre os que dependem do
segmento para sobreviver, um lamento é exaustivamente repetido: “os setores criativos estão
entre os primeiros que foram afetados pela crise
e deverão ser os últimos a se recuperarem dela”
(Canedo, et al. 2020).
No Brasil, a julgar pela maneira como o governo
federal conduz as pastas, tanto da saúde, quanto
da cultura, tudo indica que essa situação particularmente frágil do campo cultural durante a pandemia terá um desfecho ainda mais dramático.
18 Doutorando do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Bolseiro de Doutoramento
FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade
do Porto (IS-UP) o projeto “Transglobal indie: a configuração
ds cenas de rock independente de Porto e Fortaleza pelas
ruas das cidades (1980 – 2020)” (SRFH/BD/140040/2018)
sob orientação científica da Professora Doutora Paula
Guerra. E-mail: pedromenezes89@gmail.com
26
Do ponto de vista da saúde, os números revelam que o Brasil é um dos piores países do mundo
no que diz respeito ao combate ao coronavírus.
De acordo com os dados oficiais disponibilizados
pelo Ministério da Saúde em meados de junho,
altura em que escrevo esse texto, ocupamos o
segundo lugar mundial, tanto em número de
casos confirmados, com mais de 800 mil diagnósticos positivo, quanto de óbitos, com as mortes a
superar a marca dos 40 mil. Enquanto muitos países veem uma melhoria das suas estatísticas, no
Brasil a curva de contaminações e de óbitos ainda
é ascendente: já se registram mais de mil mortes por dia e sequer atingimos o pico da doença.
Embora o cenário já seja alarmante, a realidade,
provavelmente, é muito pior do que sugere esse
levantamento, pois, contrastado com a força-tarefa deflagrada em outros países, o Brasil realizou
pouquíssimos testes: segundo dados do mês de
maio, enquanto os Estados Unidos haviam testado
10 milhões de americanos, no Brasil apenas 735
mil pessoas foram submetidas ao mesmo teste19.
Confrontado com essa paisagem, o Presidente
da República Jair Bolsonaro vem adotando uma
atitude abertamente negacionista: contrariando
as recomendações da Organização Mundial da
Saúde (OMS) e de outros especialistas, Bolsonaro
subestima a gravidade do coronavírus; critica o
isolamento social; exige a reabertura do comércio e o retorno de todas as atividades; estimula,
promove e até lidera aglomerações de pessoas;
alimenta a teoria conspiratória de que os governadores dos estados e a mídia inflacionam mentirosamente os números com o intuito de desestabilizar a gestão presidencial; e, por fim, defende o
uso da hidroxicloroquina como tratamento capaz
de curar a covid-19, embora não haja nenhuma
comprovação cientifica nesse sentido.
Para impedir que Bolsonaro ponha em prática essas medidas rechaçadas pela medicina, o
Supremo Tribunal Federal (STF) tomou duas decisões que reduzem as competências do presidente
e conferem mais autonomia aos prefeitos das
cidades e aos governadores dos estados no que
diz respeito à batalha contra o coronavírus20: a primeira decisão, do dia 15 de abril, deu aos chefes
dos executivos municipais e estaduais a liberdade
de determinar as regras de isolamento que vigorariam em suas respectivas regiões. A segunda
decisão, do dia 6 de maio, permitia que esses
mesmos gestores pudessem decretar o fechamento das fronteiras da unidade que governam.
Com essas resoluções jurídicas, a margem da qual
Bolsonaro dispõe para concretizar suas ideias tornou-se mínima.
Enquanto isso, na esfera federal, durante a
subida vertiginosa do número de casos e de
mortes, em menos de um mês, dois ministros da
saúde, médicos, foram demitidos ou constrangidos a se demitir por não terem adotado o mesmo
discurso presidencial anticientífico, de crítica ao
isolamento e defesa dos supostos poderes milagrosos da hidroxicloroquina. Entre os dias 15 de
maio e 3 de junho, período em que o país registrou 337.160 novos casos da doença e 14.817 óbitos por ela causados21, o cargo de Ministro da
Saúde permaneceu vago. No dia 3 de junho, o
Presidente nomeou interinamente para a pasta,
Eduardo Pazuello, general do exército sem formação em medicina ou áreas afins. Até o momento,
ainda não se sabe quem ocupará o ministério em
caráter efetivo.
Sob a gestão de Pazuello, o Ministério da Saúde
protagonizou mais um escândalo mundialmente
noticiado: o órgão retirou do seu site oficial as
informações atualizadas sobre o avanço da pandemia no Brasil. Logo depois, as informações voltaram ao ar de maneira parcial e extremamente
duvidosa, omitindo os números de contaminação e mortes acumulados e revelando apenas
os dados do dia corrente, mas, mesmo esses,
20Politicamente, o Brasil se divide em 27 unidades federativas,
sendo 26 estados e um Distrito Federal, e cada um desses
estados se divide em cidades. O chefe do executivo das unidades federativas é o governador, e o chefe do executivo
das cidades é o prefeito.
21 https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-oficializa-general-pazuello-como-ministro-interino-da-saude-1-24459898
19 https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-ultrapassa-marca-de-200-mil-casos-de-coronavirus-apesar-de-ter-numero-baixo-de-testes,70003303538
27
bastante inferiores às médias diárias que vinham
sendo até então computadas. Toda essa desinformação atirou em descrédito os dados oficiais
publicados pelo Ministério da Saúde, o que levou
os mais importantes meios de comunicação do
país a se juntar para apurar números mais precisos
a partir do somatório dos dados de cada uma das
27 unidades federativas em que o país se divide.
Ainda que uma nova decisão do Supremo Tribunal
Federal tenha obrigado o governo a voltar a divulgar os números tal como estava sendo feito antes
de todo esse imbróglio, hoje boa parte da opinião pública já não acredita nessas informações,
e caminha sonâmbula sem saber ao certo em que
estágio a doença se encontra.
Mesmo com esse quadro, a covid-19 não parece
ser uma prioridade do Presidente, que dedica a
maior parte dos seus esforços a tentar resolver
conflitos palacianos criados por ele mesmo, proteger-se das acusações que cada vez chegam
mais perto de si e dos seus filhos políticos, e, principalmente, aparelhar a máquina estatal com militares de sua confiança e promover manifestações
semanais de cunho golpista dedicadas a constranger opositores, a imprensa, os demais poderes e
outras instituições da República. Por acumular
episódios dessa natureza em plena expansão do
coronavírus, Bolsonaro atraiu todos os holofotes
internacionais para o Brasil e para si, sendo inclusive laureado pelo jornal The Washigton Post com
o prêmio de pior chefe de Estado do mundo na
cruzada contra a covid-1922.
A situação da cultura será, mais detalhadamente, tratada em uma seção própria desse artigo.
Por ora, o que pode ser antecipado é que lá o
ambiente não é melhor que o da saúde. Ao longo
da atual gestão, a cultura vem sendo, ora atacada, ora abandonada, tanto no plano simbólico
(enquanto livre manifestação do espírito), quanto
no plano institucional (enquanto agenda). No que
diz respeito à dimensão simbólica, Bolsonaro ecoa
as teorias conspiratórias de um ideólogo brasileiro
sem diploma, radicado no estado americano da
Virgínia, comportando-se como se estivesse em
meio a uma guerra cultural entre, de um lado,
sua visão de mundo conservadora, e, de outro,
toda e qualquer forma de existência que não se
enquadre dentro das rígidas e estreitas arestas
desse pensamento retrógrado. Dito em termos
definitivos, o presidente metonimicamente confunde uma parcela muito específica do Brasil com
o país inteiro e, assim, julga que tudo o que não
pertence ao arquétipo do que chama “cidadão de
bem” (uma caricatura do homem branco, heterossexual, cristão e de direita), não é brasileiro, mas
uma ameaça externa que supostamente desejaria colonizar esse “verdadeiro” Brasil. No aspecto
institucional, a pasta foi rebaixada de ministério
a secretaria e, a princípio, integrada ao Ministério
da Cidadania (mais um Frankenstein burocrático
que o presidente criou fundindo ministérios), mas
depois jogada para o Ministério do Turismo. Desde
a posse de Bolsonaro, quatro secretários já passaram pela cadeira sem que nenhum tenha proposto
algo concreto ou com a capacidade de atender às
demandas de um país culturalmente diverso e de
proporções continentais como é o Brasil. A última
ocupante do cargo foi oficialmente exonerada de
sua função no dia 10 de junho, três semanas após
ter sua saída anunciada e ter parado de trabalhar
de fato. Até agora, ninguém foi nomeado para o
seu lugar.
Nesse sentindo, para os fins de um artigo que
intenta analisar as consequências da covid-19 no
campo cultural brasileiro e as respostas do poder
público para a crise no setor, talvez a primeira
informação que precise ser fixada é: saúde e cultura, as duas pastas que interessam mais diretamente ao tema desse estudo, estão acéfalas, sem
nenhum gestor efetivo à frente de seus respectivos órgãos.
Diante do painel aqui traçado, questiono: Quais
serão os efeitos do coronavírus no campo da cultura no Brasil? Como o executivo nacional tem
tratado essa questão? Quais serão as consequências da postura do governo federal em face dos
problemas que a pandemia traz para a cultura?
Ancorada em estudos quantitativos sobre esse
mesmo recorte (Canedo, et al. 2020; Machado et
22 https://www.washingtonpost.com/opinions/global-opinions/jair-bolsonaro-risks-lives-by-minimizing-the-coronavirus-pandemic/2020/04/13/6356a9be-7da6-11ea-9040-68981f488eed_story.html
28
al., 2020), a presente análise busca fornecer um
complemento qualitativo e diacrônico para essas
mesmas interrogações que nortearam esses trabalhos mais técnicos. Para cumprir essa meta,
esse texto traçará o seguinte caminho: primeiro,
farei um resgate sociogenético da trajetória descrita pelo campo da cultura no Brasil, assumindo
como ponto de partida o período em que foram
fincadas as bases que o sustentaram até hoje e
tomando como ponto de chegada a subida de Bolsonaro ao poder, momento em que esses alicerces
estão sendo abalados. Com esse esforço, almejo
entender que legado o atual presidente recebeu,
para, em seguida, discutir o que ele tem feito com
essa herança. Após esses momentos partirei para
um debate mais específico sobre os impactos da
covid-19 no campo cultural, as estratégias desenvolvidas pelos agentes que compõem a área, as
projeções futuras e, principalmente, o comportamento do governo federal diante desse desafio.
Nas considerações finais, após o estudo tanto
das implicações da pandemia na cultura quanto
da conduta do executivo nacional em meio a essa
crise, pretendo sublinhar os possíveis desdobramentos dessa problemática em outros agentes
de poder da República, notadamente, os prefeitos das cidades, os governadores dos estados,
o poder legislativo nacional, o Supremo Tribunal
Federal e a imprensa.
No Brasil, o campo cultural não se organiza
nem da maneira acima descrita, nem da maneira
oposta, ou melhor, não se organiza nem só de um
jeito, nem só de outro, mas se serve de ambos,
mesmo que sejam inversos. Colocando em termos
claros, pode-se dizer que, no campo cultural brasileiro, Estado, mercado e artistas nem puramente
rivalizam, nem apenas se ajudam, mas duelam e
cooperam simultaneamente, firmando um tenso
arranjo que consegue a proeza de se equilibrar
na própria instabilidade justamente porque transforma forças disruptivas em novas formas de vínculo: as arestas desse triangulo separam e conectam os seus vértices ao mesmo tempo.
Estado
Os pilares dessa construção foram erguidos durante
o período da ditadura militar brasileira (1964-1985).
O governo da época estabeleceu com a cultura
uma ambivalente relação de apoio na forma e controle no conteúdo: por um lado, o regime implementou todas as medidas técnicas e institucionais
para que pudesse florescer no Brasil um mercado
massificado de produção e consumo de bens e serviços simbólicos (apoio na forma); mas, por outro
lado, o mesmo governo capaz de fazer esse investimento também censurava, perseguia, exilava, prendia, torturava e matava os criadores egressos desse
parque industrial de arte e entretenimento que a
própria ditadura ajudou a erigir (controle no conteúdo). Nesse contexto, “o Estado deve, portanto,
ser repressor e incentivador das atividades culturais” (Ortiz, 2006:116), um paradoxo definido por
muitos sociólogos e sociólogas como uma “modernização conservadora”23 (Dias, 2008; Ortiz, 2006;
Ridenti, 2014) ou, simplesmente, uma “moderna
tradição brasileira” (Ortiz, 2006).
O campo da cultura no Brasil: o triângulo
Estado-Mercado-Artistas
No senso comum, existe a crença de que Estado,
mercado e artistas seriam inimigos naturais com
interesses antagônicos: o Estado, com sua máquina
burocrática hipertrofiada, desejaria engolir todas
as atividades; o mercado, inspirado pelo liberalismo econômico, fugiria do controle estatal com
o objetivo de lucrar cada vez mais; e os artistas,
esses espíritos sensíveis e contestadores, ensejariam uma obra livre que denunciasse a tirania de
ambos. Por mais disseminada que seja essa prenoção, a realidade dos fatos é mais complexa do que
esse imaginário sugere, como prova a experiência
brasileira (Ortiz, 2006; 2012).
23 Segundo Dias, essa é uma “expressão utilizada por MARTINS,
L. Pouvoir et développement économique. Paris: Anthropos,
1976, p. 22, inspirando-se na expressão de Barrington Morre
para designar o processo de substituição da economia agrário-exportadora pela industrial por meio de um pacto entre
Estado e classes dominantes.” (Dias, 2008: 81)
29
“A expansão das atividades culturais se faz
associada a um controle estrito das manifestações
que se contrapõem ao pensamento autoritário.
(...) O movimento cultural pós-1964 se caracteriza por duas vertentes que não são excludentes:
por um lado se define pela repressão ideológica
e política; por outro, é um momento da história
brasileira onde mais são produzidos e difundidos
os bens culturais. Isto se deve ao fato de ser o próprio Estado autoritário o promotor do desenvolvimento capitalista na sua forma mais avançada”
(Ortiz, 2006: 114-115).
Ridenti (2014) segue o mesmo raciocínio de
Ortiz, “O processo da revolução burguesa – na sua
especificidade autoritária e dependente, numa
sociedade com desenvolvimento desigual e combinado, como a brasileira, em que o atraso é estruturalmente indissociável do progresso, o arcaico
inseparável do moderno – seria coroado com o
movimento de 1964” (Ridenti, 2014:36)
Dentre as principais medidas técnicas e institucionais que a ditadura militar tomou para forjar esse mercado cultural, bem como os acontecimentos que se deram em decorrência desse
investimento, podemos citar: em 1965, a criação da Empresa Brasileira de Telecomunicações
(EMBRATEL) e a entrada do Brasil no INTELSAT,
o sistema internacional de satélite; em 1966, a
criação do Conselho Federal de Cultura, do Conselho Nacional de Turismo, da Agência Brasileira
de Promoção Internacional do Turismo (EMBRATUR), do Instituto Nacional de Cinema (INC), e a
definição de um política nacional de turismo; em
1967, criação do Ministério das Telecomunicações,
do Sistema Nacional de Turismo e a realização do
I Encontro Oficial de Turismo Nacional; em 1968,
realiza-se a I Reunião dos Conselhos Estaduais de
Cultura; em 1969, é criada a Empresa Brasileira de
Filmes (EMBRAFILME); em 1970, o Ministério de
Educação e Cultura (MEC) passa por uma reforma
administrativa que cria, em sua burocracia interna,
novos órgãos voltados para a cultura, como o
Departamento de Assuntos Culturais (DAC); em
1972, há a criação da Telecomunicações Brasileiras S.A (TELEBRÁS) e se realiza o I Congresso
da Indústria Cinematográfica Brasileira; em 1973,
o DAC lança o 1° Plano de Ação Cultural; em
1975, inaugura-se a Fundação Nacional de Artes
(FUNARTE) e o Centro Nacional de Referência
Cultural, o primeiro Plano Nacional de Cultura é
publicado, a Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro é lançada, realiza-se o I Encontro Nacional dos Dirigentes de Museus, e a EMBRAFILME
é ampliada, absorvendo as competências do INC,
que, por essa razão, é extinto; em 1976, são fundados o Conselho Nacional de Cinema (CONCINE), a
Empresa Brasileira de Comunicação – Radiobrás,
e é realizado o I Encontro Nacional de Cultura; em
1979, o DAC é elevado ao estatuto de Secretaria
de Assuntos Cultuais, cria-se a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Fundação
Pró-Memória e se realizam o I Seminário Nacional
de Artes Cênicas e o I Encontro Nacional de Artistas Plásticos Profissionais (Ortiz, 2006). Mas, certamente, a mais relevante de todas essas medidas
foi a criação de um sistema de comunicação de
micro-ondas – iniciado em 1968 e completado em
1970, quando chega à Amazônia – “que viabiliza
a aproximação de todos os cantos do país” (Dias,
2008:55), “permitindo a interligação de todo o
território nacional” (Ortiz, 2006:118).
Em paralelo a essas medidas de estímulo burocrático e tecnológico à cultura, crescia também o
aparato de repressão cultural e política da ditadura, que sufocava o conteúdo produzido pelo
campo que o próprio governo ajudou a criar. No
dia 13 de dezembro de 1968 é publicado o Ato Institucional 5 (AI-5), resolução do governo militar
que radicaliza e escancara a violência do Estado
ditatorial. Dentre as muitas medidas repressivas
está a institucionalização da censura de obras
culturais.
É em meio a esses sinais trocados que o mercado massificado de bens e serviços simbólicos e
a indústria da arte e do entretenimento se desenvolvem no Brasil.
Mercado
Com o apoio técnico e institucional do Estado, o
comércio da cultura no Brasil muda de nível: abandona-se uma fase aventureira baseada no faro, no
instinto e no amadorismo otimista de pioneiros
30
impulsivos que se confundem com suas próprias empresas (Assis Chateuabriand seria o tipo
ideal weberiano [2009] mais bem acabado desse
empresário), e se inicia um período de maior
racionalização, especialização, profissionalização
e modernização controlado por figuras impessoais que delegam funções e desaparecem atrás
do próprio império midiático (caso de Roberto
Marinho). (Ortiz, 2006:135) Para adotar um tom
frankfurtiano, pode-se dizer que a cultura brasileira passa a aceitar a lógica sistêmica da economia, convertendo-se em uma “indústria cultural”
de fato (Adorno e Horkheimer, 2006).
Os dados da época comprovam que o mercado
reagiu à injeção do Estado: em 1964, havia 32
empresas de televisão no Brasil, dez anos depois
passam a ser 75. Essa subida foi fundamentalmente conduzida pelas novelas: foram lançadas
195 entre 1963 e 1969, fazendo do Brasil a nona
audiência mundial de televisão em 1975. O cinema
mostra a mesma curva ascendente: entre 1957 e
1966, o Brasil produziu, em média, 32 longa-metragens por ano. Apenas entre 1967 e 1969, esse
número salta para 50. Só em 1975 são lançados
89 filmes e em 1980, 103. O número de espectadores nos cinemas brasileiros também cresce: de
203 milhões em 1971 para 250 milhões em 1976. O
mercado editorial passa de 43,6 milhões de livros
editados em 1966 para 245,4 milhões em 1980, e
de 104 milhões de exemplares de revistas em 1960
para 500 milhões em 1985 (Ortiz, 2006). No mercado fonográfico, as vendas também explodiram:
a venda de toca-discos cresceu 813% entre 1967 e
1980 e o lucro das empresas fonográficas, entre
1970 e 1976, aumentou 1375%. (Dias, 2008; Morelli,
2009). O setor cresceu 7% em 1970, 19% em 1971
e 26% só no primeiro semestre de 1972 (Morelli,
2009). Segundo a Associação Brasileira de Produtores de Discos, se em 1966, 5.5 milhões de discos
foram vendidos no Brasil, a cifra passou para 52.6
milhões em 1979 (Vicente, 2014), ano em que o
Brasil passou a ocupar o 6° lugar no ranking do
mercado de discos, tendo saltado oito posições
em uma década (Morelli, 2009). Na publicidade,
assiste-se à mesma tendência: 152 milhões de
cruzeiros são investidos no setor em 1964 (0,8%
do Produto Nacional Bruto), sendo que 12 anos
depois esse valor passa para 12,6 bilhões (1,28%
do Protudo Nacional Bruto). Em 1974, o Brasil é o
sétimo mercado de propaganda do mundo, superando países como a Itália, a Holanda e a Áustria.
Esse é um período em que várias universidades
públicas e privadas abrem cursos de publicidade:
Universidade de São Paulo em 1966, Álvares Penteado em 1967, Universidade Federal do Rio de
Janeiro em 1968, ISCM em 1969. É nessa altura também que surgem as associações de profissionais
da área: Associação Brasileira de Anunciantes em
1961, Conselho Nacional de Propaganda em 1964,
Federação Brasileira de Marketing em 1969; bem
como os institutos de pesquisas mercadológicas:
Mavibel em 1964, Ipsem e Nopem em 1965, Gallup,
Demanda e Simonsen em 1967, Ipape, Audit-TV e
Sercin em 1968, Nielson e LPM em 1969 e Grande
Parada Nacional em 1973 (Ortiz, 2006; Vicente,
2014). Na fotografia, também se vê a mesma
tendência: se o país tinha apenas 7.921 fotógrafos em 1950 e 13.397 em 1960, após o golpe militar os números passaram para 25.452 em 1970 e
48.259 em 1980 (Ortiz, 2006). Segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, o número
de domicílios brasileiros com aparelhos de rádio
era de 4.776.300 em 1960, 10.383.763 em 1970 e
19.203.907 em 1980, e com aparelhos de televisão
62.919 em 1960, 4.250.404 em 1970 e 14.142.924
em 198024.
Enquanto isso, a ditadura militar declarava
guerra aos mesmos criadores que ela havia ajudado a criar com seu investimento técnico e institucional no campo da cultura, selando com o
mercado da arte e do entretenimento o estranho
pacto de apoio formal e controle conteudístico
acima mencionado. A indústria tinha a plena consciência que devia sua expansão ao governo militar,
por isso, subservientemente, tolerava a intolerância da ditadura e considerava a censura das obras
uma espécie de contrapartida justa que os generais cobravam em troca de tanto investimento no
setor. Prova disso é o protocolo de autocensura
que a TV Globo e a TV Tupi assinaram em 1973,
comprometendo-se a censurar internamente suas
24Fonte: censos demográficos do IBGE dos respectivos anos.
31
esquerda propunham um retorno a uma suposta
essência original do povo, acreditando que essa
matriz virginal seria libertária. Se, para o centauro
Estado-Mercado, o passado conservador era o fim
da história para onde o progresso nos levaria, para
os artistas, o futuro revolucionário estava inscrito
no ADN da natureza humana, razão pela qual, à
maneira do Angelus Novus de Paul Klee analisado
por Walter Benjamin, tentavam “escovar a história
a contrapelo” (Benjamin, 1985: 225).
Contudo, essa não era uma luta entre duas frentes que se chocavam, mas entre dois círculos concêntricos: o tradicionalismo revolucionário dos
artistas era exercido no âmago da máquina tecnocrática da modernização conservadora engendrada por Estado e mercado.
“A derrota política de 1964 e o avanço da indústria cultural cobravam seu preço para a sobrevivência dos artistas. Aqueles ligados à música popular
– diretamente vinculados à indústria fonográfica e à
televisão – parecem ter sido dos primeiros a ver que
não teriam como escapar do mercado.” (Ridenti,
2014: 117).
Esse triângulo Estado-mercado-artistas continuou balizando o campo da cultura no Brasil,
mesmo após a retomada da democracia.
próprias produções antes de submetê-las à censura oficial do Estado.
“Não há, portanto, um conflito aberto entre desenvolvimento econômico e censura. Evidentemente os
empresários têm prejuízo econômico com as peças,
livros, programas, filmes censurados, mas eles têm
consciência que é o Estado repressor que fundamenta suas atividades” (Ortiz, 2006:121).
Ensanduichados entre Estado e mercado, estavam os artistas.
Artistas
Os artistas que abertamente criticavam a ditadura
militar e por ela eram perseguidos produziam suas
obras amparados pelas empresas privadas ou estatais que cresceram por conta do investimento técnico e institucional do governo no campo da cultura.
“No princípio dos anos 1970, sob o governo Médici,
quando se consolidou o processo de modernização
conservadora da sociedade brasileira, a atuação dos
artistas de esquerda foi marcada por certa ambiguidade: por um lado, a presença castradora da censura
e a constante repressão a quem ousava protestar, que
implicou a prisão, o exílio e até mesmo a morte de
alguns deles; por outro lado, cresceu e consolidou-se uma indústria cultural que deu emprego e bons
contratos aos artistas, inclusive aos de esquerda,
com o próprio Estado atuando como financiador de
produções artísticas e criador de leis protecionistas
aos empreendimentos culturais nacionais” (Ridenti,
2014: 286).
Ainda segundo Ridenti (2014), a inimizade íntima
entre ditadura e indústria cultural era tão explícita que a estratégia empregada pelos artistas
de esquerda para combater essa “modernização
conservadora” foi uma espécie de “tradicionalismo revolucionário”25; quer dizer: por um lado, a
improvável aliança entre Estado e mercado usava
a teleologia do progresso como meio de atingir um
futuro reacionário; por outro lado, os artistas de
Cultura e redemocratização
O campo cultural brasileiro se assenta nesse tripé
Estado-mercado-artistas criado no período da
ditadura militar. Os presidentes civis que sucederam os generais diferiam bastante uns dos outros
no que dizia respeito às políticas culturais, contudo, embora cada um conservasse suas idiossincrasias, todos consideravam a cultura uma
importante ferramenta de modernização e uma
poderosa arma de veiculação de suas ideias,
quaisquer que elas fossem, e todos mantiveram a
triangulação Estado-mercado-artistas concebida
na época da ditadura. Desse modo, independente
das respectivas metas de cada chefe do executivo nacional, a cultura sempre esteve a serviço de
todos esses diferentes projetos. Uma análise pormenorizada da gestão da cultura levada a cabo
por esses outros governos, como foi feito aqui
25 A expressão exata usada por Ridenti é “romantismo revolucionário” (2014), mas adapto aqui para “tradicionalismo
revolucionário”, para que fique mais clara a simetria invertida
com a “modernização conservadora” de seus opositores.
32
com o período militar, escapa aos objetivos desse
texto. Por isso, apenas pontuarei as principais realizações de cada mandatário na área da cultura,
para que se tenha uma noção do legado que Bolsonaro herdou.
Em 1985, o Presidente José Sarney cria o Ministério da Cultura, e assim finalmente o setor ganha
uma pasta própria, pois até então cultura e educação dividiam um mesmo ministério. Na gestão
seguinte, a cultura sofre um duro golpe: o recém-criado ministério é rebaixado à condição de
secretaria em 1990 pelo Presidente Fernando Collor. Ainda assim, é no mandato de Collor que se dá
um importante marco das políticas públicas culturais no Brasil: a assinatura da Lei Federal de Incentivo à Cultura, popularmente conhecida como “Lei
Rouanet”, em referência a Sérgio Paulo Rouanet,
Secretário de Cultura responsável pela criação
da medida. Sancionada em 1991, a Lei Rouanet é
a explicitação máxima do triângulo Estado-mercado-artistas em que se funda o campo cultural
brasileiro: em linhas gerais, a resolução institui
que entidades privadas (pessoas físicas ou jurídicas) que financiarem determinados projetos
culturais, previamente aprovados pelo Estado,
terão um abatimento em seu imposto de renda.
Em 1992, Collor renuncia à presidência da república logo depois da Câmara dos Deputados aprovar a abertura do seu processo de impeachment.
No mesmo ano, o vice-presidente Itamar Franco
assume o governo federal e recria o Ministério da
Cultura. Fernando Henrique Cardoso é eleito presidente em 1994 e, durante os oito anos de seus
dois mandatos, acresce uma série de medidas à
Lei Rouanet, aumentando seu escopo e fortalecendo o triângulo Estado-mercado-artistas. Entre
2002 e 2016, o Brasil é governado pelo Partido dos
Trabalhadores (PT), primeiro com dois mandatos
de Lula da Silva, a que se seguiram dois mandatos de Dilma Rousseff, sendo o segundo precocemente interrompido por um golpe de Estado. De
um ponto de vista simbólico, dois movimentos significativos marcam a gestão cultural do primeiro
partido declaradamente de esquerda a ocupar o
executivo nacional desde o fim da ditadura militar:
o primeiro gesto ecoa as então recentes resoluções da UNESCO (2002, 2005) para aquele início
de milênio, e reconhece institucionalmente a diversidade cultural como uma característica definidora
da identidade nacional brasileira. Ao afirmar que o
Brasil tem uma “identidade diversa”, o PT mostra
que é possível aproximar esses dois termos historicamente imiscíveis – já que a “identidade” sempre
remeteu ao monolítico, enquanto a “diversidade”
aponta para o polissêmico –, tomando assim a
diferença como aquilo que temos em comum e
a pluralidade como nosso traço singular (Ortiz,
2015). O segundo gesto, intimamente relacionado
ao primeiro, diz respeito à inversão do vetor que
media a relação entre Estado e população no que
concerne à cultura, ou seja: ao invés de uma cultura oficial professoralmente empurrada do Estado
para o povo, de cima para baixo, o Estado abraça
a estratégia de simplesmente fornecer os meios
para que as diferentes manifestações populares
possam se manifestar tais como se enxergam. A
política dos “pontos de cultura” dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira ilustra esse movimento de
descentralização e de aumento da capilaridade: ao
invés de ser uma central irradiadora de cultura, o
Ministério se dilui ao longo do território nacional,
fomentando uma rede cujos nós são os pontos de
cultura. Esses são anos em que a Lei Rouanet é
amplamente usada, chegando ao ponto de ser erroneamente tomada como uma criação do Partido
dos Trabalhadores. Em 2016, conforme comentado
acima, um golpe de Estado depõe Dilma e passa
a faixa presidencial para o, até então, vice-presidente Michel Temer, um dos principais artífices do
golpe. O curto período de Temer na presidência
não se configura como um mandato propriamente
dito, já que se prestou mais a interromper o projeto petista e a apagar seu legado, do que a inaugurar um novo governo propriamente dito. Como
era de se esperar, esse esforço por desfazer os feitos da esquerda mirou a cultura, e fracassou: assim
como Collor, Temer tentou rebaixar o Ministério da
Cultura à condição de Secretaria, mas uma onda
de manifestações contrárias à decisão obrigou-o a
recuar, mostrando que os anos de investimento na
pasta a fortaleceram, marcando a cultura fundo no
imaginário nacional dos brasileiros.
Eis que Bolsonaro se torna presidente do Brasil.
33
As políticas de incentivo à cultura via renúncia fiscal, por exemplo, à maneira da Lei Rouanet, que
sempre foram a principal injeção financeira no
setor e explicitavam o triângulo Estado-mercado-artistas em que o campo se baseava, passaram a
ser estigmatizadas como mecanismos de cooptação para comprar o apoio político de artistas.
A decisão que melhor ilustra essa postura do
governo Bolsonaro foi aquela que Temer tentou
tomar, mas não levou adiante: rebaixar o Ministério da Cultura à condição de Secretaria Especial,
uma pasta que já teve quatro ocupantes e que
agora está vaga. O penúltimo a assumir o cargo
foi demitido após fazer um pronunciamento oficial citando textualmente um discurso de Joseph
Goebbels, Ministro de Propaganda da Alemanha
nazista.
Mesmo as eventuais relações que Bolsonaro
mantem com setores da cultura e dos meios de
comunicação são baseadas em laços de compadrio altamente personalizados e não em critérios
técnicos e racionais. A proximidade que o Presidente mantém com o dono do Grupo Record, o
bispo evangélico e fundador da Igreja Universal
do Reino de Deus, Edir Macedo, e com o dono
do grupo SBT, Silvio Santos, ilustram esse tipo de
vínculo. Apenas para dar um exemplo: diante da
desidratação do seu apoio popular e político, Bolsonaro precisou oferecer cargos em estatais e em
ministérios em troca do suporte de parlamentares,
uma prática fisiológica que, durante a campanha,
ele havia prometido extinguir. Para encontrar um
lugar para seus novos credores, o Presidente está
recriando pastas que havia encerrado no começo
do mandato. Um desses órgãos ressuscitados foi
o Ministério das Comunicações, oferecido a Fabio
Faria, deputado federal pelo Partido Social Democrático (PSD) e genro de Silvio Santos.
Com a chegada da Covid-19 ao país, a situação
do campo cultural brasileiro se fragilizou ainda
mais. Dada a extensão desse artigo, não pretendo
aqui trazer um novo volume de dados estatísticos,
mas os levantamentos quantitativos aqui referenciados comprovam a agudeza do quadro (Canedo
et al., 2020; Machado et al., 2020). Um dos estudos (Canedo et al., 2020), por exemplo, detectou
que 89% dos promotores culturais consultados
Bolsonaro, a cultura e a pandemia
A chegada de Bolsonaro ao poder representa o
fim de uma era, no que diz respeito à gestão federal da cultura. Ao contrário de seus antecessores,
o atual Presidente da República e ex-deputado
federal por seis mandatos, não enxerga a agenda
da cultura como uma ferramenta de desenvolvimento ou um meio para se atingir um fim, independente de qual ele seja. Desde que assumiu o
cargo, Bolsonaro tem se dedicado a desarticular
a tríade Estado-mercado-Artistas, que organiza
o campo da cultura no Brasil desde a ditadura
militar. Seja por ironia do destino ou por dialética
hegeliana, um ex-capitão do exército declaradamente entusiasta da ditadura militar brasileira se
tornou o coveiro de um modelo rascunhado pelo
regime totalitário que ele tanto idolatra. O pacote
de austeridade neoliberal encabeçado pelo Ministro da Economia Paulo Guedes lastreia esse desmonte da máquina pública. Ao invés de investir
nesse campo, Bolsonaro adota métodos de comunicação próprios em suas redes sociais virtuais,
coordenadas por um de seus filhos. No momento,
essa estratégia heterodoxa está sendo investigada
pela justiça, pois há a suspeita de que a família
do presidente lidere uma rede de disseminação de
notícias falsas financiada com dinheiro público.
Como sinalizado na introdução desse texto,
a condução da cultura durante o atual governo
oscila entre o abandono e o ataque, seja no plano
simbólico (com a cruzada contra uma suposta
ameaça interna ao “cidadão de bem”), quanto institucional (com o corte de verbas e a desarticulação burocrática da agenda). Enquanto artistas,
professores universitários, imprensa e lideranças
de grupos historicamente marginalizados são
ofendidos pelo presidente e seu círculo, a máquina
estatal voltada para a cultura vai sendo paulatinamente enfraquecida: órgãos são extintos, ministérios tem seu estatuto rebaixado, agendas totalmente diferentes são fundidas, departamentos
são absorvidos por estruturas burocráticas com
quem não tem nenhuma relação, e entidades passam a ser chefiadas por pessoas que dedicaram
suas vidas pregressas a combater justamente a
bandeira que aquela instituição deveria defender.
34
precisaram cancelar eventos desde o início da
pandemia. Além disso, 46% não consegue antecipar o número de possíveis cancelamentos para o
segundo semestre desse ano e 52% também não
sabe estimar os cancelamentos para 2021.
Desde o início desse mandato presidencial, alguns
vultos da cultura brasileira faleceram, seja vitimados pelo coronavírus, seja por outras razões (João
Gilberto, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Rubem Fonseca, dentre outros), e sequer uma nota de pesar
foi divulgada pelo ocupante ocasional da Secretaria
Especial de Cultura. Até o momento em que concluo esse texto, o executivo nacional não propôs
nenhuma medida para contornar a crise sem precedentes que a pandemia trouxe para o setor.
tese de doutoramento, estudo a relação entre os
coletivos de músicos independentes de Fortaleza,
a capital do estado do Ceará, e o poder público
municipal. Lá, há dois editais do governo do
estado e um da prefeitura da cidade especificamente pensados para a cultura durante a quarentena. Em entrevista recentemente realizada com
dois músicos de uma banda fortalezense, pedi que
eles falassem sobre a relação com os governos
federal, estadual e municipal, e eles me revelaram
que o nível de dependência da banda em relação
a essas três esferas é inversamente proporcional à
dimensão de cada uma: sobre o governo federal,
o apoio “nem existe”, no estadual “há tentativas”,
e acerca do centro cultural mantido pela prefeitura de Fortaleza que lançou o edital ao qual a
banda recorreu, um dos artistas disse: “Eu acordo
todo dia com medo de que ele se acabe”, ao que a
outra completou: “Bate na madeira!”, superstição
brasileira usada para espantar alguma desgraça
dita. Além da questão da cultura, outros atores políticos também tentam preencher a lacuna
deixada aberta pelo executivo nacional no que
tange a questão do coronavírus: como já citado, o
Supremo Tribunal Federal, que deu maior autonomia aos governadores e aos prefeitos, ou os veículos de imprensa, que têm feito uma força tarefa
para descobrir os dados reais sobre o avanço
da doença. Ao lado desses esforços, os artistas
seguem fazendo suas lives e inventando outras
táticas de guerrilha para sobreviver, com ou sem
apoio, inspirados pelos versos de Aldir Blanc que
nos falam que “a esperança equilibrista sabe que
o show de todo artista tem que continuar”26.
Portanto, como se pode ver, a falta de iniciativa do executivo nacional diante dos impactos
da pandemia no campo cultural brasileiro, assim
como diante de outras áreas, criou um vácuo
que rapidamente foi preenchido por toda sorte
de figuras (prefeitos das cidades, governadores
dos estados, poder legislativo, Supremo Tribunal
Federal, imprensa, artistas, etc.), que se viram,
involuntária e inesperadamente, catapultadas ao
Considerações finais
Escrever um artigo sobre a ação do governo federal
diante dos impactos da pandemia no campo cultural brasileiro impõe uma grande dificuldade metodológica: analisar algo que não existe. Contudo, a
omissão do executivo nacional acerca desse problema acaba por gerar efeitos em outros poderes,
reposicionando o espaço dos possíveis que compõem o campo político do país (Bourdieu, 1996), e
essa movimentação de placas tectônicas me parece
sociologicamente interessante.
Saindo da esfera da presidência da república,
é possível identificar uma série de medidas destinadas a socorrer a área da cultura em tempos
de coronavírus. Há a Lei Aldir Blanc, batizada em
homenagem ao compositor morto pela doença,
de autoria da deputada federal Benedita da Silva
(Partido dos Trabalhadores), relatada na câmara
pela deputada Jandira Feghali (Partido Comunista
do Brasil) e no senado pelo senador Jaques Wagner (Partido dos Trabalhadores). Aprovada por
unanimidade e sem alterações no dia 26 de maio
na câmara e 4 de junho no senado, a lei, que ainda
aguarda sanção ou veto presidencial, prevê uma
injeção de três bilhões de reais na cultura, a serem
repassados para Estados e municípios. Os líderes
executivos e as câmaras legislativas dos Estados e
dos municípios, por sua vez, elaboraram seus próprios editais devotados ao segmento. Em minha
26Trecho da letra de “O Bêbado e a Equilibrista”, de Aldir Blanc
e João Bosco
35
nível federal tendo que pensar ações de dimensão
nacional, ainda que, oficialmente, ocupem posições de menor envergadura.
Sob o risco de incorrer em um otimismo vazio,
deve-se reconhecer que essa rearticulação de
poder é sim uma grave crise, e que a falta de uma
direção unificada em nível nacional gera problemas de desarticulação em toda a cadeia. Contudo, como me confessou a artista fortalezense
na entrevista supracitada, “o pessimismo pode
ser bom também”, e, se é verdade que as notícias preocupam, também é certo que vivemos em
um momento inédito, em um momento em que
as posições do campo se movem velozmente,
empurradas pelos ventos da mudança.
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36
ARTE, ARTOPIAS E PANDEMIAS
contestação e na invariável importância da dimensão cultural e artística das organizações humanas.
Num momento em que se discutem as vivências, os efeitos e impactos da situação atual de
pandemia relativa à doença que indubitavelmente
marcará a recém iniciada terceira década deste
século – COVID-19 – o que estará na mira das nossas expetativas e reflexões é – uma vez mais – o
modelo social vigente, ora na significativamente
dubitável oportunidade de superação, ora no mais
plausível agravamento das suas características
neoliberalizantes, traduzidas numa indelével precariedade económica, social, política e cultural.
Que expectativas se desenham face ao arremesso
impiedoso de uma grande parte da população
para limiares de significativa vulnerabilidade?
Serão suficientes as vontades coletivas aparentemente agregadoras “na desgraça” para a sua superação? A constatação imediata e generalizada da
necessidade de um Estado providencial e protetor
torná-lo-á efetivamente fundamental nas organizações societais contemporâneas? Haverá resistência ativa quanto baste para a mudança que se
pensa/defende ser necessária? Oportunidade de
transformação radical ou de reforço inexorável?
O campo artístico e cultural surge como um
dos primeiros a denotar os impactos desta pandemia e respetivas colateralidades. Estas traduzidas no cancelamento de espetáculos, exposições,
no encerramento de espaços culturais e artísticos
públicos e privados, na cessação de atividades daí
decorrentes, no confinamento e na estagnação de
outras tantas atividades que podem equacionar-se como laterais ou alternativas para o exercício
de atividade remunerada.
Na verdade, se estamos perante um periclitante
exercício de atividades – essencialmente devido à
significativa precariedade a si associada, mas, sobretudo, às relações laborais precárias generalizadas, à
intermitência da (irre)solução política sistemática,
à persistência de não o encarar na sua especificidade e no seu valor social essencial –, deparamo-nos
agora não só com o vislumbre de todas as evidências enunciadas, como com os resultados catastróficos das mesmas. Este tema tem sido objeto contínuo e sistemático de atenção e reflexão. Através
de vários meios (académicos, médias, redes sociais,
Susana Januário27
Fotografia 1 – Culture
Foto: Miguel Januário29
serves Capitalism.
Autor: Rero28.
Pensar a cultura e as artes implica-nos num exercício de desafio reflexivo amplo, no qual devem
caber interpretações possíveis e oxímoros passíveis
de contraditório e de discussão. A peça de Rero que
abre este ensaio é útil para percebermos o quanto
e o quê esta afirmação questiona no que respeita
não só à esfera cultural e artística, mas, sobretudo,
ao modelo social em si. Efetivamente, se à primeira
vista o que estará em questão é a mercantilização
da cultura e das artes – e a inerente relativização
da sua autonomia –, um segundo olhar implica-nos
nos efeitos desta relação no campo cultural, mas
também no próprio modelo social, em termos não
só da sua consubstanciação, mas também na sua
27 Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento
FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade
do Porto (IS-UP) o projeto “Artopia. Trajetos, interseções
e circunstâncias das manifestações artísticas urbanas de
pendor alternativo no Portugal contemporâneo” (SFRH/
BD/122002/2016) sob orientação científica da Professora
Doutora Paula Guerra. E-mail: spjanuario@gmail.com.
28Street-Artist francês (n. 1983), cujo trabalho e intervenções
gravitam em torno do que pode designar-se arte urbana
e arte concetual. Rero questiona a própria arte e as suas
convenções e códigos, colocando em perspetiva, questionando, nomeadamente as noções de propriedade (intelectual/autoral) e imagem.
29A obra em questão foi oferecida a Miguel Januário, artista
plástico, criador-autor do Projeto ±MaisMenos±, que gentilmente nos cedeu a foto e autorização de utilização da
mesma.
37
como alternativas em espaços (semi)
etc.) vai-se tomando conhecimento da
públicos urbanos catalisadores de um
fragilidade e vulnerabilidades sociais
subcampo artístico emergente no Portudas pessoas cujas atividades, no mais
gal contemporâneo. Trata-se de maniamplo sentido, estão ligadas à esfera
festações que cruzam artes, saberes e
cultural e artística. E daqui se comprova
disciplinas tradicionalmente menos connão só o quanto se potenciou esta situasagrados pelo cânone artístico e, porção, como o seu resultado que, sem
quanto, disruptivas em relação às lógicas
rodeios ou eufemismos, desemboca na
e cânones instituídos, materializando
condição de emergência social.
novas formas de criação/produção, receDenota-se a resiliência dos afetação e convenção artísticas. Tomando
dos, através da persistência em tornar
como referência alguns dos casos em
pública, de forma dinâmica e ativista,
estudo31, intenta-se salientar algumas
a situação, não só a relativa às afeções
concretas na vida das pessoas – a cam- Fotografia 2 – Campanha iniciativas artísticas e culturais criadas e
panha #unid@s pelo presente e futuro “Unid@s pelo presente e promovidas em tempos de pandemia
da cultura em Portugal constituirá o pelo futuro da cultura em e confinamento social.
Portugal”
exemplo eventualmente mais mobiliza30
dor –, como também às necessárias
Da efetivação dos riscos e da modelização
recriações no sentido de garantir a possibilidade
da arte e da cultura
de usufruição da arte e da cultura, demonstrando
claramente a sua essencialidade ao nível social.
A situação de pandemia que se vivencia constiA resiliência e a capacidade reativa constituem
tuirá elemento operatório de verificação empírica
objeto essencial desta reflexão. A capacidade criadas abordagens filosóficas e sociológicas que
tiva – da qual procuraremos dar conta de forma
conceptualizam as sociedades contemporâneas
mais incisiva – depara-se com um desafio comnum tempo e espaço para lá da modernidade,
plexo que, acima de tudo, exige ativismo e mobiem especial e inevitavelmente as que as perspelização e estes implicam um desafio ainda maior:
tivam como sociedade de risco. A noção de risco
um necessário coletivo, um agregado consistente
surge como fundamental para perceber a cultura
que urge urdir e consubstanciar. Mas é, acima de
das sociedades atuais e, sobretudo, a criação de
tudo, nossa pretensão essencial evidenciar que,
cenários possíveis consubstanciados na criação
apesar do apontado, houve um esforço imediato
de (novas) áreas de imprevisibilidade. Espera-se
de artistas, produtores, gestores, técnicos e tantos
que as pessoas convivam com uma variabilidade
outros em encontrar formas de recriar a sua proconsiderável de riscos globais e pessoais mutuadução e atividade, perante a pandemia e aquilo
mente contraditórios, os quais se resumirão à
em que a mesma veio a consistir.
entrega do destino do indivíduo, cada vez mais
Este exercício radica na investigação no âmbito
individualizado, a si próprio. A individualização
do programa de doutoramento em Sociologia
surge como forma social (Beck, 1998).
que estamos a desenvolver - Artopia: Trajetos,
interseções e circunstâncias de manifestações
artísticas urbanas no Portugal contemporâneo.
Procura-se compreender manifestações artísticas
tidas, pelo menos no momento da sua génese,
31 Os casos de estudo em profundidade privilegiados na investigação em questão são: o Festival Guimarães Noc Noc
(Guimarães), o Maus Hábitos (Porto), o Festival Jardins Efémeros (Viseu), o Festival A Porta Leira), o Festival Iminente
e a Galeria Zé dos Bois (Lisboa), o LAC – Laboratório de
Atividades Criativas (Lagos) e o Festival Walk&Talk (Ponta
Delgada).
30 Foto cedida igualmente por Miguel Januário, tendo sido
esta a sua forma de expressão relativamente à adesão à
campanha em questão.
38
O paradoxo da banalização e a virtualização do
risco, por seu turno, acaba por ser a teia que nos
faz a todos inconscientes incautos, domesticados na virtude heroica do desafio a que o risco
nos arremessa. Sennett (2001), aludindo a Beck,
esboça esta interpretação do risco no âmbito do
trabalho e das relações laborais, ao afirmar que a
“disponibilidade para o risco (...) já não se destina
apenas a ser terreno de capitalistas de risco ou
de indivíduos extraordinariamente aventureiros. O
risco torna-se uma necessidade diária suportada
pelas massas” (Sennett, 2001: 125).
No que respeita especificamente à arte e cultura, a situação de pandemia confronta-nos a
nu com a forma como o setor em Portugal (e de
forma generalizada ainda que com algumas nuances diferenciadoras) se (in)sustenta, pela evidência despudorada das consequências da vivência e
“disponibilidade” para o risco, e de como o modelo
social e económico – neoliberalizante – integrou a
arte e a cultura e as instrumentalizou com assentimento e legitimação devidas. Da omissão da cultura e da arte – pelo constrangimento de confinamento e suspensão das atividades e produções
artísticas e culturais – resulta a notabilização da
sua importância, ao mesmo tempo que se desvela
a sua modelização liberal, traduzida na precariedade, fragilidade e fragmentação.
Bauman (2013) coloca o problema de forma eloquente, ao afirmar que a cultura – e a sua esfera
artística em particular – é modelada de modo a
ajustar-se à liberdade de escolha e responsabilidade pela escolha, assumindo como função a
garantia de que essa escolha seja uma necessidade contínua e de que a responsabilidade pela
mesma recaia – na medida da condição humana
líquida-moderna – no indivíduo. Questiona-se se
esta individualização não será uma conveniente
parangona da elite dominante, “que projeta no
indivíduo a ilusão da possibilidade de se autorrealizar” (Bauman, 2013: s/p).
McRobbie (2003; 2016), olhando para a cultura
enquanto setor, desconstrói de forma incisiva
a ideia e narrativa do “empreendedor criativo”,
sustentada na autonomização e autossuficiência do indivíduo, livre de qualquer força externa
institucional, prejudicial à sua individualidade
criativa, como o Estado. Sendo a partir da autorresponsabilização individual que se iliba o Estado
de uma (se não a maior) obrigação democrática
fundamental – a de zelar pelo bem-estar social da
população –, ao mesmo tempo que se protege as
grandes empresas corporativas e instituições dos
compromissos sociais, ao libertá-las da contratualização de pessoas e inerentes responsabilidades associadas à força de trabalho. Aqui assenta
a falácia desoladora e lamentável do Do It Yourself (DIY) em formato neoliberalizado – “ser livre
para fazer a sua própria coisa” – e se patenteia
a neoliberalização da economia na esfera cultural
(McRobbie, 2003)32.
É nesta espécie de efabulação que se tem vindo
a sustentar, dissimulando, uma área que, ainda que
reconhecidas as suas potencialidades no âmbito
do amorfo conjunto das indústrias culturais, se
carateriza por agregar atividades e serviços significativamente desregulamentados, por baixos
retornos de capital e por assentar significativa e
generalizadamente no autoemprego e nos baixos salários/rendimentos. Face ao capital cultural
considerável que detêm, as pessoas que integram
o setor mostram-se capazes de ser individualistas
em virtude dos seus ativos, estarão bem colocadas como agentes da nova meritocracia anti-igualitária, onde o lema é “seguir em frente” no que
respeita a problemas, investir em contatos sociais
e em redes (estar fora do circuito pode significar
estar sem emprego) e na autoimagem e imagem
– elementos cruciais no ethos fundamental: o do
sucesso. Trata-se, no fundo, de um novo estrato
da classe média proletarizado, auto-explorado e
desprotegido socialmente (McRobbie, 2003). No
que respeita a Portugal, salienta-se os trabalhos
de Guerra (2013; 2018; Bennett & Guerra, 2019),
incidentes sobretudo nas trajetórias de músicos,
32 Veja-se também Campbell (2013) a respeito da atração (dos
jovens) pela autonomia do processo criativo, que decorrerá
em parte de uma socialização – que dociliza, motiva e estimula – para formas mais autónomas de trabalho/emprego
menos convencionais, institucionalizadas e regulamentadas,
por isso mais atrativas, mas que consubstanciam trajetórias
profissionais caraterizadas pela precariedade e à margem
dos sistemas de proteção social.
39
programadores e agentes culturais/musicais portugueses, cujas trajetórias profissionais são transversalmente caraterizadas pela precariedade.
A perspetiva do setor e das suas características
enquanto tal radicam na problemática mais abrangente que se prende com a esfera global da arte
e da cultura no seio das sociedades contemporâneas. E ainda que se possa vislumbrar as diferentes
abordagens em conjuntos diferenciados entre si33,
não é possível escamotear as modelização e instrumentalização da arte e da cultura na sociedade
contemporânea, manifestas, não só na incontornável tendência para valorizar o económico em
detrimento do simbólico, como nas “políticas culturais instrumentais” cujos fins se distanciam do
essencial, devido à expansão e dispersão de âmbitos, perdendo-se foco e coerência (Morató, 2010).
Lopes (2010), seguindo Arantes (2007)34, assinala
que parte desta instrumentalização decorre, precisamente, da associação da narrativa capitalista
ao cultural turn que, numa segunda fase, viria a
desembocar na generalização de que “tudo é cultura”, “onde o estético invade o quotidiano e a
cidade, de forma a impor o image making: a cultura como imagem e representação, na senda de
um capital volátil e intangível” (Lopes, 2010: 53).
Ainda, e desta feita ao nível da criação artística
propriamente dita, coloca-se a questão de como
dirimir o que alguns assinalam como o desgaste
da inovação, a perda de significado e a tendência
para a integração da produção artística no mainstreaming e consequente perda da sua dimensão
transgressiva (Morató, 2010).
A cultura serve a cultura
A discussão em torno da modelização da arte e
da cultura não pode empurrar-nos para fora da
essencialidade, diríamos epistemológica, destas.
A reflexividade poderá ser a mais valia a considerar, mas numa nova narrativa, ou seja, fora daquela
em que a mesma não passa de um mero elemento
de instrumentalização. É da reflexividade que
deverão emergir as necessárias novas narrativas
que desafiem o neoliberalismo, a exacerbação do
individualismo e, consequentemente, façam erigir
o coletivismo e cooperação. O reencontro com a
criatividade faz-se voltando ao fundamental, uma
vez que é, como nos aponta Simmel (1988), através da cultura que o homem pode vincular o exercício pleno da sua reflexividade e da capacidade
de se fazer objeto de si mesmo.
Daí que, perante a modelização e instrumentalização da criatividade, das condições de trabalho
e de criação a que estão sujeitas as pessoas que
criam, que cooperam na criação, que medeiam e
que operam, insistimos em considerar com veemência que a essência da criatividade é humana e
precede qualquer modelo organizativo, seja social
ou institucional, e é resiliente em si. E é num manifesto em prol da criação artística e da cultura que
procuramos discernir a potencialidade da criação
apesar das contingências e vicissitudes. Delas se
fará registo com intenção histórica. Acreditamos
que daqui se possa compreender, ainda assim,
que a arte e a cultura o são em si mesmo um posicionamento sobre a sociedade e não apenas um
mero reflexo do tempo contextual (Guerra et al.,
2019; Guerra & Januário, 2016). Assim, apresentamos três casos e respetivas iniciativas que acompanhamos de forma casuística durante o período
de confinamento devido à pandemia decorrente
da COVID-19.
33Ora as que relevam o processo de mercadorização e reificação da arte e da cultura e consequente banalização de uma
estetização simulada e indiferenciada (Adorno, 2001; Lipovetsky & Serroy, 2013; Debord,1991; Baudrillard, 2006), ora
as que perspetivam a expansão e centralização das questões culturais na concetualização das relações (e respetivas implicações) entre a cultura, a economia e a sociedade
(Featherstone, 1991; Jameson, 1991), de que são exemplos
as propostas do cultural turn (Chaney, 1994), o processo de
artificação defendido por Shapiro (2007) e, ainda, a noção
de sociedade da cultura (Morató, 2010).
34ARANTES, O. (2007), “Uma estratégia fatal. A cultura nas
novas gestões urbanas”, in AAVV, A Cidade do Pensamento
Único. Desmanchando Consensos, Petrópolis, Vozes.
#Festival Iminente Emergency Edition – 4 de
abril de 2020
Esta edição especial do Festival Iminente, em live
streaming a partir de várias plataformas, consistiu
numa mostra artística eclética e multidisciplinar,
40
Quando há 4 anos lançamos o mote “O melhor é ficares em casa” nunca imaginámos que esta pequena ironia, uma espécie de psicologia reversa, viesse ganhar um
sentido real. Agora estamos mesmo todos em casa, e o melhor é realmente seguir
à risca a instrução.
Com vista a animar a malta e ajudar aqueles que estão na linha da frente na luta
contra o Covid-19 em Portugal, apresentamos uma edição especial online do Iminente associada a uma campanha de angariação de fundos para os dois hospitais de
referência no tratamento desta pandemia.
Conversa, música, performance, dança, live painting. É, mais do que nunca, uma
experiência de intensa intimidade colectiva. Cada um na sua, mas todos juntos para
espantar o medo e abraçar a vida. Contamos contigo!
Cartaz 1 – Iminente Emergency (apresentação e line-up) · Fonte: https://www.facebook.com/events/586780408584766/
com vista à usufruição artística, tendo como desígnio a angariação de fundos para dois centros hospitalares de referência na resposta à COVID-19.
Esta edição decorreu em direto entre as 16h00 e as
23h20 do dia 4 de abril de 2020.
Os propósitos da iniciativa estavam claramente
explícitos e funcionaram como estímulos à adesão
das pessoas: a dimensão artística e de usufruição “animar a malta”; “uma experiência de intensa intimidade coletiva” – e uma social/de solidariedade
– “espantar o medo e abraçar a vida”; “cada um dá
o que pode (...) o valor angariado reverte para os
hospitais”. Apostou-se em duas dimensões fundamentais da arte e da cultura: a criação artística
e usufruição, potencialmente interativa e performativa (Hennion, 1989; Guerra et al., 2019; Acord
& DeNora, 2008) e o ativismo, não só representado por algumas das propostas artísticas, como
pela intenção de mobilização em torno de uma
causa solidária. O line-up desta edição do festival assentou na premissa de multidisciplinaridade
e ecletismo artísticos e perpassou as várias rubricas programáticas do Festival (talks, performances, dança, concertos, artistas visuais), representadas por diversos artistas que, na sua maioria,
estão de certa forma ligados às várias edições do
Iminente35.
O Festival Iminente ancorou-se numa estrutura especializada e em consolidação (que se foi
materializando ao longo das várias edições) que
evidencia um grau crescente de profissionalismo,
patente nos vários profissionais que envolve (diretores, diretores executivos, produtores, curadores) e num consistente processo comunicacional,
35Marta Bateira – aka Beatriz Gosta (Talk), Hugo Oliveira (Concerto), ±MaisMenos± (Performance), Julinho KSD (Concerto), Mariana Barros (Performance), Prétu (Concerto), Piny
(Dança), Tamara Alves (Artes Visuais), Ana Moura (Concerto), Mayra Andrade (Concerto), Mucha x Wilson Core
(Dança/B-boys battle), Dino D’Santiago (Concerto), Shaka
Lion (Concerto), DJ Marfox (Concerto).
O Festival Iminente foi criado em 2016 com o intuito de reunir a música à arte “numa experiência de intensa intimidade coletiva”.
Sendo a expressão multidisciplinar e multicultural – e (sub)cultural – a essência do Festival, o Iminente procura materializar o
lugar de mostra de criações artísticas inovadores que vão caracterizando a cena artística urbana portuguesa contemporânea.
Ao caráter essencial da promoção da expressão multicultural e urbana, junta-se a intenção de promoção de novos projetos e
propostas artísticas nas mais variadas disciplinas, a par de outros já reconhecidos e/ou consagrados.•O Iminente surge pela
iniciativa de Alexandre Farto – aka Vhils – e de algumas pessoas que consigo partilham a mesma visão de mundo e experiências
vivenciais e artísticas. As primeiras duas edições do Festival, iminentemente experimentais e de pendor informal, acontecerem
em Oeiras, tendo em 2018 passado para Lisboa (Panorâmico de Monsanto). A par das edições nacionais, o Festival Iminente
estendeu-se a Londres (2017 e 2018), a Xangai e Rio de Janeiro, em 2019. A intenção é criar pontes, apostando na partilha da
expressão artística lusófona internacionalmente.
41
a cargo de uma empresa especializada em design
e comunicação (Solid Dogma). Tal como as edições
físicas – mormente as mais recentes –, a aposta na
comunicação evidencia-se na divulgação que os
mais diversos órgãos (nos mais diferenciados formatos – redes sociais, canais de televisão, jornais,
sítios especializados da Internet) fazem do Festival.
#Maus Hábitos – abril e maio de 2020
O Maus Hábitos, espaço de intervenção cultural
e artística, situado no Porto, confrontado com o
encerramento do seu espaço e cancelamento geral
da programação, procurou, entre os meses de abril
e maio de 2020, readaptar-se às contingências,
recriando parte da sua programação habitual e
criando novas propostas de intervenção. Eis alguns
exemplos.
#Hábitos de Quarentena consiste na disposição online de
podcasts que dão continuidade às rubricas programáticas
habituais (festas, mixtapes, DJ Set, clubbing) do espaço, sob
o lema: “Se não podes ir ao Maus Hábitos, o Maus Hábitos
vai a tua casa”.
Cartazes 2 e 3 – Hábitos de Quarentena (meses de abril e maio)
Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/
Outras Conversas: Entre-vistas com o Baeta – João Baeta,
artista plástico e membro da direção da Saco Azul, entrevista vários artistas que expuseram na Mupi Gallery (espaço
Mupi dos Maus Hábitos reservada à exposição de trabalhos
de artes visuais, sob curadoria do moderador das conversas)
– projeto, criado de raiz, pela Saco Azul.
Cartaz 4 – Outras Conversas: Entre-vistas com o Baeta
Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/
(In)sanidade em Rede – uma “proposta de programação
online para estados de emergência. Físicos e mentais”, onde
se desafia, por sessão, um convidado a fazer uma leitura de
um texto de um artista importante para si.
Cartaz 5 – (In)sanidade em rede
Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/
42
#obratório é proposta da Saco Azul para a criação de “um
repositório digital participativo das obras que habitam as
nossas casas e das histórias que as acompanham, através de
um hashtag no Instagram”. Está-se perante o que se pretende que seja um “acervo virtual”, “um repositório aberto”
de fotos de obras que cada um possa ter em casa. Convida-se a partilhar essa foto no Instagram com o hashtag
#obratorio, indicando o autor e descrição da obra.
Cartaz 6 – #obratório
Fonte: https://www.facebook.com/mhabitos/
Aposta-se na recriação da agenda física, pela
sua transformação em formato digital, à distância
– como o apresentado –, e na criação de propostas inéditas de divulgação artística, como são os
casos que de seguida se apresenta. Destaca-se
que estas iniciativas são, na íntegra, da responsabilidade da Saco Azul – a Associação Cultural
(entidade jurídico-formal) que abraça a ideia original de criação e divulgação artísticas do projeto
Maus Hábitos.
A estrutura do Maus Hábitos evoluiu consideravelmente ao longo do tempo, conferindo ao projeto maior consolidação. De uma dinâmica comunitária informal, encabeçada sobretudo por um
grupo de artistas, os quais, numa lógica de DIY, se
uniram para levar a cabo os seus próprios projetos
artísticos, paulatinamente, o Maus Hábitos transformou-se numa referência cultural local e nacional. O potencial adquirido e consequente institucionalização verificam-se também numa estrutura
com recursos humanos, financeiros, organizativos
e materiais de robustez significativa, o que justifica a capacidade de resposta imediata ao encerramento do espaço e das suas atividades devido
à pandemia.
Destes processos resulta, pois, uma tendência,
inerente à sua consolidação, para institucionalização do projeto, visível na consagração do mesmo
no campo artístico, pelos públicos e pelas estruturas de informação e conhecimento (Januário,
2019). E da profissionalidade construída, destaca-se a gestão do espaço e da comunicação – o
domínio desta constituiu a pedra de toque na
diferenciação e, obviamente, na resistência e resiliência. A detenção dos meios e recursos inerentes
(técnicos e tecnológicos) a esta dimensão comunicacional explicam, também e em grande parte, a
mobilização referenciada. Mais uma vez firmam-se
determinantes os processos de mediação proclamados por Hennion (Guerra et al., 2019).
O espaço Maus Hábitos surge na viragem do século/milénio, num 4º andar de um edifício na baixa do Porto. Descoberto por um
dos seus fundadores – Daniel Pires –, o andar é arrendado para levar a cabo, em conjunto com alguns amigos, a concretização
de uma ideia: a de criar um espaço onde amigos e artistas se pudessem encontrar e estar juntos e mostrar os seus trabalhos
artísticos. O “Maus Hábitos” vai surgindo como lugar de experimentação artística (oficina, exposições, concertos...). Em 2002, é
a criada a Associação Saco Azul, uma associação cultural que surge para abraçar a ideia artística original e conferir ao projeto
entidade jurídica e estrutura formal. A Associação Saco Azul assume-se como a estrutura artística do projeto que acontece no
espaço Maus Hábitos. Destaca-se a abertura à heterogeneidade e diversidade, dando visibilidade a novas propostas artísticas
e respetivos autores, na oportunidade de (con)vivência entre estes e os já “na praça”, o que potencia o estabelecimento e progressão de carreiras artísticas.
43
O LAC - Laboratório Actividades Criativas foi obrigado, por força das
circunstâncias actuais, a encerrar os seus espaços e suspender e adiar
toda a programação em curso.
Numa primeira fase, ficámos como que em “estado suspenso”, depois,
assim como muitas outras estruturas sentimos a necessidade de aproveitar a vivência destes tempos, sobretudo do que de positivo nos pode
trazer - uma outra (ou mais) liberdade de acção associada a duas grandes necessidades; uma, a de encontrar outras experiências imaginativas
de programação e produção de modo a continuar a criar oportunidades
para criadores, artistas, agentes culturais e equipes técnicas envolvidas
que fazem acontecer os eventos, e por outro lado, a de retribuir os manifestos de apoio vindo por parte do público que nos segue, instituições e
inúmeras parcerias que construímos ao longo da nossa existência.
O LAC – Dia Fechado (Em Casa) irá ser apresentado nos dias 02 e 03 de
Maio, em exclusivo nas plataformas digitais Facebook e Instagram do LAC.
Assim e dadas as circunstâncias actuais e com um espírito de positividade, convidamos todos, de um modo geral, nesta fase de confinamento, a conhecer de perto o “work in progress” dos criadores e
artistas, os novos projectos que estão a ser desenvolvidos e os novos
processos e formas de trabalho que tivemos que (re)inventar.
Cartaz 7 – LAC – Dia Fechado (Em Casa)
Fonte: https://www.facebook.com/lac.lagos/
dos artistas em residência36. Está-se perante uma
estrutura, diferentemente das duas anteriores,
cuja territorialidade se constitui como inexorável
à sua consolidação e reconhecimento. E é desta
forma que se assume – uma associação num território “periférico”, mas cuja missão se adequa ao
seu espírito fundacional: potenciar um espaço de
criação artística, e posterior divulgação na comunidade, de e para artistas locais. A dimensão da
sua institucionalização (que existe local e nacionalmente) não é comparável aos dois casos anteriores, mas as lógicas de sustentação, baseadas
na resiliência, adaptação e crescimento (inclusive no âmbito da internacionalização, ao promover residências artísticas de artistas estrangeiros), conferem-lhe lugar no mesmo campo, na
#LAC – Dia Fechado (Em Casa) – 2 e 3 de maio
O LAC – Laboratório de Atividades Criativas,
sediado em Lagos, também lançou uma iniciativa
multidisciplinar, durante dois dias, em streaming.
As intervenções consistiram em imagens, vídeos
e diretos da responsabilidade dos vários artistas,
que foram mostradas ao longo dos dois dias. A
designação da iniciativa LAC – Dia Fechado (Em
Casa) funciona como uma espécie de contrário à
que o LAC leva a cabo, anualmente – LAC – Dia
Aberto – por forma a divulgar de forma aberta
e intensiva as suas atividades à comunidade. A
divulgação da iniciativa – difundida em vários
meios de comunicação, sobretudo na Internet
(agendas, sítios de arte e cultura) e em órgãos
de comunicação regionais – remete, não só para
a oportunidade criada pela conjuntura para renovar experiências e recriar processos, como para a
necessidade de dar continuidade ao trabalho ao
serviço da comunidade.
O programa, multidisciplinar, procurou representar os vários projetos artísticos atualmente
em residência no LAC. Dois dias de intensiva atividade apresentada nas plataformas digitais do
LAC com imagens, vídeos e diretos (mapeados)
36A. Pedro Correia (Artes Visuais), Annika Synia (Artes Visuais),
Carlos Norton (Sonoplastia), Cursed Disciples (Música),
João Costa (Teatro de Marionetas), Jorge Pereira Nothanks
(Artes Visuais), Lollirockers DJs (Música), Madalena de
Campos (Artes Visuais), Millie Wilkins (Artes Visuais), Plasticine (Música), Prayers of Sanity (Música), Raymond Dumas
(Escultura), Ricardo Lopes (Cerâmica), RoMP (Escultura),
Staccato Limão (Música), Sonda (Música), Tars8Two (Artes
Visuais), VIL (Música), Xana (Artes Visuais), Yummy Industries (Artes Visuais).
44
iniciativas/projetos – como são os casos do Maus
Hábitos e do Festival Iminente –, por outro, não
será de descurar o “agarrar” do desafio por parte
de uma estrutura territorialmente demarcada,
como no derradeiro caso em apreço, o LAC. Parece-nos evidente, como assinala Morató (2010), ser
necessário não perder de vista que a “a criação
cultural continua e continuará a ser essencialmente
elaborada nos territórios da cultura especializada,
ainda que os limites da política cultural cheguem
hoje muito mais longe. (...) Convém, pois, preservar sempre a tónica sobre a criação e a excelência
nas políticas culturais públicas e que estas reconheçam e respeitem aquilo que são as suas lógicas
e os seus fundamentos valorativos específicos, ou
seja, a sua autonomia” (Morató, 2010: 49).
A potencialidade criativa, de criação, de cumprimento essencial, de forma capaz, autónoma,
resiliente e refletida atesta-se nos exemplos considerados, os quais, a par de outros tantos corridos
durante a fase de confinamento a que nos reportamos, relevam a importância e significado da arte
e da cultura nas organizações sociais, no cumprimento da humanidade. E isso lança os atores e as
estruturas perante desafios de inventividade e de
criatividade resistentes e resilientes, de luta pela
sobrevivência económica, mas também na luta por
um lugar ao sol da criação artística, num exercício de cidadania, agência, libertação e ação, como
advogam instantemente Bennett e Guerra (2019).
A mudança, porém, e uma vez desejável no âmbito
autonómico mencionado, passará por um esforço
obrigatoriamente coletivo e concertado, de modo
a redefinir, recolocando, a esfera artística social
e cultural e a delinear a importância do setor no
sentido da sua proteção e, sobretudo, daqueles
e daquelas que o mesmo integra. Uma mudança
integral e radical, portanto, como antevia McRobbie (2016). Uma mudança que provavelmente
implica uma transformação maior para melhor, na
senda de Campbell (2013), uma vez que a oportunidade surge do confronto duro com a realidade,
como aconteceu e acontece nestes tempos de
COVID-19.
proporcionalidade adequada37. Registe-se ainda
que o LAC foi dinamizando outras iniciativas, apelando à colaboração/participação da comunidade.
De salientar a de caráter estritamente social e de
solidariedade – a adesão à campanha de âmbito
nacional, promovida pelo grupo @união audiovisual, “para angariação de alimentos para artistas e
técnicos do mundo das Artes”.
O LAC – Laboratório de Atividades Criativas, Associação
Cultural sem fins lucrativos, surge em 1995, em Lagos, por
iniciativa de um grupo de artistas e pessoas ligadas a diversos campos da cultura – Escultura, Pintura, Cerâmica, Música,
Arquitetura, Cinema, Museologia, Defesa do Património. A par
do desafio de promover a dinamização do edifício da antiga
cadeia de Lagos, o LAC assume como objetivo principal da sua
ação a dinamização e promoção da criação artística na região
do Sudoeste Algarvio. A requalificação do edifício da antiga
cadeia de Lagos permite a potenciação paradoxal do espaço
de confinamento para criação e experimentação artísticas, ao
transformar-se as celas em atelieres para artistas.
Tornando-se, em 2001, uma estrutura que privilegia o acolhimento artístico, o LAC alberga anualmente projetos individuais
e coletivos num total aproximado de 20 artistas, em áreas tão
diversas como a música, pintura, escultura, e/ou outros projetos de cariz alternativo e não comercial”. No âmbito da atividade do LAC, assinale-se o desenvolvimento dos projetos
internacionais ARTURb, ROOTS e KICK IN THE EYE.
A cultura serve a vida
Procurou-se, com esta breve (a)mostra de iniciativas, demonstrar que, apesar da adversidade,
diferentes manifestações artísticas e culturais
possuem a potencialidade da esfera social que
representam, assente em significativas voluntariedade e reinvenção, dimensões fundamentais para
ação e subsequente mudança.
Se, por um lado, temos a consolidação de uma
dianteira que acaba por ser resultado de uma
maior institucionalização e profissionalização das
37 Considera-se relevante partilhar o balanço da iniciativa,
publicado a 7 de maio na página de Facebook do LAC.
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46
DANÇAR FORRÓ E LINDY HOP NO PORTO
EM TEMPOS DE PANDEMIA
e do desenvolvimento destas danças a esta região
e identificar os seus principais protagonistas39.
Ao contrário da dança teatral ou de palco, que
implica uma separação entre quem pratica e
quem observa (Fazenda, 2007), as danças sociais
desenrolam-se no seguimento da interação social,
envolvendo o convívio entre os praticantes, reforçado pela constante troca de pares. Se a dança
teatral visa primeiramente a construção de uma
performance, que deverá decorrer num lugar particular (tradicionalmente um palco), as danças
sociais exigem a comunicação espontânea entre
os praticantes, que alternam, no decorrer das
músicas, entre o papel de espetadores e performers. A sua prática implica o conhecimento de
um conjunto de passos base, normalmente pouco
complexos, que depois são adotados livremente
pelos diferentes participantes, que desenvolvem o
seu estilo individual. As danças sociais surgem em
contextos geográficos particulares, refletindo práticas culturais locais, ocorrendo normalmente em
situações de festa e convívio. Porém, e à semelhança do que acontece com expressões musicais
populares ou tradicionais, alguns estilos de dança
com origem local tendem a circular internacionalmente, formando verdadeiras redes transnacionais, tendência que se intensifica através dos múltiplos fluxos migratórios contemporâneos. Este é,
precisamente, o caso dos dois estilos de dança
aqui analisados que, tendo tido uma origem geograficamente circunscrita, extravasaram múltiplas
fronteiras até se tornarem fenómenos globais.
Ao contrário dos estilos de danças de salão (tais
como a Salsa, o Tango, o Cha cha cha), praticados
em Portugal há mais tempo e dinamizados sobretudo em redor de escolas de dança concretas,
tanto o Forró como o Lindy Hop se desenvolveram, através de redes informais que se foram, progressivamente, sedimentando, tendo sido apenas,
Maria Manuela Restivo38
As danças sociais e as suas especificidades
A pandemia do vírus SARS-COV-2 chegou a Portugal nos primeiros dias de março de 2020, trazendo transformações radicais em praticamente
todas as áreas da vida quotidiana. O progressivo
desconfinamento que se verifica desde o princípio de maio – após um estado de emergência que
vigorou de 18 de março a 3 de maio, durante o qual
a população portuguesa esteve sujeita a restritas
regras de circulação – tem permitido a retoma de
algumas atividades profissionais, no contexto do
que se tem convencionado denominar como a
“nova normalidade”. Porém, e porque as normas
de distanciamento físico se mantêm como um dos
principais procedimentos a adotar, certos setores
têm tido dificuldades acrescidas no regresso das
suas atividades. Um dos setores que tem defrontado especiais dificuldades no regresso à atividade
é precisamente o das danças sociais, cuja prática
não pode ser efetuada sem a intensa proximidade física entre os participantes. Neste pequeno
artigo, procuramos pensar os efeitos da pandemia
na prática de duas danças sociais no contexto da
cidade do Porto – o Forró, nascido no nordeste
do Brasil em finais do século XIX, e o Lindy Hop,
surgido entre a comunidade afro-americana nova
iorquina na década de 1920 –, aproveitando para
traçar o circuito, ainda não registado, da chegada
38Doutoranda do 3.º Ciclo em Estudos do Património da
Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Bolseira de
Doutoramento FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia
da Universidade do Porto (IS-UP) uma investigação sobre a
construção social da arte popular portuguesa, com a referência FCT (SFRH/BD/129435/2017), sob orientação científica da Professora Doutora Alice Duarte. E-mail: mariamanuelarestivo@gmail.com
39Este artigo só foi possível graças aos testemunhos de Helena
Cardia, Joaquim Boia Lino, João das Botas, João Guedes,
Sérgio Cardoso e Tiago Martins, aos quais agradeço a disponibilidade e a generosidade. Este artigo é igualmente
baseado na minha inserção na comunidade do Forró Porto
desde 2015 e na frequência de algumas aulas e eventos de
Lindy Hop durante o ano de 2019.
47
posteriormente, institucionalizadas em escolas ou
associações. Este processo de institucionalização,
não representou, contudo, a profissionalização
das pessoas envolvidas na dinamização destas
danças e dos eventos a estas associados, continuando a maioria destas pessoas a ter outras ocupações profissionais.
Na forma que elas têm assumido no Portugal
contemporâneo, extensível, de resto, a outros
contextos nacionais, as danças sociais vão desenvolvendo e construindo verdadeiras comunidades (Rapport, 2002) – conceito adotado e continuamente utilizado pelos próprios praticantes.
Estas comunidades desenvolvem-se em torno de
um estilo de dança particular, mobilizando professores de dança, músicos, DJ’s, dinamizadores
de eventos ou festivais onde as danças podem
decorrer, e o vasto número de praticantes, que
vai marcando presença, mais ou menos assiduamente, nos eventos organizados. A comunidade
principia e sustenta-se, portanto, no gosto por
determinado género de dança (e, por acréscimo,
na música que a acompanha), e no conhecimento
técnico necessário à sua execução, residindo aqui
um dos principais fatores de pertença e identificação. De facto, o domínio dos passos de dança permite que pessoas desconhecidas se juntem para
dançar, já que partilham uma linguagem comum.
Esta característica, aliada à presença destas danças um pouco por todo o mundo, em especial nos
centros urbanos, tem permitido construir comunidades transnacionais: muitos dos praticantes,
quando viajam para outros países, aproveitam
para frequentar os eventos locais, desenvolvendo
conhecimentos pessoais; por outro lado, a inserção nas comunidades de dança funciona frequentemente como uma estratégia conscientemente
procurada por muitos dos praticantes em situação
de migração. Paralelamente, o circuito internacional de festivais dedicado a estas duas danças, que
se foi desenvolvendo nas últimas décadas, permite, além das deslocações frequentes dos praticantes, a constituição de uma vasta rede internacional de professores, bandas e DJs, que circulam
entre os vários contextos nacionais.
Tanto o Forró, como o Lindy Hop, são descritos pelos praticantes como danças divertidas e
informais, que dispensam a etiqueta social e o
dress code exigido noutros estilos, como, por
exemplo, em algumas danças de salão. Além das
aulas disponíveis para vários níveis técnicos, estas
danças vivem, sobretudo, dos diversos eventos
semanais em que a comunidade se junta para
dançar, independentemente à escola à qual pertencem. Sendo, sobretudo, noturnos e realizados em espaços interiores, estes eventos podem
decorrer também ao ar livre e durante o dia, em
espaços públicos ou jardins, sempre que o tempo
o permitir. Sendo a dança o principal objetivo destes encontros e eventos, eles acabam por proporcionar também o desenvolvimento de relações
sociais longas e duradouras, razão que contribui,
seguramente, para reforçar o sentido de comunidade com que os praticantes se dizem identificar.
O Forró no Porto
O Forró é um género de música e dança que nasceu no nordeste do Brasil, que terá derivado de
um conjunto de danças populares locais, identificadas por alguns investigadores, pelo menos,
desde finais do século XIX. Há duas teorias sobre a
origem da denominação Forró: uma que defende
a sua criação e disseminação pela população
inglesa residente no Nordeste, que trabalhava
na construção dos caminhos de ferro durante a
segunda Guerra Mundial, e que organizava festas
“para todos”. Forró terá derivado assim da expressão “for all”, estando associado a este tipo de festas (Lage, 2017; Junior e Volp, 2005). Outra teoria,
mais consensual entre os investigadores, é a de
que se trata de uma corruptela do termo forrobodó, que significava, genericamente, festa popular, designação oficializada em dicionários desde
finais do século XIX (Alves, 2011). Durante várias
décadas, o termo apareceria nos dicionários para
designar os bailes de classes baixas, associando-se igualmente à ideia de confusão, algazarra,
“baile reles”, pagodeira ou desordem. A sua popularização, no formato em que hoje o conhecemos,
deve-se substancialmente ao contributo de Luís
Gonzaga, bem como ao de músicos que com ele
colaboraram, como Jackson do Pandeiro, Marinês
48
e, mais tarde, Dominguinhos (Lage, 2017). De origem pernambucana, Luís Gonzaga migrou para o
Rio de Janeiro na década de 1940 para aí desenvolver a sua carreira, difundindo este género musical por todo o Brasil. É a partir destas décadas que
o Forró assume a formação instrumental de base
que ainda hoje apresenta, juntando a sanfona, o
triângulo e a zabumba (ou tambor).
Na década de 1960, o crescimento da música
popular brasileira (MPB), da Bossa Nova e do
Rock’n’roll terão contribuído para uma certa marginalização do Forró, que se mantinha, ainda,
associado ao contexto rural, bem como a pessoas
mais idosas e de baixa condição social (Lage,
2017). Seria apenas na década de 1990 que o Forró
alcançaria maior visibilidade, através do aparecimento de bandas novas como Trio Virgulino, Falamansa ou Rastapé; estas bandas começaram por
atuar em eventos ligados à Universidade de São
Paulo, formando-se, assim, o que viria a ser denominado por Forró Universitário (Lage, 2017; Junior
e Volp, 2005). Além da introdução de outros instrumentos na gravação dos temas tradicionais,
estas bandas criaram, igualmente, novas canções,
que refletiam a vida urbana contemporânea, ao
mesmo tempo que se complexificavam os movimentos da dança, aproximando-os de outras danças latinas de salão. O Forró passa então a designar, simultaneamente, um estilo musical, ou mais
propriamente, um conjunto de géneros musicais
(tais como o xote, o xaxado, a quadrilha, o baião
ou o arrasta pé), e um estilo de dança, a que se
associa também o próprio baile ou festa onde se
toca, dança e convive. É nesta aceção que o Forró
chega à Europa, na maioria dos casos depois do
ano 2000, transmitido maioritariamente por imigrantes brasileiros que se fixavam em alguns centros urbanos.
À cidade do Porto, o Forró chegou pelas mãos
de Igor Fonseca e Carolina Sousa (Lola), um casal
de origem brasileira que se estabeleceu na cidade.
Começaram, aproximadamente em 2006, a realizar workshops de Forró para pequenos grupos, e,
uma vez que não havia ainda eventos exclusivamente dedicados a este género de dança, o Forró
começou a ser dançado nas noites latinas do bar/
associação Contagiarte, intercalado com outras
danças latinas. Em 2009, começaram a decorrer
aulas regulares, orientadas por Sérgio Cardoso e
Inês Guedes (que aprenderam os primeiros passos
com Igor e Carolina), e as primeiras noites dedicadas exclusivamente ao forró ocorreram na associação Espaço Compasso, por iniciativa de Igor
Fonseca e Sérgio Cardoso, continuando posteriormente no bar das Galerias de Paris, já com a colaboração de Tiago Martins. Foram estas três pessoas que, de forma mais consistente e duradoura,
contribuíram para o desenvolvimento da comunidade de Forró do Porto, o primeiro enquanto DJ e
organizador de eventos de Forró, e os segundos,
fundamentalmente, enquanto professores. Sérgio
Cardoso manteve aulas regulares entre 2009 e
2019, ensinando centenas de alunos, tendo parado
com as aulas em finais do ano passado, por razões
profissionais. Tiago Martins começou a ensinar
Forró com Joana Ilhão em 2013, tendo fundado
recentemente o projeto Dois pra cá, que conta
com aulas de Samba e Forró, com uma média de
cem alunos por mês. Resulta também da sua iniciativa, juntamente com outras pessoas, a criação,
em 2018, do festival Forró Douro, que tem contribuído para colocar a cidade do Porto no mapa da
comunidade internacional de Forró. O número de
professores, DJ’s e praticantes de Forró, foi crescendo consideravelmente nos últimos anos, alargando e sedimentando a comunidade portuense.
Alguns dos eventos semanais realizados podem
atingir facilmente mais de 100 pessoas, atestando
a vitalidade da prática desta dança na cidade.
O Lindy Hop no Porto
Ao contrário do que acontece com o Forró, é possível traçar com maior precisão a origem do Lindy
Hop. Trata-se de uma dança social que é acompanhada pelo som de música jazz, principalmente big
bands, e que nasceu em 1928 no Savoy, um clube
de música e dança situado no Harlem, Nova Iorque (Spring, 1997). Desde a sua abertura, em 1926,
que o Savoy se afirmou como um espaço privilegiado para o desenvolvimento de diferentes estilos de dança de ascendência predominantemente
afro-americana (como o Foxtrot ou o Charleston),
49
ainda que os passos tivessem alguma influência de
estilos de danças europeias (Spring, 1997). Entre
estes estilos – genericamente denominadas danças swing, porque dançadas ao som dessa música
– encontrava-se o Lindy Hop, caracterizado por
uma fisicalidade intensiva e por um novo ritmo,
mais acelerado que nas anteriores formas musicais
(Spring, 1997). Diferenciava-se das outras danças
swing pela inclusão de solos dos bailarinos, proporcionados pelo swing out – resultando no distanciamento físico em que a conexão do par é feita
apenas por um braço (Vaisman, 2018) – e por passos aéreos e acrobáticos, bastante exigentes do
ponto de vista físico. O nome é atribuído a Shorty
Snowden, um dos bailarinos da altura, que o terá
cunhado numa competição de dança em 1928,
ainda que, mais tarde, tenha vindo a admitir que o
estilo já existia antes de ser denominado (Spring,
1997). O Lindy Hop foi-se desenvolvendo no Savoy,
que podia receber entre 4000 a 7000 pessoas por
noite, e onde, desde cedo, os bailarinos, fundamentalmente afro-americanos, competiam entre
si para desenvolver movimentos aparatosos, tecnicamente exigentes a nível acrobático, sendo que
cada par acabava por desenvolver o seu próprio
repertório (Engelbrecht, 1983). O rápido sucesso
deste estilo resultou na criação de grupos de
dança, que, desde cedo, começaram a viajar e a
apresentá-lo em diferentes teatros, propagando-o
um pouco por todo o país. Apesar disto, ao longo
dos anos e sem nunca ter desaparecido totalmente,
o Lindy Hop foi-se tornando praticamente ausente
do repertório de danças sociais americanas, até ter
sido alvo de um movimento de renascença ocorrido em meados da década de 1980, que se estendeu a diferentes partes do mundo. Impulsionados
por alguns filmes e, curiosamente, por um anúncio
da marca GAP, recorrentemente referenciados (cf.
Vaisman, 2018; Farag, vídeo na bibliografia), grupos de jovens em diferentes países (entre os quais
a Suécia, a Inglaterra e os Estados Unidos da América) procuravam resgatar algumas sequências de
passos de Lindy Hop, contactando mesmo com
antigos bailarinos (com destaque para Frank Manning e Norma Miller), que se revelaram fundamentais na transposição das formas de dança dos anos
1930 para a década de 1990.
É em 2007 que este estilo de dança chega a
Portugal, pelas mãos da norte-americana Abeth
Farag. Tendo-se mudado para o Porto e não
encontrando qualquer grupo de praticantes de
Lindy Hop, decide procurar fazer crescer esta prática, partilhando, numa primeira fase, vídeos através de DVDs – numa era em que ainda pouco circulava na internet – e, posteriormente, ensinando
pequenos grupos, quer no Porto, quer em Lisboa,
até a prática se difundir por estas duas cidades.
No Porto, Abeth contou com o apoio de João
Guedes (DJ Joe), que cedo abraçou esta forma
musical, desempenhando um papel essencial na
produção de eventos dedicados ao Lindy Hop,
servindo simultaneamente como o principal DJ
deste género musical no Porto, facto extensível
ainda aos dias de hoje. João seria igualmente um
dos responsáveis pela criação, em 2010, do Porto
Swing Jam, um evento internacional que procura
proporcionar momentos de encontro entre os
praticantes de danças swing.
A crescente procura de novos alunos pelas
danças swing leva Abeth a oficializar o projeto,
criando a escola Swing Station (2012), responsável, nesta altura, pelo ensino de Lindy Hop, quer no
Porto, quer em Lisboa. Pouco depois, Abeth Farag
muda-se definitivamente para Lisboa, deixando o
ensino desta dança no Porto a cargo de professores que já haviam colaborado consigo. São alguns
destes professores (nomeadamente Helena Cardia
e Isabel Fonseca) que oficializaram o ensino de
Lindy Hop no Porto, criando a Hop Dance Studio
(2015), que conta atualmente com uma média de
100-150 alunos mensais. Dois anos depois (2017),
João das Botas, que frequentava aulas no Porto
desde 2012/2013, funda a Bota Swing, que conta
atualmente com cerca de cinquenta alunos. João
sublinha a importância de desenvolver uma filosofia de abertura associada à prática do Lindy Hop,
procurando romper a barreira da dificuldade técnica sentida por alguns alunos principiantes. Para
isso, alerta os seus alunos para a importância de
dançarem com toda a gente, independentemente
do nível técnico que cada um apresente.
50
prática da dança, bem como apoios específicos
para o setor, indubitavelmente um dos mais afetados pela pandemia. Porém, mais até do que o
ensino da dança que, mediante algumas medidas
de segurança, se prevê que possa vir a ser progressivamente retomado, são os eventos dedicados ao Forró e ao Lindy Hop que parecem verdadeiramente ameaçados.
Tal como se pretendeu mostrar neste artigo,
as danças sociais não são apenas práticas artísticas e desportivas, elas ativam espaços de lazer
e sociabilidade onde as comunidades se concretizam. Os lamentos de quem não dança há mais
de três meses – caso da maior parte dos praticantes, excetuando aqueles que o fazem com amigos
próximos – vão-se propagando nas redes sociais,
multiplicando-se também as suas dúvidas a respeito do momento em que vão puder voltar a
dançar. O facto é que a proximidade física envolvida na prática das danças sociais é inultrapassável, e a sua ocorrência, enquanto o vírus continuar
a circular na sociedade, não poderá ser feita sem
uma certa dose de risco, que caberá a cada praticante medir, aceitando ou recusando as possíveis
consequências que daí poderão advir.
A pandemia e os seus efeitos nas danças sociais
As três principais escolas envolvidas no ensino
de Forró e Lindy Hop no Porto, obrigadas a parar
as atividades em meados de março, esforçaram-se por encontrar soluções que lhes permitissem
não perder a totalidade dos seus rendimentos, ao
mesmo tempo que procuravam manter os seus
alunos envolvidos na prática regular das respetivas danças. As soluções passaram, essencialmente, pela criação de conteúdos digitais que os
alunos pudessem seguir em casa, através de aulas
online, em direto ou em diferido, em troca de um
valor fixo ou de um donativo facultativo.
A Hop Dance Studio rapidamente se adaptou
às aulas online, mantendo um calendário semanal
de aulas, não só de Lindy Hop, como de outras
modalidades que se ensinam na escola, tais como
Authentic Jazz, Solo Blues e Solo Shag. Helena Cardia, uma das responsáveis pelo projeto, aguarda
informações a respeito das normas necessárias à
retoma das aulas presenciais. Paralelamente, refere
que irão optar por manter as aulas online, para os
alunos que não se sentem ainda confortáveis em
realizar aulas presenciais, mantendo, assim, a possibilidade destes o fazerem a partir de casa.
A Bota Swing desenvolveu ainda um conjunto
de coreografias de swing e blues para partilha na
página do Facebook da escola, sendo que os alunos interessados poderiam contribuir através de
donativos. Ainda que as reações a esta estratégia
se tenham revelado positivas, tal não impediu esta
escola de se ver obrigada a abandonar o espaço
para aulas que mantinha arrendado, por não haver
disponibilidade do senhorio para baixar a renda.
João das Botas, porém, depois de forçado a refletir sobre as possibilidades do ensino da dança à
distância, manifesta a vontade de usar as plataformas digitais de forma vantajosa, mesmo depois
de um regresso à “normalidade”, fazendo com que
o Lindy Hop possa chegar a territórios afastados
dos centros urbanos.
Desconhece-se quando será possível retomar as
aulas de danças sociais e os eventos a elas associados. Circula neste momento uma petição pública
criada pela Plataforma de Escolas de Dança de
Portugal, reclamando medidas concretas para a
Referências bibliográficas
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[Consult. a 15.6.2020]. Disponível em: http://www.ufs.br/
conteudo/2295-nota-para-a-hist-ria-do-forr-.
ENGELBRECHT, Barbara (1983), “Swinging at the savoy”,
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FAZENDA, Maria José (2007), Dança teatral: Ideias, experiências, acções, Lisboa, Celta Editora.
JUNIOR, Antonio Carlos de Quadros; VOLP, Catia Mary (2005),
“Forró Universitário: a tradução do forró nordestino no
sudeste brasileiro”, Motriz, Rio Claro, vol.11, nº 2, pp.127-130.
LAGE, Regiane Sales (2017), Viver (d)o forró: cultura e profissionalização, Dissertação de mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa.
RAPPORT, Nigel (2002), “Community”, in Alan Barnard e
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SPRING, Howard (1997), “Swing and the lindy hop: dance, venue,
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VAISMAN, Diana (2018), “Do Harlem para o mundo: O fenómeno do lindy hop entre os jovens de ontem e de hoje”,
Fragmentos de cultura, Goiânia, vol.28, nº3, pp. 349-361.
51
NOTAS ACERCA DA SUSPENSÃO
DA PRAXE NO PORTO
Videografia
FARAG, Abeth, (s.d.), The beggining of the Lindy Hop and
Swing Dancing in Portugal [Consult. a 11.6.2020]. Disponível
em: https://www.swingstation.pt/quem-somos/.
GAP (1998), Swing Commercial, [Consult. a 11.6.2020]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XJ735krOiPo
Inês Maia40
A 9 de Março de 2020, foi noticiada a suspensão
da praxe no Porto. O Magnum Consilium Veteranorum, órgão que dirige a praxe nesta cidade,
anunciou a suspensão de todas as actividades
por tempo indeterminado. O responsável máximo,
Dux-veteranorum Américo Martins, assegurou que
toda a praxe seria suspensa, sem excepções.
Na semana seguinte, a Federação Académica
do Porto anunciou o cancelamento da Semana da
Queima das Fitas, afirmando, em comunicado, ter
ponderado hipóteses alternativas, mas tendo concluído pela inviabilidade de qualquer uma delas. A
decisão foi tomada em articulação com as Associações de Estudantes das diferentes Instituições
de Ensino Superior (IES) da cidade.
Consequentemente, o trabalho de campo que
me encontro a desenvolver ficou, repentinamente,
suspenso. Os informantes privilegiados no terreno
confirmaram-me essa suspensão. Multiplicavam-se as dúvidas entre estes, quadro que entretanto
não se alterou. Sem as cerimónias que, habitualmente, marcam a conclusão do ano lectivo, onde
ficam os ritos de passagem que marcam indelevelmente as experiências em praxe, que justificam a
ascensão hierárquica na sua estrutura, que servem
de argumento legitimador a um amplo conjunto
de provas a superar a cada ano? Com incertezas
generalizadas em relação ao início do próximo
ano lectivo, somam-se às presentes, questões
relativas ao futuro: em que moldes surgirá a praxe
aos novos estudantes?; será possível a um fenómeno que vive da proximidade e da intensidade
40Doutoranda do 3.º Ciclo em Sociologia da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Bolseira de Doutoramento
FCT. Desenvolve no Instituto de Sociologia da Universidade
do Porto (IS-UP) o projecto “O fenómeno da praxe em contexto universitário portuense: discursos e práticas” (SFRH/
BD/136101/2018) sob orientação científica do Professor
Doutor João Teixeira Lopes e co-orientação da Professora
Doutora Lígia Ferro. E-mail: inesmaia949@gmail.com
A autora não escreve segundo as normas do novo acordo ortográfico.
52
da interacção sobreviver ao distanciamento recomendado?; terá a praxe, fenómeno ancorado num
discurso em torno da tradição e marcadamente
imobilista, vontade e condições para se adaptar?
A suspensão da praxe coloca duas questões particularmente relevantes, que nos propomos problematizar. Por um lado, a da sua excepcionalidade – a
suspensão da praxe é, como veremos, algo praticamente inédito na sua história –, que contribui para
justificar a sensação de estranheza de quem a está
a viver, assim como a confrontação com dificuldades em encontrar novos caminhos que possibilitem
a adaptação do fenómeno. Por outro lado, a da
suspensão de um fenómeno que é, em si mesmo,
um ritual de suspensão, no sentido em que permite
aos que nele participam viver um espaço-tempo
com códigos e significados próprios, onde se vive
da exaltação do momento e da negação do futuro,
num processo em que os ritos vão cadenciando as
experiências e atribuindo-lhes valor simbólico.
As mudanças que este processo motivou foram
vastas e repercutiram-se em inúmeras esferas da
vida estudantil. A alteração dos modos de pensar e agir, marcadamente comprometidos com os
problemas sociais e com a oposição ao regime,
começaram por se fazer sentir na Latada de
1961/62, onde muitos estudantes empunharam
cartazes satíricos de contestação. O Conselho de
Veteranos e o Conselho de Repúblicas, organismos intrinsecamente associados ao tradicionalismo da academia coimbrã, destacaram-se no
combate ao regime, mobilizando os meios que
possuíam nesse sentido: no quadro da luta estudantil, decretaram a suspensão da praxe, o luto
académico (o traje passaria a ser usado como
num funeral, com a capa descaída pelos ombros,
com o colchete da batina apertado no pescoço e
com as fitas e insígnias escondidas) e o cancelamento da Queima das Fitas. Neste contexto, também o fado, outro dos símbolos da academia e
da própria cidade de Coimbra, passou a dar voz a
letras com preocupações sociais, começando aqui
a ganhar forma a canção de protesto ou música
de intervenção (Cardina, 2008b).
Assim, a década de 1960, com especial destaque para as chamadas crises de 62 e 69, foi marcada pela contestação estudantil. Primeiro em
torno da exigência de liberdade para o movimento
associativo. Depois, fruto do aprofundamento da
consciencialização política, somaram-se reivindicações como a da exigência de uma universidade
e de um país democráticos e, mais tarde, do fim
da guerra colonial. Houve, sobretudo na “crise de
69”, por um lado, a preocupação de transformar
o protesto académico em contestação ideológica
e, por outro, o desejo de congregar a maioria dos
estudantes nesta batalha. O primeiro objectivo foi
conseguido através da adopção de um discurso
extremamente politizado, onde se associava a
luta por uma nova universidade à luta por uma
nova sociedade. Por sua vez, o segundo objectivo garantiu-se, por um lado, atribuindo à Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra
(DG/AAC) a liderança do movimento estudantil e,
por outro, através da mobilização de rituais e símbolos da academia coimbrã para o terreno da luta.
“A utilização dos rituais e da simbologia praxista
A excepcionalidade da suspensão
O conjunto de práticas que define hoje a praxe hegemónica nas IES é resultado de um longo percurso de
transformações e apropriações, que terá tido início
no período imediatamente posterior à fundação da
Universidade de Coimbra em 1308 (Cruzeiro, 1979;
Frias, 2000, 2003, 2004; Cardina, 2008a, 2008b;
Estanque, 2008, 2016). Não cabendo aqui aprofundar o percurso histórico do fenómeno, releva perceber que o lugar da praxe e de um conjunto mais
vasto de práticas que determinavam o universo
académico coimbrão começaram a sofrer alterações no final da década de 1950 (Cardina, 2008b).
As práticas tradicionalmente dedicadas à integração estudantil foram questionadas, fruto de um
processo de transformações político-culturais que
definiu a década de 1950 e que teve como momentos-chave a movimentação estudantil iniciada em
1956 contra o decreto 40.900, que apontava para
o fim da autonomia das Associações de Estudantes
e, em 1958, a candidatura presidencial de Humberto
Delgado, um foco de oposição ao regime a que os
estudantes se juntaram.
53
permitia que a contestação se inserisse no fluxo das
vivências tradicionais coimbrãs, o que não só lhes
conferia legitimidade como despertava uma certa
complacência por parte da elite dirigente nacional,
para quem Coimbra era ainda, simultaneamente, o
lugar de um certo espírito corporativo, boémio e
romântico e uma instituição universitária produtora dos cérebros do regime” (Cardina, 2008a:
117). A dissidência política do meio estudantil face
ao regime parece ter-se traduzido na conjugação
de novas formas de acção reivindicativa, onde se
uniam as componentes políticas e culturais com
símbolos da “tradição académica”, como a utilização da capa e da batina, ou através da Queima
das Fitas ou do luto académico, “cuja convocação
reforçava política e simbolicamente a luta e levava
à identificação de camadas estudantis mais conservadoras com o corpo das reivindicações” (Cardina, 2008a: 119). Ou, nas palavras de Frias (2003),
“de tradicionalista, enquanto virada para um passado intencionalmente valorizado, conservado
ou mitificado, a tradição torna-se num motivo de
progresso, ficando associada à esperança da luta”
(Frias, 2003: 93). Elementos da chamada tradição
coimbrã intervêm assim “enquanto reportórios da
acção colectiva, participando da sua eficácia, e, ao
mesmo tempo, são registos da identidade da Academia local” (Frias, 2004:12).
De um período de mobilização dos símbolos
praxistas para o confronto político, passamos para
outro, entre 1969 e 1974, num cenário de alargamento das posições anti-colonialistas e anti-capitalistas e de crítica feroz às intenções governativas para o sector da educação (a “reforma Veiga
Simão” é entendida como uma mera reorganização
dos recursos, muito aquém de uma real democratização do ensino), em que se começou a exigir um
corte com a “tradição académica coimbrã” e com
as vivências estudantis a esta associadas. Identifica-se, assim, a «incapacidade de harmonizar os
fundamentos de um discurso fortemente politizado com práticas que, por atenuadas que fossem,
dificilmente deixavam de ser elitistas em relação
ao exterior e hierárquicas no seu interior» (Cardina,
2008a:125).
Após o luto académico de 1969, o corte com a
praxe tornou-se cada vez mais evidente: na abertura
do ano lectivo de 1970/71, a DG/AAC criou uma
Semana de Recepção aos Novos Alunos com uma
série de colóquios e debates sobre os problemas
dos estudantes e do país, como forma de substituição da recepção através da praxe (a tónica da integração era assim colocada na consciencialização
dos novos estudantes); no mesmo ano, o Conselho
de Veteranos aboliu o “rapanço”, prática que envolvia cortar o cabelo e rapar pêlos aos estudantes;
o Conselho de Repúblicas, que na sua carta constitutiva de 1948 afirmava que estas se encontravam “unidas pela praxe”, corta com essas práticas,
passando a definir-se como espaços de formação
e discussão; as Repúblicas recém-criadas, substituíram nas suas representações a moca, a tesoura
e a colher de pau, símbolos da praxe, por outros;
em 1972, foi criada a República Rosa Luxemburgo,
estritamente feminina, contrariando a lógica de um
universo até aí exclusivamente masculino; a capa e
a batina deixaram de ser usadas nas apresentações
ao vivo do Coro Misto e do CELUC (Coral dos Estudantes de Letras da Universidade de Coimbra); o
anúncio da AURA (Acção Universitária de Reforma
Académica), no início do ano lectivo de 1971/72,
de que iria restaurar a praxe, a tentativa de reabilitação da Queima das Fitas, em 1972, e o Festival
de Coros do Orfeon, em 1973, foram boicotados
e fortemente criticados; na imprensa, desde 1970,
eram publicados textos que assumiam o indiscutível desaparecimento da praxe e das reminiscências
de um universo tradicionalista em que o estudante
surgia como membro de uma elite. Esta rejeição
estender-se-ia até ao pós-25 de Abril.
Como sintetiza Cardina (2008b), “no processo
de contestação às formas tradicionais de integração estudantil importa distinguir dois momentos
diferenciados: um primeiro momento, coincidente
com um certo arejamento cultural e moral no
seio da Academia (…), altura em que se promove
a apropriação em sentido progressista da tradição académica; um segundo momento, sucessivo
à “crise de 69”, no qual se opera o corte com os
resquícios praxísticos ainda existentes” (Cardina,
2008b: 185-186).
No caso da Universidade do Porto (UP), identifica-se também um universo estudantil universitário com práticas e simbologia próprias anterior
54
a 1974 (Estanque, 2016; Lopes et al., 2018). Estes
autores apontam o seu surgimento no Porto na
década de 1950, embora seja possível encontrar
informações a respeito da Festa da Pasta, organizada pelos estudantes de Medicina e que consistia
na passagem da pasta dos estudantes que estavam a concluir o curso para os que transitavam
para o último ano, que remonta a 1920. A Federação Académica do Porto, em página dedicada
à história da Queima das Fitas, afirma que essa
Festa da Pasta se foi difundido pelas várias faculdades da UP, realizando-se sem interrupções até
1943, ano em que passa a haver uma cerimónia
comum a todas as faculdades, designada Queima
das Fitas. Em 1944, realizou-se a primeira Missa da
Bênção das Pastas na Igreja dos Clérigos. Deste
ano até 1971, segundo a mesma fonte, “de uma
forma natural, a “Queima das Fitas do Porto” vai
evoluindo”41, não sendo, contudo, explicitado em
que moldes se traduz exactamente este processo.
Encontram-se, ainda, noutros trabalhos, referências a bailes de gala em 1961 e à imposição de
insígnias e à garraiada em 1962 (António, 2009).
Segundo Cardina (2008b), em 1971, potenciado
pela contestação estudantil, de que a Universidade
do Porto também foi palco, verificou-se um corte
com as práticas estudantis compreendidas como
tradicionais, de forma semelhante ao que ocorria
em Coimbra, e foi decretado o luto académico na
UP. É verosímil a possibilidade de, tal como em
Coimbra, antes do corte efectivo, ter havido, pelo
menos, uma tentativa de apropriação progressista
dessas práticas. Aponta-se esta hipótese fruto de
uma referência encontrada acerca do «cariz político» que a Queima das Fitas do Porto passou a
assumir a partir de determinado momento (António, 2009: 145). Na mesma obra, é ainda mencionada a agitação política que vigorava por esta
altura no seio das Repúblicas, assinalando-se as
clivagens e os confrontos aí vividos.
Também num texto dedicado ao Orfeão Universitário do Porto (OUP), corroboram-se estas
ideias: perda de força destes símbolos e práticas
na UP e utilização meramente pontual do traje
circunscrita a um reduzido número de estudantes
(final da década de 60), contestação à queima
das fitas de 1971 e consequente corte com estas
práticas (Homem, 2006).
Os anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974,
revelaram-se adversos à recuperação das velhas
práticas, muito conotadas com o regime ditatorial e com as suas tradições e moral conservadoras e paternalistas. A restauração da praxe vai ter
início em Coimbra apenas no final dessa década.
Segundo Estanque (2016) e Lopes et al. (2018),
no Porto, dá-se em 1978 a primeira tentativa de
reanimação da Queima das Fitas, a chamada Mini-Queima, que contou com um sarau académico
cuja organização suscitou uma grande polémica
e cuja realização ficou marcada pelo conflito
entre pró e anti-praxistas. O primeiro cortejo da
Queima acabaria por ocorrer apenas no ano lectivo seguinte, em 1979. Nos anos que se seguiram,
somou-se ao cortejo, um leque mais vasto de iniciativas, que ainda hoje compõem a semana da
Queima das Fitas do Porto, tais como a serenata,
as noites da Queima ou o concerto promenade.
Este processo de reabilitação da praxe em
Coimbra e no Porto, que se consolidou de forma
clara a partir da década de 1980, e se estendeu
ao resto do país até aos anos 1990, ocorreu num
quadro de mudanças significativas na Universidade e na própria sociedade portuguesa: massificação do acesso e frequência deste nível de
ensino; diversificação da rede institucional; surgimento de institutos privados; recuo ao nível
das dinâmicas de politização juvenil observadas
nas décadas anteriores; alteração ao nível do discurso sobre o papel do Estado (ganha forma uma
noção mercantilista, que, no plano da educação,
se materializará, logo no início da década de 90,
na proposta de aumento das propinas no Ensino
Superior). A praxe hoje vivida resulta, no essencial,
deste processo de recuperação das práticas onde
elas tinham sido suspensas e do alargamento das
mesmas a novos contextos, onde, numa lógica
de construção identitária e de distinção estratégica face, sobretudo, a Coimbra, se foram criando
novas práticas e atribuindo novos significados.
A análise deste período, excepcional na história
do fenómeno, permite-nos compreender que essa
41 http://www.fap.pt/#historia
55
suspensão resultou de um processo longo, que
envolveu vários actores, marcado por um intenso
confronto de ideias acerca da praxe, mas, sobretudo, sobre a universidade e o país almejado. A
suspensão vivida hoje, porque resultante, não de
um processo, mas de uma imposição repentina
associada à pandemia, foi decretada unilateralmente e, podendo ter contado com alguma oposição, essa não se tornou vocal, nem consequente.
Estas fases de suspensão – a do período antes e
pós-25 de Abril e a de hoje – são também excepcionais no sentido em que não houve outras. Uma
vez recuperadas as práticas, no final da década de
1970, estas não voltaram a desaparecer. Pelo contrário, o processo de recuperação das mesmas e o
seu alargamento a novos contextos permitiu uma
nova legitimação do fenómeno e a sua normalização. A praxe não voltaria a ser suspensa, nem
quando confrontada com uma oposição pública
generalizada, o que aconteceu por diversas vezes
nas últimas décadas, quer em momentos em que
a rejeição do fenómeno teve expressão no seio
das universidades, com movimentos organizados
anti-praxe, sobretudo, na década de 1990 e início
da seguinte, quer, mais tarde, particularmente na
sequência da mediatização do que viria a ficar
conhecido como o caso Meco, no final de 2013.
da responsabilidade. O ES surge ainda no discurso
de muitos como sinónimo de distinção social – os
estudantes que partem de contextos de origem
escolarizados tendem a assumir a reprodução da
posição social ocupada pela família e os estudantes que pertencem à primeira geração da família a
frequentar o ES, ou são eles próprios os primeiros,
tendem a antecipar a formação superior como
meio de ascensão social. É precisamente porque
o ES potencia a elevação de status, ou pelo menos
alimenta essa ilusão, que, paradoxalmente, a praxe
obriga a rebaixar quem conseguiu chegar a essa
fase. É um rito que parece simples: “fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a
outra” (Gennep, 1978:27). Contudo, porque é um
rito que marca a transição entre estados e implica
a transformação da identidade de quem nele participa, essa transformação da situação e do estatuto do indivíduo não é simples, nem imediata.
Gennep (1978) aponta o rito de passagem como
sendo trifásico e Ribeiro (2001) aplica essa noção
ao fenómeno da praxe: a primeira fase é composta
por ritos de separação e ruptura com a identidade
anterior; a segunda fase é constituída por ritos
de margem que socializam o indivíduo no novo
papel que este deve representar; a última fase
supõe ritos de agregação, onde se dá o renascimento simbólico e identitário do indivíduo através
da agregação ao novo grupo. É este processo, em
especial, os espaços e tempos de ruptura – margem (de segurança) ou período liminar – que realçam a diferença entre a condição social a montante e a jusante do rito (Ribeiro, 2001).
É neste sentido que a actual suspensão parece
colocar em causa os principais objectivos do fenómeno. O ano lectivo chega ao fim e multiplicam-se os relatos de estudantes desiludidos, quase
sempre pelo mesmo motivo: a impossibilidade da
comemoração pública da sua transformação. Ou
seja, da sua consagração ritual. As etapas a comemorar variam consoante a fase do percurso académico em que o estudante se encontra, sendo
particularmente evidente nos casos dos que
acabaram de chegar ou dos que se encontram
de partida. Os primeiros ansiavam comemorar o
final do 1.º ano, que é, na verdade, a celebração
da entrada no ES, aprofundada simbolicamente
A suspensão de um ritual de suspensão
A entrada no Ensino Superior (ES) é experienciada como um momento de transição para uma
nova fase da vida, de ruptura com a adolescência
e de reforço da autonomia em relação à família e
ao contexto de origem – uma fase marcada pelo
aumento das redes de sociabilidade, potenciadora
de novas e diferentes vivências. As representações que os estudantes tendem a construir antes
de ingressarem neste novo ciclo de estudos, vão
ao encontro desta noção – o ES surge associado
a uma mudança marcante ou mesmo a uma “nova
vida”, representação que se justifica através das
ideias de aumento significativo da convivialidade
e das relações interpessoais, de ruptura com o
ensino secundário e, particularmente no caso dos
estudantes deslocados, de aumento da liberdade e
56
pela entrada na comunidade de estudantes universitários e que tem (teria) como ponto alto, trajar pela primeira vez. O traje, símbolo máximo de
pertença a essa comunidade, ficou, por agora, em
suspenso. Os últimos, a concluir ciclos de estudos,
aspiravam ao reconhecimento público e simbólico
dessa conquista. Esta celebração seria partilhada
com aqueles com quem viveram intensamente o
trajecto e seria comungada com a família, os amigos e a população da cidade do Porto.
Suspender os ritos associados à praxe, que marcam o final dos anos lectivos, parece tirar importância ao que se lhes encontra a montante – os
desafios superados para ali chegar – e não permitir usufruir plenamente do que se encontra a
jusante – o culminar do processo. Como é evidente, os praxistas, por mais desiludidos que se
possam encontrar por não verem realizadas as
cerimónias pelas quais tanto ansiaram, não deixam, por isso, de ver concluído o ano lectivo, ou
mesmo o ciclo, que se encontravam a frequentar.
Contudo, sem a possibilidade de comemoração
pública dessas conquistas, o sentimento generalizado é o de que fica algo por cumprir. O cortejo
da Queima das Fitas é, a este nível, um exemplo
paradigmático – para muitos, o primeiro cortejo,
momento pelo qual tinham esperado com entusiasmo e ansiedade, alimentados pelas histórias dos mais velhos, seria vivido com a alegria
de quem cumpre as expectativas; para outros, o
último cortejo, que marca o final de um ciclo, seria
vivido entre o orgulho da afirmação pública do
que se conquistou e a nostalgia antecipada. Assinalar estes momentos através da sua ritualização,
através de cerimónias altamente performativas e
espectacularizadas perante o colectivo, é o que
permite a consagração do novo estatuto e, consequentemente, o seu reconhecimento e legitimação, sendo, precisamente aí, que reside a força e
eficácia simbólica destes ritos agora suspensos.
Esta suspensão expõe, ainda, algo óbvio, mas
com o qual não nos tínhamos confrontado. A
praxe é um fenómeno que se ancora nos percursos académicos, isto é, a sua existência é obrigatoriamente paralela àqueles. Pelo contrário, os
percursos académicos não estão dependentes da
praxe, nem do seu calendário ritual. O que a actual
suspensão tem de singular é que implicou, pela
primeira vez em décadas, que a praxe perdesse
a ligação à realidade da qual se alimenta – se é
verdade que os percursos em praxe ficaram em
suspenso, o mesmo não aconteceu aos percursos académicos em que estes se baseiam, que,
como é evidente, não foram condicionados pela
suspensão dos primeiros. Esta questão é particularmene relevante por duas razões. Em primeiro
lugar, porque expõe a fragilidade da sobrevivência da praxe, apenas possível através de um processo de contínua reprodução, levado a cabo ano
após ano, e que pode, pela força de determinadas circustâncias, ser abruptamente suspendido,
colocando em causa o que até aí suportava a
continuidade do fenómeno. Em segundo lugar, e
em estreita ligação com a questão anterior, porque estamos perante a reprodução de normas e
de uma estrutura marcadamente imobilista, legitimadas por uma suposta tradição que, neste
momento, se vê posta em causa. Notemos que
a excepcionalidade da suspensão da praxe comporta esta consequência curiosa: pela primeira
vez em décadas, os rituais previamente estabelecidos e partilhados, não puderam ser cumpridos,
o que pode colocar em causa a sensação de segurança proporcionada pela repetição daqueles.
Sem essa repetição, a ordem que a praxe encerra
dentro das fronteiras por si criadas ter-se-á tornado mais frágil? Tendo em conta que a ordem é
assegurada pela reprodução contínua do mundo
que a suporta, ou seja, pela reprodução de regras,
de papéis, de práticas, de discursos e de códigos,
poderão estes mecanismos ter perdida força ou
ficado carentes de significado? Não pretendemos
com isto propôr que a praxe não contém potencial de adaptação e de transformação, capaz de
criar novas ordens. Contudo, esse potencial tem-se circunscrito a situações pontuais, sendo mais
raramente observado quando estamos perante
pilares do fenómeno. Tomemos como exemplo, a
ascensão hierárquica na estrutura da praxe. Como
se dará esta num ano lectivo em que os ritos para
o efeito não tiveram lugar?
Estes ritos são também importantes porque
marcam etapas dentro de um fenómeno que é, em
si mesmo, um ritual de suspensão (Lopes et al.,
57
2018), no sentido em que é um espaço-tempo que
exalta o momento e a intensidade das sensações
que proporciona, isolando e anulando o futuro e
as preocupações a este associadas. A etapa da
vida em que estes estudantes se encontram, continua a figurar no imaginário de muitos como o
último momento em que podem viver sem preocupações, antes do confronto com as responsabilidades da vida. A experiência do “aqui e agora”
aprofunda-se ainda mais numa Universidade onde
a reflexão e o debate têm vindo a perder força,
esvaziando-se a participação democrática e o
potencial transformador da intervenção estudantil, num cenário onde ganham força os espaços
lúdicos e festivos como principal quadro de sociabilidades. É também neste quadro que a “vida
adulta” tende a ser vista como um projecto adiado
e condicionado pela conclusão da formação académica, onde a Universidade é vivida como um
espaço e um tempo separados das restantes esferas da vida social (sobretudo da profissional) e
onde ainda se verifica uma grande dependência
destes estudantes em relação à família (Mauritti,
2003). Assim, estes estudantes interiorizam “o
atributo de ‘inactivos’ que socialmente lhes é dirigido (…) [e dão] largas ao culto de comportamentos hedonísticos conformes com esse estatuto”
(Pais in Mauritti, 2003: 49). É também neste sentido que as expectativas se podem ter visto frustradas – desapareceu o espaço-tempo suspenso,
marcado pela quase negação do futuro, apenas
possível pela entusiástica vivência de um ritual
que bloqueia momentaneamente a vida.
A praxe pode também ser lida como ritual
de suspensão no sentido em que é um espaço-tempo onde regras consensualmente aceites e
cumpridas em sociedade parecem não se aplicar. Suspendem-se, temporariamente, os nomes,
para se ganharem nomes de praxe; normalizam-se comportamentos, práticas e discursos que os
próprios envolvidos dificilmente tolerariam em
qualquer outra esfera das suas vidas; subtraem-se direitos; legitimam-se práticas e discursos
machistas e homofóbicos; banaliza-se uma linguagem violenta e/ou sexualizada. Todas estas suspensões parecem justificar-se porque entendidas
como parte de uma encenação, uma brincadeira
inconsequente, que comportará mais benefícios
do que malefícios. Mais uma vez, a aceitação
tácita destas suspensões representa a partilha de
um mundo próprio, só entendido por quem nele
participa, do qual estão excluídos todos os outros,
onde tudo se justifica à luz das dinâmicas e do
discurso que sustentam o próprio ritual. Mais, a
aceitação destas suspensões associa-se ao confronto com desafios e provas, que, uma vez superados, se querem comemorados em público, em
momentos de afirmação, onde se verão recompensadas as suspensões aceites e se intensificará
o sentimento de pertença a um grupo que as viveu
colectivamente.
Estes ritos, momentos de performance ritual
(Ribeiro, 2001), são experienciados com a intensidade da efervescência colectiva, como identificada por Durkheim – “uma espécie de electricidade” que, em contexto ritual, “vai ressoar, sem
resistência, em todas as outras consciências, largamente abertas às impressões exteriores, [servindo] cada uma delas de eco às outras”, contribuindo para “a intensificação do estado que se
manifesta” e da constituição de “uma certa ordem
que permita o concerto e os movimentos de conjunto” (Durkheim, 2002: 225-226). Estas encenações – porque com papéis atribuídos, um guião
consensualmente partilhado e público a assistir –
permitem a construção da narrativa desejada e a
sua partilha com os outros: os de fora, que a recebem e legitimam, os de dentro, que a reproduzem
num exercício contínuo de legitimação colectiva.
Num ano lectivo em que parte significativa destes
ritos não se cumpriu, onde fica a eficácia da sua
acção simbólica? E, mais significativo, que consequências terá esta suspensão para um fenómeno
que sobrevive através da reprodução da ordem
simbólica que esses ritos instituem?
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