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ORGANIZADORES ICARO ROSSIGNOLI MARCIO LAURIA MONTEIRO MORGANA M. ROMÃO RENATO FERNANDES II ENCONTRO INTERNACIONAL LEON TRÓTSKI ANAIS DO EVENTO REALIZADO NO BRASIL EM AGOSTO DE 2023 1ª edição PRÁXIS EDITORIAL São José do Rio Preto - 2024 Creative Commons: Atribuição + NãoComercial + CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-NC-SA 4.0) by ORGANIZADORES 1ª edição Revisão: organizadores Diagramação: Marcio Lauria Monteiro Arte da capa: Morgana Romão Desenho na capa: Morgana Romão International Standard Book Number: Câmara Brasileira do Livro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Encontro Internacional Leon Trótski (2. : 2023 : São José do Rio Preto, SP) II Encontro Internacional Leon Trótski [livro eletrônico] : anais do evento realizado no Brasil em agosto de 2023 / organização Icaro Rossignoli...[et al.]. -- São José do Rio Preto, SP : Práxis Editorial, 2024. PDF Vários autores. Outros organizadores: Icaro Rossignoli, Marcio Lauria Monteiro, Morgana M. Romão, Renato Fernandes. Bibliografia. ISBN 978-65-01-04766-9 1. Comunismo 2. Marxismo - História 3. Trotski, Leão, 1879-1940 I. Rossignoli, Icaro. II. Monteiro, Marcio Lauria. III. Romão, Morgana M. IV. Fernandes, Renato. 24-210316 CDD-320.532 Índices para catálogo sistemático: 1. Comunismo : Ciência política 320.532 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 “Encarar a realidade de frente; não buscar a linha de menor resistência; chamar as coisas pelo seu nome; dizer a verdade às massas, por mais amarga que seja; não temer obstáculos; ser verdadeiro nas pequenas como nas grandes coisas; basear o programa na lógica da luta de classes; ousar quando chegar a hora da ação – tais são as regras da Quarta Internacional.” — Leon Trótski, O Programa de Transição, 1938. SUMÁRIO PREFÁCIO ........................................................................... 14 COMITÊ ORGANIZADOR “Mário Pedrosa” ......... 18 LINKS DE INTERESSE .................................................... 20 PARTE I – UM PANORAMA INTERNACIONAL DO TROTSKISMO A Europa e a Grécia como uma “zona de tempestades”: crise, guerra, rebeliões, fracasso da esquerda, ascensão da extremadireita - O desafio para o trotskismo ..................................... 22 Savvas Michael-Matsas Notas sobre o trotskismo nos Estados Unidos ..................... 45 Paul LeBlanc Somos imprescindíveis na construção de uma nova utopia revolucionária ........................................................................ 54 Ana Cristina Carvalhaes Trotsky, Cuarta Internacional y la guerra imperialista ........ 66 Jorge Altamira PARTE II – DEBATES SOBRE LUTA DE CLASSES CONTEMPORÂNEA Os imperialismos ................................................................... 89 João Batista Aragão Neto Dos años de guerra en Ucrania ............................................ 94 Pablo Heller Cuba hoje: os riscos de uma contrarrevolução burguesa e as tarefas do trotskismo ............................................................. 102 Marcio Lauria Monteiro Trotsky e o enfrentamento ao fascismo: um quadro de referência para pensar o neofascismo no Brasil..................................... 115 Áquilas Mendes e Leonardo Carnut Dominação burguesa, capitalismo periférico e autoritarismo no Brasil ................................................................................. 135 Mario Miranda Antonio Junior PARTE III – ASPECTOS DA VIDA E PENSAMENTO DE TRÓTSKI Trotsky e o Marxismo: explorando suas contribuições teóricas ................................................................................... 156 Michelangelo Marques Torres Trotsky em Nova York: Um City tour virtual ........................ 189 Alex Steiner Questões sobre cultura em Leon Trotski: contribuições para a educação.............................................................................. 216 Vinícius Azevedo Trotsky e a Organização Revolucionária............................... 236 Paul Le Blanc A questão da “espontaneidade” revolucionária na "História da Revolução Russa" de Trotsky (T.1, Caps VII a IX) ............... 252 Carlos Eduardo Rebello de Mendonça Trotsky como teórico marxista: as provas nos Cadernos ..... 278 Alex Steiner PARTE IV – DEBATES SOBRE DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO E REVOLUÇÃO PERMANENTE As particularidades no desenvolvimento desigual e combinado........................................................................... 293 Renato Fernandes A teoria da Revolução Permanente contra o “Socialismo em um só país”: breves considerações acerca do debate dos anos 1920 na URSS................................................................ 3 1 6 Breno Ventura PARTE V – RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE TRÓTSKI E OUTROS MARXISTAS León Trotsky, Rosa Luxemburg y Antonio Gramsci. Confluencias y divergencias en las hipótesis estratégicas .......................... 352 Guillermo Iturbide El trotskismo y Louis Althusser ............................................366 Marcelo Novello Em defesa da revolução chinesa: Trotsky, China e a Revolução Permanente .......................................................... 400 Luis Guilherme Nobrega Amorim PARTE VI – TRÓTSKI E A REVOLUÇÃO ALEMÃ La revolución alemana de 1923 y la formación del trotskismo ........................................................................ 415 Luis Brunetto Trotsky e a Revolução Alemã ................................................ 435 Osvaldo Coggiola Trotsky, a ascensão do nazismo e o papel de Stalin ............. 456 Osvaldo Coggiola PARTE VII – ASPECTOS DA HISTÓRIA DA URSS A atualidade do "Novo Curso" de Leon Trotsky ................... 485 Renato Fernandes A Nova Política Econômica (NEP): debates sobre a lei do valor e a transição ao socialismo ....................................................... 499 Seiji Seron Miyakawa El caso Shostakovich a la luz de la crítica trotskista de la estructura social soviética ..................................................... 517 Simón Rodríguez Porras Leon Trotsky e a questão georgiana: o problema nacional e a burocracia soviética ............................................................... 529 Wanderson Fabio e Melo PARTE VIII – URSS, STALINISMO E A TEORIA DO ESTADO OPERÁRIO BUROCRATIZADO Relação entre o colapso do bloco soviético e o stalinismo ... 576 Marcio Lauria Monteiro El pronóstico de Trotsky sobre la restauración capitalista, a la luz de esta crisis mundial ...................................................... 588 Rafael Santos Apuntes críticos sobre el balance del estalinismo. Los problemas del objetivismo en el análisis de la ex-URSS ........................ 597 Víctor Artavia Quirós PARTE IX – HISTÓRIA DA QUARTA INTERNACIONAL E DO TROTSKISMO NA AMÉRICA LATINA Três debates da Quarta Internacional ao fim da II Guerra Mundial.................................................................................. 644 Ícaro Rossignoli Un pasaje por tres intentos de construir la IV Internacional (CORCI, TCI y CRCI) - una mirada desde Venezuela ........... 656 José Capitán Entre revueltas y agrupamientos: aproximación crítica a la historia del trotskismo en relación a la lucha de clases en Colombia ................................................................................ 664 Arturo Bravo La experiencia de la Brigada de Combatientes "Simón Bolívar" en Nicaragua y la revolución traicionada de 1979 - El rol del trotskismo. ....................................................................... 686 Miguel Sorans PARTE X – HISTÓRIA DO TROTSKISMO NO BRASIL A Liga Comunista Internacionalista (LCI) e a luta nos sindicatos oficiais (1933-1935) ............................................................... 694 Carlos Prado A ruptura Trotsky-Pedrosa e seus reflexos no marxismo no Brasil ................................................................................. 724 Flo Menezes A Convergência Socialista em Fortaleza ............................... 760 Andreyson Silva Mariano 14 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PREFÁCIO Icaro Rossignoli, Marcio Lauria Monteiro, Morgana M. Romão e Renato Fernandes 1 No ano em que se completaram oitenta anos da morte de Leon Trótski e oitenta e dois da fundação da Quarta Internacional, uma pandemia com dramáticos desdobramentos ao redor mundo impossibilitou a realização do que seria o II Encontro Internacional Leon Trótski, originalmente previsto para ocorrer em São Paulo, em agosto de 2020. A primeira edição do evento, ocorrida em Cuba, em maio de 2019, por iniciativa de Frank Hernandez García, registrou um feito histórico ao congregar militantes, trabalhadores formais e informais, sindicalistas e estudantes, adeptos ou não do trotskismo, em um país no qual ainda sobrevivem importantes conquistas da única revolução social anticapitalista vitoriosa da América Latina, mas que ainda assenta no poder uma burocracia equivalente àquela que Trótski empenhou tantas energias em combater em prol do socialismo e da revolução internacional. Independentemente de qualquer avaliação 1 Membros do Comitê Organizador “Mário Pedrosa”, que realizaram a organização deste livro em nome do Comitê. Icaro Rossignoli é mestre em História Social pelo PPGH UFF e professor de História nas redes municipais de Maricá (RJ) e Rio de Janeiro (RJ). Marcio Lauria Monteiro é Doutor em História Social pelo PPGH UFF e professor e pesquisador no IFBA de Porto Seguro. Morgana M. Romão é mestranda em História Social pelo PPGH UFF. Os três são membros do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trótski / Trotskismo e a Historiografia (GEPTH), uma das instituições apoiadoras do II Encontro. Renato Fernandes é Doutor em Ciência Política pela Unicamp e professor de Ciências Políticas e Econômicas na FATEC Sumaré (SP), e membro do Laboratório de Pensamento Político da Unicamp. Além de pesquisadores e parte da organização do evento, todos são militantes trotskistas. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 15 sobre Cuba, se ela é socialista, capitalista de Estado ou um Estado Operário Degenerado, a importância desse feito é inestimável na história do trotskismo internacional, e digna de continuidade. Durante o evento em Cuba, foi formado o Comitê Organizador “Mário Pedrosa” com a tarefa de organizar o II Encontro, composto pelos brasileiros que estavam no evento e batizado em homenagem a um dos pioneiros do trotskismo no Brasil. Com a suspensão do evento devido à pandemia, o Comitê organizou dois eventos online, em agosto de 2020 e de 2021, com o título Trótski em Permanência, ambos com caráter internacional. Enquanto o evento de 2020 foi mais modesto, o de 2021 contou com Mesas Redondas de convidados e dezenas de comunicações apresentadas em Simpósios Temáticos, o que culminou na publicação de um livro homônimo com seus trabalhos. Ao longo desse tempo, o Comitê mudou de composição, com saída e entrada de membros, mas sempre manteve um caráter politicamente diverso, com militantes de diferentes organizações e também intelectuais independentes. Hoje estamos cinco anos adiante de nosso primeiro encontro, mas celebrando com este livro a realização do II Encontro Internacional Leon Trótski, ocorrido presencialmente em São Paulo (na PUC-SP e USP) e online (via YouTube e Facebook) entre 21 e 26 de agosto de 2023. A união de forças situadas em localidades tão diversas e distantes fizeram acontecer esse evento internacional de forma híbrida, superando as dificuldades da escassez de recursos por meio de muito empenho e solidariedade que o Comitê Organizador “Mário Pedrosa” depositou nesse projeto coletivo. O evento contou com 5 Mesas Redondas presenciais, totalizando 21 falas, e com 13 Simpósios Temáticos online, totalizando 16 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 57 falas, ao longo de 5 dias de evento. As Mesas Redondas foram compostas por militantes e intelectuais convidados e abordaram os temas “A situação de Cuba hoje e o legado do trotskismo cubano” (Abertura), “A Revolução Alemã de 1923 e seu papel na formação do trotskismo”, “As tarefas do trotskismo no Brasil de hoje”, “Um panorama do trotskismo ao redor do mundo”, “Uma homenagem a Mário Pedrosa e aos primeiros trotskistas brasileiros” e, compondo o encerramento, houve a apresentação de livros recém-publicados. Por sua vez, os vários Simpósios Temáticos foram compostos de comunicações enviadas por pessoas de vários países e organizações. Tudo isso resultou em várias horas de transmissão ao vivo (disponíveis no canal de YouTube do evento) e nos 36 textos deste livro, no qual todos os participantes do encontro foram convidados a publicar.2 Fizeram-se presentes dezenas de organizações políticas, dispostas sem predileções pessoais de nenhum de nós, e discutiram-se os temas mais candentes da luta de classes no Brasil e no mundo, bem como aspectos diversos da história e legado do trotskismo e da União Soviética. Essas discussões levantaram diversos questionamentos à atuação das organizações de esquerda mundo afora e contribuíram para revelar o sentido atual das controvérsias teóricas e práticas que sempre marcaram a agitada história do trotskismo. Frente a um mundo que é palco de catástrofes climáticas, de ascensões cada vez mais meteóricas da extrema direita e de uma ampliação sem precedentes da miséria e da opressão, a (re)construção de uma alternativa revolucionária pelas mãos da classe trabalhadora é uma tarefa de primeira ordem, e o legado de Trótski nos proporciona 2 Como nem todos os participantes enviaram os textos de suas apresentações, nós agrupamos os textos recebidos sem necessariamente seguirmos a composição das Mesas Redondas e Simpósios Temáticos aos montarmos as seções deste livro. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 17 um valioso instrumental teórico e programático na construção dessa alternativa. Se o capitalismo não for destruído em proveito de uma democracia de fato socializada, a humanidade agonizará até finalmente perecer. A tônica “socialismo ou barbárie” jamais se mostrou tão atual. Na trilha desse percurso, conhecer organizações, confrontar programas políticos, discutir formas de atuação e analisar a história do movimento comunista internacional, com uma especial atenção aos seus erros, acertos e contradições, são passos imprescindíveis. Acreditamos que o II Encontro Leon Trótski foi capaz de contribuir em todos esses aspectos. Tendo encerrado nossas atividades após cinco anos de muitas reuniões, três eventos e dois livros, o Comitê Organizador “Mário Pedrosa” encara ter realizado não só aquilo que havia se proposto originalmente em Cuba, em 2019, mas muito mais. E é com grande alegria que saudamos a organização de um III Encontro Internacional para outubro de 2024, em Buenos Aires, na Argentina. Que venham muitos outros! Viva Leon Trótski! Viva o socialismo revolucionário! N.B.: Ao longo deste livro o nome de Trótski aparece grafado de diferentes formas (Trótski, Trotsky, Trotski etc.). Optamos por preservar a grafia escolhida por cada autor, ao invés de impor uma padronização, pois as múltiplas formas de grafia não atrapalham a compreensão e não há, de fato, um padrão reconhecido e bem estabelecido, por mais que haja normas de transliteração (as quais, diga-se de passagem, se forem seguidas, levam a uma grafia bastante incomum para o leitor brasileiro). 18 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) COMITÊ ORGANIZADOR “Mário Pedrosa” O Comitê Organizador “Mário Pedrosa” surgiu em 2019, formado por brasileiros(as) que estiveram presentes no I Encontro Internacional Leon Trótski, em Havana, Cuba, e que assumiram a tarefa de organizar o II Encontro no Brasil para 2020. Ele foi composto por militantes e intelectuais de diferentes organizações que reivindicam o trotskismo, bem como independentes e, devido ao prolongamento de suas atividades, mudou de composição algumas vezes. No período da pandemia, devido à impossibilidade de realizar o II Encontro na data prevista, o Comitê organizou os Eventos Online Trótski em Permanência, em 2020 e 2021. Em 21-25 de agosto de 2023 finalmente foi possível realizar o II Encontro Internacional Leon Trótski no Brasil. Para conduzir o evento, o Comitê contou com uma Comissão Organizadora e também um Comitê Científico (que avaliou as propostas de comunicação), além de ter recebido alguns apoios institucionais. Essa foi sua composição à altura do II Encontro: Comissão Organizadora Antonio Rago Filho (PUC-SP) Carlos Prado (UFMS, GEPTH*) Flo Menezes (Unesp, Estúdio Panorama) Frank García Hernández (Pesquisador, redator de “Comunistas” – Cuba) Icaro Rossignoli (UFF, GEPTH*) Israel Dutra (Direção Nacional do PSOL) João Batista Aragão Neto (Advogado) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 19 Marcio Lauria Monteiro (IFBA, GEPTH*, NIEP-MARX UFF) Morgana Romão (UFF, GEPTH*) Renato Fernandes (FATEC Sumaré, PEPOL Unicamp) Urbano Nojosa (PUC-SP, TVACOMUNA, Revista Pasquinagem) Vinicius Souza (SME Rio das Ostras) Comitê Científico Fernando Araújo (GEPTH*) Frank García Hernández (Pesquisador, redator de “Comunistas” – Cuba) Icaro Rossignoli (UFF, GEPTH*) Marcio Laura Monteiro (FME Niterói, GEPTH*, NIEP-MARX) Mário Costa de Paiva Guimarães Júnior (UFU, GEPTH*) Morgana Romão (UFF, GEPTH*) Renato Fernandes (FATEC Sumaré, PEPOL Unicamp) Vinicius Souza (SME Rio das Ostras) Apoios Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Universidade de São Paulo (USP) * GEPTH – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trótski e a Historiografia Studio PANaroma de Música Eletroacústica (Unesp) TVAComuna GEPTH 20 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) LINKS DE INTERESSE Site do “Encontro Internacional Leon Trotsky” e dos eventos online “Trótski em Permanência” https://encontrotrotski.noblogs.org/ Livro do I Encontro Internacional Leon Trotsky (Cuba, 2019) https://encontrotrotski.noblogs.org/post/2021/08/05/livro-do-iencuentro-internacional-leon-trotski-2019/ Livro do Evento Online Trótski em Permanência 2021 https://encontrotrotski.noblogs.org/post/2023/03/02/livro-do-eventoonline-trotski-em-permanencia-2023/ Canal dos eventos no YouTube (“Encontro Trotsky”) https://www.youtube.com/@EncontroTrotsky/featured Playlist com os vídeos do II Encontro Internacional (2023) h t t p s : / / w w w . y o u t u b e . c o m / playlist?list=PLeSj43ndMtRS75Qbib8234C6OjrO4FFBz Playlist com os vídeos do Evento Online 2021 h t t p s : / / w w w . y o u t u b e . c o m / playlist?list=PLeSj43ndMtRRAFxNpF6R7vOTtdcHcbzWC Playlist com os vídeos do Evento Online 2020 https://www.youtube.com/playlist?list=PLeSj43ndMtRSMWuY41e8e-m-uasizwBz II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PARTE I UM PANORAMA INTERNACIONAL DO TROTSKISMO 21 22 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) A Europa e a Grécia como uma “zona de tempestades”: crise, guerra, rebeliões, fracasso da esquerda, ascensão da extrema-direita - O desafio para o trotskismo Savvas Michael-Matsas1 A Europa num mundo em turbulência As mudanças tectônicas estão a alterar dramaticamente toda a paisagem histórica mundial, a um ritmo e profundidade nunca antes vistos desde o final da Segunda Guerra Mundial. Nos últimos quinze anos, a crise capitalista mundial pós-2008 transformou o continente europeu numa “Zona de Tempestades”. Este último termo foi utilizado no passado para designar o chamado “Terceiro Mundo”, atualmente o “Sul Global”. Mas quarenta anos de globalização do capital financeiro e a sua implosão no crash financeiro global de 2008 não afetaram apenas o destino da maioria da humanidade super explorada e super oprimida que vive no Sul Global. Criou também um novo tipo de Sul Global dentro do Norte Global, uma periferia e semiperiferia dentro do centro, novas áreas vastas de desastre social. A Europa capitalista avançada é a metrópole mais fraca do Norte Global. De berço do capitalismo global e do colonialismo moderno, transformou-se num capitalismo imperialista em decadência, subordinado aos EUA, um foco de turbulência constante de forças contraditórias, abalado por convulsões sociais, econômicas, políticas e geopolíticas. Tornou-se uma verdadeira Zona de Tempestades: • A crise da zona euro, que começou há uma década, nunca 1 Dirigente do EEK (Grécia). Contato: savvasmatsas@gmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) • • • • 23 terminou verdadeiramente. Agora está regressando com força. A economia estagnada da União Europeia é a mais vulnerável a uma combinação explosiva de fragilidade financeira, crise da dívida, aumento da inflação e subida das taxas de juro que a conduzirá à recessão, afetando até a Alemanha, a potência industrial da economia da UE. A polarização e a radicalização conduzem a ziguezagues políticos febris para a esquerda e para a direita; a fracassos da esquerda parlamentar dominante, quer no governo, quer na oposição; há um aumento ameaçador de forças de extrema-direita, xenófobas e fascistas que chegam agora a posições de governo, não só na Europa Central e Oriental, mas também na Europa Ocidental e Meridional, como num membro fundador da UE como a Itália, bem como no Norte escandinavo, anteriormente social-democrata. Surgem mobilizações sociais de massas, greves de trabalhadores e rebeliões populares de massas empobrecidas e de jovens (a França é um exemplo forte), produzindo crises agudas de regime. Não param de surgir gigantescas ondas migratórias de vítimas do Ocidente em África e na Ásia para uma “Europa fortaleza” que trava uma bárbara “guerra contra os pobres”, com “empurrões” assassinos e uma política de “não salvamento” que transformou o Mediterrâneo num cemitério marítimo para dezenas de milhares de migrantes desesperados. É instaurado um regime de detenção em campos de concentração em condições desumanas em solo europeu e no Norte de África. Acima de tudo, o continente europeu e o mundo inteiro estão 24 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) à beira do abismo de uma Terceira Guerra Mundial devido à atual guerra por procuração da OTAN liderada pelos EUA no coração da Europa, na Ucrânia, contra a Rússia e, indiretamente, também contra a China. Uma guerra que foi corretamente reconhecida pelo Chanceler alemão Olaf Scholz como uma Zeitenwende, um ponto de inflexão da história mundial. A Grécia na encruzilhada A Grécia é o epítome de todos os problemas da Europa. Esmagada pelo peso da dívida externa e privada, continua subjugada às ordens draconianas de “austeridade” da UE e do Banco Central Europeu, fielmente aplicadas por todos os governos gregos. Segundo país da UE em termos de pobreza, apenas atrás da Bulgária, com um terço da população a viver abaixo do limiar da pobreza, em condições de elevado desemprego, trabalho precário, baixos salários e aumento do custo de vida, a Grécia está reduzida a um campo lucrativo voltado para fundos estrangeiros vorazes e especuladores do setor imobiliário e do turismo, tornando-se uma espécie de Tailândia para ricos. O Estado grego é conhecido pela sua burocracia e corrupção. Funciona como cobertura e bastião para a extrema-direita, uma máquina de repressão do “inimigo interno”, bem como um feroz gendarme e guardião de prisões contra os migrantes nas fronteiras do Sudeste da Fortaleza Europa. Como membro fiel da OTAN, está envolvido em todos os planos e ações de guerra dos imperialistas dos EUA e da OTAN na Ucrânia, nos Balcãs, no Mediterrâneo Oriental e II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 25 no Oriente Médio. Não há dúvida de que a Grécia continua a ser o elo mais fraco, ou melhor, o elo já quebrado (pela anterior crise da zona euro) da cadeia europeia. Ao mesmo tempo, está situada na encruzilhada de todas as contradições socioeconómicas e conflitos geopolíticos internacionais. É neste contexto geral, e de um ponto de vista internacional, que se deve compreender a luta de classes e a vida política na Grécia, incluindo as recentes eleições parlamentares gregas de maio e junho de 2023 e o inglório "triunfo" da direita. As eleições gregas de 2023: Crónica de uma derrota anunciada Os resultados das duas eleições provocaram um verdadeiro choque, devido à enorme diferença entre os 40% obtidos pela “Nova Democracia”, de direita, apesar do seu historial lamentável como governo cessante, e os menos de 20% recebidos pela “oposição oficial”, o Syriza, de esquerda reformista. Uma diferença tão grande era inesperada para a maioria das pessoas. Para piorar a situação, a vitória esmagadora da direita conservadora foi acompanhada pelo regresso ao Parlamento dos herdeiros do grupo criminoso nazi “Aurora Dourada”, mascarados desta vez com a ridícula alcunha de “Os espartanos”. No conjunto, os nazistas e mais três grupos marginais de extrema-direita que entraram no Parlamento, obtiveram um aumento de votos de 13%. A vitória da direita baseou-se principalmente na ausência de qualquer rival crível capaz de formar um governo alternativo. A vitória da Nova Democracia foi construída principalmente sobre as ruínas políticas de um Syriza desacreditado. Após a sua capitulação perante o ultimato da troika UE-BCE-FMI em julho de 2015, traindo não só 26 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) as suas promessas, mas também o mandato do referendo que rejeitou o ultimato da troika por uns tremendos 61%, o Syriza continuou o seu desastroso curso à direita, perdendo a sua própria identidade reformista de esquerda e desacreditando a esquerda como um todo na consciência social das massas. Como governo em 2015-19, o Syriza implementou fielmente o pior terceiro “Memorando de Entendimento” de medidas draconianas de “austeridade”. Em 2019-23, como oposição oficial de “centroesquerda”, votou metade dos projetos de lei antipopulares introduzidos pelo governo de direita de Mitsotakis. Declarou continuamente a sua lealdade à UE e à OTAN. Por último, mas não menos importante, nas eleições de maio de 2023, o Syriza não tinha outra alternativa de governo a propor que não fosse a formação de uma coligação de “centro-esquerda” / “governo progressista” com o social-liberal PASOK – uma proposta que o próprio PASOK rejeitou repetidamente como absurda. A derrota esmagadora do Syriza é uma condenação severa a uma esquerda que antes tinha atraído – e traído – as esperanças e o apoio de uma parte significativa do povo grego, nos tumultuosos anos de 2012-15. Graças a esse apoio popular, conseguiu formar, pela primeira vez na Grécia do pós-guerra (e da pós-guerra civil), um chamado “governo de esquerda”. A ascensão meteórica do Syriza atraiu esperanças exageradas e apoio acrítico para além da Grécia, entre uma vasta maioria da esquerda europeia e internacional, incluindo a chamada esquerda anticapitalista. Mesmo a maioria das correntes trotskistas internacionais adotou este consenso impressionista sobre o Syriza e exerceu, à distância, grandes pressões sobre as suas secções gregas – sem sucesso. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 27 Internacionalmente, o Syriza apareceu como um “novo paradigma de uma esquerda radical vitoriosa”. Para outros sectores da esquerda internacional, a ascensão do Syriza era um sinal de uma oportunidade de ganhar influência através da nova virada das massas para a política radical. A “nova” orientação oportunista (ou melhor, desorientação) foi realizada meramente em termos eleitoreiros, através de políticas de apoio, voto ou mesmo de adesão como fação de esquerda às fileiras do Syriza. Agora, o colapso inglório do Syriza espalha uma grande confusão política, desilusão e desorientação tanto na Grécia como a nível internacional. De outro lado, aparentemente oposto, combinando sectarismo e oportunismo, o Partido Comunista estalinista da Grécia, o KKE, durante o surto inicial das massas, opôs-se veementemente e denunciou o “movimento das praças” populares, boicotando até mesmo o referendo anti-troika de 2015. Agora, após as eleições de 2023, o KKE celebra como uma vitória os seus modestos ganhos eleitorais de 7% dos votos, subestimando o impacto negativo da vitória da direita e o aumento ameaçador dos votos para os nazis e a extrema-direita. Em todo o espectro político, da direita à esquerda, na maioria dos casos, não há reconsideração crítica das políticas passadas, mas apenas autojustificação, repetição das mesmas políticas e projeção cega das mesmas no presente e no futuro. O fim da primeira onda É notável que, na sua miopia nacional-provincial, tanto as declarações triunfalistas de uma arrogante "Nova Democracia" como as lamentações de um Syriza derrotado e em desordem concordem 28 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) apenas num ponto: nomeadamente que "todo um ciclo histórico para o Syriza, desde 2012, foi encerrado”. A verdade é que se fechou um ciclo internacional muito mais amplo: a primeira onda internacional de lutas desencadeada após a eclosão, em 2008, da crise capitalista mundial. Sob diversas formas e dimensões, num desenvolvimento desigual e combinado, estas lutas de massas engolfaram um vasto espaço, envolvendo a primavera Árabe revolucionária que derrubou as ditaduras de Ben Ali e Mubarak, o inédito “Movimento das Praças” dos Indignados na Puerta del Sol em Espanha e das massas rebeldes na Praça Syntagma na Grécia, a ocupação do Parque Gezi na Turquia e, mais tarde, as convulsões e mobilizações no Líbano, no Iraque, na Argélia, no Sudão, no Chile e até nos Estados Unidos, onde, com os movimentos Occupy, como observou David Graeber, “a sombra do poder do povo chegou a Wall Street”. Dentro ou ao lado destes movimentos e lutas de massas, ou “surfando” sobre eles, surgiram formações políticas novas ou renovadas, por vezes de forma espetacular, como o Podemos em Espanha ou um Syriza radicalizado na Grécia. Formaram-se “Frentes Amplas” de partidos e movimentos de esquerda e extrema-esquerda, como o Bloque de Esquerda em Portugal, a frente anticapitalista Antarsya na Grécia, ou a FIT na Argentina, atuando principalmente como blocos eleitorais para captar o apoio da viragem à esquerda de grandes setores da população. Da mesma forma, foram feitas tentativas para fundar “partidos amplos”, unificando um vasto espetro de organizações, facções e tendências da “esquerda radical”, como no caso da anteriormente trotskista Ligue Communiste Révolutionnaire em França, que se liquidou no pós-trotskista Nouveau Parti II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 29 Anticapitaliste-NPA. A maioria destas experiências, de uma forma ou de outra, fracassou politicamente, conduzindo a crises internas, a múltiplas cisões ou ao colapso. Em condições de impasse político e de agudização da crise capitalista, a direita conservadora e, em especial, a extrema-direita racista, xenófoba, “alt-right” ou abertamente fascista, começaram a erguer-se novamente em toda a Europa e não só. Mas, ao mesmo tempo, um novo e poderoso movimento grevista, impulsionado pela inflação e pelo aumento do custo de vida de uma população empobrecida numa sociedade capitalista em decadência com crescentes desigualdades monstruosas, espalhou-se em 2022-23 da Grã-Bretanha pós-Brexit para todos os países da UE na Europa continental. O início de uma nova onda internacional de lutas sociais manifesta-se, nos primeiros cinco meses de 2023, pelas gigantescas mobilizações em França contra a contrarreforma das pensões imposta por decreto do regime bonapartista enfraquecido de Macron. Macron não teve tempo de festejar a sua “vitória” de Pirro e foi confrontado, após o assassinato de um rapaz em Nanterre pela polícia, com uma rebelião maciça, à escala nacional, de uma juventude proletária e paupérrima, vivendo em condições sociais desastrosas e enfrentando dia e noite a brutalidade racista da repressão do Estado. É óbvio que nem a guerra de classes nem a crise capitalista terminaram com os fracassos da esquerda na anterior e primeira onda internacional de lutas. Os regimes e governos capitalistas na Europa e a nível internacional, incluindo o recém reeleito governo de Mitsotakis na Grécia, entram num novo período de turbulência. É muito importante agora para o movimento operário e para 30 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) a sua vanguarda tirar as lições estratégicas do ciclo histórico anterior para superar as razões dos fracassos e elaborar uma estratégia para a vitória. Experiências estratégicas A importante primeira sequência de lutas de massas pós-2008, incluindo os fracassos e derrotas da esquerda durante esse período, tem de ser estudada como experiências estratégicas, no sentido dado a estes termos por Leon Trotsky: como experiências historicamente importantes que colocam no centro a questão mais crucial da estratégia: a questão do poder político do Estado: Por tática em política entendemos, utilizando a analogia da ciência militar, a arte de conduzir operações isoladas. Por estratégia, entendemos a arte da conquista, ou seja, a tomada do poder. [...] A grande época da estratégia revolucionária começou em 1917, primeiro para a Rússia e depois para o resto da Europa. A estratégia, evidentemente, não dispensa a tática. As questões do movimento sindical, da atividade parlamentar, etc., não desaparecem, mas adquirem agora um novo significado como métodos subordinados de uma luta combinada pelo poder. A tática está subordinada à estratégia. (L Trotsky, Lições de outubro, 1924) Esta questão central de uma estratégia revolucionária, a luta pelo poder, foi precisamente o que foi deliberadamente evitado e/ ou abertamente rejeitado, durante todo este período, por aqueles que estavam na liderança do movimento de massas, as forças da esquerda, incluindo as da esquerda radical e anticapitalista. Muito brevemente, alguns exemplos: A questão do poder foi colocada de forma mais evidente com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 31 o derrube das ditaduras pelas revoluções na Tunísia e no Egito, onde a classe operária desempenhou um papel importante à frente das massas populares empobrecidas nas cidades e nos campos. Mas o caminho para o poder dos trabalhadores e dos pobres foi bloqueado não só pelo terrorismo de Estado e pelo controle burocrático, mas também por uma desorientação desastrosa, mesmo entre a esquerda radical que procurava uma solução numa aliança com vários setores da burguesia dominante dividida e as suas forças políticas tradicionais, nacionalistas ou islamistas, como a Irmandade Muçulmana ou os militares de ascendência nacionalista nasserista. Finalmente, a subordinação às forças burguesas, a falta de independência política da classe trabalhadora e de uma liderança revolucionária com uma estratégia de luta pelo poder dos trabalhadores apoiada pelos pobres levou a um retrocesso contrarrevolucionário: o golpe militar que estabeleceu a ditadura militar de al Sisi no Egito ou o golpe presidencial na Tunísia, ambos a serviço das elites dominantes locais e do imperialismo ocidental. Na Espanha, o Podemos passou do movimento “sem partido” para o eleitoralismo partidário e, através de uma série de cisões internas, para a posição de parceiro subordinado de segunda categoria no governo do PSOE social-democrata de Pedro Sanchez, para finalmente se extinguir noutro bloco eleitoral de esquerda, o Sumar. O resultado político é a ascensão do franquista Partido Popular e do abertamente fascista Vox nas eleições regionais e municipais de maio de 2023 e, depois, as eleições legislativas antecipadas de julho, que terminam num impasse. A crise não resolvida do poder político é exacerbada em condições de polarização, deixando a Espanha num limbo político. 32 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Na Grécia, o Syriza sempre, mesmo durante o período “radical” de 2012-15, declarou repetidamente o seu apoio à “continuidade do Estado”, às suas bases capitalistas e aos seus acordos com a UE e o imperialismo dos EUA/OTAN. Quando esteve no governo, governou em coligação com os nacionalistas de direita “Gregos Independentes”. Todos os aparelhos repressivos do Estado capitalista, o Exército, a Polícia (um refúgio seguro para a extrema-direita e os simpatizantes nazistas), os serviços secretos, o sistema judicial, etc., permaneceram intactos. As forças que se posicionam à esquerda do Syriza, o KKE e as organizações ou blocos da esquerda anticapitalista têm como única ambição ser uma oposição “militante” ao governo e ao poder burgueses. Apesar de algumas referências retóricas, mas vagas, ao poder dos trabalhadores e ao socialismo como objetivos finais num futuro indefinido e longínquo, evitaram a questão colocada por uma crise dramática do poder político. Insistiam que o “equilíbrio negativo das forças políticas e de classe” tornava a luta por tais objetivos estratégicos “prematura e não realista”, se não mesmo “uma perigosa aventura e provocação”. A sua “realpolitik” era, e continua a ser, atuar, quer nas eleições, quer nas lutas sociais, como grupos de oposição à pressão da esquerda, esperando obter vitórias tácticas parciais e uma acumulação de forças e de posições nos sindicatos e no poder local. A tática e o programa foram separados de uma orientação estratégica para a luta pelo poder. Os apelos a uma Frente Unida por parte de setores da esquerda anticapitalista transformaram-na de tática em estratégia, reduzindo-a na maioria das vezes a um bloco eleitoral. O KKE estalinista rejeitou abertamente qualquer questão ou II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 33 necessidade de um programa de transição, separando os objetivos programáticos a curto e a longo prazo, esperando que “as condições amadureçam”. Entretanto, mantém-se dentro dos limites das exigências imediatas e do puro economicismo sindical. Por outro lado, entre as forças da Antarsya, houve uma má interpretação e uma deformação gradualista de um verdadeiro programa de exigências transitórias, tal como foi delineado pela primeira vez no período revolucionário inicial da Terceira Internacional e, numa forma mais desenvolvida, por Trotsky como o programa da Quarta Internacional. O subtítulo do documento programático fundador da Quarta Internacional deixou claro que o seu método e o seu objetivo são intervir em todas as lutas através da apresentação de reivindicações, para “a mobilização sistemática das massas no caminho da luta pelo poder dos trabalhadores”. NÃO se trata de uma lista de reivindicações “não mais reformista, mas ainda não revolucionária”, “anticapitalista, mas não totalmente(?) socialista revolucionária”, que conduz, passo a passo, gradualmente, à revolução e ao socialismo... Esta “realpolitik” ilusória, superficial e desastrosa é um eco tardio do “marxismo” reformista pré-1914 da Segunda Internacional misturado com o dogma estalinista. Na prática, pode funcionar, em certa medida, como um fator de estabilização temporária num sistema burguês desestabilizado, intensificando a frustração perante um impasse histórico, o sentimento de uma espécie sentimento thatcheriano de que “Não há alternativa”. “Se alguma vez existiu um movimento histórico para o qual a Realpolitik apresenta uma ameaça terrível e sinistra, é o Socialismo”, escreveu Lucáks em Tática e Ética durante a Revolução Húngara de 1919. 34 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) O EEK e o Estado O nosso Partido, o EEK, celebra em 2023 os seus 60 anos de existência revolucionária em luta, muitas vezes sob as condições mais difíceis, como sob a ditadura militar. Apesar de todos os altos e baixos, dos saltos em frente, bem como dos fracassos e cisões sempre ligados à história tumultuosa da Quarta Internacional depois de Trotsky, o nosso princípio orientador constante foi a luta pelo internacionalismo e pela Internacional, por um poder operário do tipo da Comuna, pela transição para além do capital e para além do Estado-Leviatã, para o comunismo mundial, o reino marxiano da liberdade. Nesta linha, no período recente, levantamos a questão central do poder do Estado em crise em todos os seus avatares, desde a revolta revolucionária de dezembro de 2008 até agora. Por esta razão, o EEK tornou-se alvo de ataques contínuos por parte do Estado capitalista. Em 2009, um ataque assassino da polícia de choque motorizada a um contingente do EEK numa manifestação quase matou uma conhecida combatente dos tempos da ditadura, a camarada Angeliki Koutsoumbou. Em 2013, o secretário-geral do EEK foi levado a julgamento pelo governo de direita, na sequência de uma ação judicial intentada pelo partido nazi “Aurora Dourada”, com a absurda acusação anticomunista e antissemita de “fomentar uma guerra civil para impor um regime judaico-bolchevique na Grécia”!!! Graças a uma campanha internacional de solidariedade, ganhámos o processo. Dez anos depois, após as eleições de 2023, o EEK volta a ser alvo de uma caça às bruxas orquestrada pelo Estado, pela imprensa burguesa e pelo governo reeleito da Nova Democracia. O nosso II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 35 “crime” foi denunciar um verdadeiro crime de Estado: em 18 de julho de 2023, a Rede Solidária de Clínicas Livres, animada pelo EEK e por ativistas independentes, organizou um poderoso evento em Atenas, com quase um milhar de pessoas, denunciando o naufrágio criminoso do “Adriana” perto de Pylos, em junho passado, quando sete centenas de migrantes, principalmente mulheres e crianças, morreram afogados e indefesos. Não há dúvida de que no período que temos pela frente haverá uma escalada no confronto entre as massas, a classe trabalhadora e as suas seções mais militantes de um lado, e do outro lado, o Estado capitalista, o governo de direita e as suas tropas paraestatais, fascistóides. Não se pode dar ao luxo de repetir a mesma “realpolitik” do reformismo “radical” que fracassou miseravelmente. Raízes de um fracasso Nos últimos trinta anos, após o colapso da União Soviética e os dias altos da ofensiva neoliberal e da globalização do capital financeiro, prevalece uma “desorientação do mundo” geral, para usar o conceito elaborado por Alain Badiou. Se a ridícula reivindicação inicial de Fukuyama de um “fim da História” foi abandonada até pelo seu iniciador, qualquer sentido de história, ou de orientação na história, é geralmente abandonado, substituído por um “consenso democrático” para um Eterno Retorno do Mesmo num mundo onde tudo muda continuamente para permanecer inalterado. A desorientação nas fileiras da esquerda é exacerbada pelo fato de todas as vias de ação política anteriormente conhecidas ou utilizadas, quer a via das reformas quer a via da revolução, parecerem 36 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) bloqueadas. O reformismo no período pós-Segunda Guerra Mundial esteve ligado ao “Estado-Providência” durante os “Trinta Anos Gloriosos” no quadro keynesiano do acordo de Bretton Woods, que o desmoronou na década de 1970. A social-democracia transformou-se na infame “Terceira Via” neoliberal de Tony Blair e dos eurocratas em Bruxelas, impondo não reformas, mas contrarreformas cruéis que destruíram todos os direitos dos trabalhadores e as conquistas de lutas anteriores. Por outro lado, a desintegração da União Soviética e a queda do chamado “socialismo realmente existente” afetaram profundamente não só o campo dos seus antigos apoiantes, mas também os seus críticos, mesmo aqueles que lutavam por uma alternativa revolucionária. Os principais pontos constantes da orientação política do século XX perderam-se. O Zeitgeist dominante afirma que a época das revoluções sociais chegou ao fim. A declaração de Enrico Berlinguer, o líder do PCI, o arquiteto do “compromisso histórico” com a direita e papa do eurocomunismo, de que “o círculo histórico aberto pela Revolução de outubro em 1917 foi definitivamente fechado” tornou-se o mantra da maioria da esquerda e da extrema-esquerda durante todo um período, especialmente desde 1991 até aos nossos dias. Recentemente, em dezembro de 2022, numa entrevista após a desastrosa cisão do NPA, François Sabado, dirigente histórico da LCR, mais tarde do NPA e, durante um longo período, do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU-QI), repetiu com aprovação e textualmente as palavras de Berlinguer sobre o “encerramento” do ciclo aberto pela Revolução de outubro... Quando uma nova maré de lutas radicais surgiu, impulsionada pela crise capitalista mundial, o duplo impasse tanto do “velho” II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 37 reformismo social-democrata como do “comunismo” tal como “o conhecíamos no século XX”, alimentou as tentativas de encontrar outro tipo de “terceira via” radical para além da reforma e da revolução. Esta ilusão pode explicar o grande entusiasmo inicial da esquerda na Europa e a nível internacional pelo Syriza e por Tsipras, bem como, mais tarde, a profunda desilusão com a capitulação em julho de 2015, os esforços para encontrar desculpas e justificações e, finalmente, o choque mortal do Waterloo eleitoral do Syriza em 2023. Foi um golpe esmagador nas ilusões que floresceram durante todo um período histórico. Isto não significa que tenham desaparecido automaticamente. As causas históricas mundiais da desorientação permanecem. Muito provavelmente, com o fracasso da antiga esquerda “radical” institucionalizada, a confusão prevalecente será agravada, pelo menos temporariamente. Todo um círculo de ascensão meteórica e queda precipitada de uma série de formações radicais de esquerda terminou de fato. Mas uma adaptação prolongada ao quadro capitalista, a fuga sistemática às questões estratégicas do poder político e da dominação de classe, a recusa em desafiar a “continuidade do Estado” permanecem. Os perigos desta longa adaptação da esquerda, mesmo dos seus sectores mais radicais, ao “consenso democrático”, ao quadro capitalista, ao próprio Estado, crescem imensamente a cada volta histórica da crise mundial em espiral Desorientação, guerra e internacionalismo em ação O dramático ponto de inflexão da história, a Zeitenwende da conflagração militar internacional no coração da Europa pelo 38 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) imperialismo da OTAN liderado pelos EUA contra a Rússia, foi um teste de colisão para todas as seções da esquerda internacional, incluindo todas as organizações e correntes que se dizem trotskistas ou que têm as suas origens no trotskismo e na Quarta Internacional. A grande maioria falhou o teste da história. O resultado político deste teste de colisão pode encontrar analogias com o que aconteceu durante as guerras mundiais do século XX: o colapso social-chauvinista da Segunda Internacional na Primeira Guerra Mundial, ou a capitulação perante o imperialismo “democrático” e a dissolução do Comintern por Stalin na Segunda Guerra Mundial. Agora, perante a guerra por procuração provocada pela OTAN na Ucrânia, a grande maioria da esquerda e da extremaesquerda colocou-se do lado da OTAN. O pretexto foi “a defesa da autodeterminação nacional do povo ucraniano”, enquanto o povo ucraniano é reduzido a carne para canhão do imperialismo ocidental e o seu país a um campo militar e protetorado da OTAN onde nenhuma decisão independente pode ser tomada sem as ordens de Washington. O pretexto ridículo de Biden de que a guerra é travada “para a defesa da democracia contra a autocracia de Putin [e Xi]” só poderia ser persuasivo para aqueles que estão totalmente subordinados a uma democracia burguesa moribunda - um termo facilmente adotado agora até pelos nazistas na Suécia ou pelos fascistas Fratelli d’Itália. Mas infelizmente entre aqueles que apoiam como “legítima” essa guerra por procuração estão a maioria do NPA, do SU-QI e a maioria das organizações que vêm da tradição de Nahuel Moreno, desacreditando o trotskismo no Ocidente e no Oriente. Opõem-se a uma resposta internacionalista revolucionária genuína ao desafio de uma II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 39 guerra imperialista que, abertamente, particularmente após as cúpulas da OTAN em Madrid e recentemente em Vilnius, está aumentando em todos os continentes do mundo. Outro grupo de partidos e organizações de esquerda finge manter uma posição “equidistante”, condenando tanto a OTAN como a Rússia. Apresentam a guerra como uma “guerra entre dois campos imperialistas” ou entre um imperialismo mais avançado dos EUA/OTAN e um “sub-imperialismo” russo, ou um “imperialismo periférico”, ou um “imperialismo em formação” ou apenas como “a autocracia do capitalismo oligárquico de Putin”. Na maior parte das vezes, o “imperialismo” é identificado com a política de expansionismo militar. Ou, as características do imperialismo resumidas por Lenine no seu famoso panfleto são retiradas do contexto como uma lista normativa, uma forma supra histórica sem conteúdo histórico específico. A sua análise marxista do imperialismo, que revela a sua determinação essencial, em primeiro lugar, como uma época, a última fase do desenvolvimento histórico do capitalismo mundial, a época do declínio capitalista, é ignorada. Algumas correntes apelam a uma insurreição simultânea contra a OTAN e o regime russo, reavivando uma velha fórmula levantada por uma oposição no Socialist Workers Party dos EUA em 1939 para uma “Insurreição em Duas Frentes”, justamente e duramente criticada por Trotsky (ver Em Defesa do Marxismo). Na Grécia, o KKE estalinista, que anteriormente seguiu cegamente durante décadas as diretivas de Moscou (incluindo as ordens do Kremlin que conduziram a revolução grega na década de 1940 à traição e à derrota), agora não só condena os “imperialistas americanos e russos” como também organiza manifestações que 40 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) começam primeiro em frente à embaixada russa em Atenas e depois se dirigem à embaixada dos EUA... Os centristas de Antarsya também veem na Ucrânia uma “rivalidade inter-imperialista”, condenando fortemente ambos os lados do conflito. Esta racionalização sem fundamento de “manter a mesma distância contra a OTAN e a Rússia capitalista de Putin” não tem consequências “neutras”. Reforça o impulso de guerra imperialista da OTAN, a propaganda de guerra e os planos de guerra, através de uma política que tenta neutralizar qualquer resistência popular antiimperialista e a mobilização revolucionária internacionalista da classe trabalhadora para derrotar a OTAN. Defendendo a sua posição “equidistante”, a direção da Antarsya sabotou e rejeitou, na véspera das eleições parlamentares de 2023 na Grécia, uma proposta (anteriormente bem recebida pela maioria dos delegados da Conferência da Antarsya em janeiro de 2023) para formar um bloco eleitoral contra a direita, todos os partidos burgueses e o Syriza, de Antarsya com o EEK, A proposta foi uma atualização nas novas condições do bloco Antarsya-EEK-lutadores independentes formado nas eleições de setembro de 2015, um bloco baseado em um programa eleitoral comum e plano de ação de classe, com total respeito à independência política e programas de todos os participantes. Mas em 2023, a guerra na Ucrânia tornou-se um casus belli para os líderes de Antarsya contra o EEK falsamente acusado de ser “pró-Putin” porque condena a OTAN e o imperialismo dos EUA como os instigadores da guerra e apela à derrota da OTAN. O EEK analisou cuidadosamente a guerra na Ucrânia antes do conflito e ao longo de todas as fases do seu desenvolvimento até à atualidade. Partilha a mesma linha com os seus camaradas internacionais II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 41 do Centro Socialista Internacional “Christian Rakovski”. O Centro Rakovski organizou com êxito, nos dias 25 e 26 de junho de 2022, uma Conferência Internacional Anti-imperialista Antiguerra, na qual participaram militantes de dezenas de partidos, organizações e tendências de esquerda de todos os continentes e onde se expressou democraticamente todo o espetro de pontos de vista sobre a guerra na Ucrânia, tendo a linha votada pela grande maioria sido definida no Manifesto da Conferência, que sublinha claramente: No contexto do impasse histórico em que se encontra o imperialismo, com a espiral sempre crescente da sua crise sistêmica mundial, após a implosão da globalização do capital financeiro, este acelera a sua ofensiva bélica para reabsorver totalmente os dois países onde a revolução socialista mundial tinha quebrado no passado os seus elos mais fracos, mas onde a revolução se voltou mais tarde para o caminho da restauração capitalista: Rússia e China. A derrota da guerra imperialista liderada pelos EUA/OTAN é a tarefa primária, necessária e urgente para todas as forças que lutam pela emancipação da escravidão capitalista e da servidão imperialista, em primeiro lugar a classe trabalhadora internacional e a sua vanguarda revolucionária. Nenhum comunista, nenhum socialista, nenhum combatente da luta antiimperialista, pode ser “neutro” ou “equidistante” na conflagração militar em curso que começou na Ucrânia [...] A nossa linha anti-imperialista não significa que abandonemos a nossa firme oposição aos restauracionistas capitalistas, aos oligarcas russos e ao bonapartismo de Putin. Foi o colapso da União Soviética e a viragem para a restauração capitalista que abriram as portas à ofensiva do imperialismo 42 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) e a uma guerra de fragmentação e colonização do antigo espaço soviético, bem como da China. [...] A única maneira de sair deste beco sem saída, para um desenvolvimento social renovado e vigoroso, tem de quebrar estes obstáculos internos e externos. É necessária uma mudança radical de orientação com a independência política, a iniciativa e a participação ativa das próprias massas trabalhadoras: uma nova viragem revolucionária da restauração capitalista para o caminho do socialismo. [...] Sem qualquer apoio a regimes restauracionistas, oligarcas ou bonapartistas, a classe trabalhadora internacional e a sua vanguarda não devem permanecer neutras face à agressão imperialista, mas lutar para derrota-la. Uma vitória militar do imperialismo liderado pelos EUA/OTAN contra a Rússia hoje (e a China amanhã) será uma catástrofe não só para os povos da Rússia, da Ucrânia e de toda a região euroasiática reduzida a semicolônias fragmentadas, mas para toda a humanidade. Uma derrota estratégica decisiva do imperialismo mundial, pelo contrário, não só fará avançar a luta mundial contra o capitalismo e o imperialismo, como criará as melhores condições para derrotar também a restauração capitalista. O internacionalismo em ação: o desafio do trotskismo A guerra imperialista liderada pelos EUA e pela OTAN na Ucrânia, com todas as suas causas, dimensões e implicações internacionais para o futuro da humanidade, traçou uma linha divisória mais profunda entre as forças da esquerda internacional, do movimento operário e de todos os movimentos de libertação e emancipação. A II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 43 necessidade de um internacionalismo socialista organizado e em ação é urgente. É necessário preparar uma Conferência do tipo Zimmerwarld para reagrupar uma vanguarda revolucionária de forças proletárias e anti-imperialistas para travar a guerra contra a guerra imperialista. Acima de tudo, o que é mais urgente é a Internacional revolucionária que está a faltar. Esta necessidade é cada vez mais reconhecida, embora em termos vagos, por muitos lutadores dedicados em todo o mundo. Continua a ser o maior desafio para o trotskismo mundial. O EEK numa resolução internacional votada no seu 17º Congresso em junho de 2021 e reconfirmada pelo seu 18º Congresso de dezembro de 2022 sublinha: Não pode haver política revolucionária e partido revolucionário dentro dos limites de um único país, tal como é impossível o “socialismo num único país”. O Partido Revolucionário constróise como uma parte da construção da Internacional revolucionária, de um Partido Mundial da revolução socialista permanente. (...) A Quarta Internacional foi fundada por Trotsky e seus camaradas no meio das derrotas mais colossais do movimento revolucionário internacional, quando era “a meia-noite do século”, sob as condições mais difíceis jamais enfrentadas pela vanguarda revolucionária que perseguia fielmente a Revolução de outubro. Era historicamente necessária, historicamente justificada e historicamente incompleta. O seu objetivo não era apenas lutar contra o stalinismo, mas completar, à escala mundial, o trabalho de transformação social iniciado em outubro de 1917. [...] A luta pela 4ª Internacional não pertence ao 44 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) passado, mas ao presente e ao futuro imediato. Ela permanece viva e atual. A sua atualidade assenta na base material da época imperialista do próprio declínio capitalista. ... apesar da fragmentação das forças da Quarta Internacional, o núcleo central que mantém vivo e torna vital o projeto da Quarta Internacional é precisamente a base histórico-material da teoria e da prática da Revolução Permanente. Continuamos nesta via revolucionária. Sem ultimatos sectários e isolamento nacional ou autoglorificação, sem adaptação oportunista à linha de menor resistência, continuamos a luta pela Internacional com confiança na vitória da revolução socialista mundial que começou em outubro de 1917! II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 45 Notas sobre o trotskismo nos Estados Unidos Paul LeBlanc1 Antes de iniciar esta breve análise do trotskismo nos Estados Unidos, vou oferecer três elementos de contexto. O estudo vai centrar-se nas deficiências que prejudicam a capacidade do trotskismo estadunidense de estar à altura do seu potencial como força política eficaz. Concluirei com possíveis soluções. Elemento Contextual #1: Parece que estamos num período de transição. Tal como há três décadas passamos da Era da Guerra Fria para a Era da Globalização, agora parece que entramos numa era de crise, de caos e de revelação. A estrutura e a dinâmica da economia global geram desigualdades, instabilidades e destruição crescentes que põem em jogo o futuro da civilização humana. Esta situação tem sido acompanhada por uma acentuada inclinação para a direita por parte de uma parte significativa da classe dominante, mas também no seio da população em geral - embora seja ferozmente combatida por muitos outros elementos dessa população. O extremismo de direita de Donald Trump é apenas uma manifestação de uma tendência maior e mais profunda. A erosão da qualidade de vida para uma parcela cada vez maior das maiorias trabalhadoras do mundo é acompanhada por um crescente autoritarismo, irracionalidade e violência. O mais grave de tudo, porém, é uma ameaça iminente à sobrevivência da humanidade: uma economia de mercado voraz, concebida para enriquecer ainda mais às elites incrivelmente ricas, 1 Professor Emérito de História; autor de livros sobre o movimento operário, Lenin, Luxemburgo e Trotsky; militante de longa data e um dos fundadores da extinta ISO. Contato: Paul.LeBlanc@laroche.edu 46 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) está intimamente ligada à imensa destruição ambiental que envolve o nosso mundo. A catástrofe ambiental em cascata - que já começou deve ser um foco central para os revolucionários sérios, um assunto ao qual voltaremos na conclusão destas observações. Elemento Contextual # 2: Tem havido uma erosão profunda e um colapso parcial do movimento operário organizado. O movimento operário dos Estados Unidos persiste, em grande medida, como uma casca burocrática e em grande parte ineficaz comparado ao que já foi. Relacionado com isto está uma desintegração generalizada e o derretimento da esquerda organizada tradicional nos Estados Unidos. Isto leva a uma erosão dramática da fonte organizada de perspectivas políticas práticas, acúmulo de experiência, e quadros e organizadores experientes. No final do século XX, as duas grandes correntes da esquerda eram essencialmente reformistas, enredadas no Partido Democrata, liberal capitalista. Uma era a cena socialdemocrata, no centro do qual se encontrava o Partido Socialista. A outra era a cena stalinista, cujo núcleo era o Partido Comunista. Além disso, havia uma série de marxistas independentes, pacifistas de esquerda, trotskistas e aspirantes a trotskistas, uma outrora forte maré de maoístas e ondas sucessivas de uma “nova esquerda” muito ampla, algo nebulosa, mas vibrantemente ativa. Penso que este conjunto multifacetado ganhou coerência e peso em grande parte devido à sua complexa inter-relação com o movimento mais vasto da classe trabalhadora. Com a transição da Era da Guerra Fria para a Era da Globalização, com o desvanecimento e a erosão da subcultura de esquerda, com base em experiências passadas, e com o envelhecimento e o abandono II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 47 de quadros e organizadores, as organizações da esquerda tradicional revelaram-se incapazes de se renovar e reconstituir. Elas continuam a existir, na melhor das hipóteses, como remanescentes fragmentários. Elemento Contextual #3: A atual era de crise, caos e desagregação teve inevitavelmente um impacto radicalizador em novas camadas de jovens que fazem essencialmente parte de uma classe trabalhadora precária, mas em expansão. Isto se refletiu na insurgência do Occupy Wall Street, na insurgência do Black Lives Matter, numa insurgência multifacetada de libertação das mulheres e em novas manifestações de organização sindical e ações de greve. Refletiu-se nas campanhas de Bernie Sanders e noutros esforços eleitorais substanciais para trazer a ideia socialista para o mainstream da política dos EUA, geralmente no contexto do Partido Democrata. Também se refletiu no crescimento substancial dos Socialistas Democráticos da América (DSA) - com um número de membros de 100.000. Embora profundamente influenciado pelo reformismo socialdemocrata, o DSA tem sido um ímã para uma variedade de correntes radicais. Uma dimensão importante dessa radicalização é, no entanto, a relativa ausência de experiência, competências e quadros associados à subcultura de esquerda de épocas anteriores. Esse fato limita por vezes a eficácia e a durabilidade dos esforços atuais. Chegou o momento de admitir as limitações da minha própria experiência. Nos anos 1960, eu fazia parte da nova esquerda. No início da década de 1970, passei a fazer parte do movimento trotskista. Durante dez anos estive ativo na seção estadunidense da Quarta Internacional, o Socialist Workers’ Party [Partido dos Trabalhadores Socialistas] (SWP) – a essa altura (com 2.000 membros) a maior e mais eficaz organização trotskista, cuja continuidade remontava aos 48 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) anos 1930, 1920 e antes. Havia outros rompimentos e fragmentos que se identificavam como trotskistas - alguns eram seitas relativamente estéreis, outros eram melhores do que isso, mas tenho menos informações sobre eles. Nos anos 1980, a minha filiação terminou quando se deu uma onda de expulsões no SWP, uma vez que a sua nova direção abandonou o trotskismo numa adaptação extrema ao castrismo. Atualmente, existe como uma pequena seita não trotskista, bastante irrelevante. Após a minha expulsão, adquiri experiência em vários rachas do SWP - brevemente na Socialist Action [Ação Socialista] (hoje apenas um punhado de pessoas); depois, durante vários anos frutíferos e enriquecedores, na modesta Tendência QuartaInternacionalista (nunca superior a 80 camaradas, que se dissolveu formalmente em 1992); e, finalmente, durante dezesseis anos de experiência bastante problemática, no grupo Solidarity [Solidariedade], que nunca chegou a ter mais de 200 membros. Em 2009, decidi juntarme àquela que era, na altura, a maior e mais vibrante organização trotskista dos Estados Unidos, a Organização Socialista Internacional (ISO), com mil membros. Permaneci até ao seu colapso em 2019, em grande parte sob o peso das suas próprias contradições. Atualmente, sou um membro relativamente inativo de um dos fragmentos pósISO, o Tempest Collective, e também do DSA (para o qual alguns desses fragmentos gravitaram). Continuo a identificar-me com a Quarta Internacional e mantenho laços com o Instituto Internacional de Investigação e Educação (com sede em Amsterdã). Relembrando: as organizações ainda existentes que mencionei incluem: o ex-trotskista Socialist Workers Party (não mais de 100 membros); Socialist Action (não mais de 50 membros); Solidarity (não mais de 200 membros); e o Tempest Collective (não mais de 100 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 49 membros). Dois outros grupos trotskistas parecem dignos de consideração. Um, com talvez 1000 membros, chama-se Socialist Alternative e é mais conhecido por eleger e reeleger Kshama Sawant para o conselho municipal da cidade de Seattle. Outra parece ser menor, reunida em torno da publicação online Left Voice, identificando-se com uma entidade chamada “Fração Trotskista - Quarta Internacional”, que tem organizações-membros significativas na América Latina. Não tenho conhecimentos suficientes sobre nenhum destes grupos. Há pelo menos mais dez grupos que se consideram trotskistas, com membros que variam entre 10 e 100. É possível argumentar que alguns deles são mais ponderados e sérios do que outros - mas nenhum deles pode gabar-se de ter qualquer impacto político substancial. Estas incluem: a Tendência Bolchevique, a Liga Comunista dos Trabalhadores Revolucionários (associada à publicação Spark), o Partido Socialista da Liberdade, o Comitê Trotskista Internacional, a Liga pelo Partido Revolucionário, o Organizador Socialista, o grupo Revolução Socialista e a Organização Socialista dos Trabalhadores. Duas entidades que se identificam como “trotskistas” - também com quantidade de membros minúscula - distinguiram-se por um sectarismo particularmente tóxico. Uma é a Liga Espartaquista, que fez um valioso trabalho de arquivo, mas parece ter em grande medida se desintegrado ao fim de seis décadas. O Partido Socialista para a Igualdade [Socialist Equality Party] (outrora conhecido como Liga dos Trabalhadores) está associado a um site interessante (o World Socialist Website [WSWS]) e publicou alguns livros valiosos - especialmente do falecido historiador dissidente soviético Vadim Rogovin - mas também tem pouco para mostrar após sessenta anos de existência. 50 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Uma caraterística debilitante da maior parte destes grupos (partilhada com muitos pretensos grupos “leninistas” de orientação maoísta ou estalinista) é a inclinação de cada um deles de ver a si próprios como a vanguarda revolucionária, ou como o núcleo de uma futura vanguarda revolucionária - como o guardião da verdadeira tradição marxista revolucionária, da política verdadeiramente correta, em torno da qual o futuro partido revolucionário tem de ser construído, se for, de fato, um partido revolucionário. Isto gera dois resultados problemáticos. Um resultado problemático é que a liderança da organização, e a sua cultura política interna, funcionam para preservar - por todos os meios necessários - o que é considerado a política verdadeiramente correta. Isto, com demasiada frequência, afasta o espírito crítico, a abertura, a criatividade e até a democracia interna que são essenciais para um partido verdadeiramente revolucionário. Outro resultado problemático é que, demasiadas vezes - em nome da pureza revolucionária e para assegurar um partido revolucionário incorrupto no futuro - a “vanguarda” autodeclarada cria barreiras entre si e as organizações que são vistas como politicamente defeituosas, ao mesmo tempo em que se abstém de construir lutas de massas reais e efetivas dos trabalhadores e dos oprimidos. Para alguns grupos que se consideram trotskistas - nos Estados Unidos, mas também noutros lugares - o foco dos camaradas tem sido, basicamente, desenvolver pensamentos revolucionários e articular “posições” revolucionárias. Isto pode ser feito argumentando (para aqueles que querem ouvir) contra a classe dominante capitalista, ou contra grupos não-revolucionários, ou contra outros grupos que se pretendem revolucionários que têm pensamentos e posições um pouco II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 51 diferentes. Os camaradas discutem estes assuntos nas reuniões de membros, distribuem o jornal da organização, trabalham em mesas de literatura, organizam fóruns e grupos de estudo. Se for necessário organizar comícios ou manifestações, isso é frequentemente feito através de formações auxiliares controladas pela própria organização revolucionária. Tudo isto se traduz na criação de um pequeno universo sectário próprio. Há vários anos, o falecido John Molyneux descreveu uma orientação muito mais saudável, preferida pela Socialist Workers Network [Rede dos Trabalhadores Socialistas] da Irlanda: “o envolvimento real com as lutas cotidianas dos trabalhadores nos locais de trabalho, nos sindicatos, nas comunidades e nas campanhas”. Molyneux explicou que “este envolvimento não pode ser apenas ao nível das palavras, através do programa de transição correto, etc. Tem de ser real, cara a cara, no dia a dia”. Ele utilizou uma expressão irlandesa para explicar que “essa interação ‘coloca em ordem’... tanto os dirigentes como os membros. Cria uma pressão contrária à exercida pelo capitalismo e pelos partidos reformistas que se baseiam na passividade da classe trabalhadora”. Mais do que isso, “inibe a mentalidade de seita, dissuade uma liderança arrogante (porque os camaradas de base sentem-se muitas vezes com mais poder para defender a sua posição em questões concretas e imediatas) e ajuda os membros do partido a aprenderem a falar com as pessoas da classe trabalhadora, e não apenas uns com os outros. Dá vida ao lago estagnado da vida da seita”. Esta abordagem parece-me tão aplicável aos Estados Unidos como à Irlanda, mas tal abordagem não tem sido a norma entre as organizações trotskistas estadunidenses no século XXI. A possibilidade de um movimento de avanço para o socialismo 52 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) (ou de um deslize para a barbárie), no meu país e em muitos outros, está sendo criada pelo início de uma catástrofe climática em cascata. Para evitar o pior desta calamidade, de acordo com o Painel Internacional das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (IPCC), as emissões globais de carbono devem ser reduzidas para metade até 2030 e para zero até 2050. O capitalismo global gerou esta crise. Alguns dos seus representantes negaram a crise e outros demonstraram uma capacidade de retórica brilhante acompanhada de compromissos falsos incapazes de atingir os objetivos necessários. Há vários anos, o marxista britânico Alan Thornett enfatizou o que deveria ser senso comum para qualquer marxista sério: “O ambiente é uma questão tão importante para a classe trabalhadora como os salários, as condições de trabalho ou a saúde e segurança. Não se trata de um complemento, de um extra opcional. A realidade inevitável é que, no final, não podemos defender nada, nem ganhar nada, nem construir uma sociedade socialista, num planeta morto.” Os impactos das crescentes catástrofes ambientais trarão sofrimento e morte a milhões de pessoas nas próximas décadas. Este fato tem o potencial de fazer com que massas de pessoas saiam da passividade, da apatia e da complacência. O fraco movimento trotskista nos Estados Unidos não provou ainda ser capaz de fornecer liderança frente a essa realidade. Não há qualquer esforço para elaborar um programa de transição que aborde a atual catástrofe de uma forma que defenda os interesses da maioria da classe trabalhadora. Analistas fora do movimento trotskista, como Naomi Klein, apelam a um New Deal Verde que vá nesta direção. “Ao enfrentar a crise climática”, argumenta Klein, “podemos criar centenas de milhões II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 53 de bons empregos em todo o mundo, investir nas comunidades e nações mais sistematicamente excluídas, garantir cuidados de saúde e infância, e muito mais. O resultado destas transformações seriam economias construídas para proteger e regenerar os sistemas de suporte de vida do planeta e para respeitar e sustentar as pessoas que deles dependem”. Esta abordagem de transição combina múltiplos objetivos: as pessoas antes do lucro, casas e comunidades boas para todos, cuidados de saúde para todos, educação para todos, sistemas de trânsito e de comunicação para todos, alimentos nutritivos para todos, acesso a cultura e recreação para todos, meios de expressão cultural para todos, liberdade genuína e justiça real para todos. Estas reivindicações, que partem das condições atuais e da consciência de camadas cada vez maiores da juventude mundial, conduzem inevitavelmente a uma contestação fundamental do sistema de poder existente. Resta saber se os trotskistas dos Estados Unidos e de outros países serão capazes de responder a esse desafio. 54 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Somos imprescindíveis na construção de uma nova utopia revolucionária Ana Cristina Carvalhaes1 Começo saudando calorosamente aos que estão assistindo aqui e online a este seminário. Meus parabéns ao Comitê Mario Pedrosa pela organização deste encontro tão interessante. Esta iniciativa tem pelo menos dois grandes méritos. O primeiro é de relembrar Leon Trotsky e seu legado, à luz de uma reflexão contemporânea, porque, afinal de contas, esse legado é centenário e o mundo, que já havia mudado bastante desde os anos 20 a 40 do século passado, passa novamente por enormes e traumáticas transformações. Em outras palavras, é uma oportunidade valiosa de refletir e trocar ideias sobre o que esse legado programático pode significar 85 anos depois da fundação da IV Internacional e a 100 anos exatos da Oposição de Esquerda na então União Soviética. O segundo mérito, talvez maior do que o primeiro, é a ocasião de nos reunirmos entre vários grupos trotskistas, organizações de vários países, para nos ouvirmos. É um exercício de escuta e compreensão essencial em tempos de contínua fragmentação e reorganização da esquerda socialista. Os trotskistas temos grande tradição de fragmentação, fomos assim “pioneiros” de uma tendência que se aprofundou e acelerou enormemente nos movimentos de explorados e oprimidas e nos partidos de esquerda depois das quedas dos regimes do Leste e da URSS – devido às crises programáticas e políticas trazidas 1 Membra da direção internacional da Quarta Internacional (“Secretariado Unificado”). Contato: anaccarvalhaes@gmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 55 pelo fim da Guerra Fria. Assim, a possibilidade de dialogarmos, pelo menos entre os dispostos a isso, pode ser uma grande contribuição ao combate à fragmentação, na busca por reaproximações, diálogos permanentes, unidades pontuais e unificações. Sobre o objetivo desta mesa, de panorama do trotskismo no mundo: se bem é ilustrativo sabermos onde essa ou aquela corrente atua, o fundamental é compreendermos que somados todos os trotskistas – e mesmo somados com setores da esquerda radical que aderem às bandeiras programáticas que defendemos – ainda somos extremamente pequenos e frágeis diante dos desafios do nosso tempo. Somados todas e todos, estamos muito aquém da dimensão dos desafios e das tarefas que nos colocam a presente crise do capitalismo, o novo momento histórico e a crise das alternativas revolucionárias. Represento aqui a IV Internacional herdeira da reunificação de 1963, que apesar do nome não se considera a única. Represento a tradição de Pierre Frank, Ernest Mandel, Livio Maitan, dos velhos Cannon e Hansen, do grande SWP estadunidense dos anos 50 a 70, de Daniel Bensaid, Alan Krivine e Michael Löwy. Representamos hoje o marxismo aberto, da incerteza, e disposto a sínteses e aglutinações, imprescindíveis num período histórico em que se encurtam os tempos para revoluções e sobrevivência da humanidade. A meu ver e de muitos camaradas, o trotskismo internacional está dividido entre dois grandes campos. O primeiro é daqueles que de alguma maneira, no que seria um cacoete das atuações no século XX, se autoproclamam como os únicos revolucionários em seus países ou no mundo todo. E que, por uma concepção de direção revolucionária autossuficiente, desligada dos processos reais, consideram-se detentores do programa pronto para a revolução, com grandes dificuldades para a disputa de 56 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) setores de massa e de unidades táticas com outras forças de esquerda em prol dessa unidade. Há felizmente também o campo, no qual se situa a IV Internacional atual – e que cresce apesar das dificuldades do período e das conjunturas –, que detém uma concepção de revolução mais complexa, de baixo para cima, resultante da radicalização das lutas e da auto-organização independente dos explorados e oprimidas; um campo que vê a necessidade imperiosa de superarmos a fragmentação, seja entre nós, seja como novos agrupamentos produzidos pelo movimentos sociais mais radicais, para conseguir a capacidade de falar com setores de massas, disputar orientações dos conflitos e influir nos rumos dos processos revolucionários reais. Um campo que não considera que somos os únicos revolucionários e que nosso programa, nossas propostas, não são acabadas e intocáveis. A partir da certeza de que os grandes dilemas se resolvem ou se acirram com as provas da práxis, vejamos traços fundamentais da situação internacional. Definimos a situação atual como de uma crise multidimensional do capitalismo, inédita na história do sistema. Já houve crises graves como aquela dos anos 20 a 40 do século passado, período que Hobsbawn chamou de “Era da Catástrofe”. A atual parece ser uma nova “era da catástrofe”, um novo período histórico, para nós aberto a partir do crash e da recessão de 2008 e acirrado com a pandemia a partir de 2020. Nesse período, várias crises coincidem e se articulam, potencializando umas às outras: Em primeiro lugar, destaca-se a ameaçadora crise ambiental (e nisso a situação é bem diferente da de 100 anos atrás), crise climática e ecológica. Estamos chegando perto de um momento em que se reduzem imensamente os limites para a sobrevivência sobre a terra II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 57 da espécie humana, por responsabilidade de um sistema econômico e social que acredita na possibilidade do crescimento infinito e que é baseado nos combustíveis fósseis – o que tem trazido já consequências brutais em todos os cantos do planeta. Grandes inundações, grandes enchentes, incêndios florestais, frios e calores extremos: os últimos dois anos de estudo atento dos sistemas climáticos indicam que a velocidade do aquecimento global e seus desastres é o dobro do que se previa para esta década. É uma crise produzida pelo capital, com impactos potencializadores sobre as desigualdades – sociais, raciais, de gênero – com migrações maciças, epidemias e pandemias. Nós acreditamos que é também tarefa da esquerda e dos revolucionários em particular dar resposta a ela na articulação evidente com as outras esferas da crise. A segunda esfera é a da crise econômica. A partir dos debates entre os mais destacados economistas marxistas do mundo sobre o que vem acontecendo desde 2008, nos parece que se abriu ali um novo momento de crise aguda que se reflete agora numa dificuldade imensa para a recuperação das taxas de acumulação em níveis pré-crash, ou seja, há tremendas barreiras endógenas ao próprio sistema para manter e recuperar ritmo de crescimento capaz de voltar a garantir taxas de lucro crescentes. O que se expressa em estagflação ou crescimento baixo e desigual de continente para continente. Ademais, a recessão de 2008-2010 trouxe consigo uma consciência geral nas burguesias globais, particularmente no capital financeiro internacional, de que uma nova crise daquele tipo não poderá contar mais com o remédio dos grandes resgates estatais utilizados há 15 anos para salvar sistemas bancários, empresas industriais e de serviços relevantes. Assim, o capitalismo “foge para a frente”, insistindo no receituário neoliberal: 58 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) a continuidade dos planos de ajuste fiscal brutais, da destruição dos sistemas de proteção social, privatizações generalizadas, espoliação de territórios, da natureza, dos bens comuns e de direitos dos explorados, com perspectiva somente de agravamento da pobreza e das desigualdades de todo tipo. As grandes incertezas sobre o futuro do sistema abertas com 2008 estão na raiz também da crise política, a crise evidente dos regimes democrático-burgueses, em particular ocidentais. O fenômeno a que me refiro vem se expressando em particular a partir de 2016, com a vitória do Brexit e de Trump. Há um avanço de uma constelação de novas forças de extrema direita no mundo, que talvez ainda não tenham atingido seu auge. Na Europa, elas governam na Itália, cogovernam na Holanda e na Suécia, estão ganhando força na Alemanha e podem assumir o governo da França. Na Europa Central e Oriental, além da crescente fascistização da Federação Russa desde a invasão da Ucrânia, o partido de extrema direita Fidesz governa a Hungria desde 2010, e o partido PiS, que incorpora a extrema direita polonesa, esteve no poder por oito anos; enquanto isso, na Bulgária, o partido conservador populista (Smer-SD) venceu as últimas eleições legislativas e uniu forças com a extrema direita (SNS) para governar. O autoritário Erdogan continua no poder na Turquia. Na América Latina, após o desastre de Bolsonaro e o golpe de Dilma Boluarte no Peru há dois anos, o outsider Milei conquistou a Casa Rosada na Argentina, declarando guerra à morte contra um dos movimentos populares e de trabalhadores mais combativos e organizados. Eles ameaçam os Estados Unidos e o mundo, com a possibilidade de Trump retomar a Casa Branca. Essas são ameaças reais na Ásia, onde Bongbong Marcos, filho do ditador Ferdinand Marcos, governa as Filipinas, e II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 59 o xenófobo e antimuçulmano hindu Narendra Modi controla a Índia. O avanço dessa constelação de extremas direitas é o resultado de décadas de crise das democracias (neoliberais) e de suas instituições, devido ao aumento das desigualdades e à incapacidade desses regimes de dar respostas satisfatórias às aspirações dos povos e dos trabalhadores. As raízes profundas da nova extrema direita são o desespero dos setores sociais empobrecidos diante do agravamento da crise, a desintegração do tecido social imposta pelo neoliberalismo, combinada com os fracassos das “alternativas” representadas pelo social-liberalismo e pelo “progressismo”. Como resultado, frações da burguesia em todo o mundo passaram a apoiar esses neofacismos como uma solução político-ideológica capaz de “fechar” regimes, controlar movimentos de massa com mão de ferro, impor ajustes brutais e desapropriações, a fim de restaurar as taxas de acumulação capitalista. O exemplo mais notável dessa divisão é a polarização entre o Trumpismo (que tomou de assalto o Partido Republicano) e, por outro lado, o Partido Democrata nos Estados Unidos. É questão de vida ou morte que os trotskismos estejam na vanguarda da luta contra os fascismos contemporâneos, com todas as políticas unitárias necessárias para derrotar as extremas direitas, mas sem comprometer com isso nosso combate histórico pela independência organizativa e política dos explorados e oprimidos. O quarto elemento desse quadro é a resistência dos povos e trabalhadoras, em luta constante pela preservação e avanço de suas condições de vida. Após a crise de 2008, houve um ressurgimento das mobilizações de massa em todo o mundo. Primavera Árabe, Occupy Wall Street, Plaza del Sol em Madri, Taksim em Istambul, junho de 2013 no Brasil, Nuit Debout e coletes amarelos na França, mobilizações em 60 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Buenos Aires, Hong Kong, Santiago e Bangkok. Essa primeira onda foi seguida por uma segunda onda de revoltas e explosões entre 2018 e 2019, interrompida pela pandemia: a rebelião antirracista nos EUA e no Reino Unido após a morte de George Floyd, mobilizações de mulheres em muitas partes do mundo, incluindo a luta heroica das mulheres no Irã, revoltas contra regimes autocráticos, como na Bielorrússia (2020), uma mobilização em massa de camponeses indianos que triunfou em 2021. Após a pandemia, destacam-se os três meses de resistência na França contra a reforma previdenciária de Macron e o levante popular, estudantil e dos trabalhadores na China que ajudou a derrotar a política Covid Zero do PCC. Nos EUA, o processo de sindicalização e luta continua nos novos ramos de produção (Starbuck’s, Amazon, UPS), com o surgimento de novos processos antiburocráticos. Finalmente, mas não menos importante, há um aprofundamento da desordem no sistema interestatal capitalista, ou uma reconfiguração da ordem mundial em andamento. Essa nova situação já traz consigo mais conflitos interimperialistas, guerras colonialistas (como a de Israel contra Gaza) e a retomada da corrida nuclear, o que torna o mundo mais conflituoso e perigoso. A instabilidade geopolítica está se agravando, ao mesmo tempo em que expõe o enfraquecimento relativo dos Estados Unidos, o poder hegemônico – e não há nada mais perigoso do que um hegemon encurralado. Isso é combinado com a afirmação do imperialismo russo, e de um imperialismo emergente, como a China. É uma reconfiguração em andamento em um contexto global de imensa instabilidade, sem nada consolidado. De qualquer forma, a unipolaridade do bloco sob a liderança dos EUA (após o colapso da URSS) não existe mais. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 61 Estamos testemunhando a proliferação de situações de guerra em todo o mundo, como as da Ucrânia, da Palestina, da Síria, Líbano, Iêmen, Sudão e o conflito no leste da República Democrática do Congo. Além disso, observamos guerras civis abertas ou encobertas, como o caso de Mianmar, como exemplo da primeira, e a luta constante dos Estados latino-americanos contra organizações criminosas e, por sua vez, destas contra as populações, como é evidente no México, no Brasil e no Equador. Essa situação conflituosa avança na geoeconomia e na geopolítica da África, onde a Rússia compete econômica e militarmente com a França e os Estados Unidos, especialmente nas antigas colônias de língua francesa da África Ocidental. Por sua vez, a China continua a tentar aumentar sua influência econômica em todas as partes do continente africano e na América Latina e Caribe. Estamos assistindo, na última década, a uma disputa hegemônica baseada na rivalidade entre o velho sistema imperial – o bloco dos EUA, com os imperialismos europeu, da província canadense, do Japão, da Coreia do Sul, da Austrália – e o bloco emergente que está sendo construído em torno da China. O bloco chinês em expansão inclui a Rússia (apesar de seus interesses particulares e contradições com Pequim), a Coreia do Norte, muitas repúblicas da Ásia Central, novos amigos entre os califados do Oriente Médio (Arábia Saudita, Catar, Bahrein, Irã). A natureza do “grande salto” chinês dos últimos 30 anos foi capitalista. Herdeiro de uma grande revolução social e de uma virada para a restauração a partir da década de 1980, essencial para o redesenho neoliberal do mundo (realizado em parceria com os EUA e seus aliados), o emergente imperialismo chinês tem características peculiares, como todos os imperialismos. Ele se baseia em um capitalismo estatista 62 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) planejado, centralizado no PCC e nas Forças Armadas (PLA, People’s Liberation Army): um capitalismo desenvolvimentista no qual a maioria das grandes corporações são joint ventures entre empresas estatais ou controladas pelo Estado e empresas privadas. Nos últimos 10 anos, a China deu um salto na exportação de capital: adquiriu grandes participações em empresas de energia, mineração e infraestrutura em países neocoloniais (Sudeste e Ásia Central, África e América Latina) e se tornou o maior depositante e registrador de patentes do mundo. A partir de 2022, a China é uma exportadora líquida de capital (exporta mais capital do que importa). Ela vem investindo cada vez mais em armamentos e alertando com veemência crescente que há uma linha (ou linhas) – Taiwan e o Mar do Sul – que os rivais e os Estados mais fracos não devem cruzar. Ela ainda não invadiu nem colonizou “outro país” segundo o modelo europeu ou norte-americano, embora sua política em relação ao Tibete e a Xijiang (e aos pequenos territórios historicamente em disputa com a Índia e o Butão) seja essencialmente colonialista. A Rússia de hoje é o estado resultante da destruição maciça das fundações da antiga União Soviética e da restauração caótica e não centralizada que ocorreu no país, com base na aquisição de empresas antigas e novas por burocratas que se tornaram oligarcas. Na virada do século, Putin e seu grupo, oriundos dos antigos setores de espionagem e serviços repressivos, elaboraram o projeto de recentralização do capitalismo russo, usando relações bonapartistas entre oligarcas e uma versão do século XXI da antiga ideologia nacional-imperialista da Grande Rússia. Isso se tornou o principal instrumento para reafirmar o capitalismo russo na competição com outros imperialismos e para aumentar qualitativamente a repressão aos povos da Federação, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 63 incluindo o povo russo. Uma derivação muito preocupante desse novo panorama internacional, no terreno da esquerda, em particular do Sul Global, de indivíduos e correntes que tomam partido automático em favor de Rússia e China, como se estas fossem alternativas ao imperialismo estadunidense e aliados. O raciocínio subjacente desse maniqueísmo é a interpretação de que essa nova “multipolaridade” seria melhor que a anterior “unipolaridade” sob jugo dos EUA, e de que se justifica estar no “campo” da Rússia e da China contra o campo do “imperialismo principal”. Um dos reflexos mais desastrosos dessa leitura equivocada da realidade é a ficção de que a China ainda seria um país socialista. Outra expressão desse “campismo” é o posicionamento a favor de Putin – que nada tem a ver com a esquerda e perpetra uma guerra imperialista contra Ucrânia, ademais de chefiar um regime cada vez mais bonapartista. Depois de tantos anos de derrota do que havia de socialismo real, as novas gerações perdem a noção do que foram aquelas sociedades e estados, ficam sem parâmetro. Assim, muitos jovens ativistas são presas ideológicas dos que defendem a China como “alternativa” desenvolvimentista, ou diretamente socialista, ou dos que defendem Putin contra a Ucrânia porque Putin é inimigo do imperialismo estadunidense. Essa deturpação teórico-política também tem raízes no retrocesso ideológico brutal provocado por 40 anos de neoliberalismo. Neste mundo em crise multifacetada, qual é o papel dos trotskistas? Por que ainda somos imprescindíveis? Creio na necessidade do trotskismo, em primeiro lugar, pelo instrumental teórico-político marxista original, dialético, aberto, capaz de dar base à compreensão da atual complexa situação do sistema e dos desafios que nos coloca 64 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) esta crise. Em segundo lugar por nossa tradição comunista de crescer colados às lutas dos explorados e de todos os setores oprimidos, para nelas estarmos na vanguarda da defesa da independência política e organizativa dos explorados frente às forças dos exploradores e seus estados. Não somos os únicos revolucionários. Encaramos nossa construção como um processo complexo que supõe inserção nas lutas dos explorados e oprimidas, nas quais nos aproximamos de outras correntes igualmente revolucionárias e de setores radicalizados dos mesmos movimentos operário, popular, feminista, antirracista, camponês e de povos originários. A IV Internacional defende e põe em prática a possibilidade (às vezes necessidade, devido às legislações restritivas) de fazer parte de partidos de esquerda mais amplos, em aliança com setores reformistas – que nos dão a possibilidade de dialogar com setores de massa. Seja em alianças com outros setores da esquerda, influência que nos tire dos guetos e nos permita debater publicamente nossas propostas contra a extrema direita, contra o neoliberalismo, contra o desastre climático, em favor de uma nova e imprescindível utopia. O socialismo que queremos e pelo qual dialogamos com outras forças não se baseio nem no suposto modelo chinês, nem no norte-coreanos, nem mesmo exatamente no que foi a União Soviética (muitíssimo menos a Rússia restaurada e imperialista do Bonaparte Vladimir Putin). A ameaça do colapso climático nos exige rechaçar os paradigmas consumistas, produtivistas, “desenvolvimentistas” e de desperdício. Estou convencida que temos o papel imprescindível de contribuir com a construção coletiva dessa nova utopia: um socialismo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 65 de baixo para cima, em que os ricos decreçam para que os pobres possam crescer, um socialismo em que a natureza e toda forma de vida valham mais que os lucros de bilionário, um ecossocialismo assentado na auto-organização democrática dos explorados e oprimidas. 66 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky, Cuarta Internacional y la guerra imperialista Jorge Altamira1 Es incuestionable que el tema excluyente para internacionalistas y partidarios de reconstruir la IV Internacional – el legado fundamental de León Trotsky – es, en la situación histórica presente, la guerra imperialista mundial. La cuestión de la guerra, la expresión más alta de la explosión de las contradicciones capitalistas, ha sido siempre decisiva en la historia del movimiento obrero internacional. Ha sido el impulso fundamental para el surgimiento de la I° Internacional (Riazanov) y de la Internacional Comunista, y de la proclamación de la IV° Internacional. Ha sido el centro del debate en los congresos de la II° Internacional entre las tres corrientes que partieron hacia rumbos estratégicos diferentes en la primera guerra mundial - el socialimperialismo, el centrismo y el bolchevismo La guerra mundial que se desarrolla en el presente entre la Otan y Rusia se inscribe en la agenda histórica del pasaje del capitalismo de libre competencia al imperialismo. No es por lo tanto una cuestión de raíz ‘geopolítica’ ni siquiera para los Estados Mayores. Es la culminación necesaria de las contradicciones explosivas del capitalismo agonizante o en transición. La guerra no es la expresión de una tendencia a la extensión territorial de una o varias potencias imperialistas, porque su base histórica es el capital financiero. El período de agregación y desagregación territorial que caracterizó a la formación de los estados nacionales, ha concluido hace largo tiempo. Las guerras imperialistas son la expresión de la contradicción entre la internacionalización 1 Dirigente de Politica Obrera (Argentina). Contato: jorgaltamira@yahoo.com.ar II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 67 alcanzada por las fuerzas productivas, de un lado, y el marco histórico agotado de los estados nacionales. La formación del imperialismo y las guerras imperialistas constituyen recursos históricos del capital para contrarrestar la tendencia descendiente de la tasa de ganancia, el bloqueo a la acumulación capitalista y la tendencia a la disolución del capitalismo mismo como modo de producción social. La guerra de la Otan y Rusia, y la preparación sistemática de la Otan de la guerra contra China, debe ser colocada en una perspectiva histórica más amplia que la que ofrecen la combinación de peculiaridades de este conflicto. La guerra que se desarrolla en Europa e incluso más allá de ella es la expresión de este fenómeno de conjunto. Marca, asimismo, un giro estratégico en la crisis mundial abierta por la disolución de la Unión Soviética o, en palabras de Kissinger y del alemán Scholz, “un cambio de época” (la expresión fundamental de Lenin para caracterizar la primera guerra mundial). La autonomía nacional de Ucrania, que no consiguió pisar terreno firme desde su separación de la URSS, ha quedado definitivamente comprometida – lo contrario de lo que sostienen quienes apoyan a la Otan. Ucrania se ha convertido en una colonia económica, política y militar de la Otan – muy lejos de una autonomía nacional. El fondo BlackRock se ha convertido en la caja financiera de una dudosa reconstrucción de Ucrania, siempre y cuando logre confiscar en su beneficio las reservas internacionales de Rusia congeladas por la Reserva Federal y el Banco de Inglaterra. Se trata de la misma corporación financiera a la que la Reserva Federal ha entregado el manejo del mercado de la deuda pública de Estados Unidos. Entre la dependencia de la Otan, por un lado, o la partición de su territorio por parte de Rusia, del otro, Ucrania sólo encontrará 68 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la ruta de la autonomía nacional por medio de la derrota de ambos bandos en esta guerra, o sea por medio de una revolución socialista internacional. Guerra y crisis mundial La curva de la declinación del capitalismo desde finales de la década de los 60, luego de haber concluido largamente la reconstrucción de la última posguerra, ha sido documentada sólidamente. Ese período de ‘reconstrucción’, no obstante, fue logrado a expensas de la agonía final de cuatro de las potencias imperialistas precedentes – el Reino Unido, Francia, Japón y, por cierto, la segunda debacle de Alemania. La larga recesión de 1973/77 inauguró una nueva etapa. El derrumbe de la Bolsa de Nueva York, en 1987; la larga crisis que arrancó en el Sudeste de Asia y se extendió a Rusia, Brasil, Estados Unidos y Argentina; y finalmente la bancarrota mundial provocada por el hundimiento de las ‘subprime’, en 2017/8; han sido otros tantos capítulos de nuevos estallidos financieros de mayor envergadura. En esencia, ha dejado al desnudo los límites del capital ficticio para contrarrestar la tendencia a la caída de la tasa de ganancia industrial. La deuda mundial es cinco o seis veces el equivalente del PBI mundial, cuando en la década de los ‘50 del siglo pasado ese PBI constituía el doble de la deuda internacional. Una reversión de esa magnitud ha puesto en crisis la capacidad de los bancos centrales de amortiguar las crisis recurrentes, como lo demuestra la elevación desproporcionada del aumento de las tasas de interés de referencia, que tiene un impacto demoledor en empresas y estados altamente endeudados. La bancarrota de 2017/8 significó un punto de inflexión en II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 69 la cadena de crisis internacionales. Los niveles extraordinarios de endeudamiento público, por un lado, y del privado, del otro, comienzan a producir una cascada de insolvencias, como las que han afectado a los bancos regionales norteamericanos y al Credit Suisse. La tendencia al default de más de una decena de estados emergentes es irreversible, lo mismo ocurre con la quiebra de las empresas ‘zombies’. El derrumbe del sudeste asiático ha profundizado las tendencias deflacionarias. Este desarrollo ha marchado en paralelo a la penetración capitalista en el conjunto del ex bloque soviético y en especial en China. La apertura al mercado mundial de las economías estatizadas debía representar, en tesis, una válvula de salida a la tendencia a la caída de la tasa de beneficio del capital. En la biografía escrita por el periodista Bob Woodward, Alan Greenspan, el ex presidente de la Reserva Federal, afirma que la disolución de la URSS había sido el factor fundamental del alza continua de la Bolsa de Nueva York. El ingreso de Rusia y especialmente de China aceleró, sin embargo, la crisis mundial. China se convirtió de proveedor de bienes baratos de consumo en competidor internacional en la industria y la alta tecnología, y en una máquina de sobreproducción mundial, por ejemplo en el acero. Reforzó las tendencias deflacionarias en la industria y la depreciación de la fuerza de trabajo a nivel internacional. La creación de capital excedente desató, asimismo, una tendencia a la exportación de capitales y financiamiento bancario de parte de China – en parte a través de la conocida ‘ruta de la seda’. Reprodujo un movimiento parecido a la larga depresión de 1873/90, cuando el capital europeo invadió la periferia de la economía mundial para contrarrestar la caída de la tasa de beneficio en las metrópolis (un factor eficaz en el ingreso a una etapa imperialista). El protagonismo de las inversiones 70 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) en infraestructura en el programa de la Ruta, funciona como salida a la crisis residencial, industrial y bancaria que se desarrolla en China. Los capitales excedentes de la mayor parte del mundo emigran a Estados Unidos. Incrementan el déficit del comercio exterior y de la cuenta corriente norteamericana y generan una tendencia a la guerra comercial y financiera. Bajo la superficie de una rivalidad ‘geopolítica’ se desarrolla un estallido de todas las contradicciones acumuladas desde la restauración del capitalismo en Rusia y China. Las bases económicas de una guerra mundial imperialista están firmemente asentadas. En este choque de conjunto, la guerra ‘en Ucrania’ asume un carácter esencialmente mundial. Declinación de los Estados Unidos La refutación de la “geo-política” es la premisa ineludible para caracterizar la presente guerra en desarrollo en Europa y potencialmente en Asia. Este ha sido el método fundamental de León Trotsky en la primera y segunda guerra. Desmitificó el carácter ‘regional’ de la guerra de los Balcanes, a la que presentó como el prólogo de la guerra mundial inminente. Cuando Stalin defendió el reparto de Polonia con Hitler y Stalin con el argumento de que era una barrera defensiva territorial de la URSS (es lo que repite Putin cuando anexa las regiones ‘rusófilas’ de Ucrania), Trotsky señaló que era lo contrario – el establecimiento de una frontera directa con Alemania. Las consideraciones de orden geopolítico sirven para justificar nuevas guerras. Para Trotsky, la defensa incondicional de la URSS, en la segunda guerra, no tuvo un carácter patriótico sino internacionalista: pasaba por la lucha contra la guerra imperialista y por asegurar la defensa de la Unión Soviética mediante II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 71 una revolución política. Este contencioso fue el principal debate en las filas de la IV Internacional en aquella guerra. La guerra imperialista es, fundamentalmente, un método del capital para sumir al proletariado en la barbarie y someter a la fuerza de trabajo a una explotación sin límites. Está ligada doblemente con el fascismo, aunque se libre con las banderas de la democracia: es preparada, por un lado, por la demagogia y la movilización nacionalista y, por el otro, refuerza el estado policial ligado a la guerra. Es lo que ocurre, en la actualidad, en Ucrania, en Rusia y en otros países. Zelensky ha derogado el derecho laboral con el pretexto de la defensa nacional (una militarización del trabajo, eventualmente bajo un ropaje constitucional), mientras la oligarquía se enriquece en forma bochornosa, como lo informa la prensa internacional. Putin, por su lado, arresta opositores e incluso disidentes de su propio campo y adopta medidas de excepción para asegurar la posibilidad de una movilización bélica nacional. El caso de Trump es muy instructivo, porque se vale de la crítica a la guerra de la Otan contra Rusia para desprestigiar y desbancar a las elites democráticas, mientras propugna una guerra a ultranza contra China. La fuerza motriz de la presente guerra es la declinación económica y política de Estados Unidos. El equilibrio interior de Estados Unidos depende de la conservación de su hegemonía mundial. La decadencia económica y social de Estados Unidos arrastra, a su vez, al conjunto de la economía mundial. El retroceso social en Estados Unidos es manifiesto. Es lo que puso en evidencia el ascenso de Trump a la Presidencia y el golpe del 6 de enero de 2021. Trump, sin embargo, atribuye el retroceso norteamericano a las guerras; se presenta como un pacifista de ultraderecha, al igual que lo hacen 72 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) algunos fascistas en Europa, y se emparenta con Putin y XI. Pero para Trump, la precondición de una guerra ‘victoriosa’ es una regresión nacional de las fuerzas productivas y una reorganización fascista del estado. En el estadio histórico alcanzado por el capitalismo, la declinación del imperialismo norteamericano constituye una estación final. No abre paso a la hegemonía de otro imperialismo ni tampoco a un mundo “multipolar”; conduce a la extensión de la guerra y a la barbarie. La China ‘postcomunista’ se saltó varios estadios de desarrollo: nació directamente como un régimen económico de monopolios estatales y privados tardío, cuyo Estado se confunde con las estructuras de la burocracia del régimen precedente. Es otra gran manifestación del desarrollo combinado, o sea de la forma más explosiva de la contradicción en los términos de la dialéctica. El estado legitima una ’ideología comunista’, mientras preside un régimen de explotación despiadado. El proletariado de China, por su lado, el de mayor crecimiento en el mundo, ha perdido la protección social del régimen anterior, sin ganar la que tiene el de los países capitalistas, Antes de convertirse en imperialista, deberá lidiar con contradicciones explosivas en una economía mundial históricamente en decadencia. China es exportadora de capitales, pero reglamentada por el Estado, y la mayor receptora de capitales en el último medio siglo. Su influencia económica no tiene todavía una dominación política equivalente, como ocurrió con el desarrollo histórico del imperialismo. Podríamos decir que se encuentra en un estadio similar al de Alemania en las décadas subsiguientes a su unificación estatal, pero cuando la economía mundial ya ha sido repartida y vuelta a repartir entre las distintas potencias. Exporta capitales pero aún se financia en Nueva York y la importación II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 73 de capital alimenta la Bolsa de Shanghai. Forma parte del FMI y del sistema Swift de clearing financiero. La guerra entre la Otan y Rusia no se circunscribe al cuadro europeo – es esencialmente un ensayo general de una guerra contra China – su eje no es la democracia en general ni la independencia de Ucrania en particular. En cualquier arreglo entre la Otan y Putin, la principal víctima será Ucrania, o sea los trabajadores ucranianos. La bandera de un mundo “multipolar”, como la exhiben Putin y especialmente XI, equivaldría a restablecer una economía mundial de libre competencia en la época imperialista. El planteo reúne todas las características de una utopía reaccionaria. Proyecta una revigorización de los estados nacionales cuando la internacionalización de las fuerzas productivas los ha remitido a la condición de agentes político-militares del capital financiero. Un concierto entre estados nacionales es, con toda evidencia, una fantasía. Mientras pregonan un pacifismo de contramano, los estados que profesan la “multipolaridad” aumentan groseramente los presupuestos de guerra. El intento “multipolar” ha sido anticipado por la Unión Europea, que es lo contrario de eso. La UE es una pseudo Confederación entre estados desiguales - unos dominantes y opresores (Francia, Alemania, Italia, Holanda) y otros dependientes y oprimidos (España, Portugal, Grecia, el resto de los Balcanes y el conjunto de Europa central). La corriente tradicional de la IV Internacional lo ha convertido en el estado de transición hacia una Europa socialista, sin el paso simultáneo del derecho a romper con la UE y del derecho mismo a la autodeterminación nacional. Esa confederación “multipolar” no ha podido amortiguar la crisis económica mundial ni ha evitado el retiro de Gran Bretaña, mientras le niega el derecho a la “multipolaridad” a Escocia, Gales, Cataluña y 74 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) el País Vasco, o la unidad de Irlanda. La gigantesca asfixia impuesta a Grecia ha dejado en claro su condición de federación colonial. La guerra actual ha convertido a la UE en un peón “multipolar” de Estados Unidos y una rueda auxiliar de la Otan. Ha mostrado sus contradicciones insalvables. Disolución de la URSS El otro elemento dinámico de la guerra actual es la disolución social y política de la Unión Soviética. Rusia va a la guerra desde la debilidad, no de la fuerza. La decadencia de Rusia es fenomenal, una sombre chinesca de la URSS, incluso en el plano militar. El curso de la guerra ha mostrado que carece de un verdadero estado mayor y de un ejército preparado de combate; las compañías de mercenarios han jugado un papel más relevante que la de sus equivalentes norteamericanos en Irak, Libia o Afganistán. De ahí el recurso a los misiles ultrasónicos y a las amenazas nucleares. Las partes constitutivas de la ex URSS se han transformado, con Rusia incluida, en agencias del imperialismo mundial y en eslabones de la cadena imperialista. Además, en estados macartistas y policiales. La contrarrevolución ‘democrática’ que disolvió la Unión Soviética ha creado un vacío histórico a nivel mundial. La Revolución de Octubre no ha sido sustituida por ninguna otra construcción histórica; el ‘capitalismo’ ruso tiene por base una oligarquía advenediza, sin los atributos que otorga un largo desarrollo nacional; es un remedo de Estado que no ha atravesado ninguna experiencia histórica. Está dirigido por una burocracia ‘sui generis’, constituida esencialmente por los servicios de seguridad, que ha pasado de la protección de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 75 un Estado con supervivencias obreras o socialistas, a regentear el patrimonio público como cosa privada. Las Fuerzas Armadas, son un reflejo de esta realidad a-histórica. Este vacío histórico ha abierto la masa continental euroasiática a las ambiciones del imperialismo. Presentadas como apetitos territoriales o geo-políticos, son objetivos económicos y sociales, que son irrealizables sin una guerra mundial. Con mucho apresuramiento y mayor ingenuidad, numerosos teóricos y políticos han saludado en el pasado el tránsito ‘pacífico’ de Rusia al capitalismo. Vieron en este tránsito a un régimen deformado sin raíces, una manifestación del carácter histórico artificial de la Unión Soviética y por lo tanto de la Revolución de Octubre. Pero la Revolución de Octubre hunde sus raíces en una historia de revoluciones y en la crisis mortal del capitalismo. Putin busca los fundamentos del adefesio de Rusia nada menos que en el zarismo. La auto-disolución ‘pacífica’ de la URSS fue presentada como la prueba definitiva del error del pronóstico alternativo de León Trotsly acerca del destino del estado obrero degenerado: revolución política o guerra civil y una guerra internacional. La guerra de la Otan, un paquete de cuarenta estados de Europa y América, y Rusia, preparatoria de una guerra contra China, no es la primera sino la última prueba del acierto de la caracterización histórica de la URSS y la Revolución de Octubre, por parte de quien ha sido, en definitiva, el más grande de los bolcheviques. La contrarrevolución capitalista hace un trabajo de Sísifo, porque el capitalismo es el partero de la revolución mundial. El epicentro de la disolución de la URSS, contra lo que indican las versiones interesadas, no ha estado en su periferia sino en su centro. La “independencia” de la propia Rusia fue el slogan político 76 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) fundamental de la contrarrevolución “democrática”. La oligarquía rusa había encontrado su representante independientista en Boris Yeltsin. Cuando está en boga, como ocurre en estos momentos, la denuncia del imperialismo ruso, es instructivo recordar que este imperialismo surgió de un acto de ‘descolonización’ impulsado desde el centro imperial. Tuvo la forma de un golpe de estado ‘democrático’ (con bombardeo del parlamento incluido) para ‘emancipar’ a Rusia de la URSS, y poner el pie en el acelerador de la restauración capitalista. El remate instantáneo de la mayor parte de los activos industriales del país a precios viles fue amparado por esta ‘democracia’ contrarrevolucionaria, intervenida políticamente por los asesores norteamericanos de Clinton. Para decirlo en forma inequívoca, el modelo del Maidan ucraniano y de las “revoluciones de colores” en el ex glacis soviético fue inventado en Moscú con el apoyo de Washington. Que las consignas de la democracia sirvan para la contrarrevolución se vio ya en las revoluciones inglesa y francesa de los siglos XVII y XVIII (para acabar con la dictadura de Cromwell, por un lado, y la jacobina, por el otro), y fue firmemente aplicada en París, en 1871, cuando los jefes políticos de la masacre contra la Comuna convocaron al primer régimen parlamentario durable de la historia de Francia. La Revolución de Octubre del 17 terminó con la contrarrevolución democrática de Kerensky y compañía (mencheviques y sociarevolucionarios), en tanto que la victoria de la ‘democracia’ en Alemania terminó con la vida de Luxemburg y Liebknecht, y la disipación de la primera ola revolucionaria. Enseguida después de la segunda guerra, una serie de contrarrevoluciones ‘democráticas’, apoyadas por el stalinismo, acabaron con la ola revolucionaria en Europa occidental. Las dictaduras militares de América Latina II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 77 fueron reemplazadas por democracias contrarrevolucionarias que mantuvieron la legislación comercial y acentuaron el sometimiento político al FMI y a los acreedores internacionales. Diversas corrientes trotskistas caracterizan a las ‘revoluciones coloridas’ como un ‘revival’ de las revoluciones democráticas europeas de 1848, que amenazaban también al mismo zarismo. Confunden la época de ascenso del capitalismo con su decadencia; el esfuerzo de liberar las fuerzas productivas de la carcaza feudal con la destrucción de fuerzas productivas por parte del imperialismo. En este caso, “el peso muerto del pasado” hace mucho más que “oprimir el cerebro de los seres vivos” – simplemente, lo vacía. En aquellos años, la Inglaterra liberal era una aliada firme del zarismo, en tanto que en la actualidad la oligarquía rusa sigue acumulando riquezas en la Bolsa de Londres, bajo la protección de la Justicia británica. Una de las contrarrevoluciones ‘democráticas’ más instructivas, si no la mayor, fue la que terminó con el régimen stalinista en Polonia. El golpe de estado conjunto de las Fuerzas Armadas de Polonia, encabezadas por el general Jaruzelski, con el Vaticano, convirtió a la mayor insurgencia obrera internacional en décadas, en su contrario. Por medio de la represión, el reflujo, la burocratización del movimiento y el copamiento de su plantel dirigente, se aupó al poder una corriente contrarrevolucionaria. La restauración capitalista tuvo lugar mediante la derrota de una enorme tentativa de revolución política de la clase obrera. La transición de los restos del estado obrero degenerado a la gobernanza capitalista, no fue para nada pacífica, y lo será menos de aquí en más, incluida una guerra mundial. El régimen de Yeltsin y de los asesores de Cliinton, llevó a Rusia al borde de la disolución nacional 78 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) – no solamente porque las principales ciudades se convirtieron en territorios de bandas armadas de oligarcas. En 1997, la crisis mundial convirtió a Rusia en una economía de trueque; el tejido multinacional quedó roto; fue un anticipó de futuras catástrofes. Dejó al desnudo el objetivo estratégico del imperialismo norteamericano – la conquista económica y política del hinterland euroasiático y de la industria de tecnología de Rusia. Se trata, por supuesto, de un hinterland en disputa, no solamente con Alemania y Japón, sino también con China. Un colapso del régimen de Putin desataría una guerra interimperialista entre potencias tanto occidentales como orientales. La oligarquía rusa, en la crisis de 1997, comenzó a vender los activos malhabidos al capital norteamericano, en particular en cuanto al gas y el petróleo (el intento de venta más importante, el del principal activo petrolero ruso acaparado por el oligarca Khodorovsky a Exxon). Este proceso ocurrió en paralelo con una guerra verdadera, la de la Otan, para disolver la Federación Yugoslava. Devolvió la cuestión balcánica al impasse de principios del siglo pasado, cuando detonó la primera guerra mundial. La guerra contra la Federación Yugoslava dejó abiertas de par en par las puertas de la colonización económica de Europa del Este, en especial Polonia y Alemania. El cerco financiero y geo-político del imperialismo mundial a Rusia ha sido reconocido por los “think tanks” de la Otan – tanto conservadores como liberales. Los compromisos de no extender la Otan fuera de los límites preexistentes quedaron en saco roto -en particular la ilusión de Putin de que Rusia fuera integrada al directorio imperialista internacional, en el G-20, el G-8 y la propia Otan. Es de nuevo muy instructivo que el derrocamiento del gobierno de Yanukovich en Ucrania, en 2014, no obedeciera a la controversia entre dictadura o democracia, sino al II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 79 recule del gobierno pro-ruso del compromiso de integrar Ucrania a la Unión Europea, o sea redefinir su dependencia extranjera a favor del capital occidental y el FMI. El golpe de estado de febrero de 2014 constituyó un giro político de la oligarquía ucraniana de Moscú a Bruselas y a Washington. Un oligarca, Poroshenko, y luego, Zelensjy, el delegado del oligarca Igor Koloimiski, de la región de Dnipro, asumieron los gobiernos de esta ‘revolución democrática’. La cuestión de la independencia real y efectiva de Ucrania no estuvo nunca sobre la mesa. Lo que se puso en cuestión fue el re-alineamiento de Ucrania con uno de los bandos imperialistas, como ocurría también en Georgia. El detonante de la invasión rusa a Ucrania fue la capitulación de Alemania ante el ultimátum norteamericano contra la activación del gasoducto NordStream 2. Fue una exigencia imperiosa tanto del antieuropeo Trump como del europeísta Biden. Lo dice con todas las letras Daniel Yergin, el mayor especialista norteamericano en energía fósil. Rusia era separada de un solo cuajo de la economía internacional. Uno de los propósitos de este boicot era obligar a Putin a renovar el paso del combustible por Ucrania – futura socia devaluada de la UE y la Otan. El abastecimiento de gas a Europa ha pasado a las compañías norteamericanas, que lo transportan y regasifican en los puertos de España. El precio del gas licuado de Estados Unidos ha llegado a alcanzar un nivel seis veces al gas natural ruso, que deberá pagar la industria europea, en especial la alemana. Esto es lo que realmente ocurre en la guerra entre la democracia y el autoritarismo. El régimen de Rusia ha sido caracterizado como imperialista – y lo es, efectivamente. Pero no lo es en el sentido de la dominación política del capital financiero sobre naciones atrasadas o subordinadas. La ley del desarrollo combinado se aplica en este caso con plenitud. El 80 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) mismo imperio zarista fue un régimen semicolonial y al mismo tiempo imperialista. La autocracia zarista se formó mediante agregaciones militares de pueblos y nacionalidades, para resistir la presión asiática y también europea – la guerra contra Suecia en el siglo XVII. Desenvolvió de este modo, como lo han investigado varios historiadores, un imperialismo territorial; Lenin caracterizó al Zarismo como un imperialismo feudal. De otro modo no se hubiera podido referir nunca al derecho de “autodeterminación nacional”. La burguesía rusa, nacida muy tardíamente, se enancó en este imperialismo para aprovechar los privilegios que representaban las zonas protegidas por el imperio, que compartió, en forma desigual, con el capital anglo-francés. Una anexión de Ucrania, por parte de Putin, representaría la creación de una nueva frontera estatal y un área de explotación económica. Pero la guerra en desarrollo no es el producto de enfrentamientos particulares u ocasionales, sino una explosión, incluso si fue metódicamente preparada, del conjunto de las contradicciones del capitalismo. Guerra imperialista, guerra mundial La guerra actual es, por lo tanto, una guerra imperialista, de uno y otro lado, incluso con la salvedad, que no es menor, de que, de un lado, se encuentra el imperialismo histórico mundial y, del otro, Rusia, una potencia menor. Rusia, o más correctamente Putin, cuenta con una base militar de apoyo a su aventura reaccionaria, sólo hasta cierto punto, porque esa base militar está condicionada a la evolución política de la guerra. Intenta agrupar detrás de ella a un conjunto de potencias, como China o India, pero que tiene un carácter ambivalente y oportunista. Rusia es el principal proveedor de armamento a India, la II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 81 cual integra, al mismo tiempo, alianzas militares con Estados Unidos en las fronteras de China. No tiene sentido, como se ve, de hablar de una guerra “ofensiva”, de un lado, y “defensiva”, en el otro - lo que importa, como siempre en una guerra, son los intereses sociales reaccionarios en disputa. La Otan ha ‘provocado’ a Rusia como, a su modo, Rusia a la Otan. Rusia reclama un lugar en el directorio del imperialismo y la preservación del “espacio exterior vecino” – la Otan reclama la ‘libertad’ para imponer su superioridad económica, financiera y militar. Putin no es el custodio del “ex espacio soviético”, como lo etiqueta un sector de la izquierda de Rusia y de los Balcanes; es, por el contrario, quien lo ha desmantelado y quien quiere usufructuarlo para la oligarquía local. Tampoco está en juego en esta guerra la ‘memoria’ de la Revolución de Octubre – que ambos bandos pretenden destruir. El legado de Octubre sólo podría estar representado por un partido obrero que combata esta guerra imperialista, convoque a utilizarla para preparar la revolución socialista y propugne una República Internacional de Consejos Obreros (Soviets) . Las memorias se recrean y superan por medio de una lucha de clases, que para eso debe ser independiente de todo imperialismo. Putin es el sepulturero del “ex espacio soviético”. Teme, como lo ha declarado en varias oportunidades, que la guerra desencadene una crisis revolucionaria como la que se desarrolló en el ‘17. Para algunos, la guerra presente no es de ningún modo imperialista, salvo en lo que corresponde a Rusia. La Otan estaría apoyando una guerra de liberación nacional. Desde el Tratado de Versalles y del Presidente Wilson, Estados Unidos ha hecho campaña por la autodeterminación nacional, allí donde dominan 82 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) imperialismos rivales. Nunca en América Latina y el Caribe. La Otan apoya la liberación de Ucrania de Rusia, para convertir a Ucrania en su semi-colonia. La oligarquía de Ucrania apoya una guerra de autodeterminación dirigida a todos los fines prácticos por la Otan, cuyo propósito último es la sujeción nacional de Rusia. El carácter imperialista de la guerra se reparte, no entre dos, la Otan y Rusia, sino también Ucrania, e incluso entre cuatro, porque el gobierno fascista polaco, ya ha dado a entender su intención de adoptar a Ucrania como hermana menor en una Confederación. De modo que el cacareo acerca de la democracia y la autodeterminación en esta guerra, está fuera de lugar – están atrapados por el imperialismo. Algunos asimilan la intervención militar de la Otan con la ayuda de “las democracias” a la revolución española. La inexistente ayuda militar de las democracias fue absolutamente secundaria en aquella guerra civil – la preocupación fundamental de Occidente y del stalinismo fue que la República no se convirtiera en una dictadura del proletariado, En Ucrania, por el contrario, la intervención de la Otan es central y estratégica. Ucrania es hoy, a cualquier fin práctico, un país de facto de la Otan, una filial de la banca extranjera y del FMI, y su ejército es una división de las fuerzas armadas del imperialismo. Las masas revolucionarias de España eran los contingentes históricos de los explotados de ese país; en Ucrania guardan relación con los agrupamientos nacionalistas pro-nazis que, en la segunda guerra, eran una vanguardia criminal contra la URSS y cabezas de las masacres de judíos. Esta guerra no es sólo contra el opresor ruso, porque la Otan ha declarado a China, en el marco de esta guerra, “adversario estratégico” y aún “enemigo existencial”. Ucrania es, lamentablemente para los obreros socialistas de todos los países, un peón de la Otan en una II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 83 guerra imperialista. ¿Hasta qué punto estamos en una “guerra mundial” y no en una guerra que podría convertirse en mundial, pero los bandos internacionales en pugna quieren evitar? La Otan se ha guardado de enviar tropas en el terreno, pero no desmiente que operen asesores militares de todos los socios de la Otan y que haya un entrenamiento militar intenso en la misma frontera. La guerra ha venido acompañada de sanciones económicas sin precedentes, que en el pasado hubieran sido consideradas causales de guerra. La guerra ha incursionado al interior de Rusia continental, como en la península de Crimea. La reversión de alianzas y la inestabilidad creada por la guerra amenazan reactivar la guerra entre Azerbaidjan y Armenia, y en Siria. Rusia ha bloqueado la salida de cereales de Ucrania por el Mar Negro, y eventualmente por el Danubio. La posibilidad de una guerra generalizada en África tiene una fecha tentativa – la segunda semana de agosto, cuando debe efectivizarse la invasión de Niger, por parte de la Comunidad de África occidental, y la réplica de Mali y Burkina Faso – todos con algún vínculo con la Compañía Wagner y con Rusia. Polonia ha manifestado la intención de defender militarmente a Lituania y de cortar el nexo entre Rusia y Kalinigrado. Los ejercicios militares frente a China, Australia y Taiwan no dan señales de disminuir. Incluso en Argentina, el financiamiento del FMI se encuentra condicionado a una compra de aviones de guerra norteamericanos en lugar de chinos. El punto crucial es si existe la posibilidad de un retorno al “status quo ante”. Kissinger, Musk, Lula, Xi, Modi, Ben Salman y el Papa reclaman un cese del fuego, que debería ir acompañado ulteriormente de referendos de autodeterminación en los territorios ocupados y Crimea. 84 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Confían en que un empantanamiento prolongado de la “contraofensiva” de Ucrania fuerce una negociación internacional. El éxito improbable de esta propuesta, de todos modos, no sería ninguna vuelta al estadio anterior a la guerra, ni se acerca ni un poco a las grandes cuestiones bloqueadas por la guerra, como sanciones, represalias, salidas a otros conflictos, guerra comercial y financiera. Muy importante, si cabe aún, es el desarrollo de la crisis política en Rusia, que puso en evidencia el levantamiento de Prigozhin y la destitución de jefes del alto mando. La inestabilidad política de los gobiernos en guerra es un factor quizás más importante que las armas mismas. El juicio a Trump en Estados Unidos por el intento de golpe de enero de 2021, podría engendrar un conflicto de poderes y una nueva tentativa de golpe. En Alemania, la coalición gobernante se encuentra en un impasse excepcional por el avance electoral neo-nazi y por el recrudecimiento de las huelgas. Desde las manifestaciones contra la reforma previsional, el gobierno de Macron está en la cuerda floja – que se podría cortar en caso de una invasión a Niger. La partición de Ucrania, sin reconocer formalmente la soberanía de Rusia en los territorios ocupados, es esgrimida favorablemente por quienes la comparan con Corea, donde rige un armisticio desde hace 70 años. Frente a un Norte empobrecido, el Sur ha emergido como una plaza fuerte de los grandes capitales y de la Otan. Lo mismo podría ocurrir, dicen los abogados de este planteo, en Ucrania, mediante una asistencia económica masiva. Operaría, frente a la zona rusa, como un ‘ejemplo’ y hasta podría servir de cuña para confrontar en el plano económico con Rusia misma y como un factor de disolución nacional. Todo esto, sin embargo, supone el ostracismo de Rusia de la economía mundial – y a una guerra de alcance mayor. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 85 La guerra de Corea, a principios de la década del ‘50 del siglo pasado, fue caracterizada en su momento, en la IV Internacional, como el prólogo de una guerra mundial entre el imperialismo y la Unión Soviética. Es hora de un balance. En lugar de un pronóstico tentativo, la corriente de Michel Pablo derivó de esa guerra conclusiones definitivas. Revisó la caracterización de la burocracia stalinista como una casta contrarrevolucionaria y le adjudicó, bajo la presión de una guerra mundial, un carácter revolucionario. Disolvió la categoría de la lucha de clases por el enfrentamiento entre “dos sistemas”. La conclusión práctica de estas tesis condujo a una política de entrismo incondicional en los partidos comunistas, y, maniobras mediantes, inició un proceso de fraccionamiento y disolución de la IV Internacional. El pseudo pronóstico pablista fue desmentido por la realidad: la confrontación de “dos sistemas” se tradujo en una “guerra fría”, primero, y en la “coexistencia pacífica” después. Retrospectivamente, se entiende que esta era la variante más probable. En primer lugar, porque la burocracia stalinista era una agencia de la burguesía mundial dentro de un Estado históricamente obrero. Entre el imperialismo y la burocracia rusa seguían vigentes los tratados que delimitaban las llamadas zonas de influencia de uno y la otra. De otro lado, el inicio de una guerra, por parte del imperialismo, luego de las victorias del Ejército Rojo y de la Revolución China, hubieran sido un poderoso acicate a la revolución mundial. Asimismo, tampoco había concluido la etapa del desmoronamiento del colonialismo japonés y, ulteriormente, del francés y el británico – un enorme flanco revolucionario en el tejido imperialista. Estados Unidos, que había emergido de la guerra como una superpotencia en todos los sentidos de la palabra, adoptó, en estas condiciones, la política de “contención” – en resumen, el 86 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) reordenamiento del imperialismo mundial y la presión económica y militar sobre el nuevo bloque soviético. Paralelo a la guerra de Corea, comenzaron los levantamientos obreros en Europa del este – Berlín 1953; bajo crisis sucesivas y revoluciones, se ahondó la tendencia a la disolución del régimen burocrático y la dependencia del capital financiero internacional. Fueron las bases de la crisis final. La situación histórica presente es harto diferente: uno, la declinación implacable de Estados Unidos refuerza las tendencias a la guerra de parte del imperialismo; dos, la disolución de la Unión Soviética abre una ventana de oportunidad para esas mismas tendencias. La guerra actual escala sin respiro y se extiende social y geográficamente. Es un punto de inflexión, porque culmina todo un período preparatorio de crisis económicas y políticas mundiales. Donde no se advierte todavía ese punto de inflexión es en el proletariado internacional, que retoma las luchas e incluso los levantamientos, pero no ha obtenido victorias políticas fundamentales. Este salto se producirá inexorablemente, pero debe ser impulsado y orientado mediante la lucha contra la guerra imperialista de la Otan y Rusia y de la guerra imperialista en su conjunto. Como método, de todos modos, todo pronóstico debe tener un carácter tentativo, porque depende de la calidad de la dirección de la lucha, de los avances y reveses que acompañan a toda lucha, de los balances y evaluaciones de las propias masas. Pero la marcha hacia ese punto de inflexión es, en las condiciones creadas, indudable. Volviendo a la crítica a la geopolítica, las guerras no se ganan, necesariamente, con las armas. Lo decisivo es el estadio histórico en que se encuentran las clases en pugna. Es cierto que la guerra de la Otan no ha encontrado apoyo popular en los países que participan de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 87 la guerra – mucho menos en el resto. Tampoco existe, sin embargo, una movilización contra la guerra, luego de dos años, lo cual es todavía más importante. Esto contrasta con las grandes manifestaciones que ocurrieron contra la invasión a Irak. Entre tanto, otras luchas de la clase obrera han crecido en magnitud en Europa y Estados Unidos. Ellas guardan relación con la guerra, porque la guerra ha agravado las condiciones sociales, aumentado muchísimo los presupuestos en armamentos y colocado a la humanidad ante la amenaza de un enfrentamiento nuclear. En el caso de Rusia, se añade la quiebra de una parte de la oligarquía con el gobierno, incluso de algunos sectores militares. Hay manifiestamente una crisis política en desarrollo. La guerra ejercerá una tendencia disolvente creciente en los regímenes políticos en guerra. De lo que se trata es de convertir a la guerra imperialista contra las masas, en una guerra civil contra el imperialismo. Es necesaria una campaña de propaganda y agitación para movilizar a los trabajadores por el fin incondicional de la guerra, una movilización contra cada uno de los gobiernos imperialistas en presencia. Las consignas nacionalistas que pretenden un apoyo a la autodeterminación de Ucrania tienen un carácter reaccionario y paralizante. Las movilizaciones contra la guerra en los países de la Otan repercutirían poderosamente en Rusia, incluso en China, y también en Ucrania. Ucrania tiene previstas elecciones en poco tiempo, con el arco político anti-guerra o pro-ruso proscripto. La movilización internacional daría fuerza a la oposición política contra el bloque pro-imperialista de Zelensky. De una u otra manera, la inquietud popular no dejará de manifestarse, en especial si prosigue la escalada militar. El mundo ‘multipolar’ fue enterrado sin ceremonias en la primera guerra mundial – es una vía muerta. Es la hora del internacionalismo militante y revolucionario. 88 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PARTE II DEBATES SOBRE LUTA DE CLASSES CONTEMPORÂNEA II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 89 Os imperialismos João Batista Aragão Neto1 A nossa Comunicação é relativa aos imperialismos e vai abordar a questão da guerra na Ucrânia. Com relação a essa guerra entendemos que ela é uma guerra imperialista, tanto do lado da OTAN, que apoia Zelensky, presidente da Ucrânia, como do lado da Rússia, pois temos o entendimento que esta é um país imperialista, ainda mais depois da experiência soviética, com a liberação das forças produtivas, tendo um desenvolvimento econômico vertiginoso, conforme os ensinamentos de Eugênio Preobrajensky, o maior economista soviético, que demonstrou o conflito da Lei do valor capitalista com a Lei da economia planificada, na sociedade de transição ao socialismo, em sua obra notável “A Nova Econômica”. Com a restauração capitalista a partir de 1991, a Rússia obteve apoio financeiro dos países imperialistas que aportaram capitais e foi se fortalecendo, pois se num primeiro momento houve essa participação dos capitais estrangeiros, aos poucos os capitais russos, que fugiram do país em razão do regime soviético e foram aplicados e exportados ao estrangeiro, voltaram foram repatriados e passaram a preponderar. Embora a Rússia, não tenha o poderio dos países imperialistas mais tradicionais (até 1917 ela era um país imperialista, ou seja, era o elo mais fraco da cadeia imperialista), como Estados Unidos, Inglaterra e França, aos poucos ela vai se constituindo novamente em um país imperialista, mesmo ainda permanecendo algumas conquistas da 1 Advogado trabalhista e militante trotskista, nascido em Cuiabá - Mato Grosso, em 1957. 90 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Revolução Socialista e vai adotando medidas contrarrevolucionárias, como essa invasão da Ucrânia. Entendemos que Putin, em nenhum momento, dever ser apoiado, uma vez que ele é um líder de um país imperialista. A nossa posição com relação a guerra da Ucrânia é pelo derrotismo revolucionário de ambos os imperialismos, tanto do ocidental como do russo. Nós seguimos a lição ignorada da entrevista de Trotsky para Mateo Fossa, de que a classe operária deve lutar por sua independência. Trotsky sublinha ao final dessa entrevista que a classe operária sempre deve lutar por uma política independente. Então, a nossa posição é pela derrota de ambos os imperialismos, tanto o da OTAN como do imperialismo russo. Outra coisa: os capitais russos voltaram via Holanda e outros países, embora a Rússia não tenha a força das potências imperialistas ocidentais, ela vai se desenvolvendo junto com a própria China (1). Entendemos que além da questões que caracterizam o imperialismo, como a exportação de capitais, monopólios, concorrência, reação em toda linha, época de guerras e revoluções, etc., temos de ter claro também o poderio bélico, no caso da Rússia, que é uma potência que tem até mais ogivas nucleares do que os Estados Unidos. Entendemos que esse tipo de posicionamento no que tange à Rússia deve diferente porque ela é um país imperialista, ou seja, pelo derrotismo revolucionário da mesma, jamais igual aos casos de Saddam, Assad e Kadafi, porque nesses casos tratam-se de países semicoloniais e não imperialistas. Fomos contra a invasão do Iraque e da Líbia e aos ataques à Síria, sem dar apoio à Saddam Hussein, Assad ou Kadafi; esse é que deve ser o posicionamento marxista. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 91 O desenvolvimento do imperialismo russo demonstrou o acerto da teoria de Lênin em relação ao imperialismo, ou seja, a reação em toda linha, época de guerras e revoluções, ao contrário do posicionamento de Kautsky que tinha aquela visão do super-imperialismo. Somente a concepção leninista dá para a gente entender a superação de um imperialismo por outro, porque na história já foi provada essa hipótes com a superação do imperialismo britânico pelos Estados Unidos. As pessoas podem pensar que o imperialismo norte-americano vai preponderar eternamente, um super-imperialismo, a posição de Kautsky. Todavia a gente já viu que os Estados Unidos ultrapassaram a Inglaterra, demonstrando que a posição de Lênin é a que está mais de acordo com o marxismo. Esses são os posicionamentos que a gente vem defendendo. Entendemos que o fundamental nessa guerra imperialista é que os imperialismos russo e ocidental sejam derrotados e que a gente lute pela confraternização dos operários russos e ucranianos, bem como seja garantido direito à autodeterminação da Ucrânia. Essa é a nossa diretriz. Mas prosseguindo, achamos que a questão central é não defender nenhum dos lados, seja a OTAN, seja o imperialismo russo. O que a classe operária tem que defender é a derrubada de Zelensky e de Putin, e para isso ela precisa construir o partido operário revolucionário, tanto na Ucrânia, como na Rússia, essa é a única alternativa, construir sovietes (conselhos operários) para poder ter uma política independente. Fora isso, a gente vai estar apoiando um ou outro imperialismo e vai estar fazendo que toda essa guerra continue. É interessante notar que esse posicionamento tem de ser de forma ativa, tem de defender um partido operário revolucionário na Ucrânia e na Rússia; não tem outro caminho; tem de defender essa 92 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) bandeira; colocar a necessidade da construção de sovietes, porque só assim a gente vai poder, como aconteceu em 1917, superar a burguesia e colocar a classe operária no poder. Sem uma política independente não vai adiantar. Não adianta sermos impressionistas e entender que a classe operária, na Ucrânia, no momento, manifesta uma certa posição, que ela está correta. A classe operária em muitos momentos da história, infelizmente, abandonou as suas bandeiras, como aconteceu na época de Hitler, como aconteceu quando foi derrubado o regime comunista na Rússia em 1991, não conseguindo manter as suas conquistas. Aclasse operária está sem liderança, sem direção (revolucionária). Isso vem comprovar mais uma vez que o programa da IV Internacional continua em vigor, continua vivo, mais do que nunca. A gente lembra da frase do Trotsky de que o problema da humanidade, é o problema que se reduz à crise de direção revolucionária. É isso que a gente vive. Se a gente não construir o partido revolucionário, se a gente não construir a Internacional, nós vamos continuar sendo impotentes perante as contendas internacionais, ora apoiando um imperialismo, ora apoiando outro e ora capitulando. O que precisamos ter é um partido operário revolucionário na Rússia e na Ucrânia e uma Internacional operária e revolucionária. Nota 1. Como fruto desse II Encontro, estamos estudando a questão da China e estamos tendendo a mudar a nossa posição, adotando o posicionamento do grupo Reagrupamento Revolucionário, que considera o Estado chinês, um Estado operário burocratizado, onde a contrarrevolução, apesar de estar num estágio avançado, ainda não saiu vitoriosa. Os camaradas do Reagrupamento Revolucionário II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 93 elencam “importantes elementos de transição ao socialismo que permanecem na economia chinesa e têm impactos na sociedade e na política. A vitória de uma contrarrevolução jogaria quase a totalidade da economia estatal nas mãos da burguesia nativa ou imperialista, piorando drasticamente as condições de vida das centenas de milhões de trabalhadores empregados no setor público, que são largamente superiores às condições dos empregados do setor privado.” Ícaro Kaleb, abril de 2020, “Uma análise do caráter de classe do Estado, da economia e das lutas dos trabalhadores”, “Desmistificando a China”. “O que é e para onde vai a China, Reagrupamento Revolucionário – Livreto – Segundo semestre de 2021”). 94 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Dos años de guerra en Ucrania Pablo Heller1 Al cumplirse dos años de guerra en Ucrania, no hay un final a la vista. Aunque no hay coincidencia sobre el número de muertos, el total de víctimas supera holgadamente las 500.000 bajas, a las que se unen varios centenares de miles de heridos. En pleno continente europeo se reproducen las escenas propias de la segunda guerra mundial. Lejos de lo que prometían los apologistas del capitalismo, que con la caída del comunismo se abriría paso una era de paz y cooperación entre las naciones, asistimos a un agravamiento del choque entre los Estados y a una multiplicación de los conflictos bélicos de carácter regionales pero que tienen un alcance internacional. Del mundo de posguerra dominado por la guerra fría hemos pasado al mundo actual atravesado por guerras calientes, que pavimentan la tendencia a una conflagración mundial. En el marco de un empantanamiento general y una guerra de trincheras desgastante, uno de los datos relevantes es que Moscú estaría sacando una ventaja que de todos modos no es suficiente para provocar un vuelco decisivo de las hostilidades. Las tropas rusas han logrado reconquistar la ciudad de Avdiivka, que es el logro militar más importante del Kremlin desde la toma de Bajmut en mayo. El alto mando occidental ha debido reconsiderar la capacidad militar del régimen de Putin. Rusia fabricó 4 millones de proyectiles de artillería y varios centenares de tanques durante el año pasado, a una velocidad 1 Miembro del Comité Nacional del Partido Obrero (Argentina). Economista, autor de “Capitalismo zombi” (2016) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 95 que muchos occidentales habían considerado imposible. Este año reclutará otros 400.000 hombres sin recurrir a una movilización masiva, según prevén las autoridades ucranianas. Por otro lado, las sanciones económicas no han logrado hacer la mella que se esperaba. Rusia ha logrado sortear las represalias y condicionamientos a través de un intercambio comercial con China e India. Y hay un consenso en Occidente de que no hay demasiadas balas más en el ámbito económico a las que se pueda apelar. La contracara es el fracaso de la contraofensiva ucraniana y la caída de las expectativas que abrigaban un giro favorable de la guerra a favor de Kiev. Desde el verano de 2023, Ucrania se enfrenta con unas tropas rusas a la ofensiva, escasez de hombres, armas y municiones. Esto ha ido de la mano con un desinfle de la adhesión a la causa ucraniana tanto en el plano internacional como interno. Las potencias occidentales han empezado a retacear su apoyo, en primer lugar el propio Estados Unidos, donde sigue trabado el envío de una nueva partida de 60.000 millones de dólares. En las actuales condiciones, el suspenso en la continuación de la ayuda estadounidense podría precipitar un derrumbe. El instituto de investigación alemán Kiel Institute afirmó que la Unión Europea deberá “al menos duplicar su ayuda militar” a Ucrania para compensar la inacción de Estados Unidos. “Es altamente incierto que Estados Unidos envíe ayuda militar adicional en 2024″, indicó el instituto, que recopila informaciones sobre la ayuda militar, financiera y humanitaria prometida y entregada a Ucrania desde la invasión rusa de 2022. Es muy dudoso, sin embargo, que Europa esté en condiciones de cubrir ese vacío, atravesada por choques y contradicciones internas y con sus propias economías entre las cuerdas. 96 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Fracaso militar y salidas en danza Este panorama está dejando sus huellas en Ucrania. El triunfalismo inicial ha ido cediendo su lugar a un malestar ascendente a medida que la guerra y sus penurias se prolongan en el tiempo. El gobierno de Zelensky tiene cada vez más dificultades en reclutar tropas y lo que impera es la deserción, en especial en la juventud. La conflagración está también extenuando a Ucrania en el frente económico. La deuda pública se habrá duplicado para fin de este año con respecto a la invasión, según datos del FMI. No nos debe sorprender que esto haya desencadenado una severa crisis política, como lo revela la decisión del presidente ucraniano de reemplazar al comandante en jefe de las fuerzas armadas, Valeri Zaluzhny, quien no sólo cuenta con un predicamento entre los militares y en la propia población sino un fuerte reconocimiento en políticos opositores de corte nacionalista. El jefe del ejército destituido se perfilaba como el principal rival de Zelensky en las elecciones presidenciales que estaban previstas próximamente. Un síntoma de que la crisis está lejos de haberse cerrado es la decisión de Zelensky de suspender los comicios. No hay que olvidar que este cuadro se ve amplificado por los escándalos de corrupción dentro de las fuerzas armadas, donde se descubrieron casos de sobornos a cambio de no cumplir con el servicio; también se conoció en enero la compra ficticia de armas por hasta 40 millones de dólares. Pero más allá del desgaste que provoca la guerra, lo que está en juego detrás del relevo de Zaluzhny es un replanteo de la estrategia política y militar en el conflicto. El jefe destituido estaría en la misma sintonía que el jefe del ejército estadounidense, Mark Milley, para II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 97 quien no es viable una derrota de Rusia. Lo cierto es que en los círculos imperialistas está levantando cabeza la idea de bucear un acuerdo haciendo concesiones territoriales, cediendo las regiones del este ucraniano ocupadas por Rusia, y el establecimiento de algún tipo de salvaguardas a Moscú en cuanto a la presencia de la Otan en Ucrania a cambio del ingreso de Ucrania a la Unión Europea. Recordemos que este era el planteo que sostuviera el extinto Henry Kissinger y que recibió en su momento un rechazo mayoritario de las potencias occidentales. En esta línea, se ubican también la propuesta delineada por China quien ofreció sus buenos oficios como mediador y que fue desechada por la Otan. De todos modos, es muy poco probable que este acuerdo cuente con el visto bueno de Moscú quien, a partir de los avances militares estaría más inclinado en endurecer sus exigencias. Pero además, porque especula con una vuelta de Trump, quien estaría más predispuesto a un arreglo. Por lo pronto, la respuesta inmediata de Putin ha sido una intensificación de sus bombardeos sobre Kiev y en todo el territorio ucraniano. Se espera que Rusia lance una intensa serie de ataques contra las infraestructuras ucranianas con la esperanza de paralizar el suministro eléctrico y la calefacción invernal del país. Desestabilización del orden imperialista mundial Hasta el propio futuro de la Otan se ha puesto en duda ante la perspectiva de un triunfo de Trump a la Casa Blanca. Hace unas semanas, Trump dijo que “animaría” a Rusia a atacar a cualquier miembro de la Otan que no alcanzara el objetivo de gasto en defensa de la alianza de 2% del PBI. 98 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Lo que está como telón de fondo es la propia crisis política de Estados Unidos y la desestabilización del orden mundial. La división política y la agitación interna socavan el liderazgo estadounidense en el exterior. “Financial Times” (5/12/23) se interroga sobre la capacidad de lidiar con tantos frentes de tormenta internacionales al mismo tiempo “¿Cuántos conflictos internacionales puede manejar una superpotencia al mismo tiempo? Actualmente, la administración Biden está intentando lidiar con guerras en Medio Oriente y Europa, mientras se prepara para un aumento de las tensiones entre China y Taiwán”. A lo que se agrega, según el diario inglés, la creciente sombra de Donald Trump. Su posible regreso a la Casa Blanca plantea profundos interrogantes sobre el futuro de la democracia estadounidense y el papel del país en el mundo”. Esto viene horadando la figura de Joe Biden, que encima carga con el cuestionamiento sobre su lucidez mental para postularse para un segundo mandato. La administración demócrata está pagando un alto precio político, dentro y fuera de su país, por su apoyo a Israel. Ahora Estados Unidos está presionando públicamente a Israel para que cambie sus tácticas militares en Gaza. Pero la preocupación de EE.UU. va mucho más allá de Gaza. Existe la amenaza de una guerra en Medio Oriente más amplia que arrastraría a EE.UU. Existe un cauto optimismo en que la respuesta inicial de Beijing luego del triunfo de Lai Ching-te en Taiwán, a quien el gobierno chino considera un peligroso separatista, se concentrará en la presión económica y política. Pero, en el transcurso del año, China podría llevar una respuesta a nuevos niveles, sobre todo si EE.UU. parece debilitado por los acontecimientos en Ucrania y el Medio Oriente. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 99 Guerra y objetivos estratégicos Cualesquiera sean las vicisitudes, las elecciones estadounidenses contribuirán poderosamente a la debilidad y declive de EE.UU. Trazado este panorama de conjunto, la mesa de negociaciones es una perspectiva por ahora que no está a la vista. Por lo tanto, va a continuar el baño de sangre y, en un marco tan explosivo, el riesgo de una extensión de la guerra es una amenaza latente. Incluso si se llegara a acuerdo, eso no augura una paz duradera. Eso ya ocurrió con los acuerdos de Minsk, que fueron la antesala de nuevas hostilidades. El imperialismo no ha renunciado a su propósito estratégico de colonizar el ex espacio soviético y eso incluye a la propia Rusia. El objetivo es apuntar a un cambio del régimen político de Rusia o un eventual desmembramiento como en el pasado se consumó en Yugoslavia. Los países europeos de la Otan han aumentado su gasto en defensa en torno a un tercio en la última década, y algunos de ellos de forma significativa desde la invasión de Ucrania por parte de Rusia en febrero de 2022. El rearme está en función de este objetico estratégico, aunque las potencias europeas no se privan de presentarlo al revés, a saber, como un recurso defensivo frente a la amenaza rusa. Los funcionarios de defensa occidentales han lanzado en las últimas semanas un número sin precedentes de advertencias públicas sobre la posibilidad de un conflicto más amplio en Europa con una Rusia más confiada y rearmada. El ministro de Defensa danés, Troels Lund Poulsen, dijo hace dos semanas que Rusia podría poner a prueba la cláusula de defensa mutua de la Otan “en un plazo de tres a cinco años”. Esta declaración sigue a las advertencias similares realizadas por funcionarios de Suecia, Reino Unido, Rumania, Alemania y altos 100 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) cargos de la propia Otan desde principios de año. Los funcionarios dijeron que una de las razones de las advertencias funestas era preparar a las sociedades para el peligro potencial y garantizar que la infraestructura civil estuviera preparada para las posibles consecuencias. Un centro de mando de la alianza con sede en la ciudad de Ulm, al sur de Alemania, está elaborando planes sobre cómo se desplegarían las fuerzas militares de la Otan por Europa y cómo se sostendrían y reforzarían en caso de conflicto, según informaron fuentes oficiales. Esta histeria antirrusa, sin embargo, tiene poco asidero hasta el punto que otros funcionarios de la alianza militar salieron a pinchar el globo que se estaba creando, planteado que Rusia no tiene ningún interés en entrar en guerra con la Otan, partiendo del artículo 5 de esta alianza militar que establece que un ataque a un miembro representa un ataque a todos los países de la organización. Reforcemos la movilización internacional Llegando al segundo aniversario, está claro y más visible que nunca la atrocidad que representa para los pueblos la guerra de Ucrania, que tiene a Zelensky, como peón de la Otan, y a Putin, como responsables. Se trata de una guerra reaccionaria. Pasada la euforia inicial está a la vista que no hay ningún interés popular en juego sino el interés de rapiña de sus promotores. A la atrocidad ucraniana ahora se suma el genocidio palestino. Ambos conflictos tienen un hilo conductor pues son eslabones de una misma escalada destinada a defender el orden imperialista mundial. No se puede disociar una cosa de la otra como ha terminado II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 101 haciendo una parte de la izquierda mundial que condena al imperialismo y a la Otan (y al sionismo) en Palestina pero se ha alineado con ambos en la guerra de Ucrania. En otros casos, algunas corrientes de izquierda levantan una postura neutral entre el sionismo y la resistencia palestina, argumentando que se trataría de dos bandos capitalistas, lo que desconoce la opresión y colonización del pueblo palestino que está en la base de la formación del Estado israelí. Aquel lineamiento es lo que explica la pobre movilización que ha tenido lugar en Europa y mundialmente contra la guerra de Ucrania. La reacción internacional contra la masacre al pueblo palestino ha hecho que resoplen nuevos vientos y dio un envión para que se reactive una movilización internacional contra la guerra. En este contexto, es necesario valorar la jornada internacionalista que tuvo lugar este 24 de febrero, segundo aniversario de la guerra de Ucrania en la que hubo movilizaciones en varios países, incluyendo Argentina, en rechazo de la guerra imperialista y de los gobiernos que la generaron y la promueven. Guerra a la guerra. El enemigo está dentro de nuestras propias fronteras. Abajo los gobiernos capitalistas y el Estado genocida de Israel. Todo el apoyo al pueblo palestino. Por la unidad internacional de los trabajadores. Por gobiernos de trabajadores y el socialismo. 102 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Cuba hoje: os riscos de uma contrarrevolução burguesa e as tarefas do trotskismo1 Marcio Lauria Monteiro2 O que é Cuba hoje? O conceito de Estado proletário burocratizado A revolução social iniciada em 1959 levou à destruição do Estado burguês e à expropriação econômica da burguesia nativa e do imperialismo em Cuba. Esse processo não teve um programa originalmente socialista. Sob a liderança do Movimento 26 de Julho (M26J) e de outros grupos, como o partido stalinista cubano (Partido Socialista Popular, PSP), o foco estava na realização de tarefas nacional-democráticas: assegurar soberania nacional frente à ingerência dos EUA, conquistar uma reforma agrária em benefício dos camponeses pobres e retomar a experiência de república democrática que havia antes da ditadura de Fulgencio Batista (uma das demandas do M26J era reestabelecer a Constituição de 1940) (MONTEIRO, 2017). 1 Texto da fala apresentada em nome do Reagrupamento Revolucionário (www. rr4i.org) na Mesa de Abertura do evento. Também disponível em espanhol (https://rr4i. noblogs.org/2023/09/21/cuba-hoy-los-riesgos-de-una-contrarevolucion-burguesay-las-tareas-del-trotskismo/). Para assistir à apresentação no Youtube: https://www. youtube.com/watch?v=P2uy4peicqU. Para ouvir em áudio no Spotify: https://open. spotify.com/episode/3MgIC9FcFWfyJM55SZDQg8?si=54497bc6590f4b71&nd=1. 2 Doutor em História Social pelo PPGH UFF, professor e pesquisador no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFBA) campus Porto Seguro. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trótski / Trotskismo e a Historiografia (GEPTH), é pesquisador associado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-MARX UFF) e é membro do Comitê Mário Pedrosa, que organizou o II Encontro Internacional Leon Trótski (2023) os Eventos Online Trótski em Permanência (2020 e 2021). Contato: marciolmonteiro@gmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 103 Porém, a realização plena dessas tarefas, sobretudo a reforma agrária, só podia se dar contra a burguesia e o imperialismo, pois estas classes estavam completamente entrelaçadas entre si e também com as oligarquias fundiárias. As massas de trabalhadores rurais e de camponeses pobres empurraram nesse sentido, ao expropriarem terras de grandes latifundiários nativos e estrangeiros, inclusive tomando grandes empresas rurais, como refinarias de açúcar. Nas cidades, muitos trabalhadores também empurraram o processo para uma via anticapitalista, ao exigirem a expropriação sob controle operário de algumas empresas, declarando-se em greve permanente ou mesmo ocupando as instalações, especialmente de empresas que pertenciam a pessoas ligadas a ditadura ou que a apoiaram. (MONTEIRO, 2017; MONTEIRO e ROMÃO, 2021) Ao mesmo tempo em que as massas exploradas se mobilizaram para além do programa limitado do M26J e do PSP, a contrarrevolução não deixou escolha a essas lideranças, quando o governo dos EUA se recusou em reconhecer o novo governo e, em aliança a setores da burguesia nativa, realizou operações para derrubá-lo. Ao M26J/PSP não restou alternativa que não fosse a expropriação dos capitalistas, com apoio das massas: era isso ou serem destruídos por uma contrarrevolução sangrenta. A expropriação dos meios de produção e a socialização do sobreproduto na forma de investimentos em salários, moradia, saúde, educação etc. permitiu enormes ganhos sociais para o proletariado cubano. Como disse certa vez um jornalista brasileiro reacionário, “nada funciona em Cuba, exceto a educação, a saúde e a segurança”! Porém, o alinhamento do governo cubano à burocracia soviética, a sabotagem de oportunidades revolucionárias pelos PCs a ela alinhados, 104 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) junto com o fracasso da via guerrilheira da OLAS (que setores do M26J impulsionaram nos primeiros anos da revolução), deixaram Cuba isolada nacionalmente (PÉREZ-STABLE, 1999; WINOCUR, 1989). Ademais, o autoritarismo militarista do M26J, combinado ao regime interno stalinista do PSP – que se fundiram para formar o PC cubano – levaram à construção de um regime de ditadura burocrática (stalinismo) (MONTEIRO, 2017). Isso é o que nós trotskistas chamamos de Estado proletário burocratizado: uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo, cuja transição se encontra bloqueada pelo isolamento internacional e pelo regime de ditadura da burocracia do PC (stalinismo). Essa sociedade combina elementos do antigo (capitalismo) e do novo (socialismo) de formas contraditórias e tem a possibilidade de avançar para o socialismo ou de retroceder ao capitalismo. (ROMÃO e MONTEIRO, 2020; TROTSKY, 2005) Cuba ainda hoje é um Estado proletário: a burguesia não retomou o controle do aparato estatal; as áreas chave da economia (sistema financeiro, principais indústrias) seguem sob controle estatal; a maior parte dos recursos é alocada através de um planejamento (ainda que burocrático) e não do mercado; a maior parte do sobreproduto é destinado às condições de vida do proletariado e não à apropriação privada via lucro. Porém um Estado proletário burocratizado: o PC segue exercendo o monopólio do poder político; não há outros partidos permitidos; legalizar organizações de cunho político-social é altamente burocrático; há formas diversas de censura; e o PC controla os candidatos a eleições através de filtros, tendo a palavra final sobre quem entra ou não nas listas eleitorais. (GOTT, 2006) Sem dúvidas, muitos dos problemas de Cuba advém do II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 105 isolamento nacional, que tem sua pior face no bloqueio imposto pelos EUA, que visa estrangular a revolução impondo escassez de recursos e por isso tem que ser denunciado e combatido por todos os progressistas e socialistas. Sem uma revolução nos centros imperialistas que ponha fim ao bloqueio e venha ao auxílio de Cuba, as conquistas de revolução não sobreviverão e não será possível a transição ao socialismo. Mas o isolamento também é perpetuado pelo conservadorismo da burocracia, que sabotou oportunidades que poderiam ter tirado Cuba do isolamento e, assim, amenizado suas consequências sobre as condições de vida e a economia da ilha. Diante de oportunidades como no Chile, Nicarágua e Angola, a burocracia cubana fez o que estava ao seu alcance para que esses processos revolucionários não levassem à expropriação da burguesia. Dessa forma, a burocracia cubana agiu tal qual a burocracia soviética: sabotando oportunidades revolucionárias, por medo de um possível envolvimento em novos triunfos atraísse ainda mais a ira do imperialismo e também por medo de que esses triunfos pudessem mostrar exemplos de democracia proletária que levassem a derrubada dessa burocracia pelos “seus” trabalhadores.3 Basta vermos que a burocracia cubana sempre esteve mais preocupada em apoiar governos burgueses ditos “progressistas” (Venezuela, Brasil) em troca de acordos comerciais do que com o triunfo de outras revoluções. Seu foco nunca foi o socialismo, mas sim manter seus privilégios e poder. O regime de ditadura da burocracia também é fonte constante de problemas, pois, conforme enfatizou Trótski, a 3 Sobre isso, recomendamos a leitura destes textos (em espanhol) escritos à época pela então revolucionária Spartacist League dos EUA: https://rr4i.noblogs. org/2011/02/20/cuba-exporta-la-traicion-estalinista/ e https://rr4i.noblogs. org/2011/06/20/nicaragua-una-nueva-cuba/. 106 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) propriedade socializada só pode ser gerida de forma eficaz através de um planejamento democrático, que envolva a autogestão dos meios de produção. O planejamento burocratizado (sem participação ativa dos trabalhadores) não contempla as reais necessidades sociais e gera constantes desperdícios e desequilíbrios, em prol de manter o privilégio material de uma casta de altos funcionários. (TROTSKY, 2005) Por isso, remover a burocracia através de uma revolução política que estabeleça uma democracia proletária como aquela dos soviets de 1917 também é uma tarefa fundamental para proteger os ganhos da revolução e garantir que Cuba rume ao socialismo. Ambas tarefas, a revolução mundial e a revolução política dentro de Cuba demandam a recriação de um partido revolucionário internacional da classe trabalhadora para levar tais processos à vitória. Não é possível contar com uma autorreforma democrática da burocracia, nem com coexistência pacífica com o imperialismo, como a experiência do século XX demonstrou amargamente (MONTEIRO, 2021). Revolução ou contrarrevolução são os dois únicos caminhos possíveis. Isso deveria ser o “ABC” do trotskismo. Contudo, há décadas as correntes “morenistas” alegam que o capitalismo foi restaurado em Cuba, abrindo mão de defenderem os ganhos ainda existentes da revolução e adotando posições de apoio a forças contrarrevolucionárias travestidas de defensoras da democracia, que usam a insatisfação da classe trabalhadora para tentar destruir o Estado proletário burocratizado e reconstruir em seu lugar um Estado sob controle da burguesia. É o caso, por exemplo, do PSTU e da LIT-QI e de quase todas suas cisões das últimas décadas. Fora do “morenismo” há alguns outros grupos trotskistas que adotam postura semelhante, em especial II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 107 os adeptos da pseudoteoria do “Capitalismo de Estado”, como os “cliffistas” do SWP inglês e seus grupos aliados. (MONTEIRO, 2016) Por outro lado, os grupos ligados ao Secretariado Unificado em geral adotam uma postura acrítica em relação ao regime de ditadura da burocracia, confundindo a defesa dos ganhos da revolução com a defesa política da própria burocracia – e fazem isso desde o início da revolução cubana, quando não se solidarizaram com os trotskistas cubanos que estavam sendo presos pela burocracia no começo dos anos 1960. Vários outros grupos seguem caminho semelhante, como os stalinistas. (MONTEIRO, 2016) Essas duas posturas, comuns a outros grupos dentro e fora do trotskismo, não contribuem para as tarefas que realmente podem salvaguardar a Revolução Cubana. Tarea Ordenamineto: as mudanças em curso em Cuba e seus riscos contrarrevolucionários A pandemia de COVID-19 causou enormes problemas econômicos para Cuba, pois afetou a principal fonte de recursos do país desde os anos 1990, o turismo internacional: seu PIB caiu cerca de 13% entre o início das medidas de restrição de circulação de pessoas, no começo de 2020, e seu relaxamento em fins de 2021. Trata-se do pior momento do país desde o colapso da URSS, com a qual Cuba tinha diversos acordos econômicos fundamentais para obter recursos como petróleo e maquinário industrial. Nesse contexto ganhou força a cúpula do PC cubano setores que já vinham há muito tempo defendendo a adoção de uma suposta “terceira via”, o chamado socialismo de mercado. É isso que está por trás da Tarea Ordenamiento, pacote de 108 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) reformas econômicas em curso desde janeiro de 2021. Em essência, os burocratas buscam na expansão da propriedade privada e das relações de mercado (inclusive a nível internacional) uma fuga para a escassez causada pelo bloqueio / isolamento nacional e para a ineficiência causada pela gestão burocrática da propriedade socializada. Mas, diferentemente do que alguns dizem, não se trata de algo como a NEP soviética, que foi um esforço de reconstrução da economia soviética que recorreu ao reestabelecimento parcial da propriedade privada e das relações de mercado, após a devastação da guerra civil de 1918-21. Não tem faltado declarações tipicamente liberais da parte de Diaz-Canel e dos órgãos oficiais de imprensa do regime, enaltecendo a “meritocracia” e condenando o “igualitarismo”. O objetivo da Tarea Ordanamiente é melhorar as condições da economia cubana (e também da própria burocracia), às custas de aumentar a desigualdade social e deseducar ainda mais a classe trabalhadora. As reformas econômicas estão retirando os subsídios estatais de vários setores da economia e permitindo a exploração da mão de obra assalariada em quantidades crescentes através da criação de pequenas e médias empresas, que se tornam “competitivas” graças ao desmonte de partes do setor público. Por exemplo, enquanto os restaurantes populares tiveram cortes drásticos no fornecimento dos alimentos que usavam para preparar as refeições vendidas a preços simbólicos, os estoques dos mercados atacadistas de ondem compram os restaurantes privados aumentaram enormemente. Para completar o quadro, um setor da burguesia dos EUA e da Europa vê com alegria tais mudanças, pois elas também abrem as portas para mais investimentos estrangeiros e, assim, maior reintegração de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 109 Cuba ao mercado mundial na condição de uma semicolônia. Desde os anos 1990, grandes hotéis e resorts já haviam passado para a propriedade de empresas estrangeiras, sobretudo espanholas. Agora, além da expansão das propriedades estrangeiras em Cuba, as novas empresas privadas cubanas estão recebendo incentivos do governo para negociarem insumos diretamente com fornecedores estrangeiros. Pode até ser que a economia sofra uma leva melhoria com as medidas de privatização e competição de mercado que vem sendo adotadas, mas milhares de trabalhadores já estão sofrendo com escassez de alimentos e perda do poder de compra de seus salários. Isso joga água no moinho das forças contrarrevolucionárias, que aproveitam a crescente insatisfação para convencer os trabalhadores de que o que fracassou em Cuba foi o socialismo, quando na verdade o que fracassou foi o stalinismo. Uma coisa é tolerar a escassez quando os governantes falam (ainda que hipocritamente) em igualdade e quando se vivenciou a revolução, como na crise dos anos 1990. Outra muito diferente é passar fome quando um setor da sociedade visivelmente melhora de vida às custas do seu sofrimento e você não tem ideia de como era pior para o trabalhador antes da revolução. Assim, com o aumento da desigualdade e o fortalecimento dos contrarrevolucionários, a instabilidade política se fará cada vez mais presente na ilha. Nesse cenário, setores cada vez maiores da própria burocracia, com toda certeza, verão mais vantagem em se tornar proprietários dos meios de produção, ao invés de seguir sendo meros gestores, cujos privilégios dependem da passividade do proletariado e de acordos políticos delicados entre a cúpula governante. Muitos nesse exato momento com certeza já estão se fundindo à camada de novos proprietários que as mudanças da Tarea Ordenamiento estão gerando, 110 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) pois são os grandes burocratas os que mais tem recursos para investir no nascente setor privado, a partir da acumulação de riquezas que obtiveram ao longo dos anos através de privilégios e currupção. Assim, não serão poucos os burocratas que buscarão a restauração plena do capitalismo e a construção de um novo Estado, burguês. Não estamos falando aqui de hipóteses distantes. Tudo isso já está acontecendo em Cuba. A Tarea Ordenamiento e a desigualdade que ela vem causando está na base dos protestos semi-espontâneos de 11 de julho de 2021, que em parte tinham teor progressista ainda quem sem liderança e programa claros. É também o que está na base das tentativas da direita contrarrevolucionária em surfarem na onda de insatisfação realizando protestos abertamente reacionários, como os de 15 de novembro do mesmo ano. A contrarrevolução espreita Cuba!4 Os desafios e as tarefas colocadas para a sobrevivência da Revolução Cubana Diante desse cenário, vemos o risco de se repetir a tragédia que marcou o Leste Europeu nos anos 1980 e precisamos lembrar: o triunfo da contrarrevolução burguesa na União Soviética e no Leste Europeu gerou uma catástrofe social, com enormes índices de desemprego, rebaixamento brutal do poder de compra dos salários, generalização da fome, queda da expectativa de vida, aumento dos suicídios etc. Tragédia essa que foi fruto de uma contrarrevolução capitaneada por setores da própria burocracia, que desejavam se 4 Recomendamos a leitura do texto As manifestações em Cuba e os diversos riscos de uma restauração capitalista, de julho de 2021 (https://rr4i.noblogs.org/2021/07/15/ as-manifestacoes-em-cuba-e-os-diversos-riscos-de-uma-restauracao-capitalista/). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 111 tornar burgueses, com apoio não só das potências imperialistas, mas também de forças contrarrevolucionárias neoliberais com certo apoio de massas, massas essas convencidas de que socialismo só poderia significar stalinismo. (MONTEIRO, 2021) Durante os eventos convulsivos no Leste Europeu nos anos 1980, os principais grupos que reivindicavam o trotskismo falharam miseravelmente. Quase todos se alinharam aos protestos de massa que tinham lideranças e programa neoliberais, os quais usavam a bandeira da “democracia” e a experiência negativa do stalinismo para jogar os trabalhadores no lado da contrarrevolução. “Mandelistas” (Secretariado Unificado), “morenistas” (LIT-QI) e “lambertistas” (CIR-QI), dentre outros, acreditavam que estava em curso uma revolução política e chegaram a comemorar a destruição dos Estados proletários burocratizados no Leste Europeu como um triunfo do socialismo. “Mandelistas”, ademais, ainda passaram todo um período encantados com as promessas de reformas desde cima feitas por Gorbachev e seus aliados, acreditando ser possível a própria burocracia dissolver sua ditadura e criar uma democracia proletária “sob pressão das massas”. (MONTEIRO, 2021; MONTEIRO, 2023). Sem terem feito o devido balanço dessas posições vergonhosas, os herdeiros de tais tradições revisionistas hoje cometem erros parecidos frente a Cuba, ao saudarem protestos cuja liderança é abertamente contrarrevolucionária, como aqueles de 15 de novembro – seja porque acreditam que Cuba é uma “ditadura capitalista”, como os “morenistas”, seja porque já faz muito tempo que adotaram como método se alinhar a toda e qualquer mobilização “popular”, acreditando que o caráter de suas bases falará mais alto do que o caráter de suas lideranças e programa e que terão inevitavelmente teor progressista, 112 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) como os grupos associados à diáspora do “mandelismo” e outros agrupamentos. Acreditamos que a única saída para Cuba é a reconstrução de um partido internacional revolucionário da classe trabalhadora, que em Cuba dirija a insatisfação popular contra o regime da burocracia rumo a uma luta pelo verdadeiro socialismo, apoiado em uma luta internacional contra o bloqueio imperialista e pela revolução mundial. É necessário rechaçar com clareza todo e qualquer movimento contrarrevolucionário em Cuba, inclusive apoiando a repressão a tentativas subversivas por parte dos inimigos da classe trabalhadora. Mas também é fundamental, para impedir um desastre capitaneado pela própria burocracia, impulsionar as tarefas associadas à revolução política antiburocrática: lutar pela legalidade aos partidos e grupos que defendem o socialismo; pelo retorno imediato dos subsídios que garantam condições de vida minimamente decentes aos trabalhadores; pelo fim dos privilégios dos burocratas; pela suspensão da Tarea Ordenamiento e seu perigoso incentivo ao setor privado. Por fim, é fundamental lutar para que seja o proletariado que tenha o controle da economia e da política, através de órgãos de democracia proletária, removendo a burocracia do poder e salvando a Revolução Cubana de ter o mesmo destino que a URSS. Vida longa à revolução cubana! Abaixo à Tarea Ordenamiento! Por uma revolução mundial contra o imperialismo e uma revolução política contra a burocracia cubana! Viva o (verdadeiro) socialismo! Referências bibliográficas TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. O que é e aonde vai a URSS. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 113 São Paulo: ‎Sundermann, 2005. GOTT, Richard. Cuba: uma nova história. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. ROMÃO, Morgana Moura; MONTEIRO, Marcio Lauria. O Stalinismo e a União Soviética segundo a interpretação de Leon Trotsky. Aurora - revista de arte, mídia e política, v. 13, n. 38, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/48667. MONTEIRO, Marcio Lauria. 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Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História Social, Niterói, 2016. MONTEIRO, Marcio Antonio Lauria de Moraes. Stalinismo, revolução política e contrarrevolução: o movimento trotskista internacional e a teoria do Estado operário burocratizado aplicada ao bloco soviético (1953-91). Tese (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós- 114 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Graduação em História, Niterói, 2021. MONTEIRO, Marcio Lauria. “Stalinismo, revolução política e contrarrevolução: o movimento trotskista internacional e a teoria do Estado operário burocratizado aplicada ao bloco soviético (1953-91)”. In: MONTEIRO, Marcio Lauria. Trótski em Permanência. Anais do evento online de 2021. São José do Rio Preto: Práxis Editorial, 2023. Versão online disponível em: https://rr4i.noblogs.org/2023/09/21/ stalinismo-revolucao-politica-e-contrarrevolucao-o-movimento-trotskistainternacional-e-a-teoria-do-estado-operario-burocratizado-aplicada-ao-bloco-sovietico-1953-91/. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 115 Trotsky e o enfrentamento ao fascismo: um quadro de referência para pensar o neofascismo no Brasil Áquilas Mendes Leonardo Carnut A contribuição de Trotsky sobre o bonapartismo no poder e o fascismo à espreita Para ampliar a reflexão do regime de legitimidade restrita que se implantou no país e que ganhou contornos cada vez mais intensos a partir do Golpe de 2016, com a ascensão do neofascismo com o governo Bolsonaro (2019-2022), nós entendemos que é fundamental compreender o caráter clássico de um regime bonapartista que tem em sua espreita, conforme as evidências históricas, o fascismo. Para essa incursão intelectual, convocamos as reflexões de Trotsky ao elaborar aproximações acerca do fenômeno do bonapartismo. Para esse autor, podemos sintetizar a compreensão desse regime ditatorial como: [...] o regime no qual a classe economicamente dominante, ainda que conte com os meios necessários para governar com métodos democráticos, se vê obrigada a tolerar – para preservar sua propriedade – a dominação incontrolada do governo por um aparato militar e policial, por um “salvador” coroado. Esse tipo de situação se cria quando as contradições de classe se tornam particularmente agudas; o objetivo do bonapartismo é prevenir as explosões. [...] A decadência atual do capitalismo não somente retirou definitivamente toda base de apoio à democracia, como também revelou que o velho bonapartismo se mostra totalmente inadequado: o fascismo o substituiu 116 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) (TROTSKY, 1935, tradução e grifo nosso). O interessante para a nossa atenção, na reflexão sobre o bonapartismo de Trotsky, é a sua associação entre o capitalismo em crise, o bonapartismo e o fascismo que se coloca à espreita. O que se pode extrair dos escritos de Trotsky é que bonapartismo e fascismo são definidos como regimes políticos correspondentes ao declínio histórico do sistema capitalista (fase que, em certa medida, vivenciamos no tempo histórico do capitalismo contemporâneo). Para tanto, Trotsky adverte: É exatamente com a guerra que se torna clara a decadência do capitalismo e, sobretudo, de suas formas de dominação democráticas. [...] O domínio político da burguesia cai, assim, em contradição não só com as instituições da democracia proletária (sindicatos e partidos políticos), como também com a democracia parlamentar, em cujos quadros se formaram as organizações operárias. Daí a campanha contra o “marxismo”, de um lado, e contra o parlamentarismo democrático, de outro (TROTSKY, 1932, p. 01, tradução nossa). Trotsky insiste em nos alertar que “[…] a decadência da sociedade capitalista põe na ordem do dia o bonapartismo, ao lado do fascismo e em ligação com este (TROTSKY, 1932a, p. 01, tradução nossa). Nas elaborações de Trotsky, as classes dominantes ao optarem, por um ou por outro desses dois regimes de crise dependeria, do caráter de ameaça da revolução proletária, considerando a capacidade de organização, de iniciativa e de direção dessa classe. Neste sentido, sob o comando do grande capital, o fascismo constituiria a forte expressão de uma guerra civil contra o proletariado (DEMIER, 2017; 2018). O projeto fascista adotado pelo capital seria a última tentativa para barrar II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 117 qualquer possibilidade de vitória da classe trabalhadora. Trotsky nos apresenta claramente essa ideia: “A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo como arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos (TROTSKY, 1932, p. 03, tradução nossa). Ainda, nesta perspectiva, Trotsky assevera: A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dolorido pode gostar de arrancar um dente […] E é quando a crise começa a adquirir uma intensidade insuportável que entra em cena um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena burguesia a um ponto candente e dirigir o seu ódio e o seu desespero contra o proletariado. Esta função histórica desempenha hoje na Alemanha o nacional-socialismo [...] (TROTSKY, 1932, p. 03, tradução nossa). Trotsky chama atenção que, de forma diferenciada do fascismo, um “regime de guerra civil aberta contra o proletariado”, o bonapartismo se constituiria essencialmente em um “regime da paz civil” assentado “sobre uma ditadura policial-militar” (TROTSKY, 1932). Tendo como objetivo proteger a propriedade capitalista diante da ameaça dos trabalhadores (e de forma mais geral se equivale tanto ao fascismo como a democracia burguesa), seu procedimento político seria o de, por meio de um forte aparelho de Estado, impedir a emergência da guerra civil defendida pelo fascismo, assegurando à sociedade burguesa distância das possíveis convulsões internas. Trotsky, simultaneamente à sua tentativa de apresentar teoricamente as diferenças entre fascismo e bonapartismo, procurou também evitar uma perspectiva que concebesse os dois regimes de um modo antagônico. Lembrando as semelhanças e pontos em comum entre estes regimes de crise, Trotsky destacou ainda a possibilidade de 118 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) que o fascismo, muitas vezes decorrente de um regime bonapartista, venha a se transformar numa modalidade mais estável deste último. Desse modo, Trotsky é assertivo na sua contribuição: O que temos dito demonstra suficientemente a importância de distinguir entre a forma bonapartista e a forma fascista de poder. Não obstante, seria imperdoável cair no extremo oposto, convertendo o bonapartismo e o fascismo em duas categorias logicamente incompatíveis. Assim como o bonapartismo começa combinando o regime parlamentar com o fascismo, o fascismo triunfante se vê obrigado a constituir um bloco com os bonapartistas e, o que é mais importante, a aproximar-se cada vez mais, por suas características internas, de um regime bonapartista (TROTSKY, 1932, tradução nossa). As palavras de Trotsky, situadas historicamente, devem servir de reflexão para a o quadro que se instalou no capitalismo contemporâneo, sobretudo no contexto brasileiro de Bolsonaro. Por sua vez, Demier (2018) nos lembra que, após a vitória eleitoral de Hitler e a consequente instauração do regime nazista na Alemanha, a direção da Internacional Comunista (IC) buscou rever a política estratégica que até então adotava diante do avanço do fascismo. A nova linha política orientava os Partidos Comunistas a realizarem “frentes antifascistas” juntamente com os partidos socialdemocratas de seus países e os setores “democráticos” de suas burguesias, formando assim “frentes populares” (DEMIER, 2018a). Em consonância com a estratégia da IC, mas de forma muito mais dura e efusiva, Trotsky também conclamava uma Frente Única para lutar contra o fascismo. Para ele, seria importante ter a compreensão do significado temeroso desse regime. Trotsky assinalava que: “O fascismo não é apenas um sistema de repressão, violência II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 119 e terror policial. O fascismo é um sistema estatal particular baseado na extirpação de todos os elementos da democracia proletária na sociedade burguesa” (TROTSKY, 1932, tradução nossa). Para Trotsky, era fundamental dispor de uma missão histórica urgente: a constituição de uma Frente Única Operária, acirrando a luta de classes. Contudo, a luta contra o fascismo não significa subordinarse politicamente aos reformistas. Trotsky argumenta que não deveria existir nenhuma plataforma comum com a socialdemocracia ou com os líderes dos sindicatos alemães, nenhuma publicação, nenhuma bandeira, nenhum sinal comum! Marchar separados, golpear juntos, ou seja, se porem de acordo apenas em como golpear, em quem golpear e quando golpear! (TROTSKY, 1933, tradução nossa). Assim, os ensinamentos históricos trazidos por Trotsky podem iluminar a esquerda revolucionária para refletir a ação táticoestratégica do presente. Em que pese as diferenças dos contextos sócio históricos, o neofascismo vivente na conjuntura brasileira apresenta as reminiscências de sua expressão do passado, contudo deve ser relida com suas atualizações. A Frente Única dos trabalhadores, proposta por Trotsky, deve ser uma ação necessária da classe trabalhadora atual para enfrentar o quadro de escalada neofascista no Brasil que, mesmo com a saída do governo Bolsonaro, permanece no âmbito das relações sociais nesse país. Por fim, é importante lembrar que a luta da classe trabalhadora não deve seguir por uma Frente no âmbito da institucionalidade, isto é, por meio de disputas no interior do Estado, evitando a ilusão da qual menciona Pachukanis (2017) ao se pensar que todos os cidadãos são “sujeitos de direitos”, principalmente, no seio da dinâmica atual do Estado social capitalista. Uma referência crítica para essa ilusão 120 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) diz respeito à contribuição de Edelman (2016). Para esse autor é necessário se contrapor a ideia de se contentar com as “conquistas” da classe operária – jornada de trabalho, férias remuneradas, etc – e sim concebê-las como “derrotas políticas”. Não se tem dúvida que as condições de trabalho haviam melhorado com essas “conquistas”, entretanto, a sua simples aceitação, acaba por abandonar qualquer ambição revolucionária de destruir o capitalismo, tomando os meios de produção. Não se deveria confundir a oposição capital/trabalho renovando-se numa aliança capital/trabalho. E, para esse autor, o instrumento principal desse último comprometimento havia sido o direito em sua forma (forma-jurídica). Neste sentido, a Frente Única dos Trabalhadores a que se refere Trotsky, inspirando a luta atual no contexto do capitalismo contemporâneo em crise, com expropriações sociais intensas na vida do trabalhador, deve ser forjada no âmbito da luta antifascista contra o capital e não na defesa exclusiva de apenas ‘um conjunto de direitos’. A crise capitalista e neofascismo É no contexto de dificuldade do capital para enfrentar a crise de longa duração, a “policrise” (ROBERTS, 2023), que o neofascismo de Bolsonaro encontra terreno fértil para germinar. Contudo, não se pode compreender o neofascismo como a causa da crise capitalista. Trata-se de um produto dela, emergindo como uma resposta da classe dominante para mitigar os malefícios produzidos pelo capitalismo neoliberal sob a dominância do capital fictício. Robinson (2019) vai, ainda, mais além, ao dizer que o neofascismo do século 21 pode ser compreendido na triangulação entre II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 121 o capital transnacional, o poder político repressivo do Estado e as forças neofascistas na sociedade civil. Neste sentido, seus projetos referemse a uma resposta mais contundente à crise capitalista, exacerbando o poder monopólico da violência física do Estado e vinculando-o à operação de medidas de contratendências à queda da lucratividade do setor produtivo, por exemplo, por meio da adoção de austeros ajustes fiscais em sintonia com o poder do império do capital. Voltemos ao entendimento da crise contemporânea do capital. Vivemos tempos de grande convulsão com o capitalismo contemporâneo, em que assistimos a uma longa crise ou longa depressão (ROBERTS, 2016), o que nos faz refletir sobre sua essência e a permanência dos problemas. Nesse caso, a forma política estatal vem convivendo com o crescimento do neofascismo no mundo, particularmente na América Latina (CARNUT, 2023a; CARNUT, 2023b; CARNUT, 2023c). Essa crise pode ser considerada uma “policrise” (ROBERTS, 2023; ROBINSON, 2023). Essa categoria, tratada recorrentemente na literatura crítica mais atual, expressa a confluência e imbricação de várias dimensões, quando se analisa toda a crise capitalista: econômica (inflação e depressão), ecológica (clima e pandemia) e geopolítica (guerra e divisões internacionais). Em vez de sair de uma recessão, as economias capitalistas permanecem deprimidas com menor produção, investimento e crescimento do emprego do que há muito tempo (ROBERTS, 2022). Esse longo período de depressão tornou-se mais incisivo após o colapso financeiro global de 2007-8 e continuou até 2019, quando parecia que as principais economias não apenas cresciam muito mais lentamente do que antes de 2007, mas caminhavam para um declínio. Segundo Roberts (2023a), quando se analisa a taxa de crescimento 122 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) do PIB em termos globais, é possível verificar que esta taxa diminuiu de 4%, entre 2003 e 2007, para 3%, entre 2015 e 2019 (ROBERTS, 2023a). Isso já se arrastava desde a segunda década dos anos 1970, com a queda da taxa de lucro do capital produtivo, com base na lei tendencial da queda da taxa de lucro em Marx (2017). A taxa de lucro do setor empresarial das empresas industriais e financeiras nos Estados Unidos caiu para menos de 7% nos anos posteriores à crise de 2007-2008 (KLIMAN, 2012). Kliman aponta que a tendência de queda da taxa de lucro, ao desacelerar a economia capitalista norteamericana, estimula a superprodução e a especulação, levando a uma crise financeira como causa imediata desse processo. Nesse cenário, a segunda tendência da acumulação capitalista se expressou nos últimos 40 anos, explicitando sua crise através do crescimento vertiginoso do capital fictício, na forma de títulos públicos, ações negociadas no mercado secundário ou como derivativos de todo tipo (CHESNAIS, 2019). O aumento dos ativos financeiros globais ocorreu de forma intensa na década de 1990. Em 2000, seu estoque era cerca de 112% superior ao de 1990. Em 2010, o crescimento foi de 91,7% em relação a 2000 e, em 2014, atingiu um aumento de 42% em relação a 2010, correspondendo a um expressivo valor de US$ 294 bilhões (NAKATANI; MARQUES, 2020). Como se não bastasse, ocorreu em seguida o crash da pandemia de COVID e a economia mundial sofreu uma forte contração. Com base em dados da UNCTAD, ela identifica essa situação de queda do PIB, do período de 2015 a 2019 até o período pandêmico de 2020 a 2022 (ROBERTS, 2023a). Em termos globais, caiu de um período para outro de 3% para 1,9 % respectivamente, nos países em desenvolvimento II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 123 diminuiu de 2,9% para 1,9% e, na China, de 6,7% para 4,5%. Com a crise pandêmica, é importante considerar o argumento central de Izquierdo et al (2021) de que há grande incerteza sobre a devastação humana causada pela pandemia em nível planetário, principalmente em termos de sua duração. No momento em que as principais economias estavam se recuperando da pandemia, o mundo foi novamente atingido pelo conflito Rússia-Ucrânia e suas ramificações para o crescimento econômico, comércio, inflação e meio ambiente. Soma-se a essas dimensões da crise a destruição ecológica causada pelo capitalismo. Wallace (2016) comenta que o agronegócio, em larga escala, atua na criação e disseminação de novas doenças. Isso porque as monoculturas de animais domésticos, criados em grande número e em pequenos espaços, implicam altas taxas de transmissão em ambientes com respostas imunológicas enfraquecidas. Ou seja, o aumento do aparecimento de vírus está intimamente associado à produção de alimentos e à lucratividade de empresas multinacionais. Por outro lado, é importante levar em consideração o iminente pesadelo do aquecimento global, conhecido como crise climática (ROBERTS, 2021). Mas a pergunta é: o que o neofascismo tem de importante para entender essa situação? Ora, ele aparece como uma mobilização política, difusa, mas forte o suficiente para alçar postos de comando no Estado. Desde aí, é que se justifica a necessidade da destruição da vida e do ambiente no sentindo de reafirmar a lógica – agora especulativa – do padrão de acumulação já ultraneoliberalizado. Beinstein (2018) demonstra ser própria do neofascismo o desprezo às pautas relacionadas à conservação do planeta, à matriz energética e outras pautas relacionadas ao meio ambiente. O neofascismo aposta que o 124 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ritmo imposto pela financeirização do capitalismo contemporâneo possa ser replicado em especial a exploração econômica da natureza. Tudo isto como se esta destruição a passos largos fosse o suficiente para ‘salvar’ o capitalismo da depressão de longa duração. Por isso, em 2023, no Fórum Econômico Mundial (WEF) em Davos, através da classe capitalista transnacional, como coloca Robinson (2023), eles discutiram as várias dimensões da “policrise”, mas pareciam à deriva sobre como restaurar o capitalismo. rejeitar a ameaça de revolta em massa vinda de baixo, como a da ultradireita e do neofascismo à globalização capitalista (ROBINSON, 2023). A dimensão do neofascismo no Brasil Antes de mais nada é importante reconhecer, sob uma análise referencial mais ampla, que o papel do neofascismo se apresenta intrinsicamente relacionado ao movimento geral do capital e sua crise de lucratividade dos setores produtivos e de um aumento vertiginoso do capital fictício, buscando enfrentar essa situação. Como já dito, Para Robinson (2020), o fascismo do século 21 pode ser compreendido na triangulação entre o capital transnacional, o poder político repressivo do Estado e as forças neofascistas na sociedade civil. Seus projetos referem-se a uma resposta mais contundente à crise capitalista, refundando a legitimidade do Estado e tornando-a mais restrita. Isto não quer dizer que os neofascistas, diferente do fascismo dos anos 30 e 40, que criticavam os “ritos institucionais” e a “política parlamentar” (PACHUKANIS, 2020) rejeitem as instituições burguesas. Ao contrário, utilizam-se dos procedimentos democráticos formais – como os processos eleitorais – para garantirem suas ações II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 125 políticas no âmbito do Estado (CARNUT, 2020). Contudo, quando alcançam do poder estatal acabam governando, com muita frequência, por meio de mecanismos autoritários, que juridicamente dependem da conjuntura doméstica. No caso do Brasil, os Decretos – largamente adotados, por exemplo, pelo governo Bolsonaro, rememoram os Decretos-Lei dos tempos da ditadura militar. Após os terríveis anos governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022), a imprensa internacional e parte da esquerda brasileira, ainda titubeiam em classificá-lo como neofascista. Mattos (2020) usa um conjunto de argumentos nos quais sintetiza a particularidade do neofascismo de Bolsonaro, avançando numa caracterização em que decompõe as distintas dimensões de sua ideologia, dos movimentos coletivos que o apoiam e de sua organização política, bem como das práticas no governo e da configuração particular do regime político atual. Para efeito deste ensaio, restringimo-nos a comentar brevemente algumas ações relacionadas aos setores sociais e a saúde em função do enfrentamento institucional requerido pela pandemia de COVID-19 durante o governo neofascista de Bolsonaro. O exemplo mais direto para descrever as práticas políticas do governo Bolsonaro relaciona-se à pauta econômica de retirada de direitos dos trabalhadores, intensificando a superexploração da força de trabalho e a utilização do fundo público prioritariamente pelo controle da acumulação privada. Neste sentido, constata-se a enxurrada de reformas ultraneoliberais encaminhadas ao Congresso no primeiro ano do governo (a tributária, a administrativa, a sindical e a previdenciária) sendo esta última aprovada logo nesse período. Destaca-se a PEC 186/2019 aprovada, em que condiciona a concessão de novo auxílio financeiro à população durante o segundo 126 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ano da pandemia, promovendo ataques diretos aos direitos dos servidores públicos. Ainda, merece destaque a PEC 196/2019 que atinge duramente a organização sindical, eliminando a sua unicidade, reprimindo suas mobilizações, rejeitando o limitado “direito de greve” estabelecido em lei, perseguindo lideranças sindicais e terminando com a contribuição sindical. Além disso, cabe mencionar as medidas de cortes drásticos de recursos às instituições de ensino superior e às agências de apoio à produção científica e programas de pós-graduação que não param de cessar por meio da atitude obscurantista de Bolsonaro. E, também, do ponto de vista da coerência entre o discurso ideológico do neofascismo e as políticas efetivas implementadas, não se pode atribuir a Bolsonaro o fato dele ter escondido o que vem realizando na crítica ao ambientalismo, em parceria com grandes construtoras para destruir áreas de proteção e sustentar um avanço violento do agronegócio na Amazônia. Essa combinação da ideologia neofascista com políticas concretas de restrição e enfrentamentos a direitos sociais se articula, como não poderia deixar de ser, à investida ultraneoliberal à saúde pública, por meio da diminuição de recursos orçamentários ao Ministério da Saúde em pleno vigor da pandemia do coronavírus, decretos presidenciais de restrição da atenção primária à saúde ao setor privado e ao novo modelo de financiamento desse nível de atenção. De forma sintética e profícua para nossa análise do regime político no governo Bolsonaro, Mattos (2020) é preciso: “o regime político é, por enquanto, dominantemente democrático-burguês – “deteriorado, em crise” e “blindado” às demandas dos subalternos. No entanto, ele já contém elementos da face autoritária (militarizada) e fascista a que ser referia Florestan quando examinava a ditadura” (p. 236). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 127 A articulação dos grupos empresariais por meio de uma trama complexa de relações tem sua expressão condensada na chamada “Coalizão Saúde”, grupo de associações e empresas que convergem no intuito de mercantilização dos serviços de saúde em relações públicoprivadas embricadas com ações governamentais, partidos políticos e, claro, na execução da política de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) em todos os níveis de atenção. Em que pese que o mix públicoprivado seja preconizado pelo SUS desde o seu nascedouro e encontre diversas expressões na organização do sistema, o tema relacionado ao momento histórico vivenciado com o neofascismo encontra nessa coalização sua expressão mais fascistizada (BRAVO, PELAEZ, MENEZES, 2020). Em março de 2020, com a decretação de emergência sanitária em função da pandemia do novo coronavírus, Bolsonaro e seu núcleo neofascista identificaram na covid-19 a oportunidade de manter um estado de ‘crise permanente’ que justificasse o peso da “mão militar” na condução do Estado, especialmente como forma de iludir o público mais despolitizado. Aliado à sensação concreta de perda de capacidade de compra e ao desemprego em alta na classe trabalhadora mais precarizada, juntamente com a herança de um ranço neoescravocrata da classe média, forjou a possibilidade de manipular politicamente a pandemia em uma retórica genocida (como “apenas uma gripezinha”), contando com uma burguesia associada ao seu projeto de maneira contundente. Neste contexto, parte do empresariado bilionário, a exemplo de Jorge Neval Moll Filho (da Rede D’Or, com US$ 11,3 bilhões); Dulce Pugliese de Godoy Bueno (Amil, com US$ 6 bilhões); Pedro de Godoy Bueno (Dasa, com US$ 3 bilhões); Maurizio Billi (Eurofarma, 128 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) com US$ 1,4 bilhão), aproveitou-se da situação de terra arrasada no SUS para lucrar com a demanda que foi drenada para o seu setor (LAPORTA, 2021). O caso mais expoente desse avanço dos negócios da saúde com a crise sanitária foi do Grupo Hapvida, que teve um crescimento de 62,7% da receita líquida, chegando a R$ 2,1 bilhões durante a pandemia de coronavírus. A Hapvida fez, ainda, uma série de empreendimentos recentes, como a compra do grupo São Francisco, maior operadora de saúde do Brasil. Candido Pinheiro Koren de Lima, do Hapvida (US$ 3,7 bilhões); Jorge Pinheiro Koren de Lima, do Hapvida (US$ 1,8 bilhão) e Candido Pinheiro Koren de Lima Junior (US$ 1,8 bilhão) são seus sócios (MAGNO, 2020), alguns deles ligados ao grupo Coalizão Saúde. É importante lembrar que os fascistas não chegam ao poder sozinhos, logo, o apoio de uma burguesia associada, aqui, no caso, o setor saúde, que encampe seu projeto, é essencial na sustentabilidade política do espectro neofascista no governo. Em troca do apoio da máquina estatal para avançar com seus negócios no mercado sanitário, aumentando sua rentabilidade, essa burguesia é omissa e mantém-se como cúmplice do projeto de genocídio do governo carreado por um “núcleo duro”, Considerações Finais Em que pese que o tempo histórico é outro, ao pensar o fascismo tendo como referência o quadro teórico e de ação política proposto por Trotsky em seu tempo é possível tirar conclusões importantes para pensar o neofascismo no período atual. Não é porque o governo Bolsonaro acabou que o processo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 129 de fascistização na sociedade civil não precisa ser enfrentado. Pelo contrário, assim como Trotsky em seu tempo direcionou a luta política para o enfretamento ao fascismo, mesmo quando não institucionalizado o mesmo devemos fazer em nossa conjuntura de maneira convergente e constante. A aliança por uma Frente Única é essencial e se coloca como tarefa nos dias hoje assim como ocorreu nos fascismos dos anos 1930. Contudo, a diferença reside na compreensão do processo vivenciado nos dias de hoje que, apresenta na esquerda, uma incapacidade de leitura do movimento do real em termos de neofascismos, e ao negar, desconsidera ações coordenadas por subestimar o problema. Além disso, as alianças políticas no Brasil especialmente que se configuraram para enfrentar – apenas eleitoralmente – o fascismo no Brasil, foi guiada pelo requentado receituário da esquerda liberal travestida de ‘socialdemocracia’ que, mais uma vez, não apresenta projeto novo. A tendência que está a se avizinhar demonstra que o avanço da extrema-direita fascista está forte no Brasil, e que a possibilidade de eles assumirem o poder em um novo pleito eleitoral é muito grande já que a sociedade civil, rachada e ressentida, ainda crê nas saídas políticas da crise de longa duração apresentadas pelo bolsonarismo. Sem compreender o quadro de referência sobre o fascismo, a esquerda está à deriva, vendo, desinformada, a força do irracionalismo fascista crescer diante dos seus olhos. Entre a ‘ignorância desnorteada’ ou a ‘perplexidade informada’, não há espaços para titubeios ao topar com o fascismo. Assim, mais uma vez a fortaleza da análise marxista coerente e acertada de Trotsky ainda pode ser considerada válida para sabermos como enfrentar o neofascismo no Brasil de 2024. 130 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Referências bibliográficas BEINSTEIN, Jorge. Neofascismo e decadência: o planeta burguês à deriva. Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB). Florianópolis: Instituto de Estudos Latino-Americanos –IELA: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, 2018. BRAVO, Maria Inês Souza; PELAEZ; Elaine Junger; MENEZES, Juliana Souza Bravo. A Saúde nos governos Temer e Bolsonaro: Lutas e resistências. SER Social, Brasília, v. 22, n 46, p. 191-209, 2020. https://doi.org/10.26512/ser_social.v22i46.25630 CARNUT, Leonardo. Controvérsias sobre o neofascismo na América Latina: notas sobre crise, dependência e neoliberalismo. In: Anais Niep-Marx, 2023b. p. 1-23. Acesso em : 15, jan, 2024. 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O processo histórico brasileiro, as particularidades do desenvolvimento do nosso capitalismo e de nossa formação social, radicalmente distintas do padrão europeu, ianque e mesmo dos nossos vizinhos latinoamericanos, caracteriza-se pela “via colonial” e “herança ibérica”, derivando em um tipo de capitalismo tardio, dependente e periférico estabelecido nas bases de uma sociedade agrária, senhorial, escravista e estamental. Esse tipo de capitalismo, tem raízes históricas na colonização portuguesa, na ordem do mercantilismo europeu em expansão desde o século 15. Dito isto, trata-se de analisar o desenvolvimento do Estado nacional, do capitalismo, da burguesia e do proletariado brasileiros, 1 Sociólogo (FESPSP), mestre em Serviço Social (Unifesp), doutorando em Economia Política Mundial (UFABC), estuda o “autoritarismo” brasileiro há duas décadas e é militante de movimentos populares de luta por moradia desde 2008. Contato: mmajr1975@gmail.com. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 135 considerando as particularidades da nossa formação social e modo de produção típico que estrutura e organiza a sociedade, no interior da ordem capitalista global, considerando o lugar do capitalismo brasileiro nessa hierarquia. Por fim, como lócus do processo de reprodução do capitalismo e espaço privilegiado da luta de classes, destaca-se a “questão social” e a luta de classes, tensionada pelo desenvolvimento do capitalismo brasileiro e as relações sociais de produção nas bases da “via colonial” e “herança ibérica”. Do ponto de vista de nossa formação social e modo de produção, temos como interlocutores alguns dos principais intelectuais do pensamento político e social brasileiro, enquanto que para analisarmos o capitalismo que aqui se estabeleceu em fins do século 19, no esteio do estágio de desenvolvimento do capitalismo global, o pensamento de Trotsky, Lukács e Marx deverão balizar esta reflexão. Refletir sobre o capitalismo brasileiro, consiste em analisar o processo histórico a partir da consolidação do Estado nacional, isto é, a Independência do Brasil em 1822. Caio Prado Júnior (1933), Sérgio Buarque de Holanda (1936) e Florestan Fernandes (1975), contudo, consideram a transferência da corte portuguesa em 18082 o marco fundamental da transformação da colônia em nação, ainda que submissa à metrópole lusitana. Ao lado da “abertura dos portos” para as “nações amigas” - leia-se, Inglaterra -, D. João VI de Portugal franqueava o mercado interno brasileiro ao comércio inglês, ao mesmo 2 Decorrente das guerras napoleônicas na Europa, conforme a invasão de Portugal em novembro de 1807, D. João VI resolve transferir a corte para o Brasil. A Revolução Haitiana, ocorrida entre 1791 e 1804, também despertava imenso terror em Portugal e nas elites escravocratas brasileiras, conforme o Brasil detivesse a maior população de cativos africanos do continente. Após se alastrar pelo continente os movimentos de independência na América Espanhola a partir de 1808, em 1815 o Brasil seria elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. 136 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) tempo em que transforma “profundamente a sociedade, na medida em que se estabelece o Estado brasileiro com todas as suas instituições políticas, jurídicas, burocráticas, culturais, econômicas, militares, científicas, dentre outras que tal empreendimento exige” (ANTONIO JUNIOR, 2020, p. 43). A despeito da autonomia política consagrada com a Independência, assegurando o poder político, conferindo alguma liberdade econômica para as elites locais, o embrionário capitalismo brasileiro se inseria na ordem global de forma tardia, dependente e periférica. A industrialização viria apenas no Segundo Reinado, não sem atritos e resistências, após a Guerra da Tríplice Aliança. A formação da classe trabalhadora brasileira, é enredada pelo Abolicionismo de um lado, a substituição do trabalho escravo pelo imigrante. Assim, a partir da década de 1870, com a ascensão do movimento Republicano, a expansão do café no Oeste paulista, o recrudescimento do Abolicionismo e a intensificação da imigração, estão dadas as bases para a industrialização no país, conforme a transferência e a acumulação de capitais decorrentes desse processo. Considerando a influência dos trabalhadores estrangeiros, sobretudo, italianos, espanhóis e portugueses, teremos nos primórdios da organização da classe operária brasileira, o predomínio do anarcosindicalismo, anarco-socialismo e do socialismo reformista, de acordo com a influência do positivismo vigente no país e das teses da II Internacional (BATALHA, 2000, KOVAL, 1982). Com efeito, segundo Prado Júnior (1962) e Fernandes (2006), em Evolução Política do Brasil (obra de 1933) e A Revolução Burguesa no Brasil (obra de 1975), a independência política de 1822 estabelece as condições fundamentais para a consolidação do II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 137 liberalismo econômico e político no país. Todavia, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro foi moroso, marcado por contradições e resistências, conforme as condições essenciais para a expansão do trabalho livre viessem apenas em 1850, após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, inaugurando “o paulatino processo que culminará com o movimento Abolicionista e as leis subsequentes que contribuirão para o fim da escravidão”. Promulgada apenas duas semanas depois, a Lei de Terras (1850) viria a assegurar “as bases jurídicas para a propriedade privada – latifúndio - no país” e a capitalização da terra, garantindo a manutenção de extensas propriedades nas mãos das oligarquias locais, restringindo o seu acesso aos pequenos agricultores, posseiros, ex-escravos e estrangeiros (ANTONIO JUNIOR, 2020, p. 42). Para Caio Prado (1962), conforme Portugal fosse um reino de agricultores, comerciantes e população reduzida, somente dividindo o ônus da exploração com a incipiente burguesia lusitana, repartindo o território das colônias em Capitanias Hereditárias - processo adotado antes nos Açores e na Madeira -, oferecendo concessões para a exploração do Pau-Brasil, o empreendimento da ocupação e exploração ultramarina seria viável. Tal como nos Açores e na Madeira, a mão de obra negra escravizada também seria utilizada em larga escala. Em Evolução Política do Brasil (1933), evidencia-se tanto a primazia do modo de produção e a subordinação ao capitalismo exterior, quanto a luta de classes na abordagem do processo histórico brasileiro, destacando os movimentos populares nas diversas revoltas que atravessaram o período compreendido entre as luta pela independência e o segundo Reinado. Em Formação do Brasil Contemporâneo (1942), constrói 138 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) a tese sobre a “via colonial” ou o “sentido da colonização”, tendo como corolário o caráter “dependente” e “periférico” do capitalismo tardio brasileiro, associado e subordinado aos interesses do capital estrangeiro, assim, destaca: No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos trópicos americanos. (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 31) Florestan Fernandes (1981), por sua vez, considerando o incipiente estágio de desenvolvimento das forças produtivas de Portugal e Espanha no século XVI, destaca que não eram suficientemente robustas para prover as “atividades mercantis” decorrentes da “descoberta, exploração e o crescimento das colônias”. Por essa razão, associam-se ao capital mercantil abundante nos Países Baixos e Veneza, atrás da tecnologia, capital, equipamentos e do mercado internacional, assumindo o papel de intermediários ou sócios menores no negócio. Assim, Florestan Fernandes em 1975, aponta a heteronomia do capitalismo brasileiro, de acordo com o seu lugar subalterno na divisão internacional do trabalho. Trata-se de uma espécie de capitalismo articulado com o modo de produção escravista, ao lado de um liberalismo limitado pela ordem senhorial-estamental. Deste modo, convivendo com tais forças estanques, acomoda-se a elas, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 139 conforme houvesse mais interesses convergentes que antagônicos. Gorender (1981, p. 11) explica que a “burguesia mercantil prospera nas formações sociais anteriores ao capitalismo, enquanto o agente organizador do modo de produção capitalista é somente a burguesia industrial”. Deste modo, em formações de capitalismo tardio e periférico, a burguesia industrial “pode engendrar-se, em grande parte, na própria burguesia mercantil, como sucedeu no Brasil e outros países, na medida em que certo número de comerciantes investe na indústria e organiza a produção de artigos, que antes se limitava a comprar e vender”. Portanto, considerando que o “capital industrial dirige a produção”, isto é, o movimento econômico interno, inclusive a agricultura, “a produção fabrica não apenas os artigos de uso, mas também o seu valor, sua mola propulsora é, no entanto, o ganho de mais valor, cujo berço é a esfera da produção, não da circulação” (MARX, 1989). De acordo com Florestan Fernandes (2006), a associação subordinada de capitais agrários e comerciais, incrementa-se com a ampliação do sistema de crédito bancário e financeiro, considerando a expansão da mão de obra e dos negócios estrangeiros relacionados à infraestrutura urbana, transportes, comunicações, enfim, os meios necessários ao escoamento da produção e ampliação do comércio interno e externo. Tal será a burguesia ascendente brasileira que, com a abolição da escravatura e o excedente de capitais, se tornará a nova força política aliada às velhas oligarquias agrárias, investindo na industrialização do país, conforme avance a escalada do capital imperialista global. Considerando que a elite senhorial-estamentalescravocrata era impermeável ao capitalismo, essencialmente antiliberal e antiburguesa, foi a pequena burguesia mercantil 140 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) - comerciantes ligados ou associados ao capital externo que prosperavam - que associada a essa elite, conforme a convergência de interesses econômicos e as exigências do capital transnacional, logrou incrementar a economia e alcançar status econômico e social. Destacando a “modernização conservadora” e a “autocracia burguesa” como o padrão da dominação burguesa no Brasil, Florestan Fernandes (2006) explica que perante a “emergência e expansão do capitalismo como uma realidade histórica interna”, deu-se uma “acomodação” de modelos econômicos distintos e até opostos. Diante dessa constatação, desenvolve a ideia central da sua tese, contornando os elementos fundamentais do capitalismo brasileiro: Dessa acomodação resultou uma economia “nacional” híbrida, que promovia a coexistência e a interinfluência de formas econômicas variavelmente “arcaicas” e “modernas”, graças à qual o sistema econômico adaptou-se às estruturas e às funções de uma economia capitalista diferenciada, mas periférica e dependente (pois só o capitalismo dependente permite e requer tal combinação do “moderno” com o “arcaico”, uma descolonização mínima, com uma modernização máxima). Sob esse aspecto, a mencionada acomodação tanto pode ser encarada como “historicamente necessária” quanto como “economicamente útil”. (FERNANDES, 2006, p. 209) Se tratava de engendrar meios modernos de “acumulação de capital” – como acontecera desde as transições do período colonial ao neocolonial e imperial -, articulando arranjos produtivos arcaicos apropriados para intensificar a “acumulação ampliada”. Na transição do “mundo pré-capitalista” para a consolidação do “mundo capitalista” e industrial, desde a Abolição e a República, a “oligarquia II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 141 não dispunha de base material e política para manter o padrão de hegemonia elaborado no decorrer do Império” (FERNANDES, 2006, p. 245), após o sistemático e perene processo que se segue desde as leis Eusébio de Queiróz e Terras de 1850. Assim, cumpria renovarse, recompondo as bases a partir da “ordem social emergente em expansão”, ou seja, a ascendente e próspera burguesia comercial associada ao capital externo. Através de sucessivas acomodações entre “conflitos de interesses da mesma natureza ou convergentes”, sem grandes rupturas, assegura-se a transformação “dentro da ordem”, estabelecendo a “consolidação conservadora da dominação burguesa no Brasil”, consagrando um tipo de dominação burguesa de caráter autocrático e inclinação à adesão a procedimentos explícitos e sistemáticos de “ditadura de classe”, subordinada às necessidades e interesses do capital externo. Deste modo, “para modernizar as formas de socialização, de cooptação, de opressão ou de repressão”, estabelece politicamente as pressões e/ou conflitos “dentro da ordem”, restringindo o espaço político através da “ordem legal”, assegurando o controle social por meio da tutela ou repressão (FERNANDES, 2006, p. 345). A propensão irresistível e deliberada para “empregar a violência” escancarada e “institucionalizada na defesa de interesses materiais privados” ou de objetivos “políticos particularistas”, consagra padrões autocráticos de “autodefesa e autoprivilegiamento”, consolidando o “nacionalismo burguês”, chauvinista e recalcitrante, que aproxima a “república parlamentar com o fascismo”. Isso nos coloca, certamente, diante do poder burguês em sua manifestação histórica mais extrema, brutal e reveladora, a qual se tornou possível e necessária graças ao seu estado de 142 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) paroxismo político. Um poder que se impõe sem rebuços de cima para baixo, recorrendo a quaisquer meios para prevalecer, erigindo-se a si mesmo em fonte de sua própria legitimidade e convertendo, por fim, o Estado nacional e democrático em instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva. (FERNANDES, 2006, pp. 345346). Florestan Fernandes (2006) explica que as “pressões dentro da ordem”, impulsionadas pelas classes exploradas – proletariado, camponeses, trabalhadores pobres -, associadas ou não a setores médios mais progressistas, quando aspiram transformar-se em um movimento revolucionário “contra a ordem”, as reações do “consenso burguês” ultraconservador, intransigente as reivindicações minimamente democráticas, diante da desigual “distribuição da riqueza e do poder” em uma sociedade de classes “dependente e subdesenvolvida”, via de regra, são sempre extremamente hostis e violentas. A República Oligárquica constitui o regime que consolida o triunfo da ordem burguesa e capitalista sobre a ordem senhorial e escravocrata. Conforme uma se transfigure na outra, expressando o momento histórico em que a velha ordem em ruínas entra em choque com a nova ordem social, predominando um “contínuo processo de formação e de dissolução”, de cima para baixo, estabelecendo aquilo que Gramsci consagrou como “revolução passiva”. O que se verifica, é que aquilo que a burguesia se mostra incapaz de realizar no plano privado, busca alcançar usando como “base de ação estratégica” a infraestrutura, “recursos e o poder do Estado”. Por essa razão - “autocrática”, conforme Sartoretto3 (2023) 3 Segundo Leonardo Sartoretto (2023, p. 37), a grosso modo, o projeto político-ideológico conservador, conforme a interpretação sociohistórica da realidade brasileira desenvolvida por intelectuais como Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 143 -, dirigiu o Estado para o centro das ações capitalistas, estabelecendo uma espécie de “democracia autoritária” consagrada pelo triunfo do projeto político-ideológico de Vargas de condução do desenvolvimento econômico nacional. Por outro lado, a atração das elites dominantes pela associação com setores militares, verifica-se pela tendência à “militarização do Estado e das estruturas político-administrativas”, consolidando esse padrão em “uma constante das nossas “crises” desde a proclamação da República”, passando pela repressão jurídicopolicial aos anarcossindicalistas nas décadas de 1910 e 20, até o “Estado Novo” e a ditadura de 1964. (FERNANDES, 2006, p. 357). A inexpressiva presença de estratos desfavorecidos “dentro da ordem” e a imensa massa de excluídos à margem ou “fora da ordem”, suscita o temor da radicalização em situações de instabilidade e crise da ordem burguesa de classes. Diante da possibilidade de alteração do “padrão de hegemonia burguesa”, manipulada por “setores intermediários” ou até mesmo pela “alta burguesia”, amplia-se o terror, tornando “a inquietação social algo temível”, diante do “obscurantismo intelectual e político” e do “padrão de reação” inflexível e intolerante que caracteriza a dominação burguesa brasileira, conforme os meios de “opressão e repressão” que dispõe, usa e abusa despudoradamente. Ao mesmo tempo, reitera uma narrativa recalcitrante, chauvinista, reacionária e agressiva de defesa da ordem, estabelecendo e naturalizando o terror, o arbítrio, a repressão e o extermínio como formas de enfrentamento das contradições, dissensos e antagonismos. Amaral, nas bases do positivismo e do cientificismo, balizaram o projeto modernizador autocrático de Getúlio Vargas desde 1930, intensificando-se a partir do “Estado Novo”. No âmbito da industrialização tardia brasileira, a “razão autocrática” afirma que “o país encontrou a si próprio, que a “razão” do povo brasileiro, sua forma brasileiramente de existir e de sentir, fora encontrada e sua evolução finalmente retomada”. 144 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) O Estado não tem por função essencial proteger a articulação política de classes desiguais, senão proteger o status quo. A sua função primordial consiste em suprimir qualquer necessidade de articulação política espontânea nas relações entre as classes, tornando-a desnecessária, uma vez que ele próprio prescreve sem apelação a ordem interna que deve prevalecer e ser obedecida (FERNANDES, 2006, p. 400). Nesse processo, o que se evidencia é que o “consenso burguês concilia a “tradição brasileira” de democracia restrita – a democracia entre iguais, isto é, entre os poderosos, que dominam e representam a sociedade civil – com a “orientação modernizadora” de governo forte” - leia-se, autoritário. Subordinado ao setor privado, o Estado “adquire estruturas e funções capitalistas, avançando, através delas, pelo terreno do despotismo político, não para servir aos interesses “gerais” ou “reais” da nação, mas, tão somente para “satisfazer o consenso burguês, do qual se tornou instrumental, e para dar viabilidade histórica ao desenvolvimentismo extremista, a verdadeira moléstia infantil do capitalismo monopolista na periferia” (FERNANDES, 2006, p. 406). Considerando o processo histórico brasileiro, de acordo com as particularidades que caracterizam a nossa formação e modo de produção social, nas bases do capitalismo tardio, dependente e periférico, Trotsky e Lukács nos ajudam a entender como esse tipo de formação enseja modelos de dominação autoritários (fascismo e nazismo), estabelecidos pelo irracionalismo filosófico de um lado e o desenvolvimento desigual e combinado de outro. Trotsky desenvolve a teoria do desenvolvimento desigual e combinado, segundo Löwy (1995, p. 75), por volta de 1905, destacando os “diferentes estágios”, arcaicos e modernos que organizam a produção e “não estão simplesmente um ao lado do outro, numa espécie de coexistência congelada, mas II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 145 se articulam, se combinam, “se amalgamam”. Portanto, o “processo do desenvolvimento capitalista”, demandado pela combinação de “condições locais (atrasadas) com as condições gerais (avançadas)”, sedimenta “um amálgama social cuja natureza não pode ser definida pela busca de lugares comuns históricos, mas somente por meio de uma análise com base materialista”. Em tal combinação, as relações engendradas pelo capitalismo tardio e periférico condicionam a luta de classes, determinando o modus operandi da dominação burguesa, estabelecendo a democracia nos marcos autoritários que pavimentam as vias da acumulação e exploração ampliadas, tal como na perspectiva “reformista” dada pela “via prussiana” e/ou “revolução passiva” indicadas por Francisco de Oliveira (2003, p. 126), por exemplo, em Crítica à razão dualista; O ornitorrinco. De acordo com Lukács (2020), o capitalismo tardio se caracteriza por engendrar as consequências e contradições da periferia e da dependência ao imperialismo. Löwy (1998, p. 74) destaca que Trotsky afirma que o capitalismo, “ligando todos os países entre si pelo seu modo de produção e seu comércio, fez do mundo inteiro um só organismo econômico e político”. O que se evidencia, é que consolidase a divisão global do trabalho de acordo com os distintos estágios de desenvolvimento do capitalismo, segundo a lei estabelecida por Marx (2008) na Contribuição à crítica da economia política (1857), em que afirma que “em todas as formas de sociedade, é uma produção específica que determina todas as outras, são as relações engendradas por ela que atribuem à todas as outras o seu lugar e a sua importância” (LÖWY, 1998, p. 73). Michael Löwy (1998, p. 75) destaca que se trata de uma análise que não é “apenas econômica, mas também social e cultural”. Assim, 146 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) relata que Trotsky observa que na Rússia do início do século 20, por exemplo, “a indústria mais concentrada da Europa”, a russa neste caso, assentava-se “sobre a base da agricultura mais primitiva”. Evidenciase que distintos “estágios de desenvolvimento” que, muitas vezes, não se situam apenas mecanicamente “um ao lado do outro”, em um dado tipo de “coexistência congelada”, mas, ao contrário, “se articulam, se combinam, se amalgamam”, isto é, se trata de uma relação de interdependência no processo de desenvolvimento capitalista. A decadência do capitalismo - e da filosofia burguesa -, tanto quanto o seu desenvolvimento, se dão igualmente de formas e em ritmos diversos (relação centro x periferia do capitalismo mundial) Portanto, a convivência perene com a democracia é insustentável, dada as crises inerentes ao sistema, e em especial, aquelas do capitalismo tardio. Aqui o fascismo cumpre o seu papel histórico, conforme a tensão e o acirramento da luta de classes decorrente das crises, no sentido de arruinar a classe trabalhadora, destruir as suas organizações, sufocar as liberdades políticas, quando os capitalistas se sentem incapazes de conduzir e dominar em bases democráticas (TROTSKY, 1975). Nesse sentido, cumpre estabelecer as bases sobre as quais assenta-se o fascismo: El fascismo encuentra su material humano sobre todo en el seno de la pequeña burguesía. Esta es totalemente arruinada por el gran capital. Con la actual estructura social, no tiene salvácion. Pero no conoce otra salida. Su descontento, su indignación, su desesperación, son desviados por los fascistas del gran capital y dirigidos contra los obreros. Del fascismo puede decirse que es una operación de dislocación de los cerebros de la pequeña burguesía en interés de sus peores enemigos. Así, el gran capital arruina primero a II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 147 las clases medias y enseguida, con ayuda de sus agentes mercenarios, los demagogos fascistas, dirige contra el proletariado a la pequeña-burgesía sumida en la desesperación (TROTSKY, 1975, p. 13). De acordo com Trotsky (1975, p. 19), a pequena burguesia se distingue por sua dependência econômica e heterogeneidade social, oscilando sempre entre os capitalistas e os trabalhadores. Muitas vezes, porém, se inclui nas hordas do lumpen-proletariado. Estas relações contraditórias entre os distintos estratos das classes médias, conforme sua situação econômica, faz com que seja incapaz de estabelecer uma política independente. Assim, suas estratégias políticas são sempre confusas, contraditórias, inconsistentes, vacilantes na luta de classes, conforme os interesses das bases proletárias de um lado, e a burguesia reacionária de outro para salvar os capitalistas. Portanto, é precisamente esta “desilusión de la pequeña burguesía, su impaciencia, su desesperación, lo que explota el fascismo”. Deste modo, a demagogia fascista mina as bases, “estigmatizan y maldicen a la democracia parlamentaria”. Nesse sentido, Trotsky é categórico: La victoria del fascismo conduce al acaparamiento directo e inmediato, por el capital financiero, de todos los órganos e instituciones de dominación, de dirección y de educación: el aparato del Estado y el ejército, las municipalidades, las Universidades, las escuelas, la Prensa, los Sindicatos, las Cooperativas. La fascización del Estado significa no sólo mussolinizar formas y procedimientos de direción - en este campo los cambios representan en fin de cuentas un papel secundario - sino, ante todo e sobre todo, destruir las organizaciones obreras, reducir al proletariado a un estado amorfo, crear un sistema de organismos que penetren profundamente en las masas y destinados a impedir 148 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la cristalización independiente del proletariado. Precisamente en esto consiste la esencia del rel régimen fascista. (TROTSKY, 1973, p. 27) Considerando que o fascismo nasce “de la unión de la desesperación de las clases medias y de la política terrorista del gran capital”, trata-se de uma reação do capital imperialista, posto que “el fascismo es un producto del imperialismo, del capitalismo monopolista” (TROTSKY, 1973, p. 258). Assim, ao passo que aniquila a democracia nas “velhas metrópoles”, o imperialismo sufoca, ao mesmo tempo, a ascensão democrática nas colônias e nos países atrasados e/ou periféricos. Lukács (2020) destaca como nas formações de capitalismo tardio e estados nacionais igualmente atrasados, como no caso alemão e italiano, prosperam formações que ensejam modos arcaicos e modernos, prevalecendo padrões autoritários de desenvolvimento do tipo consagrado como “via prussiana”. O Brasil se enquadra nesse tipo de formação de capitalismo tardio, em que padrões arcaicos e modernos se articulam, demandando superestruturas políticas autoritárias que asseguram a “acumulação ampliada”. Este cenário impõe questionamentos, suscitando reflexões e interpretações sobre esta realidade sombria. A restauração ou renovação do fascismo no Brasil e no mundo, ampliou a crise que grassava sobre diversos segmentos democráticos e no campo da esquerda desde a ruína do Bloco Soviético. Esse “novo” tipo de fascismo, até mesmo com inclinação nazista, embora antinacional, conforme seja ultraneoliberal, fez surgir neologismos como “neofascismo” e “protofascismo”, de acordo com as interpretações de intelectuais brasileiros como os professores Armando Boito Jr. (2018, 2019, 2020) e Virgínia Fontes (2019, 2021), dentre outros. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 149 Não há consenso sobre o assunto, há muita controvérsia e estudos. Todavia, não se ignora que haja um apelo social, midiático e político contundente em torno do termo “fascismo”, movimento de massas conservador, autoritário, nacionalista e imperialista, como forma de estigmatizar o “bolsonarismo”, movimento ultraconservador, neoliberal e antidemocrático brasileiro. O processo histórico brasileiro é absolutamente distinto do europeu e até mesmo dos demais países sulamericanos. A nossa formação e modo de produção em tudo diferem dos nossos vizinhos – em comum compartilhamos apenas o fato de termos sido colonizados por ibéricos a partir do século 16. A burguesia e o capitalismo brasileiro têm lugar em outra época e respondem a outros processos. A propósito, o segundo não surgiu da primeira no Brasil, conforme o padrão clássico europeu. Deu-se o contrário aqui, o capitalismo é que fez surgir uma próspera burguesia liberal que intensificou os negócios nas cidades, ampliando o mercado interno, de acordo com as exigências do mercado externo nos marcos da dependência periférica. Ao lado da grande lavoura escravocrata exportadora, surge uma rica classe de comerciantes, muitos deles estrangeiros, capazes de articular a produção rural com o sistema financeiro e de crédito, dinamizando a economia e ampliando as oportunidades de negócios. Conforme Florestan Fernandes (1981), o “moderno imperialismo”, nas bases das grandes “empresas corporativas”, ampliado sistematicamente no contexto da Globalização, sufoca os esforços para o “crescimento econômico autônomo e a integração nacional da economia” na América Latina, colocando-o à serviço dos interesses privados transnacionais. Enquanto nas nações capitalistas desenvolvidas a hegemonia ianque é compensada pelo Estado, a 150 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) indústria e a burguesia nacional, em função da carência de recursos materiais, tecnológicos e humanos, na periferia dá-se o seguinte: Em consequência, o processo de modernização, iniciado sob a influência e o controle dos Estados Unidos, aparece como uma rendição total e incondicional, propagando-se por todos os níveis da economia, da segurança e da política nacionais, da educação e da cultura, da comunicação em massa e da opinião pública, e das aspirações ideais com relação ao futuro e ao estilo de vida desejável. (FERNANDES, 1981, p. 23). Dito isto, conforme os interesses político-econômicos dos EUA, desde o final da II Guerra é que as economias e sociedades latinoamericanas vêm sendo reorganizadas nas bases do imperialismo ianque, com tendências fascistas mais ou menos dissimuladas, a despeito das características, potencialidades, vocações e aspirações nacionais ao sul do continente. Por essas razões, é importante enfatizar o processo histórico latino-americano e, sobretudo, o brasileiro, nas bases da crítica materialista-dialética, destacando as particularidades que caracterizam e condicionam a nossa formação social e o modo de produção, mediados pela reprodução do capitalismo e a luta de classes, considerando o seu estágio de desenvolvimento e lugar na ordem do capitalismo mundial. Deste modo, cumpre ampliarmos o debate com interlocutores latino-americanos, promovendo o intercâmbio de teses, alternativas e estratégias de resistência e enfrentamento à ofensiva neoliberal e autoritária que paira e se avulta sobre o continente latinoamericano. Embora o capital imperialista ainda ameace o continente. em sua versão ultraneoliberal e antidemocrática, flertando abertamente com elementos do fascismo, no esteio da crise econômica mundial desde II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 151 2008, não se ignora o processo histórico brasileiro, as particularidades de nossa formação e do capitalismo tardio, dependente e periférico que conformam a sociedade de classes, dinamizando a “questão social” e a luta de classes. Assim, tendemos a concordar com a tese de Sartoretto (2023, p. 29), concluindo que as bases teóricas - político-ideológicas - “acerca de nossa formação sócio-histórica”, produzidas pelos intelectuais conservadores, como “Alberto Torres, Oliveira Vianna e Azevedo Amaral”, designados genericamente como “autoritários”, “acabaram por definir o conceito de realidade brasileira, o qual, pela ampla disseminação ideológica, alcançou toda a sociedade daquele tempo”, acabando por se tornar “dominante”, encontrando a sua forma pura na ditadura Vargas do Estado Novo - resposta genuinamente nacional a ascensão do nazifascismo alemão e italiano, bem como do Salazarismo lusitano e do Franquismo espanhol, como alternativa para contenção à expansão do proletariado brasileiro desde a década de 1910, no esteio da Revolução Bolchevique e da Greve Geral de 1917, conforme os referidos intelectuais conservadores registravam não sem receio e temor. As particularidades desse tipo de pensamento autoritário brasileiro não cabe neste artigo, recomendo o livro de Leonardo Sartoretto (2023) para tanto, ou mesmo as obras dos referidos intelectuais - sim, no Brasil temos lastro teórico a respeito de projetos políticos e ideológicos “autoritários”, de modo que não precisamos transplantar os modelos europeus e os sobrepor aqui. Finalmente, concordamos com a assertiva de Trotsky, que afirma que o caráter específico do fascismo, só se pode entender no âmbito do capitalismo monopolista imperialista, sendo um absurdo chamar a um movimento autoritário de qualquer tipo, que tem lugar nos países semicoloniais, “fascista”, simplesmente porque declara sua 152 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) adesão a um líder e “uniformiza” - inclusive, em sentido literal - seus partidários. Em um país em que a parte mais importante do capital está submetida ao controle estrangeiro e o destino da nação é determinado pela dominação imperialista externa, ainda que compartilhe muitas características superficiais com o fascismo, só pode ser considerado fascista desde o ponto de vista das duas classes decisivas do capitalismo: o grande capital (burguesia) e a classe operária. Nesse sentido, ainda que haja arroubos com traços fascistas, e se intensifique a acumulação de poder político e econômico nas mãos dos grandes capitalistas, a classe trabalhadora e suas organizações estão longe de desaparecer, embora enfraquecidas e na defensiva, seguem se reinventando e renovando as formas de resistência, conforme novas crises criem novas demandas, promovendo novos atores políticos entre os explorados. Trata-se, sentencia Trotsky (1973, p. 293), de “evitar la confusión entre la tendencia moderna cada vez más clara hacia el “Estado fuerte” con una tendencia hacia la “acechanza del fascismo” o incluso “la abierta fascistización”. Referências bibliográficas ANTONIO JUNIOR, Mario Miranda. Tradição e contradição: autoritarismo e democracia no Brasil. 2020. 300f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social e Políticas Sociais) - Instituto de Saúde e Sociedade, Universidade Federal de São Paulo, Santos, 2020. BATALHA, Cláudio H. M. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. BOITO Jr. Armando. Reforma e crise política no Brasil: os conflitos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 153 de classe no governo do PT. Editora Unicamp. Campinas/SP, 2018. BOITO Jr. Armando. Por que caracterizar o bolsonarismo como neofascismo. Revista Crítica Marxista, nº 50. Unicamp. Campinas/SP, 2020, p. 111-119 BOITO Jr. Armando. O neofascismo no Brasil. Boletim LIERI. UFRJ. 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II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PARTE III ASPECTOS DA VIDA E PENSAMENTO DE TRÓTSKI 155 156 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky e o Marxismo: explorando suas contribuições teóricas Michelangelo Marques Torres1 Em situações revolucionárias2 alguns indivíduos elevamse acima de si mesmos, cumprem papeis decisivos na história. Lev Davidovich Bronstein, ou León Trotsky3 (pseudônimo que tomaria de seu carcereiro em 1902), viveu intensamente aquilo que podemos chamar de uma vida revolucionária. Sua obra confunde-se com o curso da sua própria trajetória política, dadas as perspectivas historicamente condicionadas. Além de um dos principais líderes estrategistas do século XX, foi um intelectual insubmisso que nos legou vastíssima obra teórica. Era um exímio orador (um dos maiores tribunos de todos os tempos, nas palavras de Hermínio Sachetta), portador de um irretocável discurso apaixonado e dirigido ao apelo à ação, dotado de grande estilo literário, um erudito revolucionário. Líder notável da Revolução Russa de 1905 e um dos principais estrategistas da Revolução de Outubro de 1917 (teórico e protagonista), organizador do Exército Vermelho em defesa do Estado soviético na Guerra Civil4, ocupou as mais altas hierarquias do partido bolchevique, 1 Professor do IFRJ, doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Email: michelangelo.torres@ifrj.edu.br 2 Em períodos revolucionários “o extraordinário se torna cotidiano”, já observara Lenin. 3 Optamos pela adoção da grafia Trotsky (utilizando o y ao final) em função do próprio uso do autor, que publicou parte considerável de suas obras no exílio e em idiomas distintos do russo. 4 Em entrevista de Maximo Gorki com Lenin, o líder bolchevique afirma a respeito de Trotsky: “Então citem um homem que seja capaz de construir em um ano um exército-modelo e que, além disso, tenha conseguido conquistar o respeito de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 157 o Comitê Central e o Birô Político. Divergindo da linha política adotada por Josef Stálin, organizou a Oposição de Esquerda em 1923 e a Oposição Unificada em 1926, encarando inúmeras represálias. Expulso, em 1927, do Partido Comunista da URSS pelo seu Comitê Central e pela Comissão de Controle, foi deportado no ano seguinte para o Cazaquistão e, em seguida, expulso da URSS (em 1929). Organizou a Oposição de Esquerda Internacional contra a burocracia estalinista e a degeneração da III Internacional5. Tornou-se, já no exílio, o principal dirigente e elaborador teórico da IV Internacional. Foi assassinado em 1940 pela GPU6, em Coyoacan, bairro da cidade do México, onde recebera asilo político três anos antes. Além de dirigente político e homem de ação, Trotsky foi um intelectual marxista. O desenvolvimento intelectual e político de Trotsky sempre foi determinado pelas circunstâncias de sua vida, dada a intensidade com que vivenciou os acontecimentos políticos de sua época, marcada por uma vida revolucionária dedicada à causa do marxismo. Tivemos a oportunidade de sistematizar de modo mais detido o legado político e teórico de León Trotsky em Torres (2022). Além de apresentar uma contribuição extraordinária ao arsenal teórico do marxismo, a concepção anti-determinista da história e a rejeição a qualquer automatismo economicista encontra em Trotsky uma referência. Afastando as leituras reducionistas predominantes no especialistas militares! Nós temos esse homem”. O exército vermelho, organizado em pouco tempo, sob direção do marxista ucraniano, chegou a possuir cinco milhões de membros. 5 Muitas das teses de Trotsky foram incorporadas ao arsenal teórico do Partido Bolchevique e serviram de base para as resoluções dos quatro primeiros congressos da III Internacional, fundada em março de 1919, em Moscou. 6 A GPU, cuja sigla em russo remete a Diretório Político do Estado, era um órgão de segurança da Rússia soviética, agindo como serviço de inteligência a serviço da polícia política secreta. 158 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) marxismo da II Internacional, seu classismo e internacionalismo lhe conferem radicalidade. Dada a complexidade de sua obra teórica, iremos nos restringir, neste artigo, ao resumo de quatro de suas contribuições teóricas centrais para o marxismo, o que constitui sua originalidade. Conforme observou um analista: “É em seu estudo da Revolução Russa e na teoria da revolução permanente, é em sua crítica da burocracia soviética, é em sua análise do fascismo e da frente popular que é possível encontrar a originalidade do pensamento de Trotsky” (BIANCHI, 2007, p.59). Poderíamos acrescentar outras contribuições, a saber, o Programa de Transição e o sistema de reivindicações transitórias, mas dados os limites deste paper nos restringiremos às quatro referidas contribuições. A Teoria da Revolução Permanente Um dos clássicos debates polêmicos do marxismo consiste na dualidade: revolução por etapas ou revolução permanente? Eduard Bernstein foi o primeiro grande influente autor revisionista do marxismo, teórico da social-democracia alemã e da II Internacional. Seu revisionismo reformista previa a possibilidade de colaboração de classes no novo estágio do capitalismo, conforme admite em As premissas do socialismo. Na esteira do abandono das perspectivas clássicas do socialismo, como a tomada do poder pela via revolucionária, a corrente reformista alemã, ala direita do PSDA, propunha uma transformação pacífica do capitalismo ao socialismo, por meio de reformas graduais, no marco da legalidade burguesa e de adaptação do movimento operário. Bernstein formulou teoricamente aquilo que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 159 muitos dos quadros dirigentes e líderes expressavam instintivamente. Tratava-se de “uma prática reformista indefinidamente prolongada, com avanços reais e continuados – poderia ser aceita pela maioria dos trabalhadores como o melhor, menos arriscado e mais prático meio de modificar o sistema social” (MANDEL, 1980, p.8). Bernstein considerava inconcebível a destruição do Estado e de toda burocracia. Não titubeou em buscar estratégia de reconciliação de classes por meio de alianças com partidos burgueses e liberais. No plano discursivo, o socialismo seria construído processualmente, a longo prazo e de forma gradual. Por isso seu foco estava no parlamento burguês. Se Bernstein operou o “revisionismo internacional”, Kautsky, no contexto da II Internacional, pode ser identificado com a origem do centrismo na esquerda. Para este autor, considerado então como o maior marxista da época, apesar de identificar o papel singular do partido (e sua atuação em âmbito parlamentar), admitia como transição ao socialismo a possibilidade de reformas graduais serem processadas nos limites da sociedade burguesa – estava em defesa da acumulação de forças lenta e gradual por dentro do regime capitalista, o que poderíamos denominar por “quietismo político”. Sua tese era a de que o partido não faz revolução, apenas acumula forças no interior da ordem burguesa, ao procurar conciliar a perspectiva do reformismo com a ideia de socialismo. Divergia de Bernstein quanto ao aspecto de abandono do socialismo, mas o advogava abstratamente por meio de reformas, jamais pela via revolucionária. Seu crescente distanciamento da perspectiva revolucionária pode ser conferido em sua afirmativa: “Por isso, não nos passa sequer pela mente querer provocar ou preparar uma revolução” (KAUTSKY apud Antunes, 1982, p.26). Esse debate influenciou profundamente os teóricos do socialismo entre a II e a III 160 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Internacional. Contrapondo-se às perspectivas reformistas e centristas de revolução por etapas, Trotsky é um dos principais expoentes em defesa da luta revolucionária pelo socialismo (junto com Lenin e Rosa Luxemburgo). Defensor de uma revolução permanente e mundial, notabilizou-se pela formulação original da teoria da revolução permanente. Combatente das perspectivas reformistas e centristas, o marxismo revolucionário deste autor traz uma enorme contribuição. Se a origem da expressão é de Marx, é com Trotsky, a partir de 19056, que a expressão revolução permanente ganha estatuto de uma teoria política. León Trotsky avança na compreensão intuitiva de Marx à luz da luta de classes segundo a qual a revolução deveria adquirir um caráter ininterrupto, conferindo-lhe o status de teoria. Contrapondo-se a linha campista de Berstein e do reformismo da II Internacional – e neste ponto León Trotsky foi pioneiro -, compara os processos revolucionários ocorridos na Revolução Francesa de 17891799, com o cenário revolucionário na Alemanha de 1848 e a Revolução Russa de 1905. Trotsky identificou que o processo revolucionário francês iniciado em 1789, com a queda da bastilha, fora interrompido pelo campo da moderação burguesa (tendo em vista a preocupação de preservar a estabilidade da sociedade burguesa diante do perigo da radicalização da república democrática jacobina). Já o cenário da primavera dos povos na Alemanha de 1848 revelou a insuficiência de um papel revolucionário na burguesia, a qual procurou frear, por meio da reação, qualquer processo revolucionário e radicalização popular, apoiando, inclusive, as forças conservadoras. Ao passo que a Revolução Russa de 1905, fracassada, também havia demonstrado ensinamentos decisivos quanto ao caráter contrarrevolucionário da II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 161 burguesia e sua incapacidade de levar a cabo uma revolução às últimas consequências. No caso particular da Rússia, tratava-se de um país com tarefas históricas inconclusas. Trotsky vislumbrou a necessidade de independência nacional e ruptura com a burguesia em condições históricas em que esta não era capaz de realizar essa tarefa dado seu caráter de força subordinada ao imperialismo. Portanto, em condições históricas específicas (dado o grau de desenvolvimento desigual e combinado, conforme veremos adiante), em função do grau de desenvolvimento da crise revolucionária, a disposição de luta ininterrupta dos sujeitos sociais envolvidos em um dado processo político pode empurrar a empreitada revolucionária até o limite. Uma vez impossibilitados de adiar as tarefas democráticas emergentes, os sujeitos sociais não-burgueses (e para Trotsky a aposta estava no proletariado a frente, enquanto sujeito social revolucionário, e o partido marxista na direção, enquanto sujeito político) substituem a burguesia nessa tarefa histórica e, em aliança com os setores oprimidos, radicalizam o processo para se atingir as demandas de uma revolução de transição ao socialismo. Nessas condições o sujeito social revolucionário é substituído em relação ao modelo das revoluções burguesas clássicas, abrindo caminho para uma revolução social de novo tipo. Dito de outro modo, o processo revolucionário em países periféricos apenas triunfaria sob a liderança proletáriasocialista. Do contrário a contrarrevolução triunfaria. Ou seja, a vitória representada pela derrubada dos resquícios do atraso seria a antessala de uma revolução ininterrupta de transição ao socialismo, não havendo qualquer abertura para etapas de reformas burguesas ou conciliação com o capital. 162 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky desenvolveu tal teoria após o fracasso do Ensaio Geral de 1905, quase que antecipando o que justamente viria a ocorrer na Rússia em 19177, e em certa medida, salvo as devidas proporções, as revoluções do pós-Segunda Guerra (China, Vietnã, Cuba, Coréia etc.) – embora, nestes casos, não tenham sido repetidas duas características determinantes do processo russo, a saber, o proletariado como classe social dirigente e partidos marxistas internacionalistas que estivessem a frente do processo revolucionário8. Em Balanço e Perspectivas (1906) há elementos que, de certa forma (ainda que sem a pretensão de cometermos qualquer anacronismo), parecem antecipar a revolução de outubro, destacando a centralidade de uma revolução urbana associada à guerra camponesa em um país periférico no sistema mundial de estados, sem entrega do poder à burguesia. Conforme dito, tratava-se de uma revolução de novo tipo, inédita na história, capaz de fundir tarefas democráticas e socialistas. Essa foi a primeira grande contribuição de Trotsky ao marxismo. Vejamos com maior atenção no que consiste, uma vez que tenha sido melhor desenvolvida em sua formulação posterior, em fins dos anos 1920. Em seus termos, “A revolução democrática, no decurso do seu desenvolvimento transforma-se diretamente em revolução socialista e torna-se, assim, uma revolução permanente” (TROTSKY, 2007a, p.208). Diante dessa ideia de uma revolução ininterrupta e 7 Para os mencheviques o governo provisório teria que ser formado em coalizão com a burguesia e os social-democratas conciliadores, ao passo que para a tese bolchevique que se consagrou, sob a direção de Lenin e Trotsky, o governo revolucionário de outubro deveria ser a ditadura do proletariado. 8 Apesar da confirmação histórica de sua teoria, essas duas premissas para o triunfo de revoluções anticapitalistas não se confirmaram nas revoluções do pósSegunda Guerra. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 163 permanente, abriu-se uma evidente polêmica com o marxismo russo da II Internacional que, dentre outros expoentes podemos mencionar Plekhanov, orientava-se sob uma leitura mecanicista e determinista da interpretação de Marx para a teoria da revolução, cujas análises apontavam para o fato de que primeiro, em países que não haviam passado por uma revolução burguesa, era preciso garantir as tarefas democrático-burguesas para depois lutar pelo socialismo. Além da necessidade do caráter internacional da revolução, a teoria da revolução permanente “em países de desenvolvimento burguês retardatário e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais” pressupunha o substitucionismo da burguesia enquanto classe revolucionária e a passagem das tarefas democráticas para as demandas de uma revolução proletária. A teoria da revolução permanente considera, assim, que as tarefas democráticas e nacionallibertadoras apenas poderiam ser concebíveis por meio da ditadura do proletariado9. Apenas uma aliança entre proletariado e campesinato (sob a direção política da vanguarda proletária organizada como partido comunista) contra a influência da burguesia, isto é, por meio da ditadura democrática do proletariado, as tarefas democráticas poderiam ser plenamente resolvidas. 9 Cabe observar que o termo “ditadura”, aqui, não remete, em hipótese alguma, às experiências históricas de regimes políticos autoritários e ditatoriais. A expressão “ditadura do proletariado” remete à conquista e exercício do poder político pelo proletariado pela via revolucionária, em contraste com a perspectiva de compromisso pela via parlamentar e pacífica para se construir o socialismo. É antagônico, portanto, às concepções segundo as quais é possível mudar o mundo sem tomar o poder. O termo é proveniente da terminologia de Karl Marx, ao enfatizar que a conquista do poder estatal e seu controle democrático pelo proletariado é o centro da mudança radical, ainda que o Estado seja uma forma política transitória, porém indispensável, para se construir as bases socio-econômicas do comunismo. Afinal, todo Estado é uma ditadura de classe, e por isso necessita igualmente ser superado, portanto abolido. 164 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Conforme aponta Michael Löwy (2015), a teoria da revolução permanente em Trotsky define um campo teórico a partir de três considerações articuladas: a) a possibilidade da revolução ocorrer ou se iniciar em países não-centrais do capitalismo; b) um desenvolvimento ininterrupto do processo revolucionário em direção ao socialismo, isto é, transição ininterrupta das tarefas democráticas com as tarefas socialistas em um mesmo processo revolucionário; c) a extensão internacional do processo revolucionário e sua dependência da escala mundial. Para uma compreensão mais detida na formulação de Trotsky a respeito da teoria da revolução permanente, sugerimos a leitura de Balanço e Perspectivas (1906) e A revolução permanente (1928), os quais devem ser lidos de modo complementar e tendo-se em vista os períodos históricos de fundo – o primeiro texto logo após o Ensaio Geral de 1905; o segundo, já sob o auge do aparato contrarrevolucionário estalinista. A Teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado Apesar do silêncio acadêmico nas ciências sociais (DEMIER, 2007), Trotsky fornece uma matriz interpretativa de novo tipo, cuja formulação antecede inúmeros referenciais teóricos que se opuseram as leituras “etapistas” pautadas em realidades esquemáticas acerca do desenvolvimento desigual em países não centrais, os quais analisam a dinâmica histórica de países subordinados ou de capitalismo tardio. Trata-se, no campo do marxismo, de um nítido rompimento com o mecanicismo e evolucionismo predominantes na Segunda Internacional. Recusando a teoria evolucionista das etapas históricas, conforme II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 165 vimos, a teoria da revolução permanente deve ser compreendida à luz da perspectiva do desenvolvimento desigual e combinado. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado10 é uma ferramenta analítica extremamente útil para se compreender a formação social dos estados nacionais sob a época do imperialismo. Trotsky identifica que as soluções que as potências capitalistas encontram para as contradições da época imperialista seriam as contrarrevoluções e as guerras. A teoria do desenvolvimento desigual e combinado contempla dois processos que consideram tanto a expressão particular da formação social de um estado nacional quanto do caráter universal e externo que lhe condiciona: desigualdade e combinação. Em processos transformativos, ocorre a combinação de características que combinam diferentes etapas da vida social com a fusão de diferentes fatores históricos de progresso social. Não há, portanto, formas rígidas e pré-determinadas de como cada etapa de progresso social se realiza em cada formação social específica. Sob tal prisma, o desenvolvimento de nações pré-capitalistas leva a se produzir diferentes etapas de desenvolvimento histórico, saltos progressivos não acompanhados pelo mesmo ritmo e etapas pelas quais passaram países centrais do capitalismo. A teoria da revolução permanente, sob a luz da perspectiva do desenvolvimento desigual e combinado, questiona a hipótese atribuída ao marxismo clássico11, segundo o qual a possiblidade 10 Designaremos por teoria o que Trotsky chama por Lei do desenvolvimento desigual e combinado por acharmos mais apropriado, conforme esclarece Bianchi (2007). 11 A rigor, esta hipótese não é de Marx (que inclusive questionou a capacidade da burguesia alemã liderar uma revolução burguesa autêntica em 1848, mas de marxistas posteriores (ainda que encontramos apoio desta ideia em alguns dos textos de Marx e Engels). Inclusive a partir de 1877, Marx passa a considerar a hipótese revolucionária 166 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de ocorrência de revoluções socialistas está nos países centrais do capitalismo (“adiantados”), uma vez que quando as revoluções democráticas ocorressem em países periféricos (“atrasados”), estas não seriam repetições do esquema clássico das revoluções burguesas tradicionais, teriam a função de desenvolver as forças produtivas do capitalismo nesses países e a classe proletária, então, acumularia forças. Nesse esquema clássico, as tarefas das revoluções nesses países seriam as mesmas dos países que passaram por revoluções burguesas clássicas, a saber, derrubada do absolutismo, instauração das liberdades democráticas e do sufrágio universal, desenvolvimento nacional e modernização do país nos marcos do regime burguês. O caráter democrático-burguês do processo impossibilitaria substituir a burguesia e seus partidos representativos na direção do processo revolucionário. Uma vez realizada a revolução bolchevique, Trotsky observa que o socialismo na Rússia era dependente da revolução alemã para se expandir na Europa. No entendimento de Trotsky, era necessário se ampliar a teoria da revolução permanente para países periféricos, tendo-se em vista sua perspectiva do desenvolvimento desigual e combinado. “A construção socialista só é concebível quando baseada na luta de classes em escala nacional e internacional. (...) A revolução socialista não pode se realizar nos quadros nacionais” (TROTSKY, na periferia do sistema, como era o caso russo, não atrelada à dinâmica das forças produtivas dos países centrais, observando as condições concretas da Rússia do século XIX, conforme se pode notar em correspondência com a revolucionária Vera Ivanovna Zasulitch e Marx, em 1881 (MARX e ENGELS, 2013), descobertos por David Riazanov, em 1911. Na Rússia, conforme já mencionado, um importante expoente da mencionada perspectiva etapista e eurocêntrica foi Plekhanov. Contudo, o esquema rígido e mecanicista permaneceu tradicionalmente atribuído à Marx. Nesse sentido, Trotsky apresenta um arcabouço interpretativo que rompe com o etapismo economicista e eurocêntrico. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 167 2007, p.208). A teoria em si foi mobilizada, ainda, em textos em que Trotsky estudou o desenvolvimento da Espanha ou da China. Mas é em sua História da Revolução Russa que Trotsky formula de modo preciso sua compreensão sobre o desenvolvimento desigual e combinado em países periféricos, conforme destaca a passagem a seguir: “As leis da História não têm nada em comum com o esquematismo pedantesco. O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e complexidade do que no destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se vêem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas.” (TROTSKY, 2007b, p.21). Trotsky dá um salto em relação a noção de desenvolvimento desigual, a qual considerava as particularidades de cada desenvolvimento social diferenciado em países periféricos e sua dinâmica de não reprodução da história e do desenvolvimento econômico dos países centrais. O próprio Lenin já havia destacado tal noção em Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, como sendo uma dinâmica própria do capitalismo. Curioso notar que, posteriormente, Stálin transformou a “lei do desenvolvimento desigual” para justificar, em um malabarismo teórico, a “teoria do socialismo em um só país”12 a fim de justificar a 12 Apesar de Stálin ter duramente defendido a teoria do socialismo em um só país para justificar a burocracia de seu regime, até o final do ano de 1924, antes de 168 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) burocratização do regime. Trotsky identificou que a particularidade do atraso Russo dialeticamente associada a elementos de modernização estava combinada, isto é, em conexão com o desenvolvimento do capitalismo da Europa central, ou seja, as relações sociais pré-capitalistas se combinariam com pressões exteriores do mundo capitalista às quais estariam subordinadas, fundindo diferentes fatores históricos mediante uma dialética da combinação (NOVACK, 1988). O desenvolvimento da Rússia se caracterizaria pelo seu atraso histórico, o que não queria dizer que teria que seguir uma linha evolutiva até atingir o desenvolvimento dos países centrais, mas constituiria uma formação social de novo tipo. Se foi em 1906 que Trotsky formulou a teoria, na década de 1930 ele a retoma levando em conta as perspectivas dos rumos políticos que havia tomado o estado soviético, analisando sua natureza social. Agora, a análise de Trotsky, não mais jovem, seria em torno da defesa do marxismo e do internacionalismo, isto é, a necessidade de uma revolução política que derrubasse o estalinismo e preservasse os avanços revolucionários bolchevique. Como frisou e tem texto que ficou conhecido pelo título Em Defesa do Marxismo, a crítica à burocracia soviética estaria subordinada à preservação da propriedade ascender ao poder, na esteira de Lenin parecia questionar essa perspectiva: “Mas a derrocada do poder da burguesia e o estabelecimento de um poder do proletariado em um país não significa ainda que a vitória completa do socialismo tenha sido atingida. Depois de consolidar seu poder e atrair os camponeses para seu caminho o proletariado do vitorioso país pode e deve construir uma sociedade socialista. Mas isso significa que ele possa atingir a vitória final e completa do socialismo, isto é, que possa com as forças de apenas um único país finalmente consolidar o socialismo e proteger completamente o país contra intervenções e, conseqüentemente também contra a restauração? Não, isso não. Para tal é necessária a vitória da revolução ao menos em vários países.” (STALIN, 1954, p. 111.) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 169 estatal sobre os meios de produção e à revolução proletária mundial. Caso estes elementos não se desenvolvessem haveria um único desdobramento para o futuro soviético: a restauração capitalista. Curioso notar o pioneirismo de Trotsky com essa perspectiva teórica, a qual identifica no sistema mundial um dinamismo econômico que não exclui, mas articula elementos arcaicos de organização da sociedade e as formas persistentes de desigualdade, relacionando centro-periferia. Essa contribuição teórico-metodológica antecedeu em muito a leitura que importantes referências do pensamento político iriam interpretar, por exemplo, o desenvolvimento das particularidades do capitalismo brasileiro, como Caio Prado Jr e Florestan Fernandes. Teoria do Estado Operário Burocratizado e a Degeneração do Partido “Marx falou sobre a ditadura do proletariado e sua progressiva desaparição. Porém, não disse nada sobre a degeneração burocrática da ditadura. Pela primeira vez, na prática, analisamos e observamos uma degeneração semelhante” (TROTSKY, 2011b, p.55). Apesar de defender as conquistas do processo revolucionário, Trotsky foi um feroz crítico à forma política assumida pelo Estado operário burocraticamente degenerado, em um processo gradual que se inicia em 1922 e vai ganhando contornos mais nítidos ao longo daquela década. Nosso autor dedicou-se à luta contra o estalinismo e a burocracia na URSS, tendo em vista sua direção burocratizada (contrarrevolução burocrática) e a cristalização de seus privilégios (privilégios sociais ligados ao monopólio do poder político). Distintamente de qualquer projeção autoritária, a base da defesa de emancipação em Trotsky 170 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) está na auto-organização da classe trabalhadora enquanto princípio de qualquer sociedade revolucionária. A defesa dos soviets democráticos e com ampla participação popular é um dos pilares da democracia socialista e da sustentação de um Estado operário por ele defendida. Em sua perspectiva, não há socialismo sem democracia, e vice-versa. Conforme notou, o acoplamento entre os órgãos do partido e do Estado, sob direção de cúpula do Secretariado Geral, gerou “um certo prejuízo à liberdade e à elasticidade do regime interno do partido” (TROTSKY, 1980, p. 69) É preciso resgatar historicamente a posição que Trotsky defendeu acerca da natureza social das sociedades que compunham o chamado Leste Europeu sob influência soviética. Entre 1923 e 1927, a Oposição organizou a crítica ao estalinismo, mas é em 1928 que Trotsky intensifica sua crítica à burocracia estalinista, na ocasião do VI Congresso da Internacional, caracterizado pelo giro utlraesquerdista do “terceiro período”13. É deste período o esforço de Trotsky em demonstrar a ruptura programática da direção da III Internacional, em particular o programa de Bukharin e da fração estalinista, com o bolchevismo. É também a partir deste Congresso a adoção da política consagrada como “teoria do socialismo em um só país”, objeto de crítica de nosso autor. Não obstante, a crítica de Trotsky atinge o ápice de uma crítica mais madura e contundente em 1933, a partir da vitória de Hitler na Alemanha14. Até então, Trotsky definia a burocracia como centrista, 13 Para entender as críticas de Trotsky ao referido congresso, ver “E agora? Carta ao VI Congresso da Internacional Comunista”, disponível em Trotsky (2010). 14 Já em 1929 Trotsky afirmava que a chave da situação internacional estaria na Alemanha, cujo desfecho se daria anos seguintes, com a derrota do proletariado (e os vacilos políticos para se derrotar o nazismo) e consolidação do regime nazi-fascista que, transcorrido uma década, desencadearia a II Guerra Mundial. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 171 denunciando seus zigue-zagues na política, desvinculada da estratégia da revolução mundial e da construção de partidos comunistas revolucionários. A partir da leitura da burocracia estalinista não mais considerada como centrista e das derrotas das experiências dirigidas pelo estalinismo no plano internacional, Trotsky e a Oposição de Esquerda Internacional afirmam a necessidade da construção de uma nova Internacional, projeto que se empreenderia a partir de 1938. Após a doença de Lenin, Trotsky envolveu-se em duras polêmicas e disputas fracionais no interior da URSS e do partido bolchevique. O número de funcionários das instituições estatais saltaram, em quatro anos, de 115 mil para cerca de 6 milhões (totalizando 11 milhões se somados os 5 milhões do Exército Vermelho), ao passo que a classe operária havia se reduzido para quase a metade no mesmo período entre 1917 e 1921. Em A Revolução Traída (1937), Trotsky analisa os motivos que levaram a degeneração do estado operário soviético e defende a necessidade de uma revolução política que preservasse as bases sociais das conquistas revolucionárias bolchevique como urgência, do contrário o caminho que restaria a URSS seria a restauração capitalista, provavelmente conduzida, inclusive, pela própria burocracia. Impressiona o prognóstivo que havia feito, se observarmos os rumos da URSS nos anos 1980. Já nos anos 1920 Trotsky reconhecia na URSS a existência de uma economia em transição, e não de uma economia socialista. Notou a existência de uma burocracia enquanto nova força social (uma casta) que se orientava por privilégios sociais associados ao monopólio do poder político, o que se agravaria com o chamado Termidor Soviético enquanto contrarrevolução burocrática. A repressão interna do regime se acirra. Em 1929 entra em vigor o emprego generalizado de campos 172 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de trabalho para os detidos condenados a mais de três anos de prisão e a coletivização forçada. Entre 1936-1938 ocorrem os Grandes expurgos. Nesse contexto: “mais da metade dos delegados do Congresso de 1934 foi eliminada. Mais de 30.000 quadros do exército, entre 178.000, foram presos. (...) Segundo as estatísticas analisadas pelo historiador Moshe Lewin, o pessoal administrativo passou de 1.450.000 membros em 1928, para 7.500.000 em 1939. O número de “colarinhos branco” cresceu de 4 milhões para cerca de 14 milhões. O aparelho de Estado devorava o partido que acreditava poder controla-lo.” (BENSAID, 2019, p.30). Em A natureza de classe do Estado Soviético (1933) as caracterizações do estalinismo como aparato contrarrevolucionário mundial e da URSS como Estado operário degenerado passam a ser evidentes. Trotsky passa a identificar na URSS a existência de um Estado operário burocraticamente degenerado, um híbrido histórico que estaria fadado a transitoriedade e à restauração capitalista. Por isso a tarefa central seria a derrubada política da burocracia termidoriana na URSS sob a defesa do regime bolchevique que fora desfigurado. Com efeito, a defesa das bases da revolução social de outubro caminhava pari passo com a necessidade de uma revolução política que destituísse o estalinismo15 e a burocracia do comando 15 Em linhas gerais, o estalinismo, como aparato contrarrevolucionário mundial, caracteriza o processo que tem início em 1928 (para alguns, já em 1923) na URSS, de caráter totalitário, burocrático e contrarrevolucionário. A tese que defende a construção do socialismo em um só país significou, historicamente, a destruição do internacionalismo como uma corrente influente no movimento operário internacional, dissolvendo, inclusive, a III Internacional. O regime estalinista expressou a degeneração burocrática do Estado proletário soviético - URSS - e do próprio partido bolchevique num contexto de conversão dos PCs, auto-denominados “marxista-leninistas”, em satélites de Moscou, com regimes internos burocráticos não II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 173 do partido e da URSS, acompanhado de uma série de reivindicações democráticas. Tal perspectiva encontra em Trotsky o principal elemento teórico e militante. Em oposição à tese de “socialismo em um só país”16, estratégia estalinista17 de transição ao “socialismo” dentro das fronteiras nacionais e de coexistência pacífica com o capitalismo e seu sistema internacional de Estados, Trotsky resgata a teoria da revolução permanente enquanto estratégia fundamental para transição ao socialismo. Em síntese, Trotsky destaca que o ritmo do desenvolvimento histórico e de situações revolucionárias se realiza por meio de um “desenvolvimento desigual e combinado” e que as lutas revolucionárias devem estar em permanente conexão com o internacionalismo (escala global, nunca restrita a escala nacional). Tal perspectiva defende a transição ininterrupta das tarefas democráticas nacionais com as tarefas socialistas, isto é, um desenvolvimento ininterrupto do processo revolucionário em direção ao socialismo em mais centrados na herança organizativa da experiência revolucionária bolchevique, de centralismo democrático. Ao nosso ver, tratou-se de uma derrota histórica do movimento operário internacional, abalando profundamente a agenda política da esquerda mundial, em dimensões teóricas, organizativas e programáticas. Para uma boa caracterização a respeito, consultar Trotsky (2005). 16 Vale lembrar que, conforme registra Broué, Josef Stálin dissolveu unilateralmente a Internacional Comunista (III Internacional) em acordo com a orientação de Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt em negociação de Ialta, em 1945, a qual selou a ordem internacional do pós-Guerra. Tratou-se de um acordo contrarrevolucionário. 17 A tradição estalinista foi amplamente divulgada nos manuais soviéticos, impactando os PCs (Partidos Comunistas) satélites de Moscou, que destacavam questões fechadas e deterministas, correspondendo, portanto a um nível de análise representativo do reducionismo economicista e mecânico. Como aponta Mattos (2005, p.40) “Embora as referências a Stálin já não estivessem mais tão presentes nas atualizações dos manuais soviéticos posteriores ao fim dos anos 1950, (...) é inegável nesse tipo de concepção a força das teses stalinianas”. Mesmo antes de Stálin, vale lembrar, as leituras reducionistas do marxismo já haviam sido expressas no final do século XIX, durante a II Internacional, a exemplo de Plekhanov (1980). 174 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) escala internacional. Em oposição ao estalinismo, nesse sentido, há uma “ruptura seminal de Trotsky com esse modelo mecanicista de transição socialista” (LÖWY, 2015, p.15). Trotsky passa a caracterizar a URSS como um Estado operário burocraticamente degenerado. Em 1936, em A revolução traída, expõe a degeneração do partido bolchevique sob o estalinismo, um aparato contrarrevolucionário mundial que, apesar de ser o oposto, apoiava-se na reivindicação das tradições da Revolução de Outubro e na autoridade de Lenin. Em Stalinismo e bolchevismo, de 1937, afirma a incompatibilidade entre bolchevismo e estalinismo após a degeneração do partido, os expurgos e a aniquilação da velha geração bolchevique e da juventude que reivindicava sua tradição. No exílio da URSS, Trotsky caracterizou-a como um estado operário (que mantinha os fundamentos econômicos da revolução, como a nacionalização da terra e dos meios de produção e o monopólio do comércio exterior), porem degenerado em função da expropriação do poder político em uma camada parasitária e burocratizada. Em carta a James Cannon, dirigente trotskista da seção norte-americana, Trotsky afirma que o regime totalitário na URSS “é uma deformação de um Estado operário em um país atrasado e isolado”18. Tratavase, em sua caracterização, de uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo. Por isso o programa de transição reforça no Leste Europeu (como era o caso da Polônia) a luta contra a burocracia a partir da mobilização contra a opressão política e as desigualdades sociais (direito de ter sindicatos independentes, greves por salários, liberdade contra censura etc) e, paulatinamente, se questionar toda a base do poder político burocrático. 18 Carta a James P. Cannon, 12 de setembro de 1939. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 175 Em um de seus últimos trabalhos, A URSS na Guerra, de 1939, publicado no livro Em Defesa do Marxismo, Trotsky defende a propriedade estatal e a economia planificada na URSS ao mesmo tempo em que expõe sua luta implacável com a burocracia parasitária soviética em defesa da revolução mundial. Trata-se do “direito ao otimismo revolucionário”19. Em síntese, sem dúvidas sua elaboração sobre a degeneração do Estado soviético é uma seminal contribuição ao marxismo no século XX. Se, por um lado, a URSS representava uma pioneira experiência de uma formação social pós-capitalista em transição, apoiada na propriedade social e no planejamento econômico, por outro, constituiu uma superestrturura política burocrática e ditatorial. Apenas nesse sentido – e em defesa da revolução, nunca da restauração capitalista – a defesa de uma luta organizada pela derrubada da burocracia soviética estaria subordinada à manutenção da propriedade social dos meios de produção e à extensão do processo revolucionário no marco mundial: “Não devemos perder de vista, por um só momento, o fato de que, para nós, a questão da derrubada da burocracia soviética está subordinada à questão da preservação da propriedade estatal sobre os meios de produção na URSS; que a questão da manutenção da propriedade estatal sobre os meios de produção na URSS está subordinada, para nós, à questão da revolução proletária mundial.” (TROTSKY 2011b p.43). Em síntese, ao menos três momentos há clivagens na luta contra o estalinismo e o fenômeno da burocratização. No início dos anos 1920 o centro da crítica se dá em relação ao fenômeno do 19 “Novamente, e uma vez mais, sobre a natureza da URSS”, de 18 de outubro de 1939, Trotsky (2011a). 176 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) burocratismo. Ainda no Novo Curso de 1923, de acordo com as últimas elaborações de Lenin, a URSS e sua administração são identificadas pela crescente burocratização interna e problemas de regime interno do próprio partido bolchevique e sua degeneração (cuja burocratização é identificada como um câncer crescente). Diferenciando-se da leitura de Lenin, tal fenômeno não seria apenas resquícios do regime anterior, mas algo novo. Sob a direção de Stálin, Trotsky passa a caracterizar a burocracia soviética como centrista e vacilante, conforme vimos. Em um terceiro momento, passada a experiência das perseguições à Oposição Unificada e da formação da Oposição de Esquerda Internacional, sobretudo a partir de 1933, a análise sobre a burocratização da URSS e da estalinização do PCUS e da III Internacional ganham qualidade à medida em que Trotsky identifica o fenômeno como irreversível caso se mantivesse o regime estalinista, daí a imperiosa necessidade de sua substituição por meio de uma revolução política. A política de Frente Única e a luta contra o Fascismo De acordo com a tese Sobre as Táticas do Cominter do 4.º Congresso Mundial da Internacional Comunista: “A tática da frente única é simplesmente uma iniciativa em que os comunistas propõem juntar-se a todos os trabalhadores pertencentes a outros partidos e grupos e a todos os trabalhadores não alinhados em uma luta comum para defender os interesses fundamentais e imediatos da classe trabalhadora contra a burguesia”. É a tática de luta para situações desfavoráveis, em que revolucionários lutam em unidade comum com não-revolucionários, visando incidir nestes e aumentar a influência comunista no interior do proletariado, agarrando-se aos movimentos espontâneos e imprimindo-lhes caráter classista. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 177 Para León Trotsky, a tática da frente única tinha um caráter circunstancial, adaptada à situação desfavorável em que a influência dos revolucionários entre o proletariado fosse minoritária, restandolhes um período de acúmulo de forças, um momento preparatório decisivo a fim de lhes tirar do isolamento político e incidir seu programa entre as massas, diferenciando-se entre as organizações centristas. É uma tática que dialoga com estágio de consciência imediato em conjunturas em que a ofensiva reacionária contra os interesses dos trabalhadores incide contra algo que estes já possuem, e não no sentido de despertar-lhes consciência a respeito de novas conquistas a serem reivindicadas no plano imediato, como a tomada do poder. Conforme observa Trotsky: “É preciso não esquecer que a política de frente única é, em geral, muito mais eficaz na defensiva do que na ofensiva. [Isso porque] as camadas conservado-ras ou atrasadas do proletariado são mais facilmente arrastadas à luta pela defesa daquilo que já possuem, do que pela conquista de novas aquisições.” (TROTSKY, 1968, p.263). Uma caracterização oposta é a perspectiva da teoria ofensiva (ofensiva permanente), segundo a qual há uma correlação de forças mecânica entre crises e reação proletária que possibilita uma ofensiva das forças revolucionárias, contexto de precipitação de uma situação revolucionária. Segundo a teoria ofensiva, os comunistas devem estabelecer delimitações permanentes dos partidos reformistas a fim de incidir em sua base e produzir deslocamentos a esquerda entre os trabalhadores, rechaçando-se, portanto, qualquer tática vacilante ou que não aponte a possibilidade de tomada do poder imediato. No VI Congresso da Internacional, em 1928, Bukharin foi um adepto da tese da ofensiva. Para Trotsky, defensor de mediações táticas adequadas 178 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para cada situação política específica, a teoria da ofensiva jamais poderia ser um mantra, um princípio tático para qualquer conjuntura. Alertava que em situações desfavoráveis, tomar a ofensiva permanente seria um desvio ultraesquerdista aventureiro: “A burguesia não poderia pedir algo melhor! (…) Nestas condições, a teoria de que sempre deve-se tomar a ofensiva e travar batalhas parciais com os métodos da insurreição armada é o mesmo que jogar água no moinho da contrarrevolução” (TROTSKY, 2016 p. 353-354). Em linhas gerais, entre o III e o IV Congresso da III Internacional (1921-1922) Trotsky formulou a tática da Frente Única Operária que consistia basicamente que, numa condição defensiva dos trabalhadores frente a uma ofensiva reacionária, requer-se a unidade para lutar, uma luta comum em torno de pautas mínimas, um programa preciso de ações comuns, e não lançar um ultimato unilateral para os trabalhadores, conforme reafirmou posteriormente, em 1932, em E agora? Problemas vitais do proletariado alemão. Não se trata de atividades de propaganda, mas de busca efetiva por mobilização unitária. A ação unitária em frente única serve, inclusive, para desmascarar os conciliadores e traidores da revolução, que na prática se negam a unidade contra o perigo comum, mesmo na defesa das pautas imediatas em torno dos pontos comuns mais urgentes. A unidade com outras organizações requer independência política. Tanto Trotsky quanto Lenin defenderam a Frente Única como possibilidade tática20. Na tese sobre tática aprovada no III Congresso (1977, p.146), 20 É o historiador Perry Anderson quem destaca Trotsky como o principal arquiteto da Frente Única: “(...) foi Trotsky, naturalmente, quem dirigiu junto com Lênin o ataque contra a teoria geral da ‘ofensiva revolucionária’ no terceiro Congresso do Komintern. Foi Trotsky, novamente com Lênin, o principal arquiteto da frente única (...). Por último, foi Trotsky (...) quem escreveu o documento que foi a teorização clássica da frente única nos anos vinte” (ANDERSON 2017 p.54). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 179 lê-se que a tática tinha por objetivo conquistar: “círculos bastante grandes de empregados do comércio e da indústria, de funcionários inferiores e médios, além dos intelectuais, [o que provocará] a desordem nas fileiras do inimigo e [acabará] com o isolamento do proletariado diante da opinião pública.” Em fevereiro de 1922 Trotsky apresentou a tese em defesa da Frente Única ao Pleno Ampliado do Comitê Executivo da Internacional Comunista e, em seu IV Congresso, a Internacional aprovou sua tática de Frente Única proposta conjuntaente com Lenin. Porém, no final daquela década, a direção estalinista cometeria um novo giro. Diante disso, Trotsky voltou a defender a política de frente única com os operários social-democratas em oposição a política do “terceiro período” do Komintern21, denominação cunhada em 1928, cuja linha estalinista identificava na social-democracia elementos do fascismo. A caracterização é que havia um período de ofensiva permanente em favor das massas proletárias e que o capitalismo se aproximava de 21 O Primeiro Período teria sido, nessa caracterização, a erupção revolucionária de 1917 a 1924, com a crise do capitalismo; o Segundo Período abarcaria a estabilização capitalista entre 1925 e 1928, ao passo que o Terceiro Período refere-se ao que o estalinismo denominou, equivocadamente, a partir de 1928 como sendo o período de agonia do capitalismo e a antessala para a revolução proletária, caracterização segundo a qual as massas estariam em um ascenso e que, portanto, os partidos comunistas deveriam dirigi-las a tomada do poder. Coerente com essa caracterização, a política de Frente Única deveria ser descartada por todos os partidos comunistas da Internacional. Por isso a social-democracia foi identificada como inimigo interno, igualando-se reformismo com fascismo. Tal linha estava em completa oposição e já havia sido descartada pelo III Congresso da Internacional Comunista de 1921. Sendo assim, a linha política ultraesquerdista do Terceiro Período, sob as ordens de Stálin, correspondeu a um giro político de 180º. Essa política perdurou até 1934, quando a orientação estalinista passa a ser a constituição de alianças com as burguesias e apoio aos governos de colaboração de classes, a chamada política de Frente Popular (1935-39). 180 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) seu “período de agonia final”, por isso a política de frentes deveria ser descartada por enfraquecer o ascenso das massas, uma vez que a orientação possível para os comunistas seria: “marchar sozinhos”, igualando a caracterização entre fascismo e social-democracia (ou considerando este como sua “ala moderada”). A orientação estalinista22 era, mesmo diante do perigo do nazismo, isolar a social democracia, e jamais aliar-se a ela em unidade de ação. Esse esquerdismo senil e burocrático adotava orientação de “classe contra classe”, orientando a luta contra os “inimigos internos” do movimento operário e identificando a social-democracia como o inimigo principal foi demasiadamente denunciado por Trotsky na brochura O terceiro período de erro da Internacional Comunista. Na correta caracterização de Trotsky, a política estalinista do “terceiro período”, a qual foi aplicada a fundo na Alemanha e recusava unidade entre SPD e KPD contra o nazismo, representava um giro sectário e ultraesquerdista que abriu caminho para a ascensão e consolidação do nazi-fascismo. Contra as acusações de que a frente única seria uma capitulação ao reformismo, Trotsky destacou que essa tática teria que preservar a independência política dos revolucionários, a não se diluírem na frente, com liberdade de propaganda independência e crítica às correntes social-democratas e as organizações operárias com quem se estabelecera acordo, conforme se reafirmou no IV Congresso da Internacional Comunista. A tática da frente única era voltada para a ação, e não para a diluição da crítica ou da firmeza estratégica. Apesar desta clara orientação, após a morte de Lenin, a Internacional Comunista 22 Esta orientação de Stálin está fartamente documentada em História da Internacional Comunista, de Broué (2007). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 181 abandonou tais formulações a respeito da política de independência de classe dos partidos comunistas, recomendando, por exemplo, que o PC Chinês se submetesse ao Koumintang em 1927, ou ainda a orientação política dada na Alemanha em 1929, um giro dado com o já mencionado o Terceiro Período, o qual considerou equivocadamente a Social Democracia como associada ao fascismo e sua “ala moderada”23, isolando o Partido Comunista Alemão e recusando-se a construção de uma frente antifascista, cujo erro político entregou a peque-burguesia e as massas à influência do Partido Nazista, abrindo-se caminho para a ascensão do nazismo naquele país. O proletariado alemão e sua direção seriam esmagados nos anos seguintes. Em crítica ao KPD (Partido Comunista Alemão)24, satélite de Moscou, Trotsky defendia que este não poderia se recusar a construção da frente única na Alemanha com o SPD (Partido Social Democrata) uma vez que tal vacilação levaria o nazismo a crescer. Importante observar que o SPD (Partido Social Democrata Alemão)25 e o KPD, juntos, abarcavam a maioria da classe operária alemã – a maior do mundo, vale dizer. Ambas poderiam, enquanto possibilidade, ter barrado a ascensão do nazismo como força social e política, representada pelo NSDAP26. E o intuito do regime de extrema direita 23 Stálin não aceitava uma frente comum com a social-democracia alemã justamente por considera-la a ala moderada do fascismo, isto é, segundo essa caracterização, um inimigo de classe. Nos anos 1930, a Internacional Comunista sob o comando de Stálin adotou a linha oposta a Frente Única, com anulação da independência de classe dos partidos comunistas ao se submeterem a política de Frente Popular aos partidos pequeno-burgueses. O mesmo equívoco da linha estalinista foi aplicado em 1936 na França e na Espanha. A Internacional Comunista, desde então, romperia definitivamente com os quatro primeiros congressos e o legado marxista até aquele momento, conforme alertava Trotsky. 24 KPD (Kommunistische Partei Deutschland). 25 SPD (Sozialdemokratische Partei Deuschland). 26 NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei). 182 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) nazi-fascista não era outro senão a destruição de todas as formas de organização partidária, sindical e social independente, notadamente as classistas, impedindo o seu restabelecimento. No início dos anos 1930, Trotsky identificava na Alemanha a chave da situação mundial, mesmo após a derrota da classe operária em 1919 e 1923 e antes da consolidação do nazismo. Não foi à toa que o destino da humanidade se decidiu naquele país. A Frente Única antifascista era uma urgência, afinal, conforme alertou em Revolução e Contrarrevolução na Alemanha: “A fascistização do Estado significa (...), antes de tudo e sobretudo, destruir as organizações operárias, reduzir o proletariado a um estado amorfo, criar um sistema de organismos que penetre profundamente nas massas e esteja destinado a impedir a cristalização independente do proletariado. É precisamente nisto que consiste a essência do regime fascista.” A história foi implacável, o nazismo foi destruidor. Prevendo tal ascenso, e compreendendo a natureza social e política do fascismo, a política defendida por Trotsky para a Alemanha era a mais ampla unidade das forças políticas do proletariado (incluindo as forças reformistas, centristas ou burocráticas), em oposição a qualquer perspectiva sectária e ultraesquerdista. A resistência diante de situações reacionárias deveria vir pela ampla unidade, uma vez que houve um refluxo da onda revolucionária aberta entre 1917 e 1921, abrindo-se o ascenso da contrarrevolução seguinte. A aplicação da política da frente única (unidade entre todas as forças do proletariado) deveria ser transitória, isto é, até o memento em que a situação mudasse de caráter, notadamente quando a massa proletária se deslocasse da direção reformista e a influência revolucionária já tivesse acumulado II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 183 forças suficientes para uma ofensiva, não mais em uma situação desfavorável. Uma vez ganhado a confiança das massas, sobretudo de sua vanguarda operária, este seria o momento de romper a aliança com as direções reformistas. Uma vez mudada a correlação de forças em favor do proletariado, estaria aberto o momento para a construção de uma direção revolucionária no movimento. Em Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, estão reunidos artigos de Trotsky da década de 1930 no esforço de se reverter o curso sectário do Partido Comunista Alemão diante do ascenso nazista. Qual a lição que Trotsky extrai da Alemanha? Dado o ascenso do nazifascismo e a incapacidade da Internacional Comunista em conter os agentes do capital financeiro e construir uma política séria antifascista, a tática da Frente Única com a social-democracia, rebaixando-se, antes disso, a evidente política de traição estalinista, seria urgente a batalha pela construção de uma nova internacional revolucionária, a Quarta Internacional. É um notável marxista brasileiro, inicialmente fundador do PCB (e posterior fundador do trotskismo brasileiro), dirigente da Liga Comunista fundada em 1931, ligada a Oposição de Esquerda Internacional, que observa: “Debruçado febrilmente sobre os acontecimentos que se desenrolam na Alemanha, lá do seu exílio de Prínkipo, na vigilância incansável pelos destinos do heroico proletariado alemão, Trotsky escreveu nessas páginas um tratado completo de estratégia e tática revolucionárias marxistas, digno de emparelhar-se ao lado das grandes obras políticas clássicas de Marx e de Engels.” (PEDROSA, 2019, p.19) Em síntese, ao analisar a crise social e a contrarrevolução oriunda do ascenso fascista, Trotsky destaca o perigo das organizações 184 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) políticas dos trabalhadores em subestimá-lo e não organizarem a resistência para combate-lo, uma vez que seu propósito seria destruir o movimento operário independente. Não obstante, a direção estalinista da III Internacional e do partido comunista alemão, embriagada pelo giro esquerdista do terceiro período visualizava o que não existia: uma ofensiva revolucionária em escala mundial, levando a paralisia a classe operária. Para além de criticar a recusa do estalinismo e da Internacional Comunista em construir uma Frente Única dos partidos socialista e comunista contra o nazismo, Trotsky reconheceu como poucos o significado da ofensiva fascista antes mesmo da consolidação nazista alemã. Em seu entendimento, independente do terror policial e da prática repressiva, o fascismo representava uma reação política, mas uma contrarrevolução, a erradicação de toda possibilidade de democracia proletária dentro da sociedade burguesa, apoiando-se no capital financeiro. Seus escritos sobre o fenômeno do nazi-fascismo foram tão originais que o historiador Perry Anderson assim o qualifica: “Isolado numa ilha turca, ele escreveu, a certa distância dos acontecimentos, uma sequência de textos sobre a ascensão do nazismo na Alemanha que, como estudos concretos de uma conjuntura política, são de uma qualidade sem par no conjunto do materialismo histórico. Neste campo, o próprio Lênin nunca produziu qualquer trabalho de profundidade e complexidade comparáveis. Com efeito, os escritos de Trotsky sobre o fascismo alemão constituem a primeira análise marxista real de um Estado capitalista do século XX - o estabelecimento da ditadura nazista.” (ANDERSON, 1978, p.127) As armas teóricas da luta contra o fascismo encontram em Trotsky pioneirismo. Conforme vimos, a perspectiva da revolução II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 185 permanente e da política de Frente Única estão em oposição à tática da ofensiva em permanência (Bukharin/Bela Kun) e do esquerdismo baseado em entusiasmo revolucionário. Antes disso, Trotsky ensina que uma organização marxista deva ter flexibilidade tática e rigidez nos princípios estratégicos, contra a política sectarista e ultimatista. Considerações Finais Trotsky orienta entre 1933 e 1938 a construção de uma nova Internacional, dada a degeneração da III Internacional e a falência da II. Seu documento fundacional, de 1938, é o Programa de Transição, a agonia mortal do capitalismo e as tarefas da IV Internacional. Constitui um guia programático para o proletariado revolucionário na época do imperialismo, embasando-se nos quatro primeiros congressos da III Internacional e afirma a estratégia da revolução política contra o domínio da burocracia estalinista do Estado operário russo. Sua ambição era unificar os revolucionários de diversas origens do mundo inteiro e a corrente que surgiu da Oposição de Esquerda Internacional em torno de um programa revolucionário, em defesa de uma revolução política na URSS (mantendo sua base econômica) que substituísse a burocracia estalinista e reestabelecesse a democracia operária com uma direção de Estado submetida aos órgãos de representação direta dos trabalhadores. Portanto, no Programa de Transição, o papel das direções (e sua crise)27 e da consciência de classe (fator subjetivo, contendo limites e potencialidades) é fundamental. Ao caracterizar que a crise histórica da humanidade seria a 27 “A situação política mundial no seu conjunto caracteriza-se, antes de tudo, pela crise histórica da direção do proletariado. (...) A crise histórica da humanidade reduzse à crise da direção revolucionária”, argumenta Trotsky no Programa de Transição. 186 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) crise da direção revolucionária e que a dinâmica das forças produtivas já não mais cumpriria qualquer aspecto funcional – ao contrário, levaria a humanidade a uma catástrofe -, a situação pré-revolucionária careceria ainda de um proletariado coeso e deslocado de suas direções reformistas ou burocráticas, desprovido de uma vanguarda revolucionária. Os últimos apelos do imperialismo eram, por um lado, condenar a classe trabalhadora às Frentes Populares e, por outro, ao fascismo. Trotsky apostava na necessidade de derrubada da burguesia como saída histórica e no fortalecimento da IV Internacional. No século passado, floresceram muitos mitos acerca da primeira experiência de um Estado operário na história e do processo da revolução socialista iniciado na Revolução Russa de 1917 e seus desdobramentos. A adaptação do regime político da URSS pós-anos 1920 a um aparato político partidário reformulado, dirigido por uma fração burocratizada e ancorada em um setor de funcionários privilegiados, operou um verdadeiro contorcionismo e revisionismo teórico do marxismo e prático-organizativo do bolchevismo. O impacto dessa experiência para além dos satélites de Moscou influiu de modo significativo no ideário das esquerdas num plano internacional. Expressão em alguma medida de nosso tempo histórico, a experiência estalinista foi além de Stálin e da Rússia, o que contribuiu para a deformação teórico-política do marxismo e da defesa do socialismo. Ao fim e ao cabo, encontramos em Trotsky um pensamento radical e inovador para interpretação dos novos fenômenos sociais, políticos e econômicos abertos na primeira metade do século XX, em profunda conexão e atualização do marxismo revolucionário. Está mais do que na hora de estudarmos a fundo o seu pensamento, sem a vulgata estalinista. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 187 Referências bibliográficas ANTUNES, Ricardo. O que é sindicalismo. São Paulo: Brasiliense, 1982. ANDERSON, Perry. The Antinomies of Antonio Gramsci. London: Verso Books, 2017 __________. Considerações sobre o Marxismo Ocidental. Lisboa: Afrontamento, 1978. BENSAID, Daniel. Trotskismo. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura: 2019. BIANCHI, Álvaro. O marxismo de León Trotsky: notas para uma reconstrução teórica. Revista Ideias, Campinas, 14, 2007. BROUE, Pierre. História da Internacional. 1919-1934. A ascensão e a queda. São Paulo: Editora Sundermann, 2007. DEMIER, Felipe. “A lei do desenvolvimento desigual e combinado de León Trotsky e a intelectualidade brasileira: breves comentários sobre uma relação pouco conhecida”. Anais do 5º Colóquio Internacional Marx e Engels. Cemarx, nov. 2007. LÖWY, Michael. A política do desenvolvimento desigual e combinado. A teoria da revolução permanente. São Paulo: Sundermann, 2015. 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Ackerman, cujo livro, Trotsky in New York 1917: A Radical on the Eve of Revolution, forneceu a maior parte do material factual deste ensaio. Para facilitar a leitura, evitei fazer citações do livro de Ackerman, exceto nos casos em que ele faz uma citação de uma fonte que pesquisou. A análise da importância histórica dos eventos discutidos e o layout visual deste 1 Alex Steiner é um acadêmico independente que lecionou e publicou sobre tópicos que vão desde a Filosofia da História de Hegel, Fenomenologia de Hegel, Ciência da Lógica de Hegel, Heidegger e Nazismo, Marxismo e Humanismo, Dialética da Natureza de Engels, Nietzscheanos de Direita e Esquerda, A Crise da Física e Filosofia Dialética. Obteve seu mestrado na New School for Social Research, em Nova York. É autor de um ensaio sobre os Cadernos Filosóficos de Trotsky, publicado pelo periódico britânico Critique, e do ensaio Engels, Trotsky e as Ciências Naturais: um estudo de caso em cosmologia, publicado no periódico brasileiro Aurora. Ele é editor e autor de vários ensaios no livro Greece at the Crossroads, uma análise da crise política e econômica grega de 2015. Alex é instrutor na instituição educacional independente, Marxist Education Project. Ministrou aulas em sua organização predecessora, o Brecht Forum, e no New Space for Anti-Capitalist Education. Foi também palestrante na Socialist Scholars Conference, no Left Forum, no Historical Materialism e na Primeira Conferência Internacional sobre Trotsky (Havana, Cuba, 2019) e na Terceira Conferência Internacional sobre Trotsky (São Paulo, Brasil, 2023). Contato: revolutioninpermanence@gmail.com e http://permanent-revolution.org (Este texto foi traduzido ao português por Icaro Rossignoli) 190 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ensaio são estritamente meus. O livro de Kenneth D. Ackerman, Trotsky in New York 1917: A Radical on the Eve of Revolution, é o primeiro relato completo de um período breve, porém crucial, na vida de Trotsky, suas dez semanas em Nova York antes de seu retorno do exílio político à Rússia em 1917, onde desempenharia, junto com Lenin, um papel decisivo na Revolução de Outubro. Os relatos anteriores sobre a estadia de Trotsky em Nova York estavam espalhados em memórias pessoais, relatos de jornais contemporâneos e alguns artigos de revistas com um foco muito específico e restrito. (Um desses artigos se esforçou muito para descobrir a identidade de um rico morador do Bronx que fez amizade com a família de Trotsky). O relato do próprio Trotsky sobre sua estadia em Nova York consistiu em algumas páginas de sua autobiografia, Minha Vida. Essas poucas páginas contêm algumas percepções e anedotas preciosas, mas fornecem poucos detalhes e não fazem nenhuma avaliação do impacto de sua intervenção na política do movimento socialista em Nova York. A pesquisa de Ackerman preenche muitas das lacunas dos detalhes biográficos desse período da vida política de Trotsky. Mais importante ainda, a restauração de uma narrativa histórica anteriormente fragmentada nos permite avaliar a importância política do impacto de Trotsky na história do marxismo nos Estados Unidos. Como resultado dessa nova pesquisa, podemos agora dizer com algum grau de confiança que a intervenção de Trotsky nas lutas fracionais que aconteciam no Partido Socialista sobre a entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial teria um papel fundamental na criação do núcleo de uma oposição de esquerda no Partido Socialista II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 191 que mais tarde fundaria o Partido Comunista Americano. Isso exige uma revisão radical na compreensão histórica do nascimento do comunismo americano, que os historiadores do futuro não poderão ignorar. Trotsky chegou a Nova York em 14 de janeiro de 1917, desembarcando do navio a vapor Montserrat com sua esposa Natalya e seus dois filhos, Sergei e Lyova. Naquele dia, Trotsky recebeu uma recepção de herói. Tanto o New York Times quanto o New York Tribune enviaram repórteres e publicaram uma história sobre Trotsky na primeira página no dia seguinte. Embora ele ainda fosse pouco conhecido pelos leitores de língua inglesa, para os imigrantes do Leste Europeu ele era uma espécie de celebridade. Eles o conheciam desde seus dias na liderança da revolução russa de 1905, quando, ainda um jovem de 20 anos, tornou-se líder do Soviete de São Petersburgo. Seu julgamento e prisão posteriores aumentaram sua fama. Amigos do movimento revolucionário russo o ajudaram a encontrar um apartamento modesto no Bronx. Mas seu principal lar era o escritório do Novy Mir, um jornal revolucionário de língua russa onde ele trabalha com outros exilados revolucionários russos, como o bolchevique Nikolai Bukharin. Uma amiga íntima de Lenin, Alexandra Kollontai, também estava presente em Nova York nessa época. Quando Trotsky terminava seu trabalho diário no escritório de Novy Mir, ele costumava fazer uma pequena caminhada até o Monopole Café. Naquela época, o café era um ponto de encontro dos intelectuais e artistas da comunidade judaica do Lower East Side. Trotsky, sempre atraído pela vida cultural de uma comunidade, gostava de conversar em russo com seus frequentadores. 192 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Número 1522 da Avenida Vyse, no Bronx, onde Trotsky morou por dez semanas em 1917, como está hoje. Escritórios do Novy Mir, por volta de 1917 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 193 Número 144 da Second Avenue, local que foi o Monopole Café, como é hoje. Trotsky foi destaque na capa do jornal iídiche de grande circulação, o Jewish Daily Forward, no dia seguinte à sua chegada. Os jornais de língua alemã e russa também publicaram histórias sobre a chegada desse herói da Revolução Russa aos Estados Unidos. 194 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky na capa do jornal em iídiche The Forward, em sua chegada a Nova York. Trotsky ficou em Nova York por um total de dez semanas até partir para desempenhar o papel que lhe cumpria na Revolução de Outubro. Com o passar dos anos, surgiram muitas lendas sobre as atividades de Trotsky enquanto ele estava em Nova York, incluindo a história fantasiosa de que ele era ator em produções de filmes mudos. Nenhuma dessas lendas é verdadeira. Trotsky abordou esse tópico em Minha Vida, onde escreveu: “Se todas as aventuras que os jornais atribuíram a mim fossem reunidas em um livro, elas formariam uma biografia muito mais divertida do que a que estou escrevendo aqui. “Mas tenho que desapontar meus leitores II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 195 americanos. Minha única profissão em Nova York era a de socialista revolucionário. Isso foi antes da guerra pela ‘liberdade’ e pela ‘democracia’ e, naquela época, minha profissão não era mais repreensível do que a de um contrabandista. Eu escrevia artigos, editava um jornal e discursava em reuniões operárias. Eu estava trabalhando até o pescoço e, portanto, não me sentia nem um pouco como um estranho.” (TROTSKY, 1984, p. 274) Um dos relatos mais escabrosos sobre o período de Trotsky em Nova York foi a lenda antissemita de que Trotsky estava sendo financiado por judeus ricos como parte de um plano para dominar o mundo. Essas lendas, alimentadas pelos Guardiões Brancos e outros reacionários, cresceram rapidamente após a Revolução Russa. A história real é muito mais interessante do que as lendas fantasiosas. Agora está claro que a realização mais duradoura de Trotsky durante seu período em Nova York foi seu conflito com a liderança conservadora do Partido Socialista de Nova York. Em 1917, o Partido Socialista dos Estados Unidos estava prestes a se tornar uma grande força política, desafiando o controle férreo dos dois partidos capitalistas, os Republicanos e os Democratas, que haviam definido a fisionomia política do país desde a Guerra Civil. Na eleição presidencial de 1912, o candidato do Partido Socialista, Eugene V. Debs, obteve mais de 900.000 votos. Os socialistas foram eleitos para o Congresso e conquistaram cargos locais e estaduais em dezenas de cidades em todo o país. O Partido Socialista era particularmente forte em Nova York, onde desempenhou um papel influente entre as vastas comunidades de imigrantes que vieram da Europa Central e Oriental nas duas décadas anteriores. As comunidades de imigrantes que apoiavam o Partido Socialista superavam em muito o número de socialistas nativos, uma 196 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) situação muito diferente da do resto do país. Os estrangeiros nascidos em Nova York representavam 30% da população branca. (LIPSET e MARKS, 2001) O maior desses grupos era o dos judeus do Leste Europeu que falavam iídiche. Na época, Nova York tinha nada menos que seis jornais diários em iídiche, sendo o maior e mais influente o Jewish Daily Forward, que tinha uma circulação de mais de 200.000 exemplares, rivalizando com a circulação do New York Times. Além dos jornais iídiche, havia quatro jornais diários em russo, três em alemão e vários outros diários em língua estrangeira. Muitos desses jornais tinham uma orientação socialista e de esquerda. Além do Forward, pró-socialista, o New Yorker Volkszeitung, de língua alemã, tinha como editor-chefe Hermann Schluter, amigo pessoal de Marx e Engels. O líder oficial do Partido Socialista em Nova York era Morris Hillquit, um imigrante da Letônia que se integrou à sociedade americana e se tornou um advogado bem-sucedido com um apartamento luxuoso na Riverside Drive, em Manhattan. Para seu crédito, Hillquit frequentemente aceitava casos com pouca ou nenhuma indenização para defender as vítimas da classe trabalhadora de empregadores impiedosos e contra o Estado. Ele também era o advogado oficial do Amalgamated Clothing Workers Union (Sindicato dos Trabalhadores de Vestuário Unificados). Quando o governo iniciou seus ataques à imprensa socialista após a entrada dos Estados Unidos na guerra, Hillquit defendeu periódicos como Novy Mir e The Call da censura e supressão em tempos de guerra. Hillquit também tinha ambições políticas e, na eleição de 1917 para prefeito de Nova York, recebeu 145.000 votos, 21,7% do total de votos em uma disputa tripla. Mas, embora Hillquit tivesse convicções socialistas genuínas, ele não era um II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 197 revolucionário. Hillquit era um político “pragmático”, um socialista reformista do tipo que podia ser encontrado na ala direita do Partido Social Democrata Alemão antes de 1914. A grande questão enfrentada pelos socialistas americanos naquela época era a oposição aos preparativos do governo Wilson para entrar na Guerra Europeia ao lado da Grã-Bretanha, França e Rússia, uma ameaça que estava se tornando cada vez mais concreta nos primeiros dias de 1917. As comunidades de imigrantes de Nova York, que constituíam a maior parte dos apoiadores do Partido Socialista, opunham-se fervorosamente à entrada dos Estados Unidos na guerra, não apenas por convicções socialistas profundas, mas também por seu ódio ao regime czarista da Rússia, de cujos pogroms muitos haviam fugido. Hillquit e os líderes do Partido Socialista de Nova York também se opunham à entrada dos Estados Unidos na guerra, mas sua oposição ia apenas até certo ponto. Eles se recusaram a defender a ação em massa contra a guerra caso os EUA entrassem na guerra. Eles deixaram claro em seus pronunciamentos políticos que, embora se opusessem à entrada dos Estados Unidos na guerra, seriam patriotas leais caso fosse necessário. Embora nunca tivesse se encontrado com Hillquit antes de chegar a Nova York, Trotsky conhecia muito bem o tipo que ele representava. Ele era a encarnação nos Estados Unidos dos socialpatriotas que havia conhecido em Viena e Paris, homens que faziam discursos brilhantes contra a guerra, mas que eram tomados pela febre da guerra e do patriotismo quando a guerra começava. Trotsky sempre considerou os social-patriotas desprezíveis e, em 1917, aproximouse muito da posição de Lenin de que, em caso de guerra entre países imperialistas, era dever dos socialistas transformar essa guerra em uma 198 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) guerra civil contra sua própria burguesia. Portanto, era inevitável que a chegada de Trotsky a Nova York sinalizasse um confronto entre ele e os social-patriotas no Partido Socialista, representados por Hillquit. A batalha pelo Partido Socialista foi travada em uma série de reuniões e comícios em Nova York e arredores. Os preparativos para essa batalha começaram em uma reunião no apartamento de Ludwig Lore, no Brooklyn, na época editor do jornal socialista de língua alemã New Yorker Volkszeitung. Foi nessa reunião, organizada no dia seguinte à chegada de Trotsky a Nova York, que Trotsky encontrou pela primeira vez os líderes do que viria a ser a oposição de esquerda dentro do Partido Socialista. Além de Lore, Trotsky encontrou pela primeira vez o jovem Louis Fraina. Também estava presente nessa reunião outra pessoa que viria a desempenhar um papel fundamental na oposição de esquerda do Partido Socialista, o advogado Louis Boudin. Entre os russos presentes, além de Trotsky, estavam os futuros líderes bolcheviques Nikolai Bukharin, Alexandra Kollontai, Grigorii Chudnovsky e V. Volodarsky. Aos convidados reunidos, Trotsky logo expôs sua posição: a de que a esquerda do Partido Socialista deveria se organizar independentemente de sua liderança conservadora em Nova York e estar preparada para desafiá-la na importantíssima questão da guerra. Bukharin e Trotsky, embora concordassem com os fundamentos, discordavam quanto às táticas, com Bukharin defendendo uma cisão imediata, enquanto Trotsky insistia que a oposição de esquerda seria mais eficaz trabalhando dentro do Partido Socialista. Por fim, eles concordaram em não defender uma cisão formal, mas em lançar um periódico independente que falasse em nome da esquerda. Fraina foi imediatamente inspirado pelas ideias de Trotsky e viria a se tornar seu II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 199 principal defensor e protegido nos Estados Unidos. Trotsky e Fraina estabeleceram uma amizade pessoal e começaram a colaborar a partir daquele dia. Louis Fraina, que foi eleito Secretário Internacional do Partido Comunista em 1919. A primeira apresentação oficial de Trotsky ao movimento socialista de Nova York ocorreu pouco tempo depois, quando ele foi o orador principal em um comício no histórico Great Hall (Grande Salão) da Cooper Union, apenas duas semanas após sua chegada. O Cooper Union Hall, que ainda está de pé, tinha um significado histórico, pois foi lá que Abraham Lincoln fez um famoso discurso que o colocou no caminho para ganhar a presidência em 1859. 200 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) O Grande Salão da Cooper Union hoje O discurso de Trotsky, reimpresso no jornal socialista de língua inglesa The Call, bem como no Novy Mir, de língua russa, no qual ele e Bukharin eram colaboradores, foi um desafio mais ou menos aberto a Hillquit e sua oposição conservadora à guerra. Trotsky disse: “A Revolução Socialista está chegando à Europa, e a América deve estar pronta quando ela chegar. Os socialistas foram pegos de surpresa quando a guerra começou, mas não devem estar cochilando quando a revolução chegar. Na França, os soldados que saem das trincheiras dizem: ‘Nós os pegaremos’. Os franceses acham que os soldados querem dizer que vão pegar os alemães, que querem matar os trabalhadores da outra trincheira. Mas o que eles realmente querem dizer é que vão ‘pegar’ os capitalistas”. (ACKERMAN, 2016, p. 82). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 201 Primeira página do Novy Mir No dia 5 de fevereiro, houve um grande evento no Carnegie Hall, no qual o Partido Socialista deveria apresentar sua posição oficial sobre a guerra. Hillquit foi o orador principal. Trotsky estava presente, juntamente com outras 4.000 pessoas que estavam na plateia, que só podia ficar em pé. [Nota 1: O mundialmente famoso Carnegie Hall era o auditório mais importante de Nova York, onde eram realizados concertos de música clássica]. 202 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Carnegie Hall lotado na virada do século passado. A reação de Trotsky ao discurso foi publicada no Novy Mir no dia seguinte. Trotsky não tinha nenhuma crítica específica a fazer ao discurso em si, mas criticou muito a companhia que Hillquit escolheu para se cercar no palco. Eram pacifistas, como o reverendo Frederick J. Lynch, da New York Church Peace Union, e a sufragista Elizabeth Freeman, do Women’s Peace Party. Trotsky escreveu um artigo no Novy Mir no dia seguinte caracterizando a classe média que gritava sobre a paz, mas que: “...quando ouvirem o primeiro tiro, alegremente se chamarão de bons patriotas [e] começarão a apoiar a máquina governamental de assassinatos em massa, persuadindo as multidões de que, para alcançar a ‘paz justa’ e a ‘paz eterna’, é necessário lutar na guerra até o fim.” (ACKERMAN, 2016, p. 124). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 203 Ele continuou perguntando: por que o Partido Socialista concordou em dividir o palco com esses “pacifistas burgueses semelhantes a padres?”. Embora Trotsky tenha se abstido de atribuir a responsabilidade por esse fato a Hillquit, o alvo de sua ira era inconfundível. Assim começou um conflito cujo ponto culminante só viria em agosto de 1919, muito depois de Trotsky ter deixado Nova York, quando a ala esquerda do Partido Socialista formalizou sua cisão e formou o Partido Comunista Operário em uma convenção em Chicago. Trotsky finalmente confrontou Hillquit pessoalmente quando ele e Louis Fraina foram convidados a participar do Comitê de Resoluções do Partido Socialista para elaborar uma declaração oficial sobre a política em relação à guerra. O Comitê se reuniu nos escritórios do Partido Socialista em uma casa na East 15 Street, em Manhattan. Casa geminada na East 15 St. que já abrigou os escritórios do Partido 204 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Socialista. Mais tarde, ela se tornou a Rand School, um centro educacional e cultural de esquerda. Hillquit logo percebeu que não haveria acordo com Trotsky e Fraina. Ficou claro que Hillquit e seus partidários não poderiam aceitar uma resolução que denunciava qualquer apoio à “defesa nacional” e, no caso de mobilização para a guerra, pedia uma “ação em massa” contra a guerra. Hillquit tinha a maioria e sua versão da resolução - uma declaração branda contra a guerra, mas que também deixava espaço para o apoio ao esforço de guerra, caso fosse obrigatório - foi aprovada. Trotsky e Fraina foram autorizados a apresentar um relatório minoritário. A batalha entre essas duas frações continuou a ser travada em outros locais. Entre as salas de reunião em que Trotsky participou do debate dentro do Partido Socialista estava o Beethoven Hall, em Manhattan, um centro cultural da classe trabalhadora de língua alemã do Lower East Side. Beethoven Hall há 100 anos, à esquerda. Hoje é um prédio de apartamentos de luxo (à direita). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 205 Outro local onde esse conflito se desenrolou foi o Lyceum, no Brooklyn, um ponto de encontro para a classe trabalhadora daquele bairro. O Lyceum, no Brooklyn, como era há 100 anos. O ponto culminante do debate no Partido Socialista viu as duas resoluções conflitantes serem levadas à votação de todos os membros no início de março, no Lenox Casino, um edifício no Harlem frequentemente alugado pelo Partido Socialista para grandes reuniões. Nessa reunião, Fraina defendeu a resolução da minoria entre os cerca de 200 delegados que conseguiram chegar ao local em meio a uma nevasca. A votação final foi de 101 a 79. Essa votação apertada, mostrando que o controle de Hillquit sobre o partido era tênue, encorajou a oposição. Escrevendo anos depois em Minha Vida, Trotsky reservou a avaliação mais dura dos líderes do socialismo americano para Morris Hillquit, de quem ele disse: “Um Babbitt dos Babbitts é Hillquit, o líder socialista ideal para dentistas bem-sucedidos.” (TROTSKY, 1984, p. 284). [Nota 2: Babbitt (1922), de Sinclair Lewis, foi um romance satírico 206 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) sobre a cultura e a sociedade americanas que criticava a venalidade da vida de classe média e a pressão social para a conformidade.] Naquele mês de março, houve outra reunião na Cooper Union com a presença do socialista mais proeminente dos Estados Unidos, Eugene V. Debs. Debs tinha ouvido falar de Trotsky e o convidou especificamente para se juntar a ele no palco da reunião. Essa foi a única vez que Trotsky se encontrou com Debs. Não se sabe o que eles discutiram, se é que discutiram algo substancial, mas Trotsky conta que, quando Debs o viu, ele “me abraçou e me beijou”. (TROTSKY, 1984, p. 285). Em seu discurso, Debs deixou claro - sem mencionar nomes - que, quando se tratava do conflito entre Hillquit e a oposição de esquerda, ele estava firmemente ao lado de Trotsky e Fraina. Talvez o confronto mais dramático que Trotsky teve durante sua estadia em Nova York tenha sido com o editor do Daily Forward. Naquela época, o prédio de 14 andares do Forward era o centro de toda a atividade política e cultural do proletariado de língua iídiche no bairro Lower East Side de Manhattan. Quando um colunista do Forward publicou um editorial apoiando os esforços de Woodrow Wilson para levar os Estados Unidos à guerra, Trotsky, que havia contribuído com o Forward, ficou furioso com essa traição aos princípios socialistas. De acordo com um relato, Trotsky foi de seu escritório no minúsculo porão ocupado pelo Novy Mir, em St. Marks Place, para a fortaleza, como era conhecido o Edifício Forward, na East Broadway, para um encontro cara a cara. Uma vez lá, ele confrontou o editor do Forward, Abraham Cahan, e houve uma discussão com gritos sem fim. Daquele dia em diante, Trotsky passou a ter apenas desprezo pelo Forward, que mais tarde ele caracterizaria como um jornal: “... com seu palácio de quatorze andares... com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 207 o odor rançoso do socialismo sentimentalmente filisteu, sempre pronto para as traições mais pérfidas”. (TROTSKY, 1984, p. 284) [Nota 3: A referência a um “palácio” é uma caracterização sarcástica da reputação do Edifício Forward como um “palácio do proletariado iídiche”. Trotsky também pode ter se lembrado da história da contaminação do Templo Sagrado em Jerusalém por um sacerdócio corrupto, um lembrete da traição de Abraham Cahan aos seus leitores de língua iídiche]. O edifício Forward como era quando foi inaugurado. 208 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Fachada do prédio do Forward hoje Deve-se observar que o relato de Ackerman sobre o período de Trotsky em Nova York, embora fiel aos fatos do registro histórico, às vezes introduz suas próprias reflexões sobre assuntos que Trotsky teria considerado abomináveis. Embora não seja necessário que o autor de uma biografia concorde com seu objeto de estudo, é obrigatório que um relato histórico de Trotsky leve suas ideias a sério e as apresente com algum grau de integridade. Em vez disso, Ackerman, ao apresentar os pensamentos de Trotsky sobre a guerra e o patriotismo, parece descartá-los sem considerá-los seriamente. Por exemplo, ao sugerir que a posição de Trotsky, evidenciada em uma de suas primeiras entrevistas em Nova York, era irreal. Ele escreve: “Igualmente curioso foi seu desempenho [de Trotsky] com o New York Call... A conversa de Trotsky girou em torno de política e Trotsky optou II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 209 por ir direto ao ponto com uma crítica ao seu novo país.” (ACKERMAN, 2016, p.47) Ackerman faz pouco para esconder seu desdém pela posição radical de Trotsky contra a guerra, ao mesmo tempo em que expressa simpatia pela sua coragem moral. Mas as ideias são importantes. Para Ackerman, é evidente que políticos práticos como Hillquit tinham melhor abordagem. O fato de que essas mesmas questões foram debatidas amargamente no movimento socialista internacional por décadas e foram objeto de muito trabalho teórico de Lenin, Trotsky e outros nunca entra na narrativa de Ackerman. Embora Ackerman, para seu crédito, tente apresentar as ideias de outras pessoas das quais discorda, sua abordagem desdenhosa trivializa essas mesmas ideias. A primeira vez que Trotsky ouviu os rumores da revolução na Rússia foi nos escritórios do Novy Mir, em 15 de março. Os telefones tocaram e mensageiros trouxeram telegramas com as notícias de São Petersburgo. Quando a notícia chegou à comunidade de imigrantes do Lower East Side, do Harlem e do Bronx, houve comemorações espontâneas por toda parte. A situação em São Petersburgo havia evoluído de revoltas por comida lideradas por mulheres da classe trabalhadora para tiroteios nas ruas entre dezenas de milhares de manifestantes e a polícia. Quando a guarnição de Petrogrado se amotinou e ficou do lado dos manifestantes, a monarquia czarista que existia há séculos caiu sem quase nenhuma resistência, dando lugar a um Governo Provisório e a uma república. Os revolucionários russos em Nova York, Trotsky, Bukharin e outros que trabalhavam nos escritórios da Novy Mir começaram imediatamente a fazer planos para retornar à Rússia e participar desses eventos importantes. A eles se juntariam milhares de emigrantes russos. 210 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Naquela noite, 15 mil pessoas lotaram o Madison Square Garden para uma comemoração patrocinada pelo Partido Socialista, com a presença de Morris Hillquit e do editor do Forward, Abraham Cahan, além de muitas outras personalidades locais. Um dos presentes foi o futuro líder do trotskismo americano, James P. Cannon. Ele já era um apoiador da oposição de esquerda no Partido Socialista, como se pode deduzir do discurso que fez, conforme relatado no New York Times: “Se não conseguirmos obter a liberdade com nossos votos, usaremos as baionetas que colocarem em nossas mãos... A casa de Rockefeller e a casa de Morgan cairão, assim como a casa de Romanoff na Rússia.” (Ackerman, 2016, p. 233) Naquela mesma noite, um comício foi organizado pela oposição de esquerda do Partido Socialista no Lenox Casino, no Harlem. O comício atraiu cerca de duas mil pessoas, apesar de competir com o comício principal no Madison Square Garden. [Nota 4: O Madison Square Garden era uma arena esportiva e o maior salão de reuniões coberto de Nova York. Ele continua assim até hoje, embora em um local diferente]. Essa foi uma poderosa confirmação da amplitude do apoio aos socialistas revolucionários que haviam se reunido pela primeira vez no apartamento de Ludwig Lore, no Brooklyn, no dia seguinte à chegada de Trotsky a Nova York. Os principais oradores do comício foram Trotsky, que falou em russo, Ludwig Lore, que falou em alemão, Louis Boudin, que falou em inglês, e Santeri Nourteva, que falou em finlandês. A mensagem de Trotsky nesse e em outros comícios era sempre a mesma: que a Revolução de Fevereiro foi apenas o tiro inicial da Revolução Russa. Ela precisava ser concluída com a tomada II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 211 do poder pela classe trabalhadora e o estabelecimento de um regime socialista baseado nos sovietes. [Nota 5: A revolução ocorreu em fevereiro, de acordo com o antigo calendário que ainda estava em uso na Rússia]. Após várias reuniões conflituosas com burocratas do consulado russo, Trotsky conseguiu obter um visto e comprou uma passagem para zarpar de um píer no Brooklyn na manhã de 27 de março. Na noite anterior à sua partida, seus amigos organizaram uma festa de gala de despedida no cavernoso Harlem River Casino. Oitocentas pessoas compareceram, uma medida da influência que Trotsky havia desenvolvido durante sua breve residência em Nova York. Entre os participantes estavam os anarquistas Emma Goldman e seu companheiro Alexander Berkman. Quando Trotsky e sua família chegaram de metrô do Bronx ao píer do South Brooklyn, onde ele deveria zarpar, foi recebido por uma multidão de trezentos simpatizantes que compareceram apesar da chuva. Ele tinha motivos para estar satisfeito, não apenas com a expectativa de sua participação na revolução histórica na Rússia, mas também com o sucesso que teve ao consolidar um sólido bloco de esquerda no Partido Socialista em Nova York. Ele escreveria mais tarde que: “Eu estava partindo para a Europa, com o sentimento de um homem que teve apenas uma visão da fundição na qual o destino do homem seria forjado”, escreveu ele. “Meu único consolo era a ideia de que eu poderia voltar.” (TROTSKY, 1984, p. 278) 212 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Local do Cassino Lenox no Harlem. Hoje é uma mesquita, que já foi casa de Malcolm X. O Harlem River Cassino como era em 1904. O que Trotsky não sabia na época em que o navio Kristianiafjord deixou o porto de Nova York era que agentes de inteligência britânicos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 213 em Nova York, que vinham monitorando de perto sua atividade, haviam arranjado sua detenção em Halifax, onde o Kristianiafjord faria uma parada, adiando assim seu retorno à Rússia por várias semanas. Mas isso é outro capítulo na vida de Trotsky. Em uma nota final, o edifício histórico que outrora abrigava o Daily Forward em iídiche foi vendido pelos editores do Forward há alguns anos. Agora é um prédio de apartamentos de luxo, onde o apartamento menos caro custa milhões de dólares. Ironicamente, porém, os baixos-relevos com retratos de Marx, Engels, Ferdinand LaSalle e Friedrich Adler ainda adornam sua imponente entrada. Manhattan mudou muito desde 1917, assim como o clima político dos Estados Unidos. Outro exemplo é a situação atual do número 77 da St. Marks Place, cujo porão abrigava os escritórios da Novy Mir, onde Trotsky e Bukharin trabalhavam. Hoje em dia, você pode alugar um apartamento lá por uma quantia exorbitante, fora do alcance de todos, exceto dos um por cento mais ricos. 214 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Número 77 de St. Marks Place hoje, onde Novy Mir tinha seus escritórios em 1917. Isso diz muito sobre as circunstâncias diferentes que enfrentamos hoje. A cultura que nutriu um movimento socialista animado nos Estados Unidos há 100 anos desapareceu juntamente com a onda de imigrantes radicalizados e trabalhadores americanos que o apoiavam. Essa cultura precisa ser reconstruída em um ambiente muito diferente hoje, quando mais uma vez a ameaça de guerra está se aproximando. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 215 Imagem de Marx na fachada do prédio do Forward. REFERÊNCIAS: ACKERMAN, Kenneth, Trotsky in New York 1917: A Radical on the Eve of Revolution, Counterpoint Press, Berkeley, 2016. LIPSET, Seymour Martin, MARKS, Gary. It didn’t happen here: Why socialism failed in the United States, W.W. Norton & Company, 2001. TROTSKY, Leon, My Life: An Attempt at an Autobiography, Penguin Books, 1984. 216 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Questões sobre cultura em Leon Trotski: contribuições para a educação Vinícius Azevedo1 O novo Estado, a nova sociedade baseada nas leis da Revolução de Outubro, apodera-se triunfalmente, perante os olhos do mundo inteiro, do patrimônio cultural do passado2. (Trotsky, 1973 [1925], p. 207). Introdução A Revolução Russa de outubro de 1917 é um acontecimento sem precedentes. Um marco do século XX e a concretização de um movimento histórico que conseguiu finalmente unir a teoria e a prática. Esse ponto de encontro reúne de um lado a experiência de lutas dos trabalhadores desde o primeiro registro na greve em Deir El-Medina no Egito Antigo, as greves plebeias e a revolta de Spartacus na Roma Antiga, as revoltas camponesas na Inglaterra e na Alemanha na Idade Média e na Rússia czarista, as inúmeras insurreições proletárias na época da industrialização europeia, como a Comuna de Paris, e as lutas pela independência travadas no século XVIII. De outro lado, herda o desenvolvimento das tradições materialistas que surgiram por primeiro 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar, Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Graduado em Ciências Sociais pela mesma instituição. Bolsista CAPES-DS. Contato: vinicius.azevedo@unesp.br 2 “The new state, a new society based on the laws of the October Revolution, takes possession triumphantly before the eyes of the whole world – of the cultural heritage of the past”. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 217 na Grécia Antiga com os filósofos da natureza e os primeiro dialéticos, e ganha força e significado histórico com Hegel na forma moderna da dialética. O marxismo é resultado direto dessas experiências e tradições de pensamento justamente porque liga a teoria com a prática e a prática à teoria; a vitória da Revolução Russa provou a potência dessa junção. A construção do socialismo na época do cerco imperialista apresentava dificuldades jamais vistas, afinal de contas, pela primeira vez na história uma nova formação social-econômica estava sendo construída sobre os escombros de uma Guerra Mundial e uma Guerra Civil que ceifaram vida de milhões de russos e destruiu a incipiente indústria. A construção do modo de vida socialista estava em ligação direta com a reconstrução da indústria russa, e por isso demandava dos revolucionários diligência. Assim, dominar a ciência e a cultura era essencial para as tarefas imediatas dos soviéticos. Trotski3, como um destacado revolucionário, contribuiu diretamente no debate sobre cultura e ciência. No biênio 1923-1924 formulou duas definições sobre cultura: a primeira e mais breve, de 1923, assinala que a “cultura representa a soma orgânica de conhecimentos e informações que caracteriza toda sociedade ou, ao menos, sua classe dirigente. Ela abarca e penetra todos os domínios da criação humana e unifica-os num sistema” (Trotski, 1969 [1923], p. 173). Na segunda definição, proferida em discurso em 10 de julho de 1924, passados quase seis meses da morte de Lenin4, o revolucionário ucraniano diz que “a 3 Na direção dos propósitos deste trabalho, optamos pelo uso de Trotski como transliteração para Троцкий. Contudo, nas referências bibliográficas, foi preservado a grafia original dos nomes utilizados nas fontes examinadas e estudadas. 4 Lenin morreu em 21 de janeiro de 1924 acometido por desdobramentos de seus três acidentes vasculares. 218 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) cultura é a soma de todos os conhecimentos e capacidades acumulados pela humanidade ao longo de toda a sua história. Conhecimentos para capacidades! Conhecimento de tudo o que nos rodeia, para que possamos mudar tudo o que nos rodeia – mudá-lo no interesse da humanidade”. Trotski (1973 [1924], p. 143) certifica que essa é a definição concreta, histórica e materialista de cultura do marxismoleninismo, cuja atividade das nações e classes é igualmente histórico, posto que “o conhecimento nasce das atividades humanas, da sua luta com as forças da natureza; o conhecimento serve para melhorar essas atividades, para difundir os métodos de luta contra cada obstáculo e para aumentar o poder humano”5. Adiante, Trotski (1973 [1924], p. 144) incorpora o leninismo como produto e consumação da cultura humana anterior porque “o leninismo é o conhecimento e a habilidade de transformar a cultura, ou seja, todos os conhecimentos e capacidades acumulados nos séculos anteriores, para os interesses das massas trabalhadoras”, e assim o leninismo “ensina a classe operária a retirar do gigantesco acervo da cultura o que é mais necessário atualmente para a sua libertação social e para a reconstrução da sociedade segundo novas diretrizes”6. 5 “Culture is the sum total of all knowledge and skills amassed by mankind throughout all its preceding history. Knowledge for skills! Knowledge of everything that surrounds us, that we may change everything that surrounds us – change it in the interests of mankind. [...] We accept the concrete, historical, materialistic definition of culture that Marxism-Leninism teaches us. Culture is the conjunction of the skills and knowledge of historical mankind, the mankind of nations and classes. Knowledge grows out of the activities of man, out of his struggle with the forces of nature; knowledge serves to improve these activities, to spread the methods of combating each obstacle, and to increase the power of man”. (1973, p. 143). 6 “Leninism represents the product and consummation of all of man’s previous culture. Leninism is the knowledge and ability to turn culture, i.e., all the knowledge and skills amassed in previous centuries, to the interests of the working masses. Therein lies the essence of Leninism. [...] it teaches the working class to pick out from II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 219 Partindo desse entendimento de Trotski e assumindo o legado de Lenin, o presente trabalho aborda algumas das contribuições teóricas de Leon Trotski no que diz respeito à cultura, notadamente em textos e discursos entre 1922-1925, para assim localizar as contribuições teóricas do referido autor para a área da educação. As três seções percorridas por este trabalho tratam dos seguintes temas: a) posição de Trotski no debate sobre cultura proletária, b) a elevação cultural e c) a relação entre ciência e sociedade. O objetivo mais geral ao apresentar esses tópicos é contribuir para o melhor entendimento e posicionamento dos marxistas frente a esses debates que ainda atravessam nosso tempo histórico. Cultura “burguesa” e cultura “proletária” O debate sobre cultura que atravessou os anos iniciais da Rússia soviética foi distinguido, grosso modo, por duas posições em conflito: entre aqueles dispostos em torno do movimento Proletkult (Cultura Proletária) de um lado, e Lenin e Trotski, destacados membros do Partido Comunista, de outro. O ponto de vista proletkultista não era de todo homogêneo: Pavel Bessalko, um dos ideólogos do Proletkult, afirmava que “parece estranho que os ʽgrandes irmãos’ da literatura digam aos ʽescritores do povo’ para aprenderem a escrever copiando estereótipos de Tchekhov, Leskov ou Korolenko. Ouça, ʽgrande irmão’, os escritores proletários devem criar, não estudar. Eles devem se expressar, expressar a sua originalidade e a sua essência de classe”7 the gigantic store of culture what is most necessary today for its social liberation and for the reconstruction of society along new lines”. 7 “It seems odd that the ‘big brothers’ of literature tell ‘writers of the people’ to learn to write by copying stereotypes from Chekhov, Leskov, or Korolenko. Listen, 220 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ([1918] citado por Garzoni e Zalambani, 2011, p. 9); Bogdanov (1977 [1918], p. 251; 1923, s/p) defendia que as ciências sociais (tais como a economia política e a história) são ciências burguesas e necessitariam ser reestruturadas do ponto de vista proletário, que precisaria também desenvolver sua própria poesia; Paouchkine (1977, p. 257-258) defendia que o proletariado deveria forjar por si próprio as riquezas sociais de sua classe e criar sua ideologia coletivista, edificando sua cultura, uma vez que os princípios da ciência burguesa não relacionam-se com o trabalho material; Lunatcharski (2018 [1919], p. 58; p. 63), por sua vez, entendia que o proletariado deveria ter plena propriedade da cultura universal, e via como um absurdo o menosprezo pela ciência e arte do passado sob o argumento de que eram “burguesas”, mas concordava com a tese proletkultista de que era necessário o proletariado criar sua própria cultura. A despeito das eventuais divergências entre si, os proponentes do Proletkult partilhavam da noção que previa a criação de uma cultura, arte e ciências próprias da classe operária de maneira autônoma e, para justificar essa autonomia, o Partido não deveria intervir nessas questões8. Trotski opõe-se ao movimento proletkultista e sua falsa distinção entre cultura “burguesa” e cultura “proletária”, e afirma que a revolução proletária inaugura uma nova era, a da cultura da humanidade, em que os conteúdos culturais são despidos de seu caráter de classe e sua riqueza é colocada à disposição dos trabalhadores. A revolução proletária abre caminho para transformações sem ‘big brother,’ worker-writers should create, not study. They must express themselves, their originality, and their class essence”. 8 Lenin era terminalmente contrário a essa “autonomia” das questões culturais e de instrução sobre o Estado soviético. Ver Sobre a cultura proletária (1920), disponível em: <https://bit.ly/3DMKsJg>. Acesso em 9 ago. 2023. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 221 precedentes na história humana, e sua classe dirigente, ao emanciparse, emancipa também toda a humanidade. Essa ideia é ampliada por Trotski no campo da cultura, sendo esta não mais uma cultura pertencente às classes dominantes das antigas formações sociaiseconômicas nas quais os interesses da manutenção de seu domínio encontram-se ligadas às produções culturais e científicas de sua época. Para Trotski, o triunfo revolucionário iniciado pelo período de ditadura do proletariado supera as dicotomias de classe na cultura: É fundamentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arte proletárias. Estas últimas, de fato, não existirão jamais, porque o regime proletário é temporário e transitório. A significação histórica e a grandeza moral da revolução proletária residem no fato de que esta planta os alicerces de uma cultura que não será de classe, mas pela primeira vez verdadeiramente humana. (Trotsky, 1969 [1923], p. 25, ênfase inserida). Não se trata, em outras palavras, da edificação de uma nova cultura, isto é, da edificação na mais longa escala da história, durante o período da ditadura. A edificação cultural, por outro lado, não terá precedente na história quando não mais houver necessidade da mão de ferro da ditadura. Aí, porém, não mais apresentará um caráter de classe. Pode-se concluir, portanto, que não haverá cultura proletária. E, para dizer a verdade, não existe motivo para lamentar isso. O proletariado tomou o poder precisamente para acabar com a cultura de classe e abrir o caminho a uma cultura da humanidade. Esquecemos isso, ao que parece, com muita frequência. (Trotsky, 1969 [1923], p. 162, ênfase inserida). O caminho para essa conquista passa pela apropriação da 222 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) herança cultural humana. Em outubro de 1920 Lenin profere o famoso discurso no Terceiro Congresso das Juventudes Comunistas da Rússia em que defende que, na verdade, a assim chamada “cultura proletária” seria o resultado da apropriação e assimilação de toda a cultura e técnica existentes. Isso porque Lenin entendia que a tarefa de reconstrução econômica da Rússia arrasada por anos de guerra mundial e civil só seria possível por meio da eletrificação e alfabetização, ambas necessárias para a construção da sociedade sob bases socialistas. Para tanto, o domínio da técnica e da cultura era imprescindível. Jamais poderemos resolver esse problema [o da cultura proletária] se não compreendermos com clareza que somente o perfeito conhecimento da cultura criada pela humanidade no curso de seu desenvolvimento e sua transformação permitirão criar uma cultura proletária. A cultura proletária não surge de fonte desconhecida, não é uma invenção dos que proclamam especialistas nesta matéria. Seria um absurdo crer nisso. A cultura proletária tem de ser o desenvolvimento lógico do acervo de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade latifundiária, da sociedade burocrática. (Lenin, 2015 [1920], p. 19, ênfase e colchetes inseridos). A defesa da apropriação do tesouro do conhecimento humano é feita por Trotski (1969 [1923], p. 27) por meio de sua lavra poética característica: “o rouxinol da poesia, como o pássaro do saber, a coruja, só canta depois que o sol se põe. Atua-se durante o dia, mas no crepúsculo o sentimento e a razão fazem o balanço do que se realizou”. Mais adiante, temos que “os combates decisivos estão ainda à nossa frente e, sem dúvida, muito mais distantes. Os dias que vivemos ainda não representam a época de uma nova cultura, mas no máximo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 223 o seu limiar”, Trotski (1969 [1923], p. 166) prossegue, “devemos, em primeiro lugar, apossar-nos, oficialmente, dos elementos mais importantes da velha cultura, a fim de podermos, ao menos, abrir caminho à construção de uma nova”. Assim, na imagem apresentada pelo revolucionário ucraniano, concluímos que a revolução proletária é a preparação para uma nova época, como o canto do rouxinol e da coruja, enquanto a construção do socialismo é a apuração das épocas passadas: é precisamente nesta última que reside a importância de apoderar-se dos conteúdos essenciais das velhas culturas. Diferente da burguesia em sua fase revolucionária que já possuía, ao menos entre seus membros mais destacados, uma cultura, pensamento político e filosófico e educação estética desenvolvidos por meio de séculos de produção e difusão de seus valores, o proletariado não detinha para si toda a riqueza cultural humana produzida em consonância com a exploração de seu trabalho. Em outras palavras, na época das revoluções burguesas, a intelligentsia de sua classe dirigente já havia sido forjada cultural e politicamente e se apossado das realizações passadas para estabelecer sua própria visão de mundo capaz de transformá-lo; o incipiente proletariado russo, que poucas décadas antes de realizar sua primeira revolução arava a terra com paus e vivia em sua típica isbá de madeira, estava atirado à exploração material de sua força de trabalho, à fome sazonal e a completa pobreza espiritual. Se a revolução proletária havia conseguido botar fim a séculos de autocracia tsarista e na exploração dos proprietários sobre os trabalhadores, a construção da nova sociedade demandaria dos revolucionários uma tarefa mais difícil, anunciada por Lenin (1968 [1919], p. 58): superar a barreira da ignorância e conquistar a cultura e a instrução. 224 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) É nessa direção que Trotski (1969 [1923], p. 193) reconhece que “o proletariado, embora seja espiritualmente e, por conseguinte, artisticamente sensível, não recebeu educação estética. É pouco provável que o seu caminho comece no ponto onde a intelligentsia burguesa se deteve, antes da catástrofe”, pois Assim como o indivíduo, a partir do embrião, repete, biológica e psicologicamente, a história da espécie e, numa certa medida, de todo o mundo animal, a nova classe, cuja imensa maioria emerge de uma existência quase pré-histórica, deve refazer, por si mesma, tôda a história da cultura artística. Ela não pode edificar uma nova cultura antes de absorver e assimilar os elementos das antigas culturas. Isso não significa que vá atravessar passo a passo, lenta e sistematicamente, toda a história passada da arte. O processo de absorção e assimilação tem sempre um caráter mais livre e consciente, quando se trata de uma classe social e não do indivíduo biológico. A nova classe, porém, não pode prosseguir sem considerar os mais importantes marcos do passado. O oportuno paralelo entre o desenvolvimento biológico e a apropriação da cultura permite colocar em evidência que para os revolucionários a herança cultural do passado pré-proletário não deve ser desprezada, menos ainda negada, mas sim assimilada. A posição defendida por Lenin e Trotski reflete, da mesma forma, a conduta destes revolucionários naquilo que é defendido por eles: ambos nutriam interesse pelos mais variados ramos da ciência e da cultura, o que possibilitou enriquecer suas posições e visões de mundo revolucionárias expressas tanto na prática quanto nos escritos legados por eles. Quão diferentes são os revolucionários destes ativistas da pseudoesquerda pós-moderna de nossos tempos! Há, no entanto, aqueles que não compactuam com as noções pós-modernistas em II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 225 educação e atuam na direção oposta, na defesa dos postulados marxistas. A exemplo disso, a Pedagogia Histórico-Crítica é uma teoria pedagógica brasileira que tem em suas linhas mestras a defesa do saber científico sistematizado e ensino dos conhecimentos clássicos como critério de seleção para os conteúdos escolares, por entender que fortalecer a escola pública, mesmo nos marcos do capitalismo, é uma forma de elevar culturalmente os filhos da classe trabalhadora e armá-los para a atuação na luta de classes. Isso significa formar a intelligentsia proletária por meio da socialização dos conteúdos mais ricos produzidos pela humanidade. Elevação cultural A elevação cultural engendra outras tarefas da construção do modo de vida socialista, como a elevação da personalidade e a conquista da cultura e da técnica. A primeira delas, de caráter autoconsciente, fora assinalada na primeira lei educacional soviética sistematizada em 18 de outubro de 1918, onde se lê que “a personalidade continuará a ser o valor mais elevado da cultura socialista”9 (Hans; Hessen, 1930, p. 18). Anos depois, é possível localizar ecos desse ato em Trotski (1923, s/p) quando afirma que “a revolução é acima de tudo o despertar da personalidade humana em camadas que outrora nenhuma personalidade possuíam”. Para o revolucionário ucraniano, o caminho para o desenvolvimento da personalidade consiste na passagem dialética da quantidade para qualidade, ou seja, se naquele momento, pela primeira vez na história e graças a uma revolução social, milhões de pessoas aprendem a ler, escrever e fazer operações matemáticas, a tomada dos clássicos da 9 “The personality shall remain as the highest value in the socialist culture”. 226 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) literatura significa um salto qualitativo na personalidade proletária com representações e sentimentos mais complexos. Dessa forma, “a conquista mais valiosa do progresso cultural [...] consistirá na elevação das qualidades objetivas e da consciência subjetiva da personalidade”, sustenta Trotski (1969 [1923], p. 192), “o que Shakespeare, Goethe, Pushkin e Dostoievsky darão ao operário será, antes de tudo, a imagem mais complexa da personalidade, de suas paixões e sentimentos, uma percepção mais nítida de seu subconsciente, etc. O operário, afinal de contas, se enriquecerá”. Trotski estabelecia a conquista da cultura e da técnica em relação direta com a elevação material e cultural das massas russas, realização de maior importância para a construção do socialismo, cujo grande problema a ser resolvido é visto nas palavras do autor: “no nosso Estado, onde a classe operária está no poder, apoiada por elementos conscientes e pensantes entre os nossos milhões de camponeses, o problema fundamental é como utilizar todas as aquisições culturais para elevar o nível material e cultural das massas”10 (Trotsky, 1973 [1924], p. 145). O proletariado russo, deserdado da cultura, ao tomar o céu de assalto, não possuía nenhum poder material, e estava trajado apenas com a “necessidade aguda de conquistar a cultura”, o que significava que “a sua primeira tarefa, após apossar-se do poder, consiste em dominar o aparelho de cultura – indústrias, escolas, editôras, imprensa, teatro, etc. – e abrir o seu próprio caminho” (Trotski, 1969 [1923], p. 167). Se o problema a ser resolvido consistia em apoderar-se do aparelho da cultura, o papel da intelligentsia proletária era o de “ajudar, de forma 10 “In our state, where the working class is in power, supported by those conscious and thinking elements among our millions of peasants, the fundamental problem is how to use all cultural acquisitions to raise the material and cultural level of the masses”. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 227 sistemática, planificada e, certamente, crítica, as massas atrasadas a assimilar os elementos indispensáveis da cultura já existentes” (1969 [1923], p. 168-169). Temos, mais uma vez, o coro de Trotski aos apontamentos de Lenin (2015, p. 17) feitos anos antes no congresso da juventude sobre a necessidade de distinguir o que fora necessário para o capitalismo e o que é indispensável para o comunismo: o comunista deve assimilar os conhecimentos acumulados pela humanidade e não apenas repetir jargões e palavras de ordem. De igual modo, os construtores do socialismo deveriam apropriar-se indispensavelmente da técnica, como expõe Trotski (1969 [1923], p. 176-177): O estudo da técnica literária representa uma etapa indispensável e exige tempo. A técnica manifestase, de modo mais acentuado, precisamente entre aquêles que não a dominam. Pode-se dizer, com justiça, que muitos jovens escritores proletários não dominam a técnica. Mas, ao contrário, é a técnica que os domina. Para alguns, os mais talentosos, isso constitui apenas uma crise de crescimento. Mas aquêles que não poderão dominar a técnica parecerão sempre artificiais, imitadores e mesmo afetados. Seria absurdo concluir que os operários não necessitam da técnica da arte burguesa. Muitos caem nesse êrro. “Dai-nos” – dizem eles – “alguma coisa que seja nossa, mesmo malfeita, mas que seja nossa”. Isso é falso e enganoso. Arte malfeita não é arte e, em conseqüência, os trabalhadores não precisam dela. O conformista da arte malfeita guarda, no fundo, boa parte de desprêzo pelas massas e se torna muito importante para certos tipos de politiqueiros, que nutrem desconfiança orgânica na força da classe operária, mas a elogiam quando tudo vai bem. Os inocentes, atrás dos demagogos, repetem essa fórmula de simplificação pseudoproletária. Não se trata de marxismo, e sim de populismo reacionário, apenas 228 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) pintado de ideologia proletária. A arte que se destina ao proletariado não pode ser de baixa qualidade. A passagem acima arremata uma série de posições equivocadas daqueles que no tempo de Trotski defendiam uma espécie de espontaneísmo político e cultural, e o total desprezo pelos conhecimentos adquiridos pela humanidade. É digno de nota que esses pontos de vista vacilantes ainda encontram terreno fértil no seio da esquerda de nossos tempos. Aquilo que Trotski chama de arte malfeita é a arte sem o domínio da técnica que a enriquece, acresce valor histórico – e, portanto, resulta do acúmulo da experiência humana –, seu fruto é artificial e não é transgressor, menos ainda revolucionário. Trotski demonstra assertivamente que o discurso demagógico que prega a simplificação da arte, na verdade, esconde a desconfiança na força e intelecto da classe trabalhadora. Ainda hoje na esquerda observamos a reprodução cínica dessa “simplificação” trajada de apelo popular pretensamente revolucionário. A negação da teoria e supervalorização da prática espontânea, desprovida de reflexão e mais preocupada com fatores subjetivistas típicos do ideário pós-modernista demonstra, infelizmente, que até agora não conseguimos avançar na superação dos desvios pseudoproletários aos quais Trotski se refere. Ciência e sociedade Em 1925, após deixar o comissariado da guerra, Trotski tornase presidente do Conselho de Desenvolvimento Eletrotécnico do Comitê de Indústria e Tecnologia. Naquele momento, a eletrificação era o caminho para a reconstrução da indústria devastada pelos anos de guerra mundial e civil. O revolucionário bolchevique não tinha de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 229 lidar com soldados ou jovens poetas, mas com cientistas e especialistas que outrora serviam o tsar. Ainda que a própria atividade dos cientistas já os afastava de qualquer tipo de misticismo e os aproximava do materialismo, havia a recusa ideológica ao marxismo; dessa forma, o esforço de Trotski direcionava-se em aproximar o materialismo constante na atividade científica com o marxismo e as tarefas colocadas pela revolução proletária. Esse caminho já havia sido pavimentado por ele em outras ocasiões na sua trajetória revolucionária: em 1898, na primeira prisão em Odessa quando lera pela primeira vez O Capital de Marx e A origem das espécies e a seleção natural de Darwin e atribui a leitura do biólogo evolucionista o despertar para o ateísmo (Trotsky, 1973 [1923], p. 112); em discurso como comissário da guerra11 em 1922, quando reafirma a importância do materialismo para todos os domínios do pensamento e declara ser o marxismo e o darwinismo escolas superiores do pensamento humano, partindo para a defesa de que ambos possuem a capacidade de alargar os horizontes daqueles que os estudam; por fim, em dezembro de 1939, oito meses antes de ser assassinado, apreende o movimento dialético presente na evolução das espécies como “conversão de mudanças quantitativas em qualitativas” e assinala o darwinismo como o “maior triunfo da dialética no campo da matéria orgânica” (Trotski, 2017, s/p). É possível captar o entendimento de Trotski sobre a ciência em dois momentos: em 1923, inserido nos debates contra os proletkultistas, associa a ciência com a cultura, sendo esta a alavanca daquela, reforçando o argumento pela assimilação de ambas, contrariando as aspirações daqueles que propagavam a existência de 11 Ver Saber militar e marxismo (1922), disponível em: <https://bit.ly/3qq8jeX>. Acesso em 15 ago. 2023. 230 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) uma cultura e ciência proletárias, tal como se lê em “pode dizer-se que o Estado dos trabalhadores – pelo menos na medida em que é deixado em paz – é uma luta organizada pela civilização e pela cultura e, consequentemente, pela ciência como a alavanca mais importante da cultura”12 (Trotsky, 1973 [1923], p. 200). No segundo momento, em 1925, já na qualidade de presidente do Conselho, profere discurso no IV Congresso Mendeleiev de Química Geral e Aplicada, posteriormente publicado na revista Ekonomicheskaya Zhizn (Vida Econômica), em que se lê: “a evolução social da ciência, a sua evolução histórica, é determinada pela sua capacidade de aumentar o poder do ser humano e de o armar com o poder de prever e dominar a natureza. A ciência é um conhecimento que nos dota de poder”13. (1973 [1925], p. 210, ênfase inserida). A partir do excerto de 1925 o objetivo de Trotski em vincular a construção do modo de vida socialista com o pensamento científico se torna mais claro: é necessário conhecer cientificamente a realidade, as leis da evolução e as propriedades da matéria que nos cerca para ter maestria sobre esses campos (1973 [1925], p. 208). E mais do que isso, afirma que o “significado da ciência reside precisamente nisto: conhecer para antever”14 (Trotsky, 1973 [1925], p. 209) –, ou seja, deter o conhecimento científico da realidade permite agir sobre ela, transformando-a, como anunciou Marx em sua décima primeira tese 12 “It may be said that the workers’ state – at least to the extent that it is left in peace – is an organized struggle for civilization and culture, and consequently for science as the most important lever of culture”. 13 “The social evaluation of science, its historical evaluation, is determined by its capacity to increase man’s power and arm him with the power to foresee and master nature. Science is knowledge that endows us with power”. 14 “Yet the significance of science lies precisely in this: to know in order to foresee”. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 231 sobre Feuerbach15. Concatenando a dialética materialista e a ciência, Trotski retoma à citação de Dmitri Mendeleiev, químico e físico russo, para defender a ideia de que é possível conhecer a realidade e seu núcleo essencial: “ao acumular progressivamente o seu conhecimento da matéria, o ser humano domina-a e, à medida que o faz, faz prognósticos cada vez mais precisos, verificáveis factualmente, e não há forma de ver como pode haver um limite para o conhecimento e o domínio da matéria pelo ser humano”, e com suporte na citação do criador da tabela periódica, Trotski (1973 [1925], p. 219) conclui: “é evidente que, se não há limites para o conhecimento e o domínio da matéria, então não existe uma ʽessência’ incognoscível”16. Fato é que se essa última inferência de Trotski se torna ainda mais potente se disposta ao lado das concepções do universo ideológico neoliberal e pós-moderno: se para o marxismo a ciência aliada à dialética materialista reconhece que a realidade, como totalidade, é cognoscível, e, portanto, possível de ser entendida e transformada, os neoliberais e seus afiliados pós-modernos a todo momento afirmam o conhecimento como produto da percepção tácita e imediata dos indivíduos. Com precisão demonstra Duarte (2006) que a teoria do conhecimento neoliberal e pós-modernista são fenômenos do cotidiano, em que o indivíduo tem como referência seus interesses e necessidades particulares, e por isso a crença de que a totalidade não consegue ser assimilada pela racionalidade científica. Os neoliberais 15 Ver Teses sobre Feuerbach (1845), disponível em: <https://bit.ly/3sadwrE>. Acesso em 15 ago. 2023. 16 “ʽBy accumulating gradually their knowledge of matter, men gain mastery over it, and to the degree in which they do so they make ever more precise predictions, verifiable factually, and there is no way of seeing how there can be a limit to man’s knowledge and mastery of matter’. It is self-evident that if there are no limits to knowledge and mastery of matter, then there is no unknowable ʽessence’”. 232 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) têm que o conhecimento é falho e solipsista, já para os pós-modernos, a ciência é falha porque não considera os valores subjetivistas e relativistas em sua produção. Em ambos, a totalidade e universalidade é constantemente negada. Os marxistas, ao contrário, reverberam a justa noção hegeliana de que o verdadeiro é o todo. Considerações finais Leon Trotski ocupou posições decisivas na história da Revolução Russa: em 1905 e 1917, foi presidente do Soviet de Petrogrado, onde também foi membro do Comitê Militar Revolucionário responsável pela insurreição no Palácio de Inverno, selando o triunfo bolchevique em outubro; organizou o Exército Vermelho para defender a Revolução frente aos exércitos contrarrevolucionários e seus aliados imperialistas; fez parte da delegação que firmou a saída da Rússia na Primeira Guerra Mundial em Brest-Litovski; foi Comissário de Guerra nos anos de Guerra Civil, conduzindo a vitória dos Vermelhos sobre os Brancos; e por fim, ocupou presidência no conselho técnico e científico no momento de reconstrução da indústria russa. É impossível apagar o legado desse revolucionário dos registros da primeira vitória da revolução proletária da história. A produção teórica de Trotski também guarda uma história à parte. Suas obras completas deixaram de ser publicadas na União Soviética depois da escalada da camarilha de Stalin ao aparato partidário e mesmo com esforços posteriores sua obra completa e sistematizada jamais se materializou. Ainda sim, estudiosos de diversos campos trouxeram de volta à ribalta a lavra deste ilustre revolucionário. Em tempos de negação da força revolucionária da classe operária II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 233 manifesto também na desconfiança geral na sua vanguarda, o Partido Comunista, no rebaixamento ideológico a etapas já superadas, Trotski (1937) nos adverte que é nesse momento de fluxo regressivo que temos que nadar contra a corrente, mantendo firmemente as nossas posições ideológicas conquistadas como espólio das custosas experiências passadas. É somente assim que poderemos preparar e produzir o novo para a ascensão da próxima maré histórica. No campo da educação, o rebaixamento ideológico se apresenta sob a defesa das ideias que negam a centralidade da luta classista e o conhecimento objetivo da realidade em prol da pregação de uma visão de mundo dos saberes e realidades fragmentadas, individualistas e particularistas, tal como defendem os neoliberais e os pós-modernos. Estes, que abjetamente advogam contra o acesso das classes subalternizadas ao saber sistematizado, clássico e desenvolvido por temerem a formação de uma visão de mundo materialista e, portanto, revolucionária. Escondem o pavor reacionário que têm dos trabalhadores conscientes e o que podem fazer se dotados de uma visão de mundo revolucionária, que só pode ser concebida pelo acesso ao que de mais rico produziu a humanidade. E não é para menos: entender que a realidade é fruto de nossa própria ação na história abala o domínio das visões de mundo mistificadoras e entorpecentes da realidade. O mesmo é válido para as ideias pseudoproletárias, cujo sermão demagógico pela “simplificação” da teoria e da cultura, na verdade, esconde o ceticismo pelo intelecto dos trabalhadores. Com posição diametralmente oposta, os revolucionários entendem ser arquinecessário defender a elevação do nível cultural, não seu rebaixamento ao nível que as classes dominantes reduziram os trabalhadores, ou seja, é preciso apropriar do conhecimento científico, da cultura e da 234 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) técnicas passadas e assimilá-las criticamente, se temos como intenção dirigirmos nossos esforços rumo à revolução proletária e emancipação humana. Referências bibliográficas BOGDANOV, A. Ciência e classe operária. In: LINDENBERG, D. A Internacional Comunista e a Escola de classe. Coimbra: Centelha, 1977, p. 251. BOGDANOV, A. Proletarian poetry. 1923. Disponível em: <https:// bit.ly/3KwqxlN>. Acesso em 8 ago. 2023. DUARTE, N. Neoliberalismo, pós-modernismo e construtivismo. 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New York; London; Sydney: Pathfinder Press, 1973. 236 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky e a Organização Revolucionária Paul Le Blanc1 Há quarenta anos, Dianne Feeley, Tom Twiss e eu compusemos um estudo abrangente, com citações e documentação substanciais, intitulado Leon Trotsky e os Princípios Organizacionais do Partido Revolucionário. Aqui quero sugerir como o que documentamos nesse estudo pode estar relacionado com a pessoa que Trotsky foi [1]. Cada um de nós parece esforçar-se - com diferentes graus de competência - para fazer de sua vida uma obra de arte. Para Lev Davidovich Bronstein, essa obra de arte parece ter sido o herói prometeico conhecido pelo mundo como Leon Trotsky. Gostaria de começar por me centrar numa limitação pessoal enredada nesta autoconstrução heroica. “O ego de Bronstein dominava todo o seu comportamento”, escreveu um antigo camarada da juventude de Trotsky, Grigori Ziv, mas “a revolução dominava o seu ego”. Alexandra Sokolovskaya, uma camarada que foi a primeira esposa de Trotsky, comentou mais tarde que “em toda a minha experiência, nunca conheci uma pessoa tão completamente consagrada” à causa revolucionária. Um camarada posterior, Anatoly Lunacharsky, insistiu: “Não há uma gota de vaidade nele, ele é totalmente indiferente a qualquer título ou às armadilhas do poder; ele é, no entanto, ilimitadamente ciumento de seu próprio papel na história, e nesse sentido ele é ambicioso”. Uma das primeiras funcionárias da Internacional Comunista, 1 Professor Emérito de História; autor de livros sobre o movimento operário, Lenin, Luxemburgo e Trotsky; militante de longa data. Contato: Paul.LeBlanc@laroche. edu. (Este texto foi traduzido para o português por Icaro Rossignoli) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 237 Angelica Balabanoff, enfatizou que “mais do que qualquer outra figura na Revolução Russa, Trotsky provou ser capaz de despertar as massas pela força de seu temperamento revolucionário e seus brilhantes dons intelectuais”. Olhando por outro lado, ela comentou: “A sua arrogância iguala os seus dons e capacidades e cria muitas vezes uma distância entre ele e os que o rodeiam que exclui tanto o calor pessoal como qualquer sentimento de igualdade e reciprocidade” [2]. Talvez essas qualidades problemáticas tenham origem nas inseguranças da infância. O contexto era a vida rural “dura e inexorável” (de acordo com a primeira grande biografia de Victor Serge e Natalia Sedova), no seio de uma família agrícola judaico-russa-ucraniana cada vez mais próspera - os Bronstein - chefiada por pais conhecidos pela sua “força de carácter e senso comum prático”. Segundo Serge e Sedova, Trotsky cresceu no seio de “uma família carinhosa e trabalhadora”, embora o biógrafo Isaac Deutscher coloque a questão de forma diferente - observando que os pais estavam “demasiado absorvidos no seu trabalho” para dar ao jovem Lev Bronstein “muita ternura”. Deutscher nos diz que ele “cresceu e tornou-se um rapaz saudável e animado, encantando os seus pais e irmãs e os criados e trabalhadores da fazenda com o seu brilho e bom feitio” [3]. No entanto, foi mandado para a escola aos 7 anos, depois foi trazido de volta por alguns meses, apenas para ser novamente enviado para viver com parentes na cosmopolita cidade de Odessa. A autobiografia de Trotsky sugere uma ligação afetiva com o pai e - mais tarde - com o primo mais velho e a esposa, com quem viveu, em Odessa, desde os nove anos de idade e que o estimularam cultural e intelectualmente. Mas, mais do que isso, há um forte contraste. Por um lado, há uma estreita ligação emocional com um trabalhador 238 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) qualificado empregado pelo pai comerciante - como nota a académica Kirsty McClusky, ele surge como “um educador, companheiro de brincadeiras e modelo a seguir”. Por outro lado, na autobiografia de Trotsky, a sua mãe, como refere McClusky, é “uma figura apagada”. Há também um relativo silêncio em relação aos seus irmãos: o irmão mais velho Alexander, a irmã mais velha Elizabeth e a irmã mais nova Olga. (*Olga se tornou uma revolucionária e casou-se com o proeminente bolchevique Lev Kamenev, fatos que estão ausentes da autobiografia de Trotsky). Parte disto pode estar relacionado ao fato de “Trotsky nunca ter vivido muito com a sua família”, como observa Max Eastman. “Foi para a escola aos nove anos e, pouco depois, começou a viver na prisão. A primeira prisão de Trotsky ocorreu quando ele tinha dezenove anos - mas o fato de os pais o terem mandado embora teve certamente um impacto emocional e psicológico. Além disso, embora tivesse sido próximo da mãe quando era criança, após a sua detenção, o encontro irritado dela com ele transformou-se numa discussão furiosa que culminou numa ruptura de relações, que o jovem Trotsky confessou ter “acabado com meus nervos”. [4] Deutscher observa que, durante o seu crescimento, certas qualidades se tornaram evidentes. “Como muitos jovens dotados”, diz-nos, ele era “fortemente egocêntrico e desejoso de se destacar”. Além disso, tinha um “forte e precoce instinto de rivalidade”. [5] Esta mistura de traços de personalidade foi fundamental para o caráter deste revolucionário em evolução. Escrevendo a Alexandra Sokolovskaya (que viria a ser a sua primeira mulher), o jovem revolucionário confessou que “podemos ser mais francos com a mulher que amamos do que com nós mesmos”, mas acrescentou que “essa franqueza só é possível numa II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 239 conversa pessoal, mas nem sempre, apenas em momentos especiais e excepcionais”. Trotsky podia ser muito terno e simpático, comentou Sokolovskaya mais tarde, mas ela também tinha plena consciência das suas limitações. Nos anos 30, escreveu a Trotsky a propósito da incapacidade dele para ajudar a filha problemática Zinaida (que se suicidou), que “muito se explica pelo teu carácter, pela dificuldade que tens em exprimir os teus sentimentos”. Lunacharsky refletiu que Trotsky estava “condenado a certa solidão” porque lhe faltava “o encanto que sempre rodeou Lenin”. [6] A segunda mulher de Trotsky, Natalia Sedova, reconhece que “o seu círculo de amigos era pequeno” de 1917 a 1929, mencionando meia dúzia de nomes de íntimos, acrescentando que ele também tinha “relações cordiais” com talvez uma dúzia de outros. [7] No entanto, as limitações que temos focado foram transcendidas pela profunda identificação de Trotsky com os explorados e oprimidos e pela sua absoluta dedicação à causa revolucionária. A graça salvadora da dedicação revolucionária proporcionou canais para o brilhantismo oratório e literário, mas esse brilhantismo estava ligado a uma capacidade de perspicácia e de análise aguda que se baseava numa humildade notável, num desejo de aprender com os chamados “miseráveis da terra”. Observando que “muitos intelectuais e semi-intelectuais aterrorizam os trabalhadores com algumas generalidades abstratas e paralisam a vontade de agir”, ele insistia que um ativista revolucionário “deve ter, em primeiro lugar, um bom ouvido, e só em segundo lugar uma boa língua”. [8] Desde os seus primeiros dias como jovem ativista socialista na Ucrânia, passando pelos tempos das convulsões revolucionárias na Rússia em 1905 e 1917, pelos tumultuosos anos de guerra civil no início 240 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) da República Soviética, pelos cinco anos de oposição à burocratização autoritária dessa república, até aos seus onze anos de exílio na Turquia, França, Noruega e México, encontramos relatos do envolvimento intensivo e respeitoso de Trotsky com - e aprendendo com - militantes operários que eram explorados e oprimidos. Isto alimentou as suas notáveis capacidades oratórias, a sua escrita eloquente e incisiva, para não falar das suas impressionantes capacidades de organização. Durante quase década e meia no Partido Operário Socialdemocrata Russo, Trotsky tinha sido um opositor muito articulado ao centralismo revolucionário que caracterizava a fração bolchevique de Lenin. Este fato tornou a sua conversão ao bolchevismo, em 1917, ainda mais marcante. “A minha posição sobre o conflito intrapartidário”, explicou mais tarde, “resumia-se ao seguinte: enquanto os intelectuais revolucionários fossem dominantes entre os bolcheviques e entre os mencheviques, e enquanto ambas as facções não se aventurassem para além da revolução democrático-burguesa, não havia justificação para uma cisão entre elas”. Ele acreditava que “na nova revolução, sob a pressão das massas trabalhadoras, ambas as facções seriam, em qualquer caso, obrigadas a assumir uma posição revolucionária idêntica, como fizeram em 1905”. Mas a experiência posterior obrigou-o a repensar tudo isto. “A simples conciliação das frações só é possível ao longo de uma espécie de linha ‘intermédia’“, refletiu. “Mas onde está a garantia de que esta linha diagonal artificialmente traçada coincidirá com as necessidades do desenvolvimento objetivo?” Concluiu que Lenin tinha tido sempre razão. Como ele disse: “A tarefa da política científica é deduzir um programa e uma tática a partir de uma análise da luta de classes, não a partir do paralelogramo [em constante mudança] de forças secundárias II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 241 e transitórias como as frações políticas”. [9] A história de Trotsky é a de um brilhante outsider atraído, depois repelido e, finalmente, comprometido com o coletivo revolucionário em evolução que estava associado a Lenin. De acordo com Lenin, a partir do momento dessa decisão, “não houve melhor bolchevique” - e é certamente verdade que, durante o resto da sua vida, Trotsky procurou manter-se fiel ao melhor que Lenin representava e às qualidades do bolchevismo que tinham tornado possível 1917. [10] No entanto, a viúva de Lenin, Nadezhda Krupskaya - ao defender Trotsky na controvérsia dos anos 20 em torno do seu ensaio “Lições de outubro” - sugeriu criticamente que ele ainda não tinha assimilado completamente a orientação organizacional de Lenin. Ao centrar-se em Lenin e noutras personalidades importantes, observou, “Trotsky não reconhece o papel desempenhado pelo partido como um todo, como uma organização unificada”. Embora concorde que “a personalidade dos dirigentes é um ponto da maior importância”, insistiu que “não se trata apenas de uma questão das suas capacidades pessoais, mas de saber se o pessoal [da direção do partido] está intimamente ligado a toda a organização”. [11] Kunal Chattopadhyay, no seu estudo de 2006, The Marxism of Trotsky, sublinha que Trotsky, de fato, não se limitou a fazer uma “assimilação teórica” total do pensamento de Lenin. A forja do “bolchevismo de Trotsky” manteve “traços distintivos onde foram incorporados os seus pontos de vista anteriores” [12]. No entanto, os “traços distintivos” do bolchevismo de Trotsky continham uma mistura - ideias válidas que poderiam ser úteis no desenvolvimento de um partido revolucionário, misturadas com uma competitividade e impaciência nociva que prejudicavam esse desenvolvimento. A crítica 242 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de Krupskaya visava este aspecto nocivo. É possível sugerir que Trotsky levou a peito o ponto de vista de Krupskaya, integrando-o na abertura da sua magistral História da Revolução Russa, numa afirmação clássica da interação dinâmica e necessária entre a luta de massas espontânea e a organização revolucionária: Só com base num estudo dos processos políticos nas próprias massas é que podemos compreender o papel dos partidos e dos líderes, que nós de forma alguma estamos inclinados a ignorar. Eles não constituem um elemento independente, mas, apesar disso, muito importante, no processo. Sem uma organização orientadora, a energia das massas dissipar-se-ia como o vapor não encerrado numa caixa de pistões. No entanto, o que move as coisas não é o pistão ou a caixa, mas o vapor. [13] O aprofundamento da adesão de Trotsky ao tipo de coletivo revolucionário que se tinha revelado capaz de liderar a Revolução de 1917, pode-se argumentar, proporcionou o equilíbrio que Krupskaya tinha exigido. Isto facilitou a sua capacidade de lutar contra a corrupção burocrática que estava a envolver a República Soviética e a Internacional Comunista. Na sua oposição ao “leninismo” autoritário do regime de Stálin, Trotsky tornou-se um dos mais eloquentes defensores dos princípios organizacionais revolucionários de Lenin. Como sugere Kunal Chattopadhyay, a capacidade de fazer isso foi facilitada pelos elementos “parcialmente corretos” da orientação de Trotsky anterior a 1917, que ajudaram a moldar a sua concepção de leninismo. [14] A forma como Trotsky procurou formar quadros mais jovens revela a sua determinação em ser fiel ao equilíbrio revolucionário que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 243 Krupskaya (e Lenin) representavam. Natalia Sedova recorda que no período da revolução, da guerra civil e da oposição inicial à burocracia estalinista, Trotsky “estabeleceu as relações mais calorosas” com camaradas “que eram mais novos do que ele e que quase nunca via, exceto no trabalho”. [15] Isso continuou com os jovens ajudantes, secretários e guardas de todo o mundo que se juntaram a ele após a sua expulsão da União Soviética. É possível traçar um padrão: a determinação de Trotsky em ajudar a desenvolver o que ele via como novos quadros bolcheviques-leninistas transcendia cada vez mais a sua arrogância profundamente enraizada e a sua impaciência persistente. Uma das secretárias de Trotsky durante os seus anos de exílio, Sara Weber, corrobora: “A juventude, os jovens camaradas, eram muito preciosos para LD. Ele respondia com entusiasmo às suas perguntas e, muitas vezes, conversava pessoalmente com eles sobre os pontos que eram levantados”. Acrescenta que “em LD nunca houve qualquer ‘superioridade’ - éramos camaradas, iguais; havia simplicidade e paciência, e mesmo os menos informados não se sentiam menosprezados”. Descrevendo o seu envolvimento com militantes da classe trabalhadora que vinham falar com ele, Weber escreve: “Vi a atitude de LD para com os trabalhadores; ele conhecia e sentia a sua sorte. E para aqueles que eram atraídos por ideias revolucionárias, nunca lhe faltava tempo; para eles, tinha toda a paciência, tolerância e compreensão.” Ao mesmo tempo, Weber não podia deixar de ver um outro lado de Trotsky quando surgiram divergências agudas no seio da Oposição de Esquerda na França. “Senti a fúria arrebatadora da ira de LD... as suas palavras cortantes, os seus olhos a brilharem com faíscas azuis de fogo - vi diante de mim a figura de Moisés, quebrando as tábuas com os Dez Mandamentos... e senti-me abalada.” [16] 244 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) A tendência de Trotsky para explodir como um Moisés enfurecido (que se tinha virado com fúria contra o seu irmão Aarão por este ter comprometido a palavra de Deus) pode ter decorrido - pelo menos em parte - de impulsos profundamente enraizados relacionados com a “irritabilidade” e com explosões de arrogância. Isto certamente atravessou a dinâmica do coletivo revolucionário que tinha sido parte integrante do melhor do leninismo de Lenin. Tais explosões foram explicadas pelo seu filho Leon Sedov como estando relacionadas com “a influência do seu isolamento, muito difícil, sem precedentes” nos seus últimos anos de exílio. No entanto, Sedov, ele próprio um organizador revolucionário experiente, era muito crítico em relação àquilo a que chamava a tendência recorrente do pai para a “falta de tolerância, temperamento explosivo, incoerência, até mesmo grosseria” e, por vezes, pior. Jean van Heijenoort, um dos mais confiáveis auxiliares de Trotsky durante todo o seu exílio, também via essas qualidades negativas. [17] Mas Trotsky esforçou-se por ser melhor do que isso, particularmente sob o impacto devastador da morte de Leon Sedov em 1938. Van Heijenoort nota que “a sua impaciência perdeu o seu carácter cortante” e que “as relações de Trotsky com os seus guardas americanos [no subúrbio da Cidade do México, Coyoacán] eram de alguma forma mais simples, talvez mais reservadas, mas também menos variáveis”. Este fato está patente nas recordações de outros secretários e guardas de Trotsky, como Bernard Wolfe, que recorda “o seu estilo de delegar [que] não lhe permitia qualquer tom de repreensão ou de sermão”. Rae Spiegel (mais tarde conhecida como Raya Dunayevskaya) relatou: “É a sua simplicidade, a devoção a uma causa durante toda a sua vida, a sua crença fervorosa de que a revolução II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 245 que começou na Rússia é apenas um elo na ‘revolução permanente’, a revolução socialista mundial, que faz dele não um exilado solitário, mas uma potência”. [18] Outro secretário, Joe Hansen, comentou: “Trotsky compreendeu na perfeição que um partido se constrói através da acumulação e educação de quadros.” Foi assim que ele entendeu a decisão de construir a Quarta Internacional - a reunião e o desenvolvimento de quadros que seriam os bolcheviques-leninistas do futuro, que poderiam construir partidos revolucionários capazes de forjar lutas efetivas pela revolução socialista. Ele foi “absorvido” por este objetivo e dedicou-lhe “a sua mais viva atenção”. Hansen acrescenta: “Para os guardas e os secretários, Coyoacán era uma escola da Quarta Internacional. Todos nós seguíamos estudos pessoais que Trotsky, como sabíamos, registrava sem intervir”, mas a formação - na verdade, o desenvolvimento dos quadros - ia mais além. “De uma forma mais abrangente”, diz-nos Hansen, “Trotsky utilizava toda a situação, incluindo a organização da nossa defesa, as relações diplomáticas com o exterior, a tomada de decisões políticas, a resposta à volumosa correspondência, até os artigos que escrevia, para nos transmitir o máximo que podia da tradição do passado”. E conclui: “Não parecia haver uma pedagogia deliberada nisto; era apenas o padrão em que tudo era discutido, decidido e levado a cabo”. [19] Nesse processo, Trotsky não estava interessado no desenvolvimento de homens e mulheres que concordassem com tudo, mas sim de revolucionários capazes de pensar por si mesmos. Quando Harold Robins, um camarada da classe trabalhadora dos EUA, comentou que ele não escrevia artigos, deixando isso para “os intelectuais”, Trotsky admoestou: “Como é que pode dizer isso, 246 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) camarada Robins? Você pensa que toda essa luta se trata do que?” [20] Especialmente quando os membros do movimento da Quarta Internacional de vários países se reuniam, havia “discussões, por vezes debates muito animados - para Trotsky, nenhum dos seus seguidores, nenhum dos que tinham absorvido o seu espírito, hesitava em expressar diferenças. Se não expressassem diferenças, podiam esperar ser pressionados pelas suas opiniões da mesma forma”. Mais uma vez estabelecendo a ligação entre a escrita e o trabalho prático de construção do movimento revolucionário, Hansen enfatizou: “Nas semanas seguintes, uma visita deste gênero ainda ecoava na casa, sendo um dos indícios um aumento da produção na ampla escrivaninha de Trotsky.” [21] Isso lembra o comentário de Trotsky durante debates acirrados entre bolcheviques no início dos anos 1920 - citado com aprovação por Lenin - de que “a luta ideológica dentro do partido não significa ostracismo mútuo, mas influência mútua” [22]. Pouco tempo depois, Trotsky enfatizou a importância da discussão crítica e da expressão de desacordos desta forma: Um bolchevique não é apenas uma pessoa disciplinada; é uma pessoa que, em cada caso e em cada questão, forja uma opinião própria firme e a defende corajosa e independentemente, não apenas contra os seus inimigos, mas dentro do seu próprio partido. Hoje, talvez, ele esteja em minoria na sua organização. Submeter-se-á, porque é o seu partido. Mas isso nem sempre significa que ele esteja errado. Talvez tenha visto ou compreendido, antes dos outros, uma nova tarefa ou a necessidade de uma viragem. Levantará persistentemente a questão uma segunda, uma terceira, uma décima vez, se for necessário. Desse modo, prestará um serviço ao seu partido, ajudando-o a enfrentar a II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 247 nova tarefa totalmente armado ou a efetuar a viragem necessária sem convulsões orgânicas, sem convulsões fracionais. [23] Os temas que Trotsky reuniu correspondem àqueles enfatizados por Lenin: a necessidade de a organização ter um alcance exterior e estar empenhada na ação - mas uma ação firmemente baseada no marxismo revolucionário. [24] Isto está interligado com a ênfase numa abordagem aberta e de espírito crítico, tanto da teoria marxista como das realidades que se desenrolam. Relacionado com isto está a ênfase na necessidade absoluta da democracia partidária, fundida com um sentido vibrante de coletividade, o que Lenin viu como “um corpo próximo e compacto de camaradas em que prevalece a confiança mútua e completa”, tendo cada um “um sentido vivo da sua responsabilidade”. [25] Vale a pena prestar atenção à elaboração de Trotsky, no final da década de 1930, sobre o significado e a necessidade da democracia partidária: O que é a democracia partidária? a. A mais estrita observância dos estatutos do partido pelos organismos dirigentes (convenções regulares, período necessário de discussão, direito da minoria a exprimir as suas opiniões nas reuniões do partido e na imprensa). b. Uma atitude paciente, amigável e até certo ponto pedagógica por parte do comitê central e dos seus membros em relação às bases, incluindo os críticos e os descontentes, porque não é um grande mérito estar satisfeito “com qualquer um que esteja satisfeito comigo”. Quando Lenin pediu a expulsão de Ordzhonikidze do partido (1923), disse muito corretamente que o membro descontente do partido tem o direito de ser turbulento, mas não um membro do comitê 248 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) central. Métodos de “terrorismo” psicológico, incluindo uma forma arrogante ou sarcástica de responder ou tratar qualquer objeção, crítica ou dúvida - é, nomeadamente, essa forma jornalística ou “intelectualista” que é insuportável para os trabalhadores e os condena ao silêncio. c. O tema apenas formal das regras democráticas, tal como indicado em (a), e as medidas apenas negativas - não aterrorizar, não ridicularizar - em (b) não são suficientes. O comitê central, bem como cada comitê local, deve estar em contato permanente, ativo e informal com as bases, especialmente quando se prepara uma nova palavra de ordem ou uma nova campanha, ou quando é necessário verificar os resultados de uma campanha já realizada. Nem todos os membros do comitê central são capazes desse contato informal, e nem todos os membros têm tempo para isso ou para a ocasião, o que depende não só da boa vontade e de uma psicologia particular, mas também da profissão e do meio correspondente. Na composição do comitê central, é necessário ter não só bons organizadores e bons oradores, escritores, administradores, mas também pessoas estreitamente ligadas às bases, organicamente representativas delas. [26] Vimos que Trotsky nem sempre foi capaz de viver de acordo com estes ideais - e, com certeza, o mesmo pode ser dito de Lenin e dos camaradas bolcheviques em geral. No entanto, estas são perspectivas organizacionais com as quais Trotsky estava comprometido e que ele acreditava que deveriam guiar os revolucionários do seu próprio tempo e do futuro. Referências bibliográficas [1] Dianne Feeley, Paul Le Blanc, Thomas Twiss. Leon Trotsky and II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 249 the Organizational Principles of the Revolutionary Party (Chicago: Haymarket Books, 2014). In relating this to Trotsky’s personal dynamics, I draw partly from Paul Le Blanc, Leon Trotsky (London: Reaktion Books, 2015). [2] Anatoly Lunacharsky, Revolutionary Silhouettes (New York: Hill and Wang,1968), p. 67; Angelica Balabanoff, My Life as a Rebel (Bloomington, IN, 1973), p. 156; Ziv quoted in Isaac Deutscher, The Prophet Armed, Trotsky: 1879-1921 (New York, 1954), p. 35. For more on Ziv and his account of Trotsky, see: Kirsty McClusky, “Reading Trotsky, Writing Bronstein: Assessing the Story of Lev Trotsky’s Childhood and Youth, 1879-1902,” Revolutionary Russia, Vol. 19, No. 1, June 2006, pp. 10, 11, 12, 16, and Kenneth D. Ackerman, Trotsky in New York, 1917: A Radical on the Eve of Revolution (Berkeley, CA: Counterpoint, 2016), pp. 80, 82-83, 86-87, 129-137. [3] Victor Serge and Natalia Sedova Trotsky, The Life and Death of Leon Trotsky (Chicago: Haymarket Books, 2015), 9, 10; Deutscher, The Prophet Armed, p. 8. [4] Serge and Sedova Trotsky, p. 10; Max Eastman, Leon Trotsky: The Portrait of a Youth (New York: Greenberg, 1925), 7; McClusky, pp. 6, 7, 11. [5] Deutscher, The Prophet Armed, p. 15. [6] Robert Service, Trotsky, A Biography (Cambridge: Harvard University Press, 2009), p. 52; Eastman, p. 87; Isaac Deutscher, The Prophet Outcast, Trotsky: 1929-1940 (New York: Oxford University Press, 1963), p. 197; Bertrand M. Patenaude, Trotsky, Downfall of a Revolutionary (New York: HarperCollins, 2009), p. 106; Lunacharsky, p. 62. [7] Serge and Sedova Trotsky, pp. 121-123. [8] Quoted in Leon Trotsky and the Organizational Principles of the Revolutionary Party, p. 80; “The Social Composition of the Party,” Writings of Leon Trotsky, 1936-37 (New York: Pathfinder Press, 1978), 489, 490. 250 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) [9] Leon Trotsky, Stalin, An Appraisal of the Man and His Influence (New York: Stein and Day, 1967), p. 112. [10] On the partial convergence of Trotsky’s thought with Lenin’s, see Kunal Chattopadhyay, The Marxism of Leon Trotsky (Kolkata: Progressive Publishers, 2006), pp. 233-236. [11] Paul LeBlanc, “Trotsky, Krupskaya, and the Bolshevik Tradition,” Links: International Journal of Socialist Renewal (August 1, 2021) https://links.org.au/trotsky-krupskaya-and-bolshevik-tradition. Prepared in conjunction with a presentation for an online conference in Brazil, “Trotsky em Permanência” (Trotsky in Permanence) from August 2-6, 2021 (https://www.youtube.com/watch?v=WD4l_ KYDPVQ). [12] Chattopadhyay, p. 236. He later stresses that Trotsky “put forward his own conception of Leninism” (p. 249). At the same time, Chattopadhyay acknowledges that Trotsky’s Lessons of October, in arguing that “so many Old Bolsheviks had failed to measure up to the requirements of revolution,” antagonized comrades rather than persuaded them. [13] Leon Trotsky, The History of the Russian Revolution, Three Volumes in One (New York: Simon and Schuster, 1936), p. xix. [14] Chattopadhyay, p. 263. [15] Serge and Sedova Trotsky, 120-121. [16] Sara Weber, “Recollections of Trotsky,” Modern Occasions, Spring 1972, pp. 185, 186. [17] LeBlanc, Leon Trotsky, pp. 145-146; Jean van Heijenoort, With Trotsky in Exile, From Prinkipo to Coyoacán (Cambridge: Harvard University Press, 1978), pp. 26-27. [18] Van Heijenoort, p. 27; Bernard Wolfe, Memoirs of a Not Altogether Shy Pornographer (Garden City, NY: Doubleday, 1972), p. 35; Rae Spiegel/Raya Dunayevskaya, “The Man Trotsky,” unpublished manuscript (approximately 1938, shared by Peter Hudis), p. 20. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 251 [19] Hansen, “With Trotsky in Coyoacán,” in Leon Trotsky, My Life (New York: Pathfinder Press, 1970), pp. xii, xiii, xvii. [20] David North, A Tribute to Harold Robins, Captain of Trotsky’s Guard (Detroit, MI, 1987), pp. 7-8. [21] Hansen, “With Trotsky in Coyoacán,” p. xiii. [22] Quoted in Paul LeBlanc, Lenin and the Revolutionary Party (Chicago: Haymarket Books, 2015), p. 275; Lenin, “Once Again on the Trade Unions,” Collected Works, Vol. 32 (Moscow: Progress Publishers, 1973), pp. 105-106. [23] Quoted in Leon Trotsky and the Organizational Principles of the Revolutionary Party, pp. 15-16; Leon Trotsky, “The New Course: A Letter to Party Meetings,” in The Challenge of the Left Opposition, 1923-25 (New York: Pathfinder Press, 1975), p. 127. [24] In addition to Le Blanc, Lenin and the Revolutionary Party, see Paul Le Blanc, From Marx to Gramsci (Chicago: Haymarket Books, 2016), pp. 60-72, and Paul Le Blanc, Lenin: Responding to Catastrophe, Forging Revolution (London: Pluto Press, 2023), pp. 11, 15, 19-38, 51-53, 58-65, 79, 114-116, 181-186. [25] V.I. Lenin, “What Is To Be Done,” in Collected Works, Volume 5 (Moscow: Progress Publishers, 1960), p. 480. [26] Quoted in Leon Trotsky and the Organizational Principles of the Revolutionary Party, p. 78; Leon Trotsky, “More Thoughts on the Party Regime,” in Writings of Leon Trotsky, 1936-37 (New York: Pathfinder Press, 1978), pp. 476-477. 252 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) A questão da “espontaneidade” revolucionária na História da Revolução Russa de Trotsky (T.1, Caps VII a IX)1 Carlos Eduardo Rebello de Mendonça2 I. Introdução A questão da legitimidade do poder revolucionário é, historicamente, uma vexata quaestio para o marxismo, na medida em que parece nunca ter sido devidamente considerada quanto aos seus micro-fundamentos. No Marx do Manifesto, ela surge sob a simples forma de uma vontade da Maioria, expressa através de uma manifestação massiva das vontades individuais por via da sua ação objetiva: “a primeira fase da revolução operária é a elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracia” (MARX & ENGELS, 1998, p.58). Algo que não parece, no texto de Marx, ultrapassar a ideia do simples sufrágio – na urna ou, indiretamente, na manifestação de rua. Para o Marx de 1848, a Ditadura do Proletariado surgia como uma consequência das lutas pelo sufrágio universal que então eram travadas um pouco por toda parte da Europa Ocidental; tal ditadura era apenas uma apreciação de sinal trocado do que Tocqueville, Macaulay e Mill viam como “tirania” (ou “despotismo”) das maiorias (DRAPER, 1987, p.22). Ao elevar-se como maioria acima dos restos de uma pequeno- 1 Este trabalho foi redigido como uma súmula parcial das leituras orientadas e comentadas de História da Revolução Russa realizadas no âmbito dos seminários do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trótski / Trotskismo e a Historiografia (GEPHT), coordeando pelo professor Marcio Lauria Monteiro (IFBA). 2 Professor Titular, ICS/UERJ. Autor de Trotski e a Revolução Permanente, dentre outros livros. Contato: carloseduardorebellodemendonca@gmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 253 burguesia em decomposição, o Proletariado assumiria a posição de maioria inequívoca do eleitorado. Engels, já em 1888, escrevia que a Democracia parlamentar chegara “tarde demais” à Burguesia alemã da época de Bismarck; ela se desembaraçara dos rabos de peruca do Feudalismo apenas para defrontar um Proletariado que “sabe o que quer” (ENGELS, s.d.). No marxismo da II Internacional, a Ditadura do Proletariado continua a confundir-se com uma concepção “sufragista” da Democracia Liberal-Burguesa; toda a preparação revolucionária consistiria em saber aguardar a obtenção da maioria, evitando as tentações do ministerialismo e do millerandismo (KAUTSKY, s.d.). A sobrevivência e recomposição da pequeno-burguesia como base eleitoral das Direitas dentro de uma Democracia Burguesa entrementes transformada em uma competição entre lideranças partidárias profissionais frustrou estas esperanças; já em 1900 - apenas doze anos depois de Engels e sua concepção da revolução como possível dentro da legalidade burguesa - Bernstein considerava que o Socialismo só poderia existir e subsistir como uma ideia ética, não como expressão objetiva da Vontade Geral. Conhece-se a solução encontrada por Lenin para esta questão: a de, no lugar da busca da maioria dos sufrágios a Kautsky, ou de uma Vontade Geral neokantiana a Bernstein, colocar uma Vontade abertamente particular – a do Partido de Vanguarda. E, em pleno século XXI, Žižek verá nesta posição a única saída ao relativismo pós-moderno: “a verdade é, por definição, unilateral [...] a única universalidade real é a universalidade política [...] a universalidade [...] pode se afirmar apenas sob a aparência de um corte radical no próprio seio do corpo social” (ŽIŽEK, 2005, ps.185/186) – algo a ser imposto a fogo e ferro, se necessário. 254 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Nas condições concretas dos primeiros anos do regime soviético, diante do incerto caráter de classe “dual” do novo Estado e das tarefas da Guerra Civil e do Comunismo de Guerra, Trotsky não hesitaria em aceitar, na prática, a concepção leninista. Apenas no período subsequente à morte de Lenin, durante a sua luta faccionária contra o stalinismo emergente - e sua mistura de oportunismo cínico com voluntarismo extremo - é que ele começou a indagar-se sobre a legitimidade do partido de vanguarda, e a explorar retrospectivamente as lições da revolução de 1917- e as da Revolução de 1905, que havia sido ao mesmo tempo o fracasso épico da “espontaneidade”, e o marco inicial do soviete como forma própria da revolução socialista. Como qualquer grande obra histórica, a de Trotsky é ao mesmo tempo uma descrição do passado e uma polêmica contemporânea; o revolucionário russo “recorta” o passado em função das suas preocupações presentes - atribui-lhe um sentido ad hoc, como dirá um autor não-marxista (WEBER, p.21). E quais eram estas preocupações? Em primeiro lugar, uma questão rigorosamente clássicacomo os bolchevistas chegaram ao poder? – questão para a qual ele considerava que o stalinismo oferecia uma resposta insuficiente. O stalinismo, na medida em que se pretende uma vanguarda, atribuise o direito de dirigir e governar “pela graça da História”, da qual o aparato é ao mesmo tempo a expressão e o demiurgo (DEUTSCHER, 1982, p.593) – e daí o fato dos líderes e suas decisões serem sempre “geniais”. A História de Trotsky é uma tentativa de esvaziar tal protagonismo ex post; as massas estão no centro, não os dirigentes. Mas Trotsky, ao aproximar-se de 1917 a partir da sua experiência própria de 1905, não ousava confiar nas massas em e por si mesmas; ele percebia que curvar-se diante da espontaneidade enquanto tal seria II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 255 cortejar o fracasso – como demonstrado posteriormente pela tragédia da Revolução Alemã de 1918. Ele sentia a necessidade de encontrar um “termo médio” – ou, mais exatamente, uma síntese dialética. Ele pensava menos em como o Partido pôde “tomar” o poder do que no mecanismo pelo qual ele conseguiu fazer-se impulsionar ao poder. II. Liderar a Revolução e servir-se dela Se a leitura que Trotsky faz do processo revolucionário de 1917 é sobredeterminada pelas suas preocupações políticas, este elemento subjetivo será melhor entendido usando-se, quando possível, o conhecimento dos seus recursos estilísticos e lexicográficos – para o que o conhecimento do original russo poderá ter alguma serventia. КТО РУКОВОДИЛ ФЕВРАЛЬСКИМ ВОССТАНИЕМ? Tal o título original (TROTSKY, s.d.) que Trotsky dá ao sétimo capítulo da sua História da Revolução Russa. Façamos uma análise deste título. A oração tem por verbo РУКОВОДИЛ, que é o pretérito singular do verbo imperfectivo руководи́ть, que é “dirigir” no sentido consciente de “conduzir”, “liderar”, “dirigir”, “reger” – no sentido em que um maestro “rege” a orquestra. Dirigir a quem, ou a que? O verbo dirigir, aqui, tem um sujeito, КТО – um banal “quem”. E um objeto – que é, no caso, ФЕВРАЛЬСКИМ ВОССТАНИЕМ, a “sublevação de fevereiro”. Só que o objeto está no caso instrumental – que é o caso que indica um complemento - aquilo com o que a ação foi realizada – o que não corresponde exatamente ao “quem” do início da frase – a interrogação deveria ser feita através de кем (“com quem”). É como se Trotsky começasse o capítulo com uma pergunta de thriller: quem fez? “Alguém” o fez – кто; e este sujeito indeterminado 256 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) realiza uma ação – a qual se encontra em processo no momento em que o autor escreve, já que se trata de verbo imperfectivo – e ao mesmo tempo lança mão dela, serve-se dela para a realização de um fim. Assim, como numa investigação criminal, determinar “quem” realizou a Revolução de Fevereiro é ao mesmo tempo determinar quem serviuse dela – cui bono. Ou, mais exatamente: a quem a revolução serviu - e ainda serve. Como lembra Trotsky, a historiografia convencional de fevereiro, desde muito cedo, considerou que o que ali teria ocorrido – teria sido simplesmente uma “rebelião feminil” (бабий бунт) que teria se superposto a um motim de soldados. Ou seja: uma irrupção de um acúmulo de descontentamentos irracionais – a histeria se superpondo à violência cega – no interior do processo histórico; uma explosão dos descontentamentos imprecisos dos elementos “sem rei nem roque”, do saco de gatos loucos, que teria tirado da direção aos elementos racionais e responsáveis. Trotsky aproveita o ensejo para contestar a idealização libertária: a exaltação da “espontaneidade” da Revolução de Fevereiro, da sua “vitalidade democrática”, por mais que se revestisse de aparências libertárias, é de fato implicitamente reacionária; a exaltação do ex ante espontâneo de fevereiro é um recurso retórico que serve apenas para melhor deplorar o ex post “golpista” de outubro – o “sequestro” da espontaneidade pelos bolcheviques. Inclusive porque a ênfase na mesma “espontaneidade” sublinha o caráter irracional do processo revolucionário em geral, numa figura de retórica reciclada da representação conservadora da Revolução Francesa. Quando mulheres histéricas e homens violentos descem à rua ao mesmo tempo, daí pode sair apenas o tumulto (смута) ou os motins “da canalha” (черни; II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 257 traduzido literalmente, um motim “negro”). O motim, por ser motim – uma descarga de ressentimentos diante de agravos reais, sentidos emocionalmente – dissolver-se-á necessariamente em “impulsos primitivos, infantilismos e inclinações criminosas” (SCHUMPETER, 2008, p.257); é algo que só pode terminar “bem” pela reversão do poder a uma liderança “responsável”. Sublinhe-se a ousadia destes parágrafos. Há um senso comum, conservador e pós-freudiano (inclusive porque se apoia nas considerações infelizes do psicólogo vienense sobre Socialismo em Mal-estar na Cultura- as lutas de classe como um dos suportes da agressividade humana (DEUTSCHER, 1991,p.334), que vê na Revolução uma descarga pulsional, um fim em si mesmo; algo como a passage a l’acte de que fala Žižek, o triunfo da “histeria” sobre a “neurose obsessiva”; “temos de nos precipitar a agir, mesmo prematuramente [...] ser ludibriados pelo nosso desejo, embora [...] impossível, para que algo [sic] de real advenha” (ŽIŽEK, 1991, p.117). O problema, diz Trotsky, é que esta maneira de ver o problema, mesmo na sua simpatia aparente pelo ato revolucionário, se esgota num wishful thinking de tonalidade mística: há um potencial libertador “oculto” que a descarga irá revelar (ŽIŽEK, 2005: p.242). É sintomático, aliás, que o exemplo histórico-literário dado por Žižek – o Cássio de Shakespeare, que diz para as suas mãos “falarem por ele” ao atacar César – contradiz as suas conclusões; o assassinato de César produziu o oposto do desejado por seus assassinos: a morte da República. Não que Trotsky negue esta possibilidade de irrupção do irracional na História, como veremos; o que ele diz, no entanto, é que a passage a l’acte não é (ainda) a Revolução, que esta se caracterizaria 258 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) por já possuir, in statu nascendi, se não uma liderança em senso estrito, uma intenção e objetivos conscientes; wo Es war, soll Ich werden. III. Nascimento do sujeito de classe Como desenvolve Trotsky, as ações revolucionárias de fevereiro estiveram, para todos os fins, concentradas em Petrogrado – isto é, envolveram, no sentido mais genérico, 1/75 da população do Império Russo. Logo, se o que ocorreu no restante do país teve um caráter reflexo, de mera aceitação do fato consumado (em lugar algum houve resistência em nome da autoridade constituída de Nicolau II), tira-se daí a conclusão de que a Revolução de Fevereiro se constituiu em mais um de vários golpes (удары) aplicados pela realidade histórica a uma concepção fetichista da “vontade popular”. O sujeito revolucionário não é uma mera “maioria”. Trotsky adota, como ponto de partida, a posição do economista e “marxista legal” Tugan-Baranovsky, que considerava que a Revolução de Fevereiro havia sido realizada por operários e camponeses “enquanto” soldados (в лице солдат). Restava saber quem havia liderado tais operários e camponeses uniformizados. Fazer da “espontaneidade” (стихийности; na tradução francesa, “forças elementares”) o sujeito do processo, seria criar uma noite retórica onde as responsabilidades dos agentes se dissolviam. No período imediatamente posterior a fevereiro, convinha à contrarrevolução caracterizar o que havia se produzido como “tumulto” – tal como o general Branco Denikin, que chamaria sua história da revolução de “História das Desordens na Rússia”. Mas convinha igualmente aos liberais – que desejavam confinar a Revolução Russa II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 259 nos limites das relações de produção burguesas – sustentar o mesmo. Não só para justificar a sua inação ex ante, ao pensar que não eram diferentes dos demais, como também para reclamarem o direito a serem tidos como agentes políticos ao mesmo título que os revolucionários -e, finalmente, o direito de substituírem-se aos mesmos revolucionários como seus representantes, supostamente mais “responsáveis” que os representados. Nos seus começos históricos, ao reivindicar o seu direito de dirigir a sociedade nos seus próprios termos, o Liberalismo burguês principiou assumindo o ponto de vista da Totalidade, da Vontade Geral, em oposição às velhas rotinas, tradições e hierarquias da sociedade feudal-absolutista. Na Filosofia do Direito de Hegel, a Liberdade individual se expressa necessariamente através do Estado: “A vontade objetiva é, por sua própria concepção, racional em si, saibam-no ou não os indivíduos que pensam exercê-la como um objeto de capricho” (apud MARCUSE, 2004, p.191). Tudo mudará no século XIX, quando a Burguesia já estiver constituída como classe dominante; a partir daí, o sujeito de toda atividade política será precisamente o indivíduo burguês, como indivíduo isolado e movido por interesses meramente particulares: “a revolução política decompõe a vida burguesa em seus componentes sem revolucionar estes mesmos componentes nem os submeter à crítica” (MARX, 2010, p.53). Os indivíduos burgueses e suas robinsonadas são postos no mesmo plano e saco das reivindicações dos “de baixo”, como merecedores da mesma consideração. Diante da urna e da cédula eleitoral, o indivíduo apático e apolítico e o pequenoburguês ressentido valem o mesmo que aqueles que desceram à rua em primeiro lugar. O culto ao espontaneísmo como “valor em si”, assim, nada tem de progressista; ele conserva as fantasias pequeno-burguesas 260 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de proeminência individual e antissocial, o sonho de alçar-se às fileiras da classe dominante pelo exercício de um carisma ou talento. Num livro coletivo lançado no calor dos acontecimentos das Jornadas de Junho, no Brasil de 2013, um dos colaboradores, articulista progressista da imprensa burguesa, viu-se em palpos de aranha diante da necessidade de explicar a intrusão da horda pequenoburguesa alucinada que tomava as ruas, na esteira dos protestos e das reivindicações econômicas e políticas originais. Ele reconhece que se tratava de uma massa violenta e de formação política ultrarreacionária, mas não ousava desautorizá-los: “sinto [sic] que eles querem sentir que poderão ser protagonistas do seu país e da sua vida” (SAKAMOTO, 2013, p.98). Apenas, ele esquecia convenientemente que o desejo de protagonismo deste tipo de pequeno-burguês enfurecido - formado pela mídia burguesa, os fakes, a família conservadora, a igreja evangélica etc. – já fora descrito por Trotsky em 1933: gosto pelo comando, mediocridade intelectual presunçosa, hostilidade invejosa aos “de cima” associada ao ódio e medo animal da igualdade (TROTSKY, 1977, os.400/401 e 405) – e é nisto que consistia a liberdade e o protagonismo deste tipo de sujeitos. A História não se faz por encomenda, e o Eu não é senhor em sua casa – mas todo processo civilizatório exige que as pulsões sejam coarctadas quanto a um fim definido – o processo político, diz Deutscher, é um mecanismo de sublimação (DEUTSCHER, 1991, p.334). E quando se escolhe um fim, a partir de um interesse de classe, é necessário que os demais sejam ex ante descartados. O protesto verdadeiramente revolucionário é a conclusão de um longo processo prévio de formação política contra hegemônica – e é nestes termos, precisamente, que Trotsky considera que os protestos de fevereiro II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 261 triunfaram: porque foram instrumentalizados de forma eficiente por um grupo definido. Caso instrumental, e não acusativo – a ação revolucionária, mais do que estar dirigida para um objeto, de fato utilizava-se dele. Como o próprio Žižek admite: “os carnavais saem barato, mas a verdadeira prova do seu valor é o que permanece no dia seguinte” (ŽIŽEK, 2013, p.107). Inversamente, quando são as redes sociais que espontaneamente “saem” às ruas, o que sai com elas é a consciência reacionária – não fossem elas oligopólios burgueses. IV. Três momentos da luta revolucionária Lembra Trotsky que, na Petrogrado do fevereiro juliano de 1917, todos os partidos foram pegos de surpresa pela agitação nas ruas. Até mesmo os bolcheviques, cuja organização em Petrogrado se encontrava no momento tendo de lidar com uma direção reduzida apenas a três pessoas, nenhuma delas particularmente proeminente: Shliapinikov, Zalutsky, Molotov -o primeiro sendo próximo a Lenin, mas encontrando-se incapaz de agir eficazmente sobre a orientação dos acontecimentos. Portanto, fevereiro não poderia ser explicado em termos de uma direção intencional. Ainda assim, a tese de Trotsky é a de que a revolução foi, se não planejada, ao menos preparada. Trotsky sempre é apresentado como voluntarista, como um partidário de uma estratégia de assalto ao poder, de “guerra manobrada”, na expressão de Gramsci. Onde não é mera propaganda acusatória stalinista, tal concepção se deve ao fato de que, nos escritos de Trotsky, a teoria jamais surge enquanto tal, como afirmação abstrata: ela está implícita no interior da narrativa histórico-política, 262 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) onde o revolucionário russo busca fazer não apenas historiografia, mas principalmente política, reconstruir o passado para “construir a história presente e futura” (GRAMSCI, 2002, p.38). Como lembra o marxista sardo, uma luta revolucionária começa, em primeiro lugar, de uma solidariedade corporativa elementar no interior de um grupo subalternizado: o operário “sente” a necessidade objetiva de ser solidário ao seu confrade; é neste momento – e apenas nele – que a “espontaneidade” tem lugar. Num segundo momento, tal consciência espontânea - se não reprimida - evolui para uma solidariedade propriamente de classe, uma reivindicação de igualdade jurídica – um desejo de ser levado em conta na formulação da Vontade Geral. Um terceiro momento, propriamente político, é quando um grupo subalterno sente em si a possibilidade de ditar a lei para todos os demais grupos subalternos; e esta , como fase estritamente política, é que “assinala a passagem nítida [...] para a esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em ‘partido’ [...] até que uma delas ou uma combinação [....] tenda a se impor por toda a área social [...] pondo todas as questões [...] num plano ‘universal’”(GRAMSCI, 2002, p.41). No texto de Trotsky, esta argumentação abstrata fica “oculta” numa narrativa histórica contínua, sob a aparência de caso concreto que exprime a situação geral: ele narra a história de um “jurista liberal” que lamentava na rua a perda dos registros cartoriais de propriedade num incêndio- intencionalmente ateado (LINCOLN, 1999, p.335)- da corte distrital de Petrogrado, quando foi contestado por um interlocutor: “saberemos dividir nós mesmos as casas e as terras – e sem os teus [sic] arquivos” (Дома и землю сумеем сами разделить и без твоего II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 263 архива). Tal narrativa, tomada das reminiscências escritas do senador (juiz superior) Zavadsky, poderia, como Trotsky admite, ter sido literariamente arranjada pelo seu autor; mas o fato deste diz-quediz haver aberto caminho até as memórias de um aristocrata liberal correspondia a uma questão que estava “no ar”: a das superestruturas, dos instrumentos essenciais de exercício do poder político. O fato é que já existia uma força contra hegemônica “permanentemente organizada e há muito tempo preparada” (GRAMSCI, 2002, p.46). Quando um operário tuteia um senador no meio da rua, é que a concepção de mundo das massas – e com ela, a legitimidade do poder - mudou de mãos. Não basta que meramente exista uma mera estrutura burocrática que possa objetivamente explorar as oportunidades históricas, e sim que as forças organizadas estejam dotadas ex ante de um propósito, e da convicção sobre sua viabilidade; pois, se as oportunidades existiam, é porque “havia a possibilidade concreta de inserir-se eficazmente nelas” (GRAMSCI, 2002, p.46). Num outro texto sobre os acontecimentos do Brasil de 2013, Lincoln Secco chama a atenção para essa incapacidade da Esquerda de “inserir-se eficazmente” nas oportunidades políticas, já que teria de defrontar-se com a inexistência prévia de uma cultura da representação: “a democracia liberal [no Brasil] foi sempre um interregno numa persistência ditatorial” (SECCO, 2013, p.74). Daí o fato de que, quando a oportunidade surge, abra-se, por isso mesmo, o caminho para que ela seja apropriada pela Extrema Direita: ao descerem à rua sem uma noção clara do que desejam realizar, as Esquerdas justificam a sua própria criminalização pela cobertura televisiva, que suscita a descida às ruas, por sua vez, dos pequeno-burgueses enfurecidos – e, “depurada 264 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) dos ‘vândalos’, a passeata torna-se aceitável” (SECCO, 2013, p.72). Durante 2013, foi questão de semanas- mesmo dias - para que a pauta dos protestos saltasse do “pós-comunismo” ao protolavajatismo e ao protobolsonarismo. Como Secco o diz, este ‘salto” foi mediado pela violência física: “grupos neonazistas serviam para expulsar uma esquerda desprevenida, enquanto inocentes ‘cidadãos de bem’ de verde-amarelo aplaudiam” (SECCO, 2013, p.74). Mas o surgimento das centúrias auriverdes, revestidas da camiseta da CBF, foi aparentemente tão repentino, que pareceria justificar a narrativa ex post de que todo o processo não haveria sido senão a obra de agentes provocadores industriados ad hoc pelo Departamento de Estado estadunidense... quando de fato a navalha de Occam nos sugere que a Extrema Direita apenas insinuou-se no vácuo deixado pela Esquerda. Voltando ao 1917 russo: quando Trotsky fala contra “a mística da espontaneidade”, ele quer demarcar-se em oposição à Rosa Luxemburgo que, em Greve de Massa, Partido e Sindicato, falava da necessidade de lançar mão da ação de massa “selvagem”, espontânea, como um “aprender fazendo”, um salto qualitativo na passagem do Proletariado de uma ação política meramente corporativa (e, na Alemanha, estritamente vigiada pelos “bonzos” da Socialdemocracia), centrada em reivindicações econômicas, para reivindicações propriamente políticas (LUXEMBURGO, 1986, p.172) - algo como uma passagem acelerada do “segundo” ao “terceiro” momento de Gramsci. Secco, aliás, identifica este elemento de salto em 2013, como uma tentativa de ruptura com a lógica corporativa do PT de, pretendendo mobilizar a Sociedade Civil, apenas disputar posições no aparato burocrático estatal (SECCO, 2013, p.74). E Ruy Braga, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 265 na coletânea que vimos citando, vai mais além: ele trata 2013 como um momento de atualização histórica, de busca de reconhecimento como sujeitos de direitos pelas camadas menos organizadas do proletariado – “a massa formada por trabalhadores desqualificados e semiqualificados que entram e saem rapidamente do mercado de trabalho” (BRAGA, 2013,P.82)– no que seria uma passagem da “primeira” para a “segunda” etapa gramsciana. O problema é que as “transições” entre as três etapas gramscianas são apenas possíveis, nunca necessárias; os sujeitos, ao surgirem espontaneamente na primeira etapa – a das reivindicações imediatas e elementares – dependerão da sua capacidade de ação consciente para elevarem-se às etapas seguintes; se não houver desenvolvimento pari passu de uma consciência política, sempre haverá o risco de que estas reivindicações sejam reprimidas e/ou reacionariamente absorvidas pelos sujeitos dominantes e seus aliados. Mais ainda: Em termos lógicos, é de se acreditar que Trotsky – e Lenin – concordassem com uma tal análise, já que ambos, em vida, sempre tiveram muito presente o fato de que as agitações revolucionárias no Império Russo, na virada entre o século XIX e XX, envolviam toda espécie de reivindicações de classe e identitárias avant la lettre: liberdade acadêmica, abolição da censura, luta contra o antissemitismo, liberdade religiosa, política de nacionalidades, feminismo – o que exigia que os revolucionários adotassem o papel de tribunos populares generalistas (LENIN, s.d.). Precisamente, por isso, eles seriam os primeiros a advertir que uma sequência lógica, por si só, não esgota a compreensão de uma situação política. A lógica causal não tem o mesmo metro do processo histórico, cuja característica é exatamente a de ser geralmente uma extensão no tempo de um processo 266 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de causa e efeito que sofre ainda com o seu caráter internamente contraditório. Não existe uma sucessão linear de etapas a intervalos fixos de tempo num processo político-histórico. E um marxista deve ser capaz de lidar com esse caráter dialético das situações reais. V. Ver, compreender e concluir Quando Trotsky postula o caráter permanente do processo revolucionário, ele pensa sobretudo na sua irregularidade: ora uma concentração extrema, com compressão das etapas históricas, ora um largo intervalo composto de partidas falsas, recomeços e retrocessos – onde as precondições objetivas do processo histórico não se confundem com a sua realização consciente. Precisamente por isso, é que, para que o processo revolucionário propriamente dito de 1917 começasse, era objetivamente necessário (нужна) que a massa operária de Petrogrado e da Rússia passasse através (через)de toda uma sequência de acontecimentos históricos : a Revolução de 1905, a confrontação em Moscou com o Regimento da Guarda Semyonovsky – tudo para que, dentro desta massa, houvesse quem pudesse lançar mão destas experiências como objeto de reflexão – mais exatamente, no texto de Trotsky, como um experimento (опыт) mental – no qual os sucessos objetivos serviam como base para “o trabalho molecular da contemplação revolucionária” (молекулярная работа революционной мысли – o verbo мыслить significando “pensar” em sentido poético, como numa contemplação subjetiva, profundamente sentida). O que faz do processo revolucionário algo que poderia quase ser descrito em termos de uma boutade lacaniana: há o momento de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 267 ver (ou mais exatamente, de participar, de “sofrer” a experiência) – do qual se segue o tempo para compreender; e, finalmente, o momento de concluir. Ou, mais exatamente: “o momento de concluir é o momento de concluir o tempo para compreender quando passado o tempo para compreender o momento de concluir” (LACAN, 1989, T.1, p.196) - a situação de ótimo só sendo alcançada pela compreensão prévia das posições relativas de todos. O próprio Trotsky faz uma digressão, ao final do mesmo capítulo VII, que caminha exatamente neste sentido: para os políticos do Liberalismo e do Socialismo “domesticado” (прирученного), as massas sofrem a História, não a fazem; reagem ao que lhes acontece como se fossem formigas ou abelhas; não pensam na sua própria atividade – e, portanto, não poderiam ser objeto de uma análise marxista (Trotsky está parafraseando, aliás, um trecho bem conhecido d’O Capital). No entanto, se – e tal é o que Trotsky acredita firmemente - as massas “veem” – se são capazes de pensar sua própria experiência – são capazes de “compreender” – na medida em que “o pensamento científico reside na sua correspondência aos processos objetivos, e nas suas capacidades (способности) de influenciar estes processos e sua direção (направлять)”. E quem é capaz de compreender, é capaz de “concluir”. Hic Rhodus, hic salta! O que se “vê” aqui, são as contradições de classe objetivas; o que se compreende, são as tentativas de resolução destas contradições – num primeiro momento, pela classe dominante e seus aliados; quando as possibilidades de resolução se esgotam – e as massas o compreendem – surge a oportunidade de uma conclusão: o bloco contra hegemônico apresta-se a intervir de acordo com os seus próprios 268 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) interesses e objetivos. De fato, conclui Trotsky, em fevereiro de 1917, eram as “massas”, os operários e camponeses, que raciocinavam; a Corte inspirava-se – enquanto pôde - no Apocalipse e nos sonhos de Rasputin; os liberais contavam com a vitória da Rússia e com uma democracia parlamentar – ambas em direta contradição com a situação real do país. Aqui sim, diz Trotsky, nos encontraríamos no reino das “superstições e ficções” – do processo histórico convertido num sintoma neurótico, na esperança farsesca de uma nova Restauração ou de um novo 18 Brumário. VI. “O paradoxo da Revolução de Fevereiro” No capítulo VIII da História, Trotsky trabalha a noção do caráter “dual”, “paradoxal”, da Revolução de Fevereiro: se no capítulo anterior a revolução havia sido descrita, do ponto de vista dos insurretos que tomaram a rua, como “sublevação”, quando ele, Trotsky, vier a analisar a situação do ponto de vista da Duma burguesa que constituiria o Governo Provisório, ele falará de “golpe” (переворо́т) – no caso, um golpe passivo, onde a deposição de Nicolau II fez com que o poder “caísse nas mãos” (оказалась в руках) da Burguesia liberal. Оказа́ться é um verbo reflexivo e perfectivo; e o uso da voz média passa a ideia de que o poder político, longe de haver sido capturado pela Burguesia, deslocou-se num vácuo na sua direção – processo este no qual a Burguesia não teve papel ativo; apenas, encontrou-se diante de um fato consumado. A Duma havia sido previamente dissolvida por decreto imperial; apenas, diante da sublevação de fevereiro, e sob a névoa dos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 269 acontecimentos, os parlamentares poderiam haver decidido, como os Estados Gerais franceses em 1789, declarar-se em sessão permanente como expressão da representação nacional, ou, nas palavras do memorialista Sukhanov, “não se dispersarem”, Не расходиться – isto é, tomarem nas próprias mãos o exercício do poder. Os deputados decidiram, ao contrário, apenas “não partirem” - Не разъезжаться ao encontro das suas bases, permanecerem em Petrogrado aguardando os acontecimentos. Que, não obstante, o próprio Sukhanov tivesse acreditado no mito da sessão permanente, era, diz Trotsky, uma expressão do desejo dos intelectuais radicais em contar apoiaremse sobre a Burguesia “censitária” e não nas massas, em insistirem em atribuir as classes proprietárias o papel de sujeito putativo dos acontecimentos. Desejo, e não realidade. O mecanismo que Trotsky descreve é aquele que seria apontado por Gramsci, quando escrever que “a unidade histórica das classes dirigentes acontece no Estado” (GRAMSCI, 2002A, p.139). O lugar de eleição da atividade política da intelligentsia russa do século XIX era, principalmente, a administração pública local. Era, assim, perfeitamente compreensível que a irrupção da Revolução determinasse que estes intelectuais “radicais”, temerosos da irrupção das massas populares na Esfera Pública, apoiassem-se, assim, sobre a Burguesia; mas a própria Burguesia, em função do caráter retardatário da modernização russa, sentia-se a si mesmo como um satélite da Autocracia, e não pensava senão em restabelecê-la – ainda que sob uma forma “moderada” e “constitucional”. Refratado pelo interesse da Burguesia, o episódio histórico de fevereiro de 1917 tenderia gradualmente a converter-se, de sublevação popular, em mero rearranjo de camadas no interior do grupo dominante – isto é, em simples golpe de Estado. 270 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) É interessante que Trotsky, ao referir-se aos eventos políticos de fevereiro de 1917, longe de denominá-los, tout court, de “revolução”, esgote o léxico e fale ora de revolução, ora de sublevação, ou golpe. É como se ele dissesse: a Revolução não é uma essência, nem tampouco algo ontológico; por mais que a Revolução tenha por “matéria prima” a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, esta contradição não é jamais unívoca, não se resolve, no mais das vezes, por uma vitória (ou derrota inequívoca) da mesma Revolução – e sim por um rearranjo no interior do grupo dominante. Gramsci, falando do Risorgimento, fala do da incapacidade da Burguesia italiana de unificar o povo em torno de si, do “egoísmo estreito” que fez com que a revolução burguesa na Itália avançasse sempre aos tropicões, de maneira incompleta e sem uma direção clara (GRAMSCI, 2002A, p.141). Do mesmo modo, a Revolução Mexicana de 1910, ainda que realizada a quente, concluir-se-ia de maneira tão nebulosa (principalmente pela exclusão de tudo que possuía de mais radical) que colocaria em questão, para a posteridade, o seu caráter revolucionário mesmo. De fato, a Revolução de Fevereiro, a partir do momento em que o Governo Provisório aceitasse constituir-se a partir da Duma - ao mesmo tempo que as classes populares reconstituíam, a partir da experiência de 1905, o Soviete de Petrogrado – teria como sua marca distintiva o seu caráter, mais do que contraditório, dual. Haverá dois centros de poder, com uma composição de classe diversa, e poderes de limites jamais claramente definidos. E Trotsky percebe, nesta dualidade, não uma polifonia democrática, mas, muito ao contrário, uma fonte de amargura (ожесточе́ние) – no sentido de facciosismo zeloso e potencialmente letal; um choque frontal entre II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 271 dois protagonistas potenciais. Como Trotsky o descreve, fevereiro foi, em primeiro lugar, um surge dos “de baixo”, um ímpeto ascendente de auto-organização das classes populares que, num segundo momento, viu-se em trajetória de choque com uma coalizão ad hoc de interesses reacionários – a qual cristalizou-se no vácuo criado pelo fracasso das tentativas de dar uma solução dinástica à queda de Nicolau II. Na descrição de Trotsky, o demiurgo do Governo Provisório foi precisamente o Presidente da Duma Rodzianko – que havia sido, sob Nicolau II, o corifeu sempre frustrado da constitucionalização de fachada da autocracia e do governo de gabinete (“ministério responsável”) - e ao qual, em fevereiro, caberia a incumbência de anunciar a uma delegação do Soviete: “tomamos [ou “estamos tomando” - Брать é um verbo imperfectivo.] o poder” (мы берём власть). O veterano político cadete anunciava, assim, aos de baixo, que estava retirando o poder do seu alcance. Como escreveria Gramsci: a história política de uma classe dominante é a história do “seu” Estado, cujo ordenamento institucional contém a sua natureza de classe (GRAMSCI, 2002A, p.139). Não para menos, Rodzianko havia decidido “tomar o poder” por instigação de um deputado monarquista que lhe propunha fazerem tal coisa (Берите, imperativo plural) na condição de “leais vassalos” (как верноподданный). Seria como se o Governo Provisório aspirasse a ser algo como a futura ditadura anticomunista do Almirante Horthy na Hungria, que exerceria o poder ditatorial por um quarto de século como “Regente” de um monarca titular inexistente da (deposta) Casa de Habsburgo – ou, mais exatamente, como Regente da Coroa e tutor do princípio monárquico. Assim, o Governo Provisório, como descrito por Trotsky, 272 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) não era a expressão da Democracia Liberal russa, e sim uma tentativa de preservação em última instância, dos princípios de classe sob os quais a Burguesia já exercia o poder sob a (e associada à) Autocracia. Apenas, diz Trotsky, estava-se, aqui, numa situação, para o tempo e o lugar, sui generis: se o poder não se aprestava a cair nas mãos de uma sólida burguesia que contemplara as barricadas pela janela, era porque aqui o nível político (политическим уровнем) da classe revolucionária era muito mais elevado do que em processos revolucionários anteriores. Como descrição, está certamente correto: o Governo Provisório não foi consensualmente reconhecido como centro único de atividade política; a disputa entre ele e o Soviete se deu desde o primeiro momento. Mas qual a causa deste processo de capacitação política? VII. Conclusão: o Novo Poder É nas qualidades próprias dos de baixo que deve-se procurar a causa do desenvolvimento da Revolução de Fevereiro na direção de Outubro, já que, se a Burguesia russa - como diz Trotsky no início do Capítulo IX da História – voltava as costas a seu povo e ligavase mais ao Capital Financeiro internacional do que a seu país, ela nada mais fazia, delegando a um monarquista como Rodzianko - que, numa cerimônia militar puxava vivas à Santa Rússia (святая Русь, a Autocracia em lugar da Nação) - a formação de um governo, do que tentar reproduzir a coalizão de interesses dominantes que vinha sendo suficiente para governar o Império Russo desde o reinado de Pedro o Grande. Qual seja: a afinidade eletiva entre a Autocracia e o espírito da modernização capitalista. Coalizão esta, que não diferia muito das II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 273 existentes em qualquer sociedade burguesa atrasada. Que a Revolução Russa não tenha, assim, se encaminhado para uma resolução como Revolução Passiva, à maneira do PRI mexicano, deve-se antes de mais nada à intervenção autônoma das massas, desde cedo, no desenrolar dos acontecimentos; explicar o desfecho pela intervenção da direção bolchevique tão-somente – quando esta direção estava ausente em fevereiro – não é suficiente; os bolcheviques seriam, eles também, oportunamente impulsionados pelas massas, e Trotsky o sabe; especialmente por estar fazendo uma história a contrapelo da exaltação aos “chefes geniais”. Digamos que Trotsky mais coloca problemas do que os resolve; problemas estes que são descritos, mais uma vez, a nível abstrato pelo seu camarada sardo, quando este escreve que, já que as classes subalternas vivem uma existência política desagregada e descontínua – pois mergulhada, o mais das vezes, na esfera do privado – não existe tarefa mais complexa do que traçar a história política dos grupos subalternos, e muito especialmente o processo pelo qual estes grupos adquiriram “a autonomia em relação aos inimigos a abater e a adesão dos grupos que [os] ajudaram ativa ou passivamente”; razão pela qual traçar a história política dos grupos subalternos – e da sua transição a grupos dominantes – seria uma tarefa difícil ao extremo (GRAMSCI, 2002A , ps.139/141). O texto de Trotsky fornece, no entanto, algumas pistas. Ele começa por dizer que, na transição ao Capitalismo, burguesias “pioneiras”, como a inglesa e francesa, jamais se preocuparam muito em oferecer-se uma justificativa ex ante para reconstruírem a sociedade à sua própria imagem (como diz Marx, ambos pensaram nesta renovação como simples restauração – do Mundo Clássico e/ 274 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ou do Israel bíblico-MARX, s.d.). Seriam os alemães, ao chegarem tardiamente ao caminho do desenvolvimento capitalista, que cunhariam o termo Weltsanschauung – que Trotsky traduz para o russo como contemplação do Mundo (миросозерцание). Contemplação esta que viria, ex post, a justificar a Revolução Passiva. A Burguesia russa, chegada ainda mais tardiamente, enfeudada à Autocracia e ao Capital Financeiro, não pôde senão pagar “direitos aduaneiros” pelo seu uso de uma Weltsanschauung importada.... Daí a necessidade em que se viu de, em finais do século XIX, revestir-se de tinturas socialistas (o marxismo legal) – porém sem sucesso; tratava-se de uma classe que “chegara” a tempo de ter milhões nas mãos – mas tarde demais para pôr-se à testa da Nação. Os compromissos assumidos “acima” impediam as concessões “abaixo”. Restava fazer desta mazela uma força – e este foi o papel desempenhado por Milukov, o Ministro das Relações Exteriores em que Trotsky vê a face última de um Liberalismo russo que tratava de virar as costas às classes populares, de recordar “o reacionarismo epilético de Dostoievski” para afirmar que “é simplesmente impossível a fusão com o povo”. E é neste hiato entre o Liberalismo burguês e as massas que estas últimas encontraram a oportunidade de ascender ao Poder. Ora, como Gramsci o descreve (com uma ponta não negligenciável de eurocentrismo), o processo de modernização autoritária baseava-se exatamente no fato do papel da intelligentsia burguesa ser o de obrigar “o povo a um despertar forçado, a uma marcha acelerada para a frente”, marcha esta que, no entanto, retinha um caráter nacional-popular, de reação do povo russo à própria inércia histórica (GRAMSCI, 2001, p.27). Quando esta mesma intelligentsia, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 275 no início de 1917, esgota suas possibilidades progressistas e abandona o povo, este se vê – raciocinando a partir da experiência histórica já acumulada – na obrigação de salvar-se a si mesmo; como no apólogo de Lacan, seus membros concluem que a única alternativa de que dispõem, para saírem da “prisão” histórica em que estão encerrados, está em o fazerem juntos e agindo por conta própria. É importante lembrar que, quando a maior parte dos dirigentes socialistas, bolcheviques e futuros bolcheviques, acorrerem a Petrogrado vindos do exílio interno ou do Exterior (como Lenin e Trotsky) após fevereiro de 1917, eles já se encontrarão diante do fato consumado da entrada das massas em cena; não se tratava de testemunhas oculares do processo. As Teses de Abril serão assim, o marco da conclusão deste processo de ascensão política dos de baixo – e o primeiro lance na preparação da tomada do poder. O processo molecular de formação política das massas já se encontrava, no essencial, terminado. Trotsky estava, assim, muito consciente de que a historiografia revolucionária da Revolução Russa trabalhava sobre uma lacuna – a qual ainda não foi fechada depois de mais de um século: a de saber como as massas, a partir da sua experiência concreta, mas orientadas pela teoria - ainda que de maneira informal e descontínua - são capazes de formularem uma práxis política própria, que as oriente na seleção de uma liderança. Para tal, necessitaremos de uma historiografia capaz de combinar a questão do interesse de classe em si, com a da sua representação – para que saiamos da explicação trivial da “espontaneidade”. Referências bibliográficas 276 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) BRAGA, Ruy. IN VVAA, Cidades Rebeldes. S. Paulo, Boitempo, 2013. DEUTSCHER, Isaac. Stalin: a Political Biograph. Harmondsworth: Penguin, 1982. ------------------------ Marxismo, Guerras e Revoluções. S. Paulo: Ática, 1991. DRAPER, Hal. The Dictatorship of the Proletariat from Marx to Lenin. 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Paulo: Boitempo, 2005. ---------------- “Problemas no Paraíso”, IN Cidades Rebeldes, op.cit., 2013. 278 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky como teórico marxista: as provas nos Cadernos Alex Steiner1 Os Cadernos Filosóficos de Trotsky são uma das descobertas mais importantes a emergir da riqueza de material incluído nos arquivos de Trotsky em Harvard. Foram descobertos acidentalmente por Philip Pomper, que estava pesquisando material nos arquivos de Harvard sobre um tema completamente diferente.2 Inevitavelmente, serão feitas comparações dos Cadernos de Trotsky com os mais extensos Cadernos Filosóficos de Lenin, bem como com os recentemente descobertos Cadernos Filosóficos do principal teórico dos bolcheviques, Nicolai Bukharin.3 Não tentaremos aqui fazer tais comparações. Basta notar que, enquanto todas estas obras são dignas de estudo, os Cadernos de Trotsky têm sido largamente negligenciados desde a sua primeira publicação em 1986. A importância destes Cadernos reside no fato de mostrarem o interesse de Trotsky por um vasto leque de questões teóricas que tinham atormentado o movimento marxista quase desde o seu início. No interior dos Cadernos encontram-se algumas notas intrigantes 1 Texto apresentado no I Encontro Internacional Leon Trotsky, em Havana, Cuba, 2019. Não pôde ser incluído no livro deste evento, motivo pelo qual está sendo publicado no volume do II Encontro Internacional. Sua tradução para o português foi realizada por Icaro Rossignoli. 2 Os Cadernos foram traduzidos para o inglês e finalmente publicados pela Columbia University Press em 1986, com uma longa introdução de Pomper e anotações em russo de Yuri Felshtinsky. O volume é intitulado Trotsky’s Notebooks, 19331935: Writings on Lenin, Dialectics, and Evolutionism. 3 Os Cadernos Filosóficos de Lenin estão incluídos no Volume 38 das suas Obras Completas http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1914/cons-logic/index. htm. Os Cadernos Filosóficos de Bukharin foram publicados com o título, Philosophical Arabesques, Monthly Review Press, 2005. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 279 sobre a Ciência da Lógica de Hegel e a dialética, Darwin e a teoria evolucionista, particularmente no que se refere à filosofia dialética, e uma série de notas brilhantes, embora demasiado breves, sobre Freud e a relação do inconsciente com a filosofia dialética. Os Cadernos são apenas isso - notas que Trotsky fez para o seu próprio estudo – em alguns casos como ajuda para uma futura publicação, em outros casos apenas para clarificar os seus próprios pensamentos. Não devem certamente ser tomados como a opinião final de Trotsky sobre qualquer assunto. Os Cadernos são, de certa forma, uma espreitadela ao laboratório mental de um dos maiores gênios do século passado. Uma análise cuidadosa do material contido nestes cadernos revelar-se-á imensamente gratificante para qualquer estudante sério do marxismo. Notas sobre Hegel e a dialética Enquanto uma discussão explícita de Hegel e da sua Ciência da Lógica é muito breve, os Cadernos estão repletos de considerações sobre a dialética em todas as páginas, independentemente de o tema ser Lenin, a evolução darwiniana, Freud e a psicanálise ou as últimas descobertas da Física. Trotsky defendeu durante toda a sua vida a noção de que a atenção cuidadosa à dialética é uma componente fundamental no desenvolvimento de um líder revolucionário. Assim, nas suas notas sobre Lenin, Trotsky sublinha que a dialética de Lenin tinha um caráter “maciço”, capaz de abarcar grandes transformações sociais, enquanto a dialética do líder menchevique Martov tinha um alcance muito limitado. Trotsky via Martov como um apaixonado pelas voltas e reviravoltas das manobras políticas, sem perceber 280 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) as mudanças fundamentais que ocorriam sob a superfície dos acontecimentos políticos e ignorando completamente o seu próprio papel como possível catalisador desses acontecimentos. Nos Cadernos, Trotsky escreve que “A sua dialética [de Martov] era uma dialética de processos derivados e de mudanças episódicas e de escala limitada. Para além destes limites, não se aventurava.” Se Lenin encarnava a dialética de um líder revolucionário, então Martov encarnava a dialética de um jornalista inteligente. (Sem ofensa para os jornalistas que estão presentes). Trotsky e Eastman Trotsky foi motivado a iniciar os estudos sobre Hegel como resultado de uma série de discussões acrimoniosas com o marxista americano Max Eastman. Eastman tinha-se correspondido com Trotsky e visitou-o durante o seu exílio na ilha turca de Prinkipo, em 1932. Embora fosse um dos primeiros apoiadores de Trotsky e o tradutor do seu clássico História da Revolução Russa, era também um pragmático ao estilo de John Dewey e um opositor ferrenho da dialética. Considerava a dialética uma relíquia do “animismo” na filosofia. Trotsky, por outro lado, disse a Eastman já em 1929 (como parafraseado por Pomper na sua Introdução) que, “...ele [Trotsky] não conhecia nenhum caso em trinta anos em que um opositor do materialismo dialético tivesse sustentado um compromisso revolucionário.” Tal como John Dewey, Eastman queria exorcizar o anátema, o “bacilo hegeliano”, do marxismo. Para Eastman e outros críticos da esquerda, a filosofia marxista se reduzia de um estatuto científico para o de uma “ideologia”, e a única forma de salvá-la e refunda-la numa II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 281 base mais científica era uma ação policial filosófica contra a dialética “mística”. Traços da reação visceral de Trotsky às ideias de Eastman são evidentes na ênfase que Trotsky dá à dialética quando trabalhou nos seus Cadernos vários anos mais tarde. No entanto, mesmo que as disputas com Eastman possam ter precipitado inicialmente as notas sobre dialética, havia uma motivação mais fundamental que estava levando Trotsky de volta ao estudo de Hegel. Tal como Lenin antes dele, que se voltou para o estudo de Hegel após a traição da social-democracia na Primeira Guerra Mundial, Trotsky estava tentando rearmar-se teoricamente, em primeiro lugar ele próprio e, em segundo lugar, o movimento revolucionário, para uma luta contra o rebaixamento sofrido pelo marxismo às mãos da burocracia stalinista, bem como às mãos dos positivistas e pragmatistas de esquerda representados por Eastman. A psicanálise e a dialética Uma seção significativa dos Cadernos de Trotsky é dedicada a uma discussão sobre Freud e a psicanálise, à qual Trotsky mostrou uma grande simpatia, ainda que crítica, ao longo da sua vida. A discussão da psicanálise emerge diretamente de uma consideração da dialética da seguinte forma: Trotsky sempre considerou que um dos aspectoschave da dialética é a sua capacidade de explicar uma unidade sem reduzir os diferentes níveis de uma estrutura hierárquica, diferenciada e unificada, uns aos outros. Assim, embora reconhecendo a unidade última entre o Ser e o Pensamento, como um materialista deveria fazer, Trotsky compreendeu melhor do que numerosos contemporâneos que 282 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) foram influenciados pela versão vulgarizada e de inspiração stalinista do “marxismo” que emanava de Moscou nos anos 1930 (ou as visões igualmente vulgares dos intelectuais de esquerda de mentalidade positivista no Ocidente), que não se pode reduzir o Pensamento ao Ser. Como ele diz nos seus Cadernos: “A inter-relação entre a consciência (cognição) e a natureza é um domínio independente com as suas próprias regulações.” A partir deste e de outros fragmentos, podemos inferir que o tema central que une as notas sobre dialética, psicanálise e evolução é o antirreducionismo de Trotsky. Este tema é evidente na seguinte observação: “A dialética da consciência não é... um reflexo da dialética da natureza, mas é um resultado da interação viva entre a consciência e a natureza e além disso - um método de cognição, proveniente desta interação.” Trotsky também considera uma objeção familiar à ideia da autonomia relativa da consciência: “O cérebro é o substrato material da consciência. Isto significa que a consciência é simplesmente uma forma de ‘manifestação’ dos processos fisiológicos no cérebro?” O ponto de vista de Trotsky é que, como existe essa “ruptura” qualitativa entre psicologia e fisiologia, todos os dados fisiológicos do mundo não podem nos dizer nada sobre sentimentos ou pensamentos. Ao aprofundar a questão, ele se volta para a psicanálise, que, segundo ele: “na prática, afasta-se completamente da fisiologia, baseando-se no determinismo interno dos fenómenos psíquicos”. Por causa disso, Freud foi muitas vezes acusado de idealismo, e é verdade que os psicanalistas são frequentemente inclinados II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 283 à mistificação. No entanto, essa não é a posição de Trotsky. Ele prossegue dizendo: “Mas por si só o método da psicanálise, tomando como ponto de partida a ‘autonomia’ dos fenómenos psicológicos, não contradiz de modo algum o materialismo. Muito pelo contrário, é precisamente o materialismo dialético que nos leva à ideia de que a psique não poderia sequer ser formada se não desempenhasse um papel autônomo, isto é, dentro de certos limites, um papel independente na vida do indivíduo e da espécie.” Esta afirmação notável encerra o argumento de Trotsky: de fato, o que diz é que, se a psicanálise não existisse, os marxistas teriam de inventar algo muito parecido com ela. E enquanto muitos freudianos teriam negado veementemente qualquer ligação da sua doutrina com a visão do mundo do marxismo, havia um grupo importante de analistas, isto é, os freudo-marxistas, que teriam prontamente concordado com a análise de Trotsky: o carácter materialista e dialético da psicanálise era um tema importante dos seus escritos e Otto Fenichel resumiu a sua posição comum no título de um dos seus ensaios: “A psicanálise como núcleo de uma futura psicologia dialético-materialista”. A evolução e a dialética Trotsky enfatiza e repete em várias seções das suas notas a importância que atribui àquilo a que Engels chamou a primeira lei da dialética, a transformação da quantidade em qualidade. A ênfase de Trotsky no conflito e nos saltos qualitativos aparece muito claramente nas suas observações sobre o darwinismo e a evolução nestes Cadernos. De fato, pode dizer-se que Trotsky 284 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) está a levar a cabo uma polêmica não muito escondida contra dois tipos de intérpretes do darwinismo. Por um lado, há aqueles que, seguindo o modelo reformista de Kautsky e da Segunda Internacional, tendem a ver apenas mudanças e progressos quantitativos, negando transformações qualitativas e catástrofes ocasionais. “Toda a evolução é uma passagem da quantidade à qualidade. O próprio conceito de desenvolvimento gradual e lento significa a realização de mudanças qualitativas, produzindo como resultado novas qualidades.” Por outro lado, a tendência antirreducionista de Trotsky permitiu-lhe enfrentar os intérpretes vulgares do darwinismo que confundiam o conflito na natureza - a luta de cada espécie pela sobrevivência - com a sociedade e deduziam assim uma sociedade hierarquicamente organizada e dividida em classes com o carácter de uma lei da natureza. Trotsky sabia que os métodos de Darwin eram em parte dialéticos e materialistas, mas estavam ao mesmo tempo impregnados de preconceitos ideológicos, particularmente quando ele estabelecia analogias entre a natureza e a sociedade. A teoria de Darwin permaneceu, sem a dialética, menos concreta do que poderia ter sido. Trotsky generalizou esta avaliação de Darwin ao trabalho espontâneo dos cientistas em geral e observou que, embora os cientistas sejam muitas vezes “dialéticos inconscientes”, eles prejudicam-se gravemente ao abjurar um estudo consciente da filosofia e da dialética. Os Cadernos fornecem-nos apenas um vislumbre dos pensamentos de Trotsky sobre a evolução, mas um vislumbre muito intrigante. Há, por exemplo, a seguinte descrição das catástrofes, um tema que foi durante muito tempo descartado como charlatanismo e II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 285 um regresso às teorias pré-darwinistas da evolução, até que a recente teoria evolutiva reavivou a teoria das catástrofes, como uma vingança.4 Escreve ele: “Conflito. Catástrofe. Ou a forma antiga conquista (apenas parcialmente), necessitando de auto adaptação do processo conquistado (parcialmente), ou o processo de movimento explode a forma antiga e cria uma nova, através das suas novas cristalizações a partir dos seus ventres e da assimilação de elementos da forma antiga.” Se considerarmos este e outros escritos de Trotsky sobre o tema da evolução, podemos argumentar que o pensamento de Trotsky sobre este assunto foi uma antecipação notável da teoria do equilíbrio pontuado de Stephen Jay Gould e Niles Eldridge, que mudou paradigmas? Esta teoria rompeu com a teoria darwiniana ortodoxa que via a evolução como uma série de mudanças graduais ao longo do tempo. Gould e Eldridge viam a evolução como passando por longos períodos em que quase nenhuma mudança dramática ocorre, mas é periodicamente “pontuada” pelo que parecem ser saltos repentinos em que espécies novas inteiras evoluem quase num piscar de olhos na escala do tempo geológico. A discussão de Trotsky sobre os longos períodos de estabilidade de uma espécie, quando a evolução parece estar parada, que são então 4 Até pouco tempo, era dogma aceito que as principais características geológicas do planeta surgiram através de mudanças graduais e acumuladas ao longo de um vasto período de tempo. Esta era, em poucas palavras, a teoria do uniformitarismo, criada por Charles Lyell e mais tarde adotada por Darwin. Supostamente, a teoria uniformitarista teria posto de lado as teorias catastróficas anteriores, desenvolvidas pelo antecessor de Lyell, Georges Cuvier. Descobertas recentes, como o impacto do cometa K-T, há 65 milhões de anos, que causou a extinção em massa dos dinossauros e da maioria dos mamíferos da Terra, reavivaram as teorias catastróficas, bem como a reputação do muito difamado antecessor de Lyell, Georges Cuvier. 286 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) “pontuados” pelo que parecem ser transformações súbitas que dão origem a uma nova espécie, é um ponto chave da teoria do equilíbrio pontuado - uma teoria que irritou muitos darwinistas tradicionais. A abordagem gradualista dos darwinistas fundamentalistas não deixava espaço nem para as transformações súbitas, nem para os longos períodos de estabilidade. O equilíbrio pontuado também foi contra a corrente da geologia tradicional que, desde o tempo de Lyell, negava o papel das mudanças catastróficas. Sabemos hoje que as alterações ambientais catastróficas podem conduzir a extinções em massa e ao aparecimento, num curto espaço de tempo, de novas espécies, ou mesmo de todo um complexo de novas espécies. Para transformar o insight de Trotsky num projeto de investigação científica, é necessário mais uma coisa: ver a ligação entre estes longos períodos de estabilidade interrompidos por curtos períodos de eventos de especiação dramáticos no registro fóssil. Quando examinado, é exatamente isto que o registro fóssil mostra. Para conciliar as evidências do registro fóssil com a sua teoria de mudanças constantes, mas graduais, Darwin e os darwinistas tradicionais sempre assumiram que havia “lacunas” no registro fóssil. Só quando Eldridge e Gould começaram a levar a sério a ideia de que talvez o registro fóssil mostrasse de fato a história real dos eventos de especiação é que criaram a teoria do equilíbrio pontuado. Provavelmente não é acidental que Gould tenha sido um proponente consciente do valor heurístico da dialética para informar o trabalho das ciências naturais. Ele escreveu uma vez: “Quando apresentadas como diretrizes para uma filosofia da mudança, e não como preceitos dogmáticos verdadeiros por decreto, as três leis clássicas da dialética [formuladas por Engels] incorporam uma visão holística que vê a mudança como interação entre componentes de sistemas II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 287 completos, e vê os próprios componentes... como produtos e contributos para o sistema.” [Stephen Jay Gould, An Urchin in the Storm, “Nurturing Nature” (Norton, 1987, p 153-154)]. A questão, claro, não é que a dialética por si só seja um substituto para o trabalho árduo da ciência, um ponto que o próprio Trotsky reconhece em outro ponto dos Cadernos onde diz “A dialética não liberta o investigador do estudo meticuloso dos fatos, muito pelo contrário: exige-o”, mas que o poder conceitual da dialética, nas mãos de um gênio como Trotsky, “...dá elasticidade ao pensamento investigativo, ajuda-o a lidar com preconceitos ossificados, arma-o com analogias inestimáveis e educa-o num espírito de ousadia, baseado na circunspeção”. A Dialética e a Flexibilidade dos Conceitos Outro aspecto da compreensão de Trotsky da dialética que é notável é a sua ênfase na fluidez dos conceitos. Por exemplo, a seguinte passagem onde ele discute como a forma e o conteúdo “mudam de lugar” fornece uma visão do poder do pensamento dialético e do seu forte contraste com o método de conceber a oposição em termos de antinomias rígidas. “A teoria das revoluções. A antimonia lógica do conteúdo e da forma perde assim o seu carácter absoluto. O conteúdo e a forma mudam de lugar. O conteúdo cria novas formas a partir de si próprio. Por outras palavras, a correlação entre o conteúdo e a forma conduz, em última análise, à conversão da quantidade em qualidade.” Aqui Trotsky aborda um tema - a flexibilidade dos conceitos em que a íntima ligação entre dialética e prática revolucionária entra 288 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) em cena. É um tema que está no centro de um dos últimos escritos de Lenin, redigido durante a sua última doença. Tendo em mente os teóricos da Segunda Internacional, sobretudo Kautsky, Lenin escreveu: Todos eles se dizem marxistas, mas a sua conceção do marxismo é impossivelmente pedante. Eles falharam completamente em compreender o que é decisivo no marxismo, nomeadamente, a sua dialética revolucionária. Eles falharam mesmo absolutamente em compreender as afirmações claras de Marx de que em tempos de revolução é exigida a máxima flexibilidade... (“Our Revolution”, Lenin’s Collected Works, 2nd English Edition, Progress Publishers, Moscow, 1965, Volume 33 (p. 476-80). http://www.marxists. org/archive/lenin/works/1923/jan/16.htm) Podemos acrescentar a notável afirmação de Lenin que a teoria da revolução permanente de Trotsky foi um exemplo supremo da dialética revolucionária. Trotsky viu que as velhas fronteiras traçadas por teóricos como Kautsky entre a revolução burguesa e a revolução socialista já não funcionavam numa simples progressão linear. Os elementos da revolução burguesa já não podiam ser realizados pela burguesia e, por sua vez, tornavam-se responsabilidade da classe operária e da revolução socialista. Reconhecendo que a revolução russa teria este carácter combinado como resultado direto do desenvolvimento desigual do capitalismo mundial, Trotsky redefiniu decisivamente a relação entre a revolução burguesa e a revolução proletária. Uma fluía necessariamente para a outra ou não poderia ser realizada de todo. Esta flexibilidade de conceitos no pensamento dialético é, ironicamente, a única qualidade que obteve a aprovação de Max Eastman. Enquanto Eastman considerava a dialética completamente II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 289 anticientífica, defendia que podia, no entanto, desempenhar um papel positivo nas mãos de alguém como Lenin, porque não o sobrecarregava com os dogmas do passado. Eastman tentou encaixar a oposição a antinomias rígidas caraterística da dialética no leito procrusteano do instrumentalismo de Dewey e da ênfase no processo.5 A flexibilidade dos conceitos, quando entendida a partir do contexto de uma filosofia dialética, não nos dá licença para abraçar qualquer ideia a torto e a direito, dependendo da disposição subjetiva de cada um. Pelo contrário, contém a percepção de que os fenômenos sob investigação, a partir da sua própria dinâmica interna, através de uma negação determinada, se transformam nos seus opostos. Identificar qualquer processo como passando por tais transformações requer, no entanto, um estudo cuidadoso do seu movimento real, sem ser condicionado pelos “preconceitos ossificados” a que Trotsky aludia. Trotsky como um importante pensador dialético Poder-se-ia pensar que a publicação dos Cadernos de Trotsky, 5 Sidney Hook foi o melhor representante dos pragmatistas que tentaram conciliar o instrumentalismo de Dewey com a dialética. Envolveu Max Eastman numa série de debates públicos sobre a dialética na década de 1920. Numa resenha do livro de Eastman, Hook escreveu: “A fluidez da coisa e do fato e o contexto mutável do julgamento representam o coração da dialética, e não os termos antiquados com que Hegel vestiu a ideia. O Sr. Eastman pode ficar surpreendido ao saber que a dialética - modificada, é certo - aparece na lógica instrumentalista [de Dewey].” (Sidney Hook, “Marxism, Metaphysics and Modern Science”, Resenha de “Marx, Lenin, and the Science of Revolution” de Max Eastman, Modern Quarterly 4 (maio-agosto de 1928), p. 388-394. Citado por Christopher Phelps na sua biografia de Hook, Young Sidney Hook (Cornell University Press, 1997, p. 43). 290 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) há mais de trinta anos, teria suscitado um interesse renovado pelo lado teórico da obra de Trotsky. No entanto, não foi esse o caso.6 Até hoje, Trotsky tem sido erradamente acusado de ser um marxista ortodoxo mecânico, não fundamentalmente diferente de Karl Kautsky, por, entre outros, o intelectual de esquerda Slavoj Žižek. No seu livro sobre Trotsky, que é geralmente simpático, Žižek destaca o que considera serem as “limitações teóricas” de Trotsky: “Outra limitação teórica mais específica é que Trotsky, não muito diferente de Lenin, continua a opor o ‘bom’ (marxista ortodoxo) Kautsky inicial ao ‘mau’ renegado tardio, não vendo como as sementes da sua regressão já estão todas lá na sua ‘ortodoxia’ anterior.” (Slavoj Žižek. Introdução a “Trotsky: Terrorismo e Comunismo” (Verso, 2007, p. 179). Trotsky obviamente pensava que o seu estudo de Hegel e da dialética era de importância permanente no seu trabalho de reconstrução do movimento revolucionário após as traições do stalinismo. Portanto, não é de surpreender que muito do que aparece aqui como notas fragmentadas seja mais tarde trabalhado em ensaios completos e acabados quando Trotsky enfrentou a fração ShachtmanBurnham no Socialist Workers’ Party em 1939-1940. Pois Trotsky viu a evolução deste grupo de intelectuais que começou por menosprezar a importância da dialética, tal como Eastman, como uma confirmação da sua crença de que não havia nenhum caso em que um opositor do materialismo dialético tivesse sustentado um compromisso revolucionário. Os Cadernos poderiam, sob essa luz, serem vistos como um prenúncio da polêmica com Shachtman e Burnham que mais 6 Entre essas contribuições notáveis, podemos apontar Hillel Ticktin e Michael Cox, The Ideas of Leon Trotsky (1995) e The Marxism of Leon Trotsky, de Kunal Chattopadhyay (2006). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 291 tarde foi publicada como Em Defesa do Marxismo. Nessa polêmica, Trotsky apresentou uma exposição mais sistemática, se bem que simplificada, da dialética, mas desta vez com a intenção pedagógica de formar militantes da classe trabalhadora no pensamento dialético. É uma confirmação, se é que é preciso alguma, de que ao longo da sua carreira como revolucionário marxista, Trotsky acreditava firmemente que sem teoria revolucionária não há prática revolucionária. 292 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PARTE IV DEBATES SOBRE DESENVOLVIMENTO DESIGUAL E COMBINADO E REVOLUÇÃO PERMANENTE II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 293 As particularidades no desenvolvimento desigual e combinado Renato Fernandes1 Uma das críticas mais comuns ao marxismo é atribuir um caráter “eurocêntrico” as suas teses: a teoria serviria para explicar o desenvolvimento da Europa e, principalmente, de seus países ocidentais (Inglaterra, França e Alemanha, p.ex.), porém não poderia explicar o desenvolvimento dos países de outros continentes, pois não compreenderia suas particularidades. Nesse sentido, o marxismo seria limitado a explicar o desenvolvimento capitalista clássico: da passagem do feudalismo a pequenas cidades com manufaturas; das manufaturas à indústria; e assim por diante. Essa crítica se acentua quando falamos das compreensões do revolucionário russo Leon Trosky. Por muito tempo, parte dos comunistas como Bukharin acusaram Trotsky de “europeísmo” ou de ignorar as “especificidades russas”, principalmente a questão dos camponeses e a questão colonial (BUKHARIN, 1990, p. 106). O comunista italiano Antonio Gramsci, em seus escritos carcerários, teve uma visão semelhante ao considerar Trotsky um “cosmopolita”: debatendo se a teoria da revolução permanente não era um reflexo político da ideia de guerra de manobra, Gramsci afirmou que “seria possível dizer Bronstein, que aparece como um “ocidentalista”, era, ao contrário, um cosmopolita, isto é, superficialmente nacional e superficialmente ocidentalista ou europeu. Em disso, Ilitch era 1 Professor de Ciências Políticas e Econômicas na FATEC Sumaré. Membro do Laboratório de Pensamento Político da Unicamp. 294 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) profundamente nacional e profundamente europeu.” (GRAMSCI, 2001, p. 261). Contrariamente essas visões, queremos demonstrar aqui que a elaboração do desenvolvimento desigual e combinado como uma teoria da história é profundamente aberta à questão nacional e às particularidades históricas. O desenvolvimento desigual e combinado foi formulado teoricamente por Trotsky em conjunto com sua teoria da revolução permanente, e sua orientação é para a compreensão da natureza do processo histórico múltiplos e diferenciados que ocorreram na Rússia. Segundo o revolucionário russo, em sua História da Revolução Russa, O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não se revela, em nenhuma parte, com maior evidência e complexidade do que no destino dos países atrasados. Açoitados pelo chicote das necessidades materiais, os países atrasados se veem obrigados a avançar aos saltos. Desta lei universal do desenvolvimento desigual da cultura decorre outra que, por falta de nome mais adequado, chamaremos de lei do desenvolvimento combinado, aludindo à aproximação das distintas etapas do caminho e à confusão de distintas fases, ao amálgama de formas arcaicas e modernas. (TROTSKY, 2007, p. 21. Grifos do autor) Uma consideração importante sobre o termo “lei” escrito por Trotsky: como o próprio autor afirmou, no mesmo parágrafo citado, as leis do processo histórico não têm nada em comum com “o esquematismo pedante”, no sentido de uma aplicação linear (Ibidem). A ideia de lei é a ideia de uma regularidade, mas não de uma exclusividade, de um sentido único. Dessa forma, para Trotsky, ao conceber o desenvolvimento desigual e combinado na Rússia, ele concebe que o capitalismo, apesar de ser um processo mundial e II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 295 universalizante, não repete sua história em nenhum país: “O marxismo parte do conceito da economia mundial, não como uma amalgama de partículas nacionais, mas como uma potente realidade com vida própria, criada pela divisão internacional do trabalho e o mercado mundial, que impera nos tempos que corremos sobre os mercados nacionais.” (TROTSKY, 2005a, p. 402). Uma das características essenciais desse conceito é a necessidade de diferenciar entre os diferentes níveis de desenvolvimento presentes em uma determinada sociedade. Por exemplo, ao considerar as Américas antes da invasão portuguesa, é possível observar a coexistência de culturas e níveis de desenvolvimento tecnológico distintos, que se combinaram de maneira complexa: os níveis de desenvolvimento tecnológico das sociedades ameríndias eram completamente diferentes, assim como suas culturas e sua relação com outras sociedades2. Apesar de Trotsky propor o conceito para a interpretar a sociedade russa, o próprio intelectual russo ampliou sua compreensão para compreender outras sociedades como a espanhola e a América Latina. No caminho aberto por Trotsky, diversos intelectuais utilizaram o desenvolvimento desigual e combinado para interpretar suas sociedades ou para ampliar o escopo histórico das leis, como George Novack (2008), Nahuel Moreno (1957) e Milcíades Peña (2012). A compreensão de Trotsky sobre a formação social russa foi se desenvolvendo ao longo do processo. Para entender como 2 Quando fazemos essas comparações, sempre existe uma questão problemática do evolucionismo, isto é, a consideração de que uma sociedade é “mais avançada” e outra sociedade “mais atrasada”. Não debateremos a fundo essa questão, bastante criticada por teorias antropológicas, porém, queremos assinalar o problema. 296 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) esse desenvolvimento e a compreensão das particularidades no desenvolvimento desigual e combinado, vamos interpretar três análises diferentes: o processo de compreensão sobre a Rússia nos livros Balanços e Perspectivas, de 1906, 1905 de 1909 e na já mencionada História da Revolução Russa de 1930; a segunda é em seus escritos sobre a Espanha ao longo dos anos 1930; e a última são seus escritos sobre a América Latina, elaborados entre 1936-1940. Essa interpretação está mais para uma introdução que possa compreender como o tema está desenvolvido em cada uma dessas análises, do que uma análise aprofundada propriamente nessas obras. Partindo dessa compreensão e considerando como uma leitura introdutória, pensamos que é importante reconhecer que o desenvolvimento desigual e combinado na história teve influência em diversos contextos, pois ele não apenas oferece uma interpretação para entendermos as particularidades nacionais, mas também lança luz sobre os processos de mudança social e econômica ao longo do tempo. Assim, ao examinar o desenvolvimento desigual e combinado, é possível obter uma compreensão mais profunda da complexidade do desenvolvimento histórico das sociedades. O desenvolvimento desigual e combinado na interpretação da formação da Rússia Em 1905, o poder absolutista czarista tremeu: após o domingo sangrento, milhares de operários e camponeses se lançaram nas ruas contra o czarismo, organizando os conselhos conhecidos como “sovietes” e, apesar de terem sido derrotados, alteraram as condições II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 297 de luta política e social na Rússia3. Leon Trotsky foi um dos principais dirigentes desse processo encabeçando o Soviete de São Petesburgo. Com a derrota da revolução, ele foi preso em 1906 e exilado na Sibéria, de onde fugiu para o Ocidente (TROTSKY, 2017, p. 211–239). Nesse momento, Trotsky já era conhecido nos círculos social-democratas, porém ainda não tinha uma grande contribuição política e teórica. No exílio, decidiu reorganizar seus escritos e lançar um livro que tinha sido parte escrita em 1904, Balanços e Perspectivas mas que teve sua primeira edição em 1906 – uma segunda em 1915 e uma terceira pós-Revolução Russa, 1922 – incorporando a análise do processo revolucionário. O ensaio é uma análise sócio-histórica do desenvolvimento do capitalismo russo, principalmente da dinâmica política e de classes sociais, assim como a proposição de um programa para a revolução russa. Para compreendermos a questão da particularidade histórica, vamos analisar, principalmente, o primeiro capítulo do livro: “As particularidades do desenvolvimento histórico”. Neste, Trotsky já começa fazendo uma comparação entre o desenvolvimento social da Rússia em relação aos Estados europeus e vaticina: “a característica essencial do desenvolvimento social russo é seu primitivismo e sua lentidão” (TROTSKY, 2005b, p. 65. Tradução nossa) e acrescenta que “a sociedade russa nasceu sobre uma base econômica mais simples e mais pobre” (Ibidem). Essa lentidão e atraso fez com que na Rússia o processo de formação das classes sociais estive “bloqueado” e tivesse um caráter mais primitivo, não conformando as classes sociais 3 Sobre essa primeira revolução, Trotsky escreveu diversos artigos e brochuras, como 1905 (1971). 298 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) modernas da mesma forma que no Ocidente (Ibidem, p. 66). A segunda característica é que o desenvolvimento histórico russo não foi influenciado somente por suas tendências internas próprias, como um desenvolvimento autóctone, mas sofreu uma forte pressão do “meio sócio-histórico exterior” a ele (Ibidem). O Estado absolutista russo desenvolveu-se por meio das guerras contra os tártaros e também contra outras nações como a Lituânia, Polônia e Suécia. Essa pressão fez com que o Estado devorasse o excedente e a mais-valia que abastecia as classes dominantes russas, além de apropriar-se sobre o “produto necessário” dos camponeses, privando de seus meios de existência (Ibidem, p. 67). Todas essas medidas, segundo Trotsky, atrapalharam o crescimento da população e frearam o desenvolvimento das forças produtivas. Essa característica, que Trotsky aproximou da qualificação de despotismo asiático, é fundamental para entendermos as particularidades da Rússia. O Estado, para defender-se dos inimigos externos, teve que se apropriar dos recursos das classes sociais como forma de garantir sua sobrevivência. Dessa forma, ele enfraqueceu e atrasou o desenvolvimento das classes dominantes e também das classes subalternas. Por outro lado, ele também enfraqueceu o desenvolvimento da intelectualidade russa que “se desenvolveu, como a economia russa, sob a pressão direta do pensamento e da economia -mais avançada – do Ocidente” (Ibidem, p. 69). Podemos afirmar que houve uma hipertrofia do Estado, isto é, o Estado se caracterizou por ocupar o papel das classes sociais, ao mesmo tempo, bloqueando o desenvolvimento ao assumir o desenvolvimento das mesmas. Nessa situação, na Rússia, de forma muito diferente de outros Estados europeus, o capitalismo foi um filho direto do Estado, isto é, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 299 foi o Estado absolutista que introduziu máquinas e indústrias, trouxe o capital ocidental, criou o sistema monetário e de crédito (inclusive endividando-se) no país. Dessa forma, a indústria russa era dependente tanto do Estado como do capital estrangeiro (Ibidem, p. 69-70). Esse desenvolvimento via Estado tinha características bastante peculiares em relação as classes sociais e também no desenvolvimento das cidades. Por exemplo, apesar de já ter uma industrialização acelerada nas grandes cidades russas, Trotsky relata que o censo de 1897 contabilizou apenas 13% da população russa nas cidades (incluindo a Sibéria e Finlândia) (Ibidem, p. 72). Essa era uma característica do atraso russo que não havia desenvolvido cidades artesanais e comerciais como no Ocidente Europeu, mas sim cidades com atividades puramente de consumo. Todas essas questões, levam Trotsky a uma conclusão fundamental que é base da revolução permanente: pela questão do atraso, do peso do Estado russo na economia e no desenvolvimento das classes sociais, pelo lento desenvolvimento da intelectualidade, entre outros elementos, a classe burguesa russa, formada na combinação entre o Estado e o capital estrangeiro, é uma classe que não tem disposição de lutar contra o absolutismo, isto é, que não vai fazer a revolução democrática no país. 1905 era a prova da suas conclusões teóricas (Ibidem, p. 85). Já no exílio, Trotsky procurou escrever mais detidamente sobre o processo revolucionário russo em sua obra 1905. Essa obra é um estudo mais aprofundado das questões levantadas em Balanço e perspectiva, mas acaba seguindo o mesmo rastro teórico. Já na abertura da obra, Trotsky afirmou: Nossa revolução acabou com nosso particularismo, mostrando que a história não havia criado para nós 300 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) leis de excepção. E, ao mesmo tempo, a revolução russa tem precisamente um caráter particular que é a soma dos traços distintivos de nosso desenvolvimento social e histórico e que abre, por sua vez, perspectivas históricas totalmente novas. (TROTSKY, 1971, p. 21 Tradução nossa. Grifos do autor). Essa é uma das partes mais interessantes para compreender o desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky: a Rússia estava inserida na história mundial, isto é, no desenvolvimento mundial da economia capitalista, ao mesmo tempo em que era uma economia atrasada, com baixo desenvolvimento das forças produtivas nacionais, com um Estado hipertrofiado, isto é, que tinha suas particularidades nacionais. Nesse sentido, podemos enunciar aqui uma das principais características para compreender as particularidades nacionais no desenvolvimento desigual e combinado: as particularidades não são elementos isolados do desenvolvimento da economia mundial, mas parte integrante, isto é, parte da combinação de suas singularidades com a universalidade do desenvolvimento do capitalismo. É por isso que, em polêmica com Stalin sobre as particularidades nacionais e o internacionalismo dos partidos comunistas, Trotsky afirmou: As peculiaridades econômicas dos diversos países não tem um caráter secundária, nem muito mesmo: bastará comparar a Inglaterra e a Índia, os Estados Unidos e o Brasil. Porém, as características específicas da economia nacional, por maiores que sejam, forma parte integrante, e em proporção cada dia maior, de uma realidade superior que se chama economia mundial, na qual tem seu fundamento, em última instância, o internacionalismo dos partidos comunistas. (…) [Stalin] não se dá conta de que aquelas peculiaridades nacionais são precisamente o produto mais geral, e aquele II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 301 em que, por assim dizer, se resume tudo do desenvolvimento histórico desigual. (TROTSKY, 2005a, p. 403–404. Tradução nossa. Grifos do autor) Entre a revolução de 1905 e a revolução de 1917, diversas questões se passaram na Rússia: o difícil período de reação, no qual o czarismo retomou a ofensiva; a reorganização do partido que se separou em duas alas definitivas em 1912; a primeira guerra mundial (1914) e a traição da II Internacional; entre outros elementos. Porém, quando explode a revolução russa de 1917, que não era “nada além da continuação e do desenvolvimento da obra interrompida” do ensaio geral de 1905 (TROTSKY, 2017, p. 222), Trotsky volta a linha de frente do processo revolucionário. A sua análise da revolução russa de 1917 está contida em diversos discursos, artigos e brochuras. Entre eles, podemos destacar As lições de outubro, escrito em 1924, no início da luta contra a burocratização e ascensão do stalinismo no Partido Bolchevique. Porém, será no exílio que Trotsky vai analisar com mais precisão o desenvolvimento da revolução russa em sua História da Revolução Russa. Já de início, Trotsky parte do problema das particularidades do desenvolvimento russo, retomando uma boa parte da elaboração que tinha realizado em Balanços e Perspectivas: “O traço fundamental e mais constante da história da Rússia é o caráter lento de seu desenvolvimento, com o atraso econômico, o primitivismo das formas sociais e o baixo nível de cultura constituindo sua consequência obrigatória.” (TROTSKY, 2007, p. 19). Uma questão importante, que já fazia parte das elaborações anteriores, mas que não estava desenvolvido de forma consiste, 302 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) é o processo de mundialização inaugurado com o capitalismo, principalmente em sua fase imperialista. Nesse sentido, Trotsky afirmou que o “capitalismo prepara e, até certo ponto, realiza a universalidade e permanência na evolução da humanidade”, porém, esse processo não é uma repetição das etapas dos países avançados, ao contrário, existe um privilégio do atraso: “O privilégio dos países historicamente atrasados – o que de fato é – está em poder assimilar as coisas ou, dito melhor, em se obrigar a assimilá-las antes do prazo previsto, saltando por toda uma série de etapas intermediárias.” (Ibidem, p. 20. Grifo do autor). Dessa forma, nas nações atrasadas, confundam-se as distintas fases do processo histórico, realizando o que o revolucionário russo teorizou como desenvolvimento desigual e combinado. Esse desenvolvimento desigual e combinado gerou uma série de particularidades na formação social russa. Uma delas era em relação ao tamanho do Estado absolutista: Sob a pressão da Europa mais rica, o Estado russo absorvia uma parte proporcional muito maior da riqueza nacional que os Estados ocidentais, com o que não só condenava as massas do povo a uma dupla miséria, mas também enfraquecia as bases das classes possuidoras. (…) O resultado disso era que as classes privilegiadas, que haviam se burocratizado, não puderam nunca chegar a se desenvolver em toda a sua pujança, razão pela qual o Estado ia se aproximando cada vez mais do despotismo asiático. (TROTSKY, 2007, p. 21–22) Duas características particulares da formação social russa são destacadas por Trotsky. A necessidade de um Estado forte fez com que não houvesse espaço para o desenvolvimento de uma Igreja e de um Clero com maior autonomia e poder como foi no II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 303 Ocidente. Nesse sentido, o Clero sempre esteve subordinado ao poder absolutista do Czar. Por outro lado, retomando a temática já abordada em Balanço e Perspectivas, as cidades russas “eram centros comerciais, administrativos, militares e da nobreza; centros, portanto, consumidores e não produtores.” (Ibidem, p. 22). Na Rússia medieval não se desenvolveram as comunas e a burguesia como classe produtora, tal qual no Ocidente. E, por conta dessa condição, não se desenvolveu uma logística do transporte de mercadorias com vias de comércio: as principais vias de comunicação do comércio russo conduziam ao estrangeiro, assegurando, assim, ao capital externo, desde os tempos mais remotos, o posto dirigente e dando um caráter semicolonial a todas as operações, em que o comerciante russo ficava reduzido ao papel de intermediário entre as cidades ocidentais e a aldeia russa. (TROTSKY, 2007, p. 23) Uma questão interessante levantada por Trotsky é justamente sobre a impossibilidade de movimentos reformistas e revolucionários na Rússia no período pré-capitalista. Por um lado, a ausência de cidades russas, com um comércio ativo, gerou a impossibilidade de uma reforma protestante no sentido ocidental; da mesma forma, a ausência dessas cidades representava a ausência do que o revolucionário russo considerava o “corpo principal” do terceiro Estado, a burguesia e os trabalhadores livres que pudessem dar um sentido as revoltas camponesas recorrentes na Rússia (Ibidem, p. 23). Porém, como Trotsky demonstra, uma das particularidades e privilégios do atraso foi justamente o salto na indústria russa. Segundo ele, “entre a revolução de 1905 e a guerra, a Rússia aproximadamente dobrou sua produção industrial” (ibidem, p. 24). Isso pode ser percebido na comparação entre a indústria e a agricultura russa no período pré- 304 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) revolucionário: “Enquanto que até o momento do estalar da revolução a agricultura se mantinha, com pequenas exceções, quase que ao mesmo nível do século 17, a indústria, no que se refere à sua técnica e estrutura capitalista, estava ao nível dos países mais avançados e, em alguns aspectos, os ultrapassava.” (ibidem, p. 25). Por outro lado, essa indústria, que era resultado do salto histórico no desenvolvimento da Rússia, não havia se desenvolvido dos artesanatos e manufaturas presentes nas pequenas cidades do país. Ela era o fruto da fusão do capital industrial com o bancário, do capital imperialista diretamente investido no país e com uma concentração muito superior ao ocidente. Por isso, Trotsky afirmou que “podese dizer, sem exagero, que o centro de controle das ações emitidas pelos bancos, empresas e fábricas da Rússia estavam em mãos de estrangeiros, devendo se notar que a participação dos capitais da Inglaterra, França e Bélgia representava quase o dobro da Alemanha.” (ibidem, p. 25). Todas essas condições estruturais e peculiares formaram as classes sociais russas. O proletariado se formou no campo e não nas cidades. A burguesia nacional se formou como subalterna ao capital estrangeiro e à nobreza absolutista. Em polêmica com historiador Pokrovsky, o dirigente revolucionário afirmou sobre a dinâmica das classes: “O resultado de nosso desenvolvimento histórico atrasado, nas condições do cerco imperialista, foi que nossa burguesia não teve tempo de expulsar o tsarismo antes do proletariado se tornar uma força revolucionária independente.” (ibidem, p. 433). É por essas condições particulares que Trotsky afirmou que as tarefas democráticas na Rússia não poderiam ser cumpridas pela burguesia nacional. Ela era muito débil. Apesar disso, era necessário II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 305 lutar pelas tarefas democráticas, que foram efetivamente o “ponto de partida da revolução” de 1917. Porém, “a revolução começa derrubando toda a podridão medieval e, no curso de poucos meses, leva ao poder o proletariado e o partido comunista” (ibidem, p. 28) que iniciam o o processo de transição da revolução democrática para a revolução socialista. As particularidades no desenvolvimento espanhol O desenvolvimento desigual e combinado como método de interpretação histórico é ampliado por Trotsky nos seus escritos sobre países ou regiões. Vamos tentar demonstrar aqui como ele aplica no caso da Espanha. Os Escritos sobre a Espanha são um conjunto de cartas e artigos publicados por Trotsky sobre o país nos anos 1930. Muitos deles são bastante conjunturais e contextuais, referindo-se muitas vezes a luta política do momento. Porém, outros artigos contém elementos importantes para a interpretação histórica do país, das suas classes e conflitos. Um dos principais textos foi A revolução espanhola e as tarefas dos comunistas de 1931, publicado como brochura e que foi fundamental para a organização trotskista do país. Nesse texto, Trotsky começa afirmando a questão do “atraso” espanhol, porém enfatiza que “seu atraso tem caráter particular, determinado pelo grande passado histórico do país” (2014, p. 49). Trotsky trabalha a ideia de que a Espanha passou entre os séculos XVXVI por um momento de grandeza seguido por uma decadência: O descobrimento da América, que em princípio fortaleceu e enriqueceu a Espanha, se voltou mais tarde contra ela. As grandes rotas comerciais 306 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) se afastaram da Península Ibérica. A Holanda enriquecida se descolou da Espanha. Depois da Holanda, foi a Inglaterra que conquistou, por muito tempo, uma posição de superioridade sobre a Europa. Já a partir da segunda metade do século XVI, a Espanha caminhava para seu declínio. Depois da destruição da Armada Invencível (1588), esse declínio toma, por sua vez, um caráter oficial. Marx qualifica como uma “putrefação lenta e inglória” o início dessa Espanha feudalburguesa. (TROTSKY, 2014, p. 49) O principal elemento que explica essa decadência é justamente a ausência de centralização nacional do Estado, predominando na Espanha o particularismo – Trotsky opõe esse particularismo, justamente com a grande centralização que conseguiu a França no pós-1789. Além disso, é importante compreender que “a monarquia espanhola se formou graças à decadência do país e a putrefação das classes dominantes” o que era diferente do resto da Europa Ocidental (que se formou nas lutas entre as velhas cidades e a nobreza) e da Rússia que teve uma formação permanentemente lenta e atrasada das suas classes sociais, como vimos anteriormente. Uma característica particular da Espanha é o peso do Exército no país. Em determinado sentido, Trotsky afirma que, na ausência da centralização nacional pela monarquia, a instituição assumiu a força dessa centralização e da unidade nacional. Nesse sentido, o Exército aparecia como a principal força e representação das classes dominantes como demonstra história de pronunciamientos4 que se sucederam entre os séculos XIX e XX no país. A burguesia espanhola, assim como a russa, chegou atrasada 4 Formas de golpe militar ou de Estado característica no países ibéricos. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 307 no cenário de desenvolvimento histórico. A Espanha, assim como a Rússia, não teve uma indústria que se desenvolveu do artesanato para as manufaturas. A indústria espanhola, nos anos 1930, era muito mais o resultado dos investimentos estrangeiros acontecidos no período da Primeira Guerra Mundial e durante os anos 20. Era uma indústria extrativa e leve com setores como carvão, têxtil, construção, etc. Porém, seu atraso histórico, sua subordinação ao Exército, sua dependência do capital estrangeiro e seu medo do proletariado, faz com que essa burguesia se tornasse um “dos grupos mais reacionários” do país (ibidem, p. 54). São nessas condições que Trotsky afirmou que o proletariado, cerca de 8% da população na época, empregado em setores como indústria, comércio, transporte e agricultura, tornouse o principal sujeito histórico para retirar o país do atraso e fazer a revolução nacional, repetindo a dinâmica do processo russo, porém, com suas próprias especificidades (ibidem, p. 54-55). Uma outra questão levantada por Trotsky, porém na parte do programa dos comunistas espanhóis, é a questão das nacionalidades. Esse é um debate longo no marxismo internacional com posições divergente, como aquelas defendidas no início do século por Lenin e por Rosa. A ausência da centralização nacional e as características de formação da nação espanhola fizeram com que coexistissem no mesmo país nacionalidades diferentes, como a catalã e a basca. Para Trotsky, era necessário que os comunistas adotassem um programa de “unidade econômica do país, com uma ampla autonomia das nacionalidades”, isto é, garantia de direito às nacionalidades como língua, cultura, educação, etc., sem que o país fosse dividido (TROTSKY, 2014, p. 57). 308 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) As particularidades da América Latina Após ser expulso da URSS em 1929, perseguido por sua atividade política, Trotsky passou pela Turquia, França e Noruega. Quando a situação ficou insustentável para ele no país nórdico, com a decretação de prisão domiciliar em agosto de 1936, Trotsky decidiu partir ao México, após o presidente Lázaro Cárdenas conceder o visto ao revolucionário russo (GALL, 2012, p. 3–5). Trotsky chegou ao México em janeiro de 1937. Seus escritos sobre os países latino-americanos eram bem poucos naquele momento: algumas referências, citações, debates na Internacional ou conversas com militantes, mas nada tão aprofundado. Nos últimos anos de vida que passou no país, Trotsky teve diversas tarefas como defenderse das acusações contidas nos “Processos de Moscou”5 por meio da Comissão Dewey (TROTSKY, 2010), além de gerir a direção e a fundação da IV Internacional que terá seu primeiro Congresso na França em 1938 (MARGARIDO, 2008). Mas uma das grandes questões será investigar, debater e escrever sobre os EUA e a América Latina, principalmente o México: “Lugar de desembarque ainda não definido (…) Estou lendo avidamente alguns textos sobre México. Nosso planeta é tão pequeno e, no entanto, sabem tampouco sobre ele. Passei assim estes primeiros oito dias, trabalhando intensamente e especulando sobre este misterioso México.” (TROTSKY apud GALL, 2012, p. 5). Apesar disso, ao chegar no México, Trotsky faz uma declaração na qual afirma aceitar as condições do governo do país de “não intervenção na política mexicana e total abstenção de 5 BROUÉ, Pierre. Communistes contre Staline – Massacre d’une génération. Paris: Fayard, 2003. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 309 todo ato que possa prejudicar as relações entre o México e outros países.” (2009a, p. 62). Apesar dessa advertência, Trotsky não deixou de escrever, debater e polemizar sobre a política mexicana e também latino-americana. Em relação ao nosso tema, vamos debater duas contribuições de Trotsky para pensar os países do continente: a questão da debilidade das burguesias na região e a formação dos regimes denominados bonapartismo sui generis. Essas não são as únicas contribuições. Os escritos de Trotsky sobre a América Latina, apesar de não serem muito aprofundados sobre o tema, contém um conjunto de insights que poderiam ser apontados como pontos de apoio para compreender as particularidades do desenvolvimento histórico da região, como em relação ao fascismo, ao papel das disputas imperialistas, entre outros temas. Em relação as burguesias nacionais, Trotsky vai traduzir a tese da debilidade da burguesia russa para a debilidade das burguesias latino-americanas. Há uma identidade estrutural entre elas, pelo atraso que ambas chegaram no desenvolvimento histórico, ainda que as burguesias latino-americana chegaram ainda mais atrasadas e tiveram o seu desenvolvimento somente no fim do século XIX e o início do século XX, quando o processo de cambio de metrópole, isto é, de passagem do domínio inglês para o domínio estadunidense, já estava em fase de conclusão. Nesse sentido, Trotsky afirmou: Em muitos dos países latino-americanos, a ascendente burguesia nacional, buscando uma maior participação no butim, e ainda se esforçando para aumentar o tamanho de sua independência, - quer dizer, para conquistar a posição dominante na exploração de seu próprio país -, certamente 310 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) trata de utilizar as rivalidades e conflitos dos imperialistas estrangeiros com este fim. Porém, sua debilidade geral e seu surgimento atrasado lhes impedem de atingir um nível de desenvolvimento mais alto que o de servir a um amo imperialista contra outro. Não podem lançar uma luta séria contra toda dominação imperialista e por uma autêntica independência nacional por temerem desencadear um movimento de massas dos trabalhadores do país, que por sua vez ameaçariam sua própria existência social. O exemplo recente de Vargas vem ao caso, que trata de utilizar a rivalidade entre os Estados Unidos e Alemanha, mas o mesmo tempo mantém uma brutal ditadura sobre as massas populares. (2009a, p. 102–103. Grifos do autor) Nessa caracterização se destacam três pontos importantes. A primeira é sobre a debilidade e a autonomia relativa das burguesias: Trotsky considera que elas estão em fase de ascenso, fortalecimento, buscando ganhar uma maior parte na exploração da mais-valia do país. É uma etapa histórica que se abriu entre as duas guerras. Nessa situação, o que é a segunda característica, elas utilizam os conflitos entre os imperialismo, principalmente o inglês (ou europeu) e o estadunidense na região da América Latina, para alcançar uma melhor posição – o caso de Vargas, que acabou entrando na Guerra ao lado dos EUA, é uma demonstração dessa segunda característica. A terceira característica importante, que nos parece a mais fundamental, é justamente a condição estrutural das burguesias dos países atrasados: a impossibilidade de lutar contra toda a dominação imperialista, pela independência nacional frente ao imperialismo, por causa da existência ou da possibilidade de desencadear um movimento de massas dos trabalhadores que ameaçaria sua própria existência. É nesse sentido II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 311 que podemos afirmar que Trotsky considerava que as burguesias dos países atrasados, dependentes, estava numa condição de debilidade estrutural em relação as tarefas da revolução democrático burguesa – se era uma tese estabelecida para compreender a Rússia, aos poucos, ela foi generalizada para o conjunto dos países coloniais e semicoloniais. A combinação entre essa debilidade estrutural da burguesias dependentes e a disputa imperialista pela região levou a formulação de um conceito para interpretar esse países conhecidos como bonapartismo sui generis. Trotsky não faz uma análise específica sobre o fenômeno, mas escreve diversos fragmentos que compõem uma teoria por ser construída6. A formulação mais completa aparece em um texto de 1938-1939, publicado apenas em 1946, discutindo a política de nacionalização do petróleo levada a cabo pelo presidente nacionalista mexicano Lázaro Cárdenas: Nos países industrialmente atrasados o capital estrangeiro desempenha um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isso cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a relativamente débil burguesia nacional e o relativamente poderoso proletariado. Isto dá ao governo um caráter bonapartista sui generis, de índole particular. Eleva-se, por assim dizer, por cima das classes. Na verdade, pode governar convertendo-se em instrumento do capital estrangeiro e submetendo o proletariado às amarras de uma ditadura policial, ou manobrando com o proletariado, chegando inclusive a fazer-lhe concessões, ganhando deste modo a possibilidade 6 Para uma análise mais completa da formulação de Trotsky sobre o tema com uma teorização ampla, ver Felipe Demier (2021). 312 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de dispor de certa liberdade em relação aos capitalistas estrangeiros. (2009b, p. 139. Grifos do autor) A possibilidade de oscilar entre os imperialismos, como fez o governo Vargas, ou o governo Peron (PEÑA, 2012), acentuava esse caráter sui generis. Nesse sentido, podemos afirmar que Trotsky operou com uma conceituação inovadora em dois sentidos: a primeira era a da inovação entre o conceito clássico de bonapartismo de Marx e os bonapartismo sui generis; a segunda era dos tipos de bonapartismos sui generis propostos. Em relação ao conceito clássico, podemos dizer que Trotsky inclui o bonapartismo sui generis como um fenômeno particular e específico dos países industriais atrasados. Se há diversas semelhanças entre os dois, como a questão de um governo com determinada autonomia relativa das classes sociais, com lideranças fortes, há uma grande diferença: a existência da burguesia imperialista como um sujeito relevante na formação desses regimes políticos. Na França, analisada por Marx (1974), essa não era uma questão importante. E isso faz toda a diferença na definição da debilidade estrutural da burguesia que afirmamos acima. A segunda questão era das possibilidades de aparecimento dos tipos de bonapartismo sui generis que ele apresenta no próprio parágrafo. Podemos afirmar que isso aparece na forma de caracterização de “semi-bonapartismo democrático” quando se inclina à esquerda – como o governo Vargas em seus períodos democráticos; ou quando se inclina à direita – como o governo Vargas em seus períodos ditatoriais (DEMIER, 2013). Para qual lado vai essa dominação não tem a ver com questões estruturais, mas como explica Trotsky, depende da situação da luta de classes: “ É uma dominação semi-bonapartista, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 313 que se inclina hoje à esquerda, amanhã à direita, em função da etapa histórica concreta em cada país.” (2009c, p. 128). Como dissemos acima, há outras questões que poderiam ser consideradas como contribuições de Trotsky e sua teoria do desenvolvimento desigual e combinado para compreender as particularidades do desenvolvimento histórico da América Latina. Porém, essas nos parecem ser as duas questões mais importantes e na qual se apoiam as outras questões como a da ausência da revolução burguesa, a do processo de industrialização, a das especificidades do fascismo e da frente popular na região, entre outras. Considerações finais No presente texto procuramos demonstrar que a teoria do desenvolvimento desigual e combinado como interpretação da história incluiu a compreensão das particularidades nacionais. Essa compreensão não é apenas acessória, mas fundamental para a própria teoria. Isso pode ser percebido mais profundamente na compreensão de Trotsky sobre a história da Rússia. A revolução permanente, o salto de etapas, características fundamentais da teoria-estratégia de Trotsky, só pode ser compreendida pela particularidade da formação estatal, das classes sociais, da urbanização, do campo e da inserção da economia russa no desenvolvimento mundial capitalista. As mesmas questões pode ser pensada na questão da Espanha e da América Latina: as particularidades que existem em cada um dos países é um resultado da combinação entre as especificidades do desenvolvimento de cada país somada a forma como o desenvolvimento 314 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) mundial capitalista se inseriu. Nesse debate, acreditamos que a conceitualização sobre a debilidade estrutural das burguesias dos países atrasados, a hipertrofia do Estado desses países, assim como a possibilidade de regimes bonapartistas sui generis são contribuições de fundamentais para o marxismo e para a interpretação histórica dos países dependentes. Referências bibliográficas BUKHARIN, N. Trotski e a teoria da revolução permanente. Em: GORENDER, J. (Ed.). Bukharin. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1990. p. 105–107. DEMIER, F. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): um ensaio de interpretação histórica. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013. DEMIER, F. A teoria marxista do bonapartismo. São Paulo: Usina, 2021. GALL, O. Trotsky en México y la vida política en tiempos de Lázaro Cárdenas (1937-1940). 2a ed. México: Itaca, 2012. GRAMSCI, A. Caderno do cárcere. 1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. v. 3 MARGARIDO, M. (TRAD.). Documentos de fundação da IV Internacional. São Paulo: Sundermann, 2008. MARX, K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Em: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. v. XXXVp. 329–410. MORENO, N. Cuatro tesis sobre la colonización española y portuguesa. Estrategia de la emancipación nacional, v. 1, p. 81–91, 1957. NOVACK. O desenvolvimento desigual e combinado na história. São Paulo: Sundermann, 2008. PEÑA, M. Historia del Pueblo Argentino. 1. ed. Buenos Aires: Emecé, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 315 2012. TROTSKY, L. 1905. Resultados y perspectivas. Paris: Ruedo Ibérico, 1971. v. 1 TROTSKY, L. La teoría de la Revolución Permanente. 2a ed. Buenos Aires: CEIP, 2005a. TROTSKY, L. Resultados y perspectivas. Las fuerzas motrices de la revolución. Em: La teoría de la Revolución Permanente. 2a ed. Buenos Aires: CEIP, 2005b. p. 65–125. TROTSKY, L. História da Revolução Russa. São Paulo: Sundermann, 2007. TROTSKY, L. A política de Roosevelt na América Latina. Em: Escritos Latino-americanos. São Paulo: Iskra, 2009a. p. 101–104. TROTSKY, L. A indústria nacionalizada e a administração operária. Em: Escritos Latino-americanos. São Paulo: Iskra, 2009b. p. 139–142. TROTSKY, L. Discussão sobre a América Latina. Em: Escritos Latino-americanos. São Paulo: Iskra, 2009c. p. 117–130. TROTSKY, L. El caso León Trotsky. [s.l.] CEIP, 2010. TROTSKY, L. Minha Vida. São Paulo: Usina, 2017. 316 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) A teoria da Revolução Permanente contra o “Socialismo em um só país”: breves considerações acerca do debate dos anos 1920 na URSS Breno Ventura1 A teoria da revolução2 permanente, retomada por Leon Trotski dos escritos de Karl Marx e Friederich Engels, foi vítima de falsificações e deturpações durante o chamado “debate literário”, que ocorreu entre 1924 e 1925. O episódio envolve a publicação de um prefácio de Trotski intitulado Lições de Outubro, forma de expressão do autor que se deve tanto às derrotas sucessivas que este vinha sofrendo no interior do partido, quanto ao seu isolamento no Politburo. Nos interessa aqui, particularmente, o descrédito atribuído à teoria revolucionária de Trotski em detrimento da perspectiva staliniana de socialismo em um só país. Para tal finalidade, selecionamos trechos de ambos os militantes a fim de entender quais argumentos foram mobilizados para desacreditar a teoria da revolução de Leon Trotsky. Na primeira parte do texto nos ocupamos de caracterizar o cenário que permeou o debate, bem como fazer uma breve síntese acerca da teoria da revolução permanente. Posteriormente, iremos contrapor os argumentos dos autores analisando-os sob o olhar da historiografia mobilizada durante o percurso de nossa pesquisa. 1 Graduando em Historia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Monitor da disciplina de História Contemporânea, militante da Democracia Socialista (DS) e participante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trótski / Trotskismo e a Historiografia (GEPTH). Contato: breno.v.b@hotmail.com. 2 O presente texto é fruto dos estudos que envolveram a conclusão de uma monografia no curso de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trata-se de um dos subtópicos do segundo capítulo da pesquisa. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 317 O partido e a burocracia Em primeiro lugar, devemos situar-nos acerca do contexto no qual as situações acima se desenrolaram: Lenin havia falecido em 21 de janeiro de 1924. No mesmo mês, Trotski, junto de outros 46 militantes, antigos bolcheviques, havia sido repreendido por ousar criticar os rumos que a direção tomava. Antes da morte de Lênin, aquele tomou consciência do que estaria ocorrendo: a burocracia, uma estrutura herdada dos longos anos de dominação tsarista, ainda se fazia sentir. Além disso, o cenário da Rússia era estarrecedor: acabara de sair de uma Guerra-Civil, sua economia encontrava-se devastada e grande parte do partido havia sido dizimada. A respeito da burocracia, em particular, Lênin teria dito: Se tomarmos Moscou com os seus 4.700 comunistas em posições responsáveis, e se tomarmos essa enorme burocracia máquina, aquele monte gigantesco, devemos perguntar: quem está dirigindo quem? Duvido muito que se possa dizer com sinceridade que os comunistas estão dirigindo esse monte. Para dizer a verdade eles não estão dirigindo, eles estão sendo direcionados (LENIN, 1965, p.288 tradução nossa). Antes de sua morte, alguns documentos que viriam mais tarde a ser chamados de seu “testamento político” foram ditados às suas secretárias, e neles estavam contidos um balanço acerca dos principais membros do Partido. Chama atenção o alerta que o revolucionário russo fez aos seus pares: Penso que o fundamental na questão da estabilidade, deste ponto de vista, são membros do CC como Stáline e Trótski. As relações entre eles, em minha opinião, constituem mais de metade do perigo dessa cisão que se poderia evitar, e para evitar a qual, em minha opinião, 318 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) deve servir, entre outras coisas, o aumento do número de membros do CC de 50 para 100 pessoas (LENIN, 2012, p.50-51,). Devemos ressaltar que a disputa entre as perspectivas revolucionárias que aqui declaramos não foram maquinações de Stálin sozinho, mas sim de um fenômeno social específico, analisado por Trotski em sua obra “A revolução Traída”. Segundo o autor, o estado flagrante de destruição que atravessava a Rússia que passou pela Primeira Guerra Mundial, donde não havia mais o que enviar além de soldados para morrer, seguida de uma revolução e uma GuerraCivil, junto do novo sistema de nomeações pelo alto, formaram-se os elementos necessários à expansão da máquina burocrática. Nesse sentido, abriu-se espaço para que se acumulasse poder nas mãos do Secretário Geral e sua corja. Trotski assim resume: Os representantes mais proeminentes da classe operária morreram na guerra civil ou, ao subir alguns graus, separaram-se das massas. Assim veio, após uma prodigiosa tensão de forças, de esperanças e de ilusões, um longo período de cansaço, depressão e desilusão devido aos resultados da Revolução. O refluxo do “orgulho plebeu” resultou em um fluxo de arrivismo e carreirismo. Essa onda levou ao poder uma nova casta dominante (TROTSKI, 2023, p. 109). Quanto à figura de Stálin em particular, Trotski é totalmente avesso a maniqueísmos, acrescentando que a sua chegada ao poder não foi fruto de um plano bem arquitetado, mas sim um desencadeamento de um fenômeno político de maior proporção, em relação direta com as condições materiais e de classe da sociedade russa daquele momento. Assim, reitera que Seria ingênuo acreditar que Stálin, desconhecido das II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 319 massas, de repente emergiu dos bastidores armado com um plano estratégico totalmente elaborado. Não. Antes que ele tivesse previsto seu caminho, a burocracia o havia adivinhado. Stálin apresentavalhe todas as garantias desejáveis: o prestígio de um velho bolchevique, o caráter firme, uma visão estreita, vínculos indissolúveis com a máquina política como única fonte de sua influência pessoal (TROTSKI, 2023, p. 112). As discordâncias que envolveram Trotski e Stálin têm raízes em um episódio específico, ainda na Guerra Civil, quando o primeiro, na posição de comandante do Exército Vermelho, sugeriu a aglutinação de antigos militares, remanescentes do tsarismo, ao quadro de combatentes para que houvesse a partilha de seus conhecimentos táticos e experiência de comando. Trotski chamavaos de “especialistas burgueses”. Stálin discordava de tal questão. Em 1918, ele será enviado para Tsaritsyn e questionará a lealdade desses oficiais, em favor de oficiais com um “histórico proletário”, causando certo burburinho logo nos primeiros momentos de guerra. A teoria da revolução permanente A teoria da revolução permanente foi originalmente elaborada em 1906, através do texto Balanços e Perspectivas. Escrevendo no cárcere, Trotski se atenta aos traços específicos da sociedade russa, tal qual sua formação histórica e conjuntura econômica perante o capitalismo mundial. Recuperando as considerações de Karl Marx, o autor se debruça sob o entendimento da particularidade dos países atrasados e sua consequente natureza singular quando dos desdobramentos revolucionários. 320 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Em países industrialmente fracos e pouco desenvolvidos, em comparação ao restante da Europa, percebeu-se a necessidade de um triunfo revolucionário que também se garanta no campo internacional. Tal perspectiva recebia pouca simpatia na época em que veio à tona, visto que grande parte dos intelectuais que se debruçaram sobre o tema acreditavam que o sobrepujar de uma classe sobre a outra tinha de dar-se na porção mais economicamente avançada e desenvolvida do globo. Aparece aqui também, pela primeira vez, uma possibilidade de que determinado levante executasse “tarefas socialistas”, sem necessariamente passar por uma experiência de dominação burguesa de classe. Com o auxílio da teoria do Desenvolvimento Desigual e Combinado, a teoria da Revolução Permanente elaborada por Trotsky em 1905, quando ainda preso, acusado de comandar uma insurreição operária no Soviete de Petrogrado, que o tinha como presidente à época, temos a gênese de uma nova teoria da revolução. A partir de seu texto, Balanços e Perspectivas (1906), foi possível a obtenção de um prognóstico sofisticado da revolução, até então incipiente, no território russo. Acreditamos que, através da compreensão da União Soviética enquanto um Estado Operário Burocratizado, esquematizada pelo mesmo autor, temos as chaves para identificar os principais elementos que envolveram a rejeição de suas ideias no interior do Partido Bolchevique, que passava então por um processo de burocratização, que seria a última batalha travada por Vladimir Lenin, nos seus últimos anos de vida, como nos mostra Moshe Lewin, em sua obra Lenin´s last struggle (2005). Trotsky percebe diferentes dinâmicas de movimentações políticas da burguesia e do proletariado em cada qual dos casos, sendo a primeira presente como força transformadora na II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 321 França. Na revolução alemã, por outro lado, essa classe se faz frágil no tocante à conquistas de ordem estrutural no campo social, sendo ineficaz quando posta em comparação com a experiência francesa; A burguesia alemã, desde o princípio, bem longe de fazer a revolução, dissociou-se dela. A sua consciência dirigia-se contra as condições objetivas da sua própria dominação. A revolução não podia ser feita por ela, mas só contra ela. As instituições democráticas representavam, no seu espírito, não um objetivo pelo qual combatesse, mas uma ameaça para o seu bem-estar (TROTSKY, On-line). No quadro da Rússia de 1905, ano em que a história estendeu o tapete para que os homens pudessem trilhar o caminho da uma emancipação social de um diferente natureza, nos defrontamos com um cenário completamente diferente; a burguesia russa se faz inapta, inerte e pouco capaz de transformar o quadro político desta nação. Tal classe não seria capaz de cumprir a sua tarefa elementar, a qual Marx considerou como essencial para o desenvolvimento do capitalismo, diga-se: uma revolução burguesa. Afinal, o capitalismo russo era tardio, deficitário, e “gigante dos pés de barro” seria a alcunha pela qual a Rússia ficaria conhecida durante o século XIX e início do XX, dada sua vastidão territorial que mesclava-se com o seu atraso em termos sociais e políticos. A combinação desses diferentes elementos, arcaicos e modernos, será a chave para se entender a concepção de revolução em Trotsky, bem como o paradigma que permeou o debate entre etapismo, designação do cumprimento de tarefas por determinadas classes, internacionalismo e afins. E foi percebendo essa dimensão contraditória que Leon Trotsky teceu os prognósticos que confirmaram-se nas mais 322 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) variadas vezes, a começar pelo triunfo da revolução e a sua agenda de tarefas a serem cumpridas, até a leitura que fez sobre do regime soviético comandado por Stalin, à luz das leituras marxianas. Segundo Trotski, o cumprimento das tarefas sociais mais elementares na Rússia só seria possível a partir da coletivização, o que o levou a crer que não se podia conceber uma revolução aos moldes da francesa, dada a inoperância da burguesia russa, logo os revolucionários teriam o desafio de jogar-se em uma revolução de novo tipo, na qual o proletariado estaria destinado a cumprir essa tarefa. Nesse sentido, aqui é projetado um novo tipo de revolução, inédita na história e que necessitava de um refinamento das formulações do filósofo prussiano para a sua melhor compreensão. Uma das principais contribuições da teoria da revolução permanente para o marxismo foi a noção de Desenvolvimento Desigual e Combinado. Ideia em que se percebe na sociedade capitalista a constituição de um todo no qual são integradas todas as sociedades do capital, as quais transformam-se e moldam-se cada qual a sua velocidade, combinando-se de maneira desigual. Tal noção foi o que levou Trotsky a dizer, logo no primeiro parágrafo de Balanços e Perspectivas que, Se compararmos o desenvolvimento social da Rússia com o dos outros países da Europa agrupando estes últimos num mesmo capítulo, do ponto de vista do que há de comum na sua história, e que o distingue da história da Rússia -, poderemos dizer que as principais características do desenvolvimento social da Rússia são a lentidão e o seu caráter primitivo (TROTSKY, On-line). Dessa forma, percebe-se a formação, em cada sociedade capitalista, de diferentes trajetórias de proletarização, ritmo e forma de desenvolvimento do capital, com suas devidas especificidades e II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 323 particularidades. Podendo-se combinar em seu interior elementos antigos e modernos em simultâneo. Para além disso, tem-se também a ideia de que o capitalismo por si só é internacional e transnacional, uma vez que não se restringe a fronteiras, podendo fazer reproduzir sua força de trabalho em outros países, por exemplo. Portanto, a desigualdade, tal qual uma lei que rege todas as sociedades, se amplia em diferentes níveis, criando temporalidades e combinações sociais diferenciadas. À luz do ano de 1905, Trotsky tecia um novo entendimento das dinâmicas de classe e seu papel na revolução. As determinações históricas e suas diferentes formações nos países atrasados é que iriam apontar a natureza das próximas revoluções, e a Rússia, dada a sua condição de capitalismo incipiente, com traços feudais e reminiscências arcaicas, não estaria destinada a uma revolução burguesa, visto a condição amorfa desta classe. Caberia ao proletariado executar as conquistas de uma revolução burguesa, seguindo-as das conquistas de uma sociedade socialista. Vê-se, nesse sentido, o caráter de permanência dessa revolução, que necessitava também da vitória em países de capitalismo mais avançado, a fim de assegurar as conquistas revolucionárias frente à reação do capital. Isaac Deutscher, o mais renomado biógrafo do comunista russo, ao comentar sobre tal passagem da vida de Trotsky, sintetiza a análise do revolucionário da seguinte forma: Por que estava a Rússia destinada a tornar-se pioneira do socialismo? Por que não podiam as classes médias russas levar a sua revolução a uma consumação, tal como fizeram os franceses no século XVIII? A resposta está nas peculiaridades da história russa. O Estado russo, meio asiático, meio europeu, tinha por base uma 324 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) sociedade primitiva que evoluía lentamente, sem diferenciações. A pressão militar das potências europeias superiores, não os impulsos vindos da sociedade russa, modelam aquele Estado. Desde seus primeiros dias, quando lutava contra o domínio tártaro e depois contra as invasões polacolituanas e suecas, o Estado arrancou do povo russo os tributos mais intensos, absorveu uma parcela desproporcionalmente elevada da riqueza social produzida. Com isso dificultou a já lenta formação de classes privilegiadas e o crescimento, ainda mais lento, dos recursos produtivos (DEUTSCHER, 2005, p. 195). Lenin já havia ocupado-se de esclarecer em que estado encontrava-se o capitalismo na Rússia em sua obra O desenvolvimento do capitalismo na Rússia (1899). Em meio a uma polêmica com os Narodniks, o autor teceu uma sofisticada análise do emergente capitalismo russo, seus avanços, crescimento de uma burguesia nacional e maior divisão de classes entre camponês e proletariado. Trotsky, por sua vez, fazia uma análise igualmente nuançada que não perdia de vista os desdobramentos que envolviam a economia russa. Entretanto, trazia uma concepção totalmente nova ao marxismo da época; a possibilidade de não limitar-se ao cumprimento de etapas, tal como uma trajetória evolucionista, bem como não concebendo mais a revolução de maneira esquemática e fechada, não tendo de passar necessariamente por uma fase de revolução burguesa para só então, posteriormente, emergir a revolução proletária. Nessa linha, a revolução não terminaria enquanto não houvesse a deterioração total da sociedade de classes. Tal concepção inclui a passagem da revolução burguesa para a socialista, e quando do triunfo da última, que tem tempo indeterminado, as relações sociais II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 325 tomariam diferentes formas durante o andamento e uma luta interior comum. Aqui, o autor elenca a pujança da metamorfose social, que engloba transformações econômicas, técnicas, de ordem científica e de costumes, que complementariam com relações complexas, impossibilitando o equilíbrio social. Nessa perspectiva que se tem o caráter permanente da própria revolução socialista. A teoria do socialismo num só país A teoria do socialismo num só país surgiu como um mero tópico do debate literário. Em sua biografia política sobre Stálin, Deutscher pontua que durante muitos meses e até o verão de 1925, nem Stálin nem seus aliados tocaram no assunto. Ele próprio não tinha uma perspectiva muito clara do que era. A formulação original de 1924 de sua obra Fundamentos do Leninismo indicava justamente a impossibilidade do triunfo completo do socialismo em um único país. Como resolver tal contradição? Ora, retirando a primeira edição de circulação e desvinculando-se dela por apócrifa. “A princípio, não se deu conta do peso que as circunstâncias logo iriam conferir ao “socialismo num só país”. Chegou à fórmula às cegas, descobrindo novo continente, por assim dizer, enquanto acreditava navegar por outros mares bem distantes” (Deutscher, 2006, p. 305). Logicamente, o objetivo aqui era desacreditar Trotsky. Uma teoria exatamente antagônica à sua caiu como uma luva para o contexto do debate. Assim como no processo de burocratização intestina do partido bolchevique, Stálin não atuou sozinho, Bukharin contribuiu em muito para desacreditar a perspectiva de Trotsky. Isso pode ser visto na publicação de um texto datado de 1924 mas escrito em 1925, 326 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) que ostenta em seu título “A Teoria da revolução permanente”. Nesta brochura, Bukharin se ocupa de dirigir críticas aos escritos de 1905 e ao Novo Curso, acusando-o de desacreditar a história da revolução russa. Nota-se um tom sacralizante na história da revolução, repetese o procedimento padrão dos ataques a Trotsky; afastamento de sua perspectiva da de Lênin, colocando-o como um impostor que se vende como leninista mas não o é. Além disso, reforça sua perspectiva etapista, defendendo que em 1917 a Rússia passou por uma revolução burguesa, para posteriormente dar-se uma revolução socialista, desacreditando a ideia trotskista da possibilidade da realização das tarefas burguesas por parte do proletariado. Dessa forma, a revolução avança do estágio burguês liberal para o estágio pequeno-burguês, e daí avança para o estágio da revolução proletária. Este é o significado da teoria marxista (e não trotskiana) da revolução permanente. Podemos ter qualquer objeção a uma tal teoria? Não, pois é o correto. Neste sentido, a nossa revolução provou ser ‘ininterrupta’. Na Rússia, a revolução passou por uma série de etapas. Em fevereiro de 1917, tivemos uma substituição do regime do senhorio pelo governo liberal da burguesia imperialista acompanhado pelo estabelecimento de uma autoridade paralela dos trabalhadores e camponeses (os soviéticos) (Bukharin, 1925, Online). Nesse mesmo texto aparecem novamente as acusações de descrédito do campesinato, de forma que Trotsky o teria desacreditado, escanteado e colocado-o em posição menor em relação ao proletariado. Além disso, dá a entender que a revolução permanente envolve a luta direta entre duas classes constituidoras da sociedade Russa. A velha II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 327 concepção de revolução “por etapas” é aqui trabalhada por Bukharin, afinal, os trechos supracitados revelam uma avaliação que perpassa por essas lentes, acreditando que a burguesia cumpriu seu papel para que finalmente o socialismo pudesse triunfar. No entanto, o real antagonismo aparece na forma de teoria sob as mãos de Stálin: reunido sob os escritos de Em torno dos Problemas do Leninismo, a questão é um mero tópico; “o problema da vitória do socialismo em um só país”. O texto se desenrola como um viés de confirmação de um parágrafo e correção de outro. Retomava a sua passagem de Fundamento do Leninismo: Antes, considerava-se impossível a vitória da revolução num só país. Tal conceito significava que, para alcançar o triunfo sobre a burguesia, era necessária a ação conjunta dos proletários de todos os países adiantados ou, pelo menos, da maioria deles. Hoje, este ponto de vista já não corresponde à realidade. Hoje, é preciso partir da possibilidade deste triunfo, pois o desenvolvimento desigual, aos saltos, dos diferentes países capitalistas, sob as condições do imperialismo, o desenvolvimento dentro do imperialismo de contradições catastróficas que conduzem a guerras inevitáveis, o incremento do movimento revolucionário todos os países do mundo, tudo isso conduz não só à possibilidade, inclusive à necessidade da vitória do proletariado em diversos países tomados em separado (Stálin, 1954). O autor reforça o peso dessa afirmação, apontando-a como verdadeira e que reside na necessidade de demonstrar aos socialdemocratas a possibilidade de vitória do proletariado num só país, mesmo que não acompanhada do restante do mundo. Contudo, Stálin conduz a atenção do leitor para uma outra passagem, a qual segundo ele “dirigia-se aos críticos do leninismo e contra os trotskistas que declaravam não poder haver uma revolução em um só país”. Em 328 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) seguida, cita a passagem de Trotsky acerca do restante da Europa como baluarte da revolução, bem como a resistência de um país socialista diante do conservadorismo europeu. Desviando da admissão de uma eventual falha ou remanejo das questões, o autor também diz que essa segunda citação carrega problemas, pois ela ansiava responder tanto a questão do socialismo em um só país quanto a hipótese de um país sob ditadura do proletariado resistir ou não a intervenções estrangeiras. Nesse aspecto, discretamente, se corrige. Alega que a passagem abria margem para se pensar a impossibilidade que de país sob a ditadura do proletariado possa considerar-se completamente garantido contra a intervenção e, portanto, contra a restauração da velha ordem, sem uma revolução vitoriosa numa outra série de países, problema ao qual se deve dar resposta negativa. Isso, sem falar que essa formulação pode dar motivo para se acreditar ser impossível organizar a sociedade socialista com as forças de um só país, o que, naturalmente, é falso. (...) a possibilidade do proletariado tomar o poder e o utilizar para edificar a sociedade socialista completa em nosso país, contando com a simpatia e o apoio dos proletários dos demais países, mas sem que previamente triunfe, nesses países, a revolução proletária. Sem essa possibilidade, a construção do socialismo é uma construção sem perspectivas, uma construção sem a segurança de estruturar completamente o socialismo. Não se pode dar forma ao socialismo sem ter a segurança de poder construí-lo até o seu ponto final, sem ter a segurança de que o atraso técnico de nosso país não é um obstáculo insuperável para a construção da sociedade socialista completa. Negar esta possibilidade é não ter fé na causa da construção II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 329 do socialismo, é separar-se do leninismo. (Stálin, 1945. Grifo nosso). Assim, temos que o elemento preponderante em seu pensamento é a intervenção estrangeira abrindo a possibilidade da restauração capitalista. Nesse sentido, aponta-se que o fortalecimento do socialismo dentro das fronteiras russas garantiria não somente a vitória revolucionária, bem como a segurança e estabilidade da revolução iniciada em outubro. No entanto, afasta-se de qualquer acusação de isolacionismo, dizendo que a construção do socialismo em território russo não é antagônica à vitória da revolução em outros países. A questão internacional é aqui reduzida à mera “simpatia” do proletariado mundial, a qual é atribuída grande importância para a estruturação completa do socialismo. A partir disso, podemos considerar que a concepção internacionalista passava a não mais residir na ordem do dia, apesar dos esforços de Stálin para fazer parecer o contrário. Tamanho esforço não era à toa; ele conhecia a velha tradição dos marxistas que considerava que a revolução mundial era uma necessidade sine qua non. É não menos notável sua consideração de que desacreditar a possibilidade socialismo em um único país é desviar do marxismo-leninismo, que aparece aqui quase como um artigo de fé. Nesse mesmo folheto, no qual, diga-se de passagem, Stálin responde às críticas de Zinoviev, o qual agora compunha as fileiras da oposição ao antigo aliado, considera-se que as forças internas do país seriam capazes de resolver as contradições entre camponeses e proletariado. A questão do espelho da União Soviética para o resto do mundo nos parece clara em seu horizonte de perspectivas, uma vez que o autor considera a simpatia do proletariado internacional com a União Soviética como um elemento contrabalanceador. Este 330 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) seria o papel da URSS na revolução internacional; servir de inspiração para revoluções futuras ao invés de uma real articulação e leitura das conjunturas de classes específicas de outros países. Chama a atenção a preocupação com a chamada “interferência internacional”, um fator relevante, principalmente em vista dos beligerantes últimos anos. Contudo, esse fator converte-se aqui em uma retórica de peso quase inerente ao isolacionismo; era necessário um Estado pouco penetrante no cenário revolucionário mundial a fim de fortalecer o estado soviético. Caso não fortalecido, esse mesmo estado poderia cair diante da intervenção estrangeira. Tal perspectiva será constantemente alimentada também sob as formas dos expurgos que eliminaria os “contra revolucionários”. Novamente, os germes da trama que permeia os expurgos dos anos 1930 podem ser vistos aqui. Isso é significativo se olharmos em especial para o fato da internacional comunista passar pelo que a direção chamou “bolchevização” dos partidos internacionais. Defendia-se uma pretensa padronização dos partidos em acordo com o bolchevique; na prática, o que ocorreu foi a direta submissão daqueles à corrente oficial, incontestável e única capaz de conduzir a vitória do proletariado internacional. Daí em diante, a atuação das internacionais socialistas será cada vez menos decisiva no âmbito da orientação dos quadros para a discussão das diferentes conjunturas dos partidos comunistas de outros países, até que seja finalmente dissolvida em 1943. Nota-se nesse pensamento a nítida confusão entre a vitória do proletariado e a vitória do socialismo. Se tal confusão é proposital ou não pouco podemos dizer, restando-nos apenas alegar que ela propicia uma generalização das lutas que não cabem na real dimensão do que Marx originalmente concebeu, particularmente, no prefácio de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 331 Contribuição à crítica da economia política 3. Ademais, de acordo com Lênin, o proletariado é perfeitamente capaz de liderar levantes que prestigiam objetivos de ordem burguesa, algo também ressaltado por Trotsky. Em nosso juízo, acreditamos que a confusão dos termos parte do pouco esclarecimento acerca da teoria do desenvolvimento desigual e combinado, um aspecto essencial do pensamento de Trotsky que contempla a questão em relação à natureza econômica da sociedade russa. Nesse balaio, Stálin assim justifica sua posição; Em primeiro lugar, o fato de que a ditadura do proletariado nasceu em nosso país como uma potência que surgiu com base em uma aliança entre o proletariado e as massas trabalhadoras do campesinato, sendo este último liderado pelo proletariado. Em segundo lugar, o fato de que a ditadura do proletariado se estabeleceu em nosso país como resultado da vitória do socialismo em um país - um país em que o capitalismo era pouco desenvolvido - enquanto o capitalismo foi preservado em outros países onde o capitalismo foi mais altamente desenvolvido. Isso não significa, é claro, que a Revolução de Outubro não tenha outras características específicas. Mas são precisamente essas duas características específicas que são importantes para nós no momento presente, não apenas porque expressam distintamente a essência da Revolução de Outubro,mas também porque revelam brilhantemente a natureza oportunista da teoria da “revolução permanente.” (Stálin, 1997, p. 121). 3 Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade (Marx, Karl. Contribuição à crítica da economia política, 2008, pg. 48. Expressão Popular). 332 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Isso segue da citação de um folheto de sua própria autoria, A Revolução de Outubro e a Tática dos Comunistas Russos, escrito em dezembro de 1924, no contexto do debate literário, que por sua vez apresenta um tópico específico sobre a revolução permanente, denominado: Duas características específicas do mês de outubro e Teoria de Trotsky “permanente” de revolução, já rotulada de oportunista em sua primeira aparição no escrito: Em primeiro lugar, o fato de que a ditadura do proletariado nasceu em nosso país como uma potência que surgiu com base em uma aliança entre o proletariado e as massas trabalhadoras do campesinato, sendo este último liderado pelo proletariado. Em segundo lugar, o fato de que a ditadura do proletariado se estabeleceu em nosso país como resultado da vitória do socialismo em um país - um país em que o capitalismo era pouco desenvolvido - enquanto o capitalismo foi preservado em outros países onde o capitalismo foi mais altamente desenvolvido. Isso não significa, é claro, que a Revolução de Outubro não tenha outras características específicas. Mas são precisamente essas duas características específicas que são importantes para nós no momento presente, não apenas porque expressam distintamente a essência da Revolução de Outubro,mas também porque revelam brilhantemente a natureza oportunista da teoria da “revolução permanente.” (Stálin, 1997, p. 121). Aqui aparece a crítica da perspectiva acerca dos camponeses. Como já vimos, Trotsky acreditava que a revolução deveria ser feita a partir da aliança entre esses e o proletariado, contudo, sob direção do último. Posto assim, parece que ele os ignorava totalmente. Ao que se segue do argumento, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 333 A ditadura do proletariado não é simplesmente um estrato superior governamental “habilmente” “selecionado” pela mão cuidadosa de um “estrategista experiente”, e “confiante judiciosamente” sobre o apoio de uma seção ou outra da população. A ditadura do proletariado é a aliança de classe entre o proletariado e as massas trabalhadoras do campesinato com o propósito de derrubar o capital, para alcançar a vitória final do socialismo, e para a luta contra o capitalismo, sob a condição de que a força orientadora desta aliança seja o proletariado. Assim, não se trata de “ligeiramente” subestimar ou “ligeiramente” superestimar as potencialidades revolucionárias do movimento camponês, como certos defensores diplomáticos da “revolução permanente” agora gostam de expressá-lo. É uma questão da natureza do novo Estado proletário que surgiu como resultado da Revolução de Outubro. Trata-se do caráter do poder proletário, dos fundamentos da ditadura do próprio proletariado (Stálin, 1997, p. 121). Nas páginas seguintes são citados dois trechos da obra de Lênin, trata-se dos eixos definidores, por assim dizer, da ditadura do proletariado que, nas palavras do Homem de Ferro, teve como aprendizado histórico uma forma de representação da implementação deste arquétipo na prática. Contudo, faz uma advertência para aqueles que acreditam que há alguma semelhança entre esse pensamento e o de Trotsky. Ao citar o texto de Lênin “um modelo de tática para todos” (grifos do autor) pontua, certamente, que este modelo não é exclusivamente russo, um dos traços marcantes da revolução de outubro. Dessa forma, ao mesmo tempo em que afastava a concepção de Trotsky da de Lênin, o autor aproximava o pensamento de Lenin da legitimação de suas formulações acerca das nacionalidades; 334 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Não nos deteremos longamente sobre a posição de Trotsky em 1905, quando ele “simplesmente” esqueceu tudo sobre o campesinato como uma força revolucionária e avançou o slogan de “Nenhum czar, mas um governo operário”, isto é, o slogan da revolução sem o campesinato (...) Vamos levar o “Prefácio” de Trotsky ao seu livro O Ano 1905, escrito em 1922 (...) Basta comparar esta citação com as citações acima das obras de Lenin sobre a ditadura do proletariado para perceber o grande abismo que separa a teoria da ditadura do proletariado de Lenin A teoria de Trotsky da “revolução permanente. Lenin fala do aliança entre o proletariado e as camadas operárias do campesinato como base da ditadura do proletariado. Trotsky vê um “colisão hostil “ entre “a vanguarda proletária” e “as amplas massas do campesinato.”Lenin fala do liderança das massas trabalhadoras e exploradas pelo proletariado. Trotsky vê “contradições na posição de um governo operário em um país atrasado com uma população esmagadoramente camponesa.”(Stálin, 1997, p. 121). O trecho a que Stálin se refere diz respeito principalmente ao fato de, quando da exposição de Trotsky acerca da revolução ele afirma que, para garantir a sua vitória, a vanguarda proletária seria forçada nos estágios iniciais de seu governo a fazer incursões profundas não apenas na propriedade feudal, mas também na propriedade burguesa. Nisso entraria colisão hostil não só com todos os agrupamentos burgueses que apoiaram o proletariado durante as primeiras etapas de sua luta revolucionária, mas também com todos os grupos burgueses que com as grandes massas do campesinato com cuja ajuda ele chegou ao poder (Trotsky apud Stálin, 1997, p. 126). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 335 Em seguida, trata de dissociar esse pensamento do de Lênin, alegando que a chamada “colisão hostil” é não somente um “descrédito da revolução”, como algo extremamente distante do leninismo, principalmente ao examinar o trecho em Trotsky versa sobre a revolução mundial resolvendo as contradições internas. Segundo Stálin, seria a maior das heresias acreditar que “As contradições na posição de um governo operário em um país atrasado com uma população esmagadoramente camponesa só poderiam ser resolvidas em escala internacional, na arena da revolução proletária mundial” (Trotsky apud Stálin, 1997, p. 126). Nesse ínterim, a questão da complexidade das relações capitalistas e suas conexões, adaptações e longevidade são pouco consideradas. Assim, o autor qualifica os escritos de Trotsky como “antileninistas” ou “semi-menchevistas”. É interessante notar que os argumentos do autor não são necessariamente uma refutação teórica, ele parece mais interessado em enquadrar seu adversário como o “desviador”, como se estivesse se esquivando de um dogma de forma quase que mortal. Os argumentos de Trotski sequer são considerados, convertem-se em apenas trechos soltos e sem contexto algum, não se vê, por exemplo, a perspectiva de adesão das nacionalidades, logo, o adversário também acredita que não se poderia erguer uma revolução em uma realidade tão contraditória, mesmo Trotsky não tendo dito isso. De acordo com Lenin, a revolução tira sua força principalmente entre os trabalhadores e camponeses da própria Rússia. De acordo com Trotsky, a força necessária pode ser encontrada apenas “na arena da revolução proletária mundial.” Mas e se a revolução mundial estiver destinada a chegar com algum atraso? Existe algum raio de esperança 336 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para a nossa revolução? Trotsky não oferece nenhum raio de esperança; pois “as contradições na posição de um governo dos trabalhadores . . . poderiam ser resolvidas apenas . . . na arena da revolução proletária mundial.” De acordo com este plano, resta apenas uma perspectiva para a nossa revolução: vegetar em suas próprias contradições e apodrecer enquanto espera pela revolução mundial (Stálin, 1979, p. 126-127). Ao assinalar o quanto a teoria de Trotsky é uma “variedade menchevique”, fala do “desenvolvimento desigual” de Lênin, em sua teoria acerca do imperialismo, mas ignora a teoria do desenvolvimento desigual e combinado de Trotsky que, diga-se de passagem, é parte integrante do raciocínio que ele julga como “desacreditado em uma Rússia contraditória”. Na verdade, Trotsky dizia que era exatamente por conta dessas contradições que a Rússia poderia realizar sua revolução a partir do proletariado cumprindo as tarefas historicamente destinadas à burguesia. Contudo, sinalizava a necessidade da revolução mundial em outros países, e considerava em muito o internacionalismo, algo já de comum acordo em muitos círculos bolcheviques. No momento em questão, Broué assim define o estado político de Trotsky: … rechaçando como “antileninistà’ a afirmação segundo a qual o estado atrasado da sociedade russa poderia ser um obstáculo intransponível para a construção do socialismo somente na URSS, Stalin termina por reduzir todas as dificuldades apenas uma: a ameaça do mundo capitalista que pesa sobre o país. Desta forma, em 1926, baseandose no isolamento da Rússia revolucionário como consequência do fracasso da revolução mundial, surge, na forma de teoria, justificação do que será durante anos a Rússia de Stalin. Entretanto, neste período ainda militavam no partido todos os II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 337 bolcheviques de direita e de esquerda, que deveriam ser convencidos de que o regime instituído era de fato o “socialismo’’ e “ditadura do proletariado’: como todos eles haviam desejado, como Lenin os havia explicado e pelo qual todos eles haviam feito a revolução. (Broué, 2014, p. 220). Segundo Deutscher, Zinoviev e Kamenev admitiram posteriormente que deram início a campanha de deslegitimação de Trotski sem ter nenhuma divergência com os princípios básicos da teoria da revolução permanente. A questão com Stálin é que tomou uma nova proporção, ele percebeu qual argumento suscitava a resposta mais forte na massa dos operários e nos quadros do partido, esta ampla caixa de ressonância humana que constituía sua vox dei. A caixa de ressonância se revelou inesperadamente sensível ao socialismo num só país (Deutscher, 2006, p. 315). O não tratamento da teoria do desenvolvimento desigual e combinado deságua no consequente não entendimento e deturpação, proposital ou não, da própria teoria da revolução permanente uma vez que, para Trotsky, a própria revolução de outubro teria sido resultado das contradições que envolvem as relações técnicas e de propriedade do capitalismo, propiciando a vitória da revolução em um país como a Rússia. O colapso da burguesia na Rússia provocou a ditadura do proletariado, ou seja, que um país atrasado desse um salto adiante em relação aos países avançados. No entanto, o estabelecimento de formas socialistas de propriedade em um país atrasado se chocou com forças produtivas mundiais altamente desenvolvidas e a propriedade capitalista, a Revolução de Outubro gerou, por sua vez, uma contradição entre as forças produtivas 338 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) nacionais, muito insuficientes, e a propriedade socialista (Trotsky, 2023, p. 253). À guisa da conclusão O burocratismo soviético, igualmente, seria produto dessas mesmas contradições, desdobrando-se em um estado que, apesar de operário, era dirigido por uma casta burocrática que vislumbrou a manutenção do poder e eliminação das vozes contestadoras-ainda que vindas de um arcabouço teórico bem estruturado a esquerdaem detrimento da manutenção de sua posição política. Daí a nossa insistência em examinar o contexto no qual a teoria da revolução permanente foi tão vilipendiada e facilmente desacreditada; um cargo na alta hierarquia do governo soviético era um privilégio do qual poucos podiam desfrutar. Soma-se a isso a frágil composição social de revolucionários da época da guerra e da revolução, o carreirismo crescente e as nomeações pelo alto. Se olharmos para os desdobramentos dos anos 1930, com os expurgos, autoconfissões sobre critérios questionáveis, práticas de tortura e até mesmo a existência de inúmeros agentes da GPU mais interessados em combater os trotskistas no exterior do que nas conquistas da revolução internacional, temos que a estabilidade era a maior pretenção da casta burocrática. Pode-se alegar que esses feitos se deram sob a crença convicta na emancipação proletária mundial. Ainda assim, nos parece que a preocupação da vitória da revolução mundial foi suplantada pelo carreirismo, e tudo indica que aqueles dirigentes assim fizeram. Podiam até não saber, mas assim agiram. Daí que se vê os esforços pelas aparências, que irão obter materialidade nas artes do realismo socialista, na intromissão II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 339 do Secretário Geral em assuntos da ciência (tal era a questão do lysenkoismo4) e a restrição de qualquer alternativa questionadora. Vendo tal processo desenrolar-se não é de se surpreender que seus contemporâneos caíssem na tentação de reduzir as complexidades da sociedade soviética comparando-as ao governo nazista. No entanto, as diferentes trajetórias do processo, bem como a própria natureza do regime, nos direciona a uma resposta mais complexa e sofisticada: apesar de ambas as experiências carregarem similaridades, são equivalências e não particularidades únicas e exclusivas de tais regimes. Essa questão nos leva a olhar novamente para a realidade material soviética, que não tinha uma classe econômica dirigente nem atendia a uma. Era parasitada por uma casta burocrática que, em sua maioria, manteve-se no poder até a velhice e foi assegurada justamente pelas bases sociais da revolução. No entanto, essa mesma revolução foi traída, uma vez que seu internacionalismo foi abandonado em detrimento da manutenção desses quadros e do abandono da perspectiva da construção internacional. Tal usurpação “só poderia ser realizada e mantida porque o conteúdo social da ditadura da burocracia é determinado pelas relações produtivas criadas pela revolução proletária” (Trotsky, 2023, p. 331). Eis um aspecto essencial para o descrédito de Trotsky: em uma conjuntura de vulnerabilidade econômica e social gritante, em um país 4 Nas questões pertinentes à ciência da época, conferir: Kojenikov, Alexei. A grande ciência de Stálin: tempos e aventuras de físicos soviéticos no exemplo da biografia política de Lev Landau. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 6-15, jan | jun 2011. Para uma perspectiva a partir da produção filmica temos: Franciscon, Moisés. A disseminação da pseudociência na URSS no filme de Michurin/Life in bloom (1948). Outros Tempos, vol. 19, n. 34, 2022, p. 29-62. ISSN: 1808-8031. 340 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) já exaurido da Guerra Civil e da revolução; uma perspectiva teórica que pregava uma revolução “em permanência” é muito menos atraente que as exaltações que implicavam a teoria do socialismo num só país. Exaltações essas que converteram-se em descrédito de Trotsky, que, segundo Stálin, não acreditava na construção da revolução pelas mãos do proletariado russo, nem do campesinato. Nesse caso, o historiador Felipe Demier (2022) chama corretamente a atenção para a natureza dialética na relação entre o isolamento da sociedade russa e a recepção da teoria do socialismo num só país. A interpretação aponta para o fato dessa perspectiva ser produto do próprio isolamento. Nenhum bolchevique propunha o isolamento até 1924, contudo, as condições sociais concretas que o produziram são determinantes para a sua adesão no interior do partido, em um processo que perpassa os anos subsequentes. Outrossim, a nova ideologia era produto do isolacionismo, fruto de uma burocracia que a gestou, mas ela também contribuiu para o próprio isolamento. Eis a dimensão dialética do processo: a continuidade de revoluções e guerras era algo não estável aos postos da burocracia, o que significa também os fins do seu privilégio. Assim, o socialismo num só país passa a ser uma bandeira adequada à conjuntura, e nesse processo enquadra-se a transformação da internacional comunista e as retóricas no tocante à nacionalidade que Stálin tanto evocava. Essa soma de elementos se deu de forma a erguer uma bandeira que converteu-se em verdadeira prova de fidelidade do partido bolchevique. O fracasso da revolução alemã, vista com pouca atenção pela direção da União Soviética, que à época encontrava-se imersa em suas problemáticas internas, foi de grande peso para os anos subsequentes II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 341 na Rússia socialista. Representava, também, a derrota da revolução na Europa e a desmoralização do partido alemão, ao mesmo tempo em que os partidos comunistas da Polônia e Bulgária passavam por recuos semelhantes. Tais fatores contribuíram para o isolamento do comunismo russo, bem como a descrença na capacidade revolucionária no restante do mundo. Em síntese, as turbulências internas, as fragmentações e desmantelamentos pelo qual o Partido Bolchevique passou desde 1917 até 1923 foram elementares para o isolamento da revolução, de forma que a chamada teoria do socialismo em um só país não pareceu um elemento estranho, mas sim uma possibilidade tática. Em um posfácio escrito em 1947, Victor Serge realiza um rápido balanço acerca dessa conjuntura, entre outras considerações , assinala que com a derrota alemã os bolcheviques perderam o contato com as massas do Ocidente. A Internacional Comunista tornou-se um apêndice do partido soviético. A doutrina do “socialismo num só país” nasceu finalmente dessa decepção. Por sua vez, as táticas estúpidas e até mesmo perversas da Internacional stalinizada facilitaram a vitória do nazismo na Alemanha (Serge, 2007, p. 495). A questão aqui é que a natureza da ideia de socialismo num só país tinha dupla função, diga-se a de legitimação teórica, em detrimento de seu oponente, a teoria da revolução permanente, e a sagaz assimilação por parte da burocracia, que deu atenção à nova composição do partido pós-guerra civil. Com grande parte dos revolucionários de outubro já não mais presentes5, com a deflagração do quadro de total miséria e vulnerabilidade econômica pela qual 5 Em 1924 os que pertenciam ao Partido bolchevique desde os primeiros dias de 1917 eram menos de 1% do partido (DEUTSCHER, 1968, p. 165). 342 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) passavam as massas proletárias e camponesas, a exaltação de uma perspectiva que envolve necessariamente a continuidade de conquistas revolucionárias, o que naturalmente envolve o conflito armado, é muito menos atraente do que aquela que opta por “crescer para depois conquistar”. E é justamente deste “estado espírito que desenvolveuse, aos poucos, uma atitude de auto-suficiência revolucionária e auto centralismo que encontrariam sua expressão na doutrina do Socialismo num Único País” (Deutscher, 1968, p. 157). Ao tomar conhecimento do estado em que chegava os debates nas páginas do Pravda, no dia 16 de dezembro Krupskaia afirma que Trotsky não veio ao mundo ontem e sabe que um artigo no tom de “As lições de Outubro” é obrigado a evocar o mesmo tom na controvérsia que se seguiu. Mas esta não é a questão. A questão é que o Camarada Trotsky nos convida a estudar as “Lições de Outubro,”, mas não estabelece as linhas certas para este estudo. Ele propõe que estudemos o papel desempenhado por esta ou aquela pessoa em outubro, o papel desempenhado por esta ou aquela tendência no Comitê Central, etc (Krupskaia, 2007- tradução nossa).6 É nesse aspecto que se assentará a principal crítica à concepção de Trotsky: nessa leitura a partir das páginas de Lições de outubro, ele havia subestimado o papel do partido em detrimento do papel dos dirigentes que foi colocado em foco nas páginas de seu prefácio. O Secretariado também articula-se através de centenas de colunas de jornais, organismos, escolas, propagandistas e oradores: o conceito de “trotskismo” é aqui vilipendiado e assimilado a aquele que era “porta- 6 Original em inglês disponível em: https://www.marxists.org/archive/krupskaya/ works/october.htm II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 343 voz das influências pequeno-burguesas” e que sempre subestimou os camponeses, ansiando o rompimento da aliança dos últimos com o proletariado. Partindo de tais concepções, recomenda a planificação, procedimento digno da autocracia e a industrialização à custa dos camponeses, esforçando-se por eliminar, a qualquer custo, a direção que conseguiu desmascará-lo. Exposto assim, o “leninismo” se reduz a uma justificativa da política atual, ao uso da mão de ferro do partido e às concessões feitas aos camponeses (Broué, 2014, p. 202). Em 1925, mais precisamente no dia 17 de janeiro, uma resolução do Comitê Central indica a permanência das investidas que visavam “desmascarar” o “antibolchevismo do trotskismo”. Dessa forma, propõe a introdução de programas de ensino público que ressaltam as “deformações pequeno-burguesas do trotskismo”. O resultado é a exigência da expulsão de Trotsky do partido por Zinoviev e Kamenev. Stálin opõe-se, mostrando-se mais articulado, no quesito das aparências, que seus aliados. Assim, contentam-se com o seu afastamento do cargo de Comissariado de Guerra e no Comitê Revolucionário de Guerra. Acerca desse momento, Carlos Prado observa que: No início de 1925 ficou claro que o debate promovido por Trotski em As lições de outubro havia lhe proporcionado uma nova derrota.38 Ele lançou a discussão, mas acabou sofrendo uma avalanche de novas acusações, das quais não teve sequer a possibilidade de se defender, afinal, já não havia qualquer debate verdadeiro, mas apenas o controle da burocracia sobre a imprensa partidária (...)O Triunvirato utilizou do aparelho partidário para reescrever a história 344 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) da insurreição de outubro e para ressuscitar velhas polêmicas e apresentar Trotski como antibolchevique e contrarrevolucionário. No debate entre a “revolução nacional” e a “revolução internacional”, distorceram os textos de Lenin para desqualificar a teoria da “revolução permanente”, apresentou-a como contrária aos camponeses e antinacionalista. Nos anos que se seguiram, o revisionismo e a falsificação se tornaram ainda mais presentes, chegando a apagar personagens não apenas dos livros de história, mas até mesmo das fotografias (Prado, 2017, p. 13-14). A questão que Prado pontua acerca do “antinacionalismo” é significativa, principalmente diante das acusações de que a teoria da revolução permanente, ao pontuar a necessidade da revolução internacional, desacreditava dos camponeses, do proletariado russo e, acima de tudo, da nação russa. Esses apelos eram amalgamados à defesa do socialismo em um só país, fazendo a ponte necessária com o histórico e milenar nacionalismo russo. Em momentos posteriores, tal qual a Segunda Guerra Mundial, Stálin irá usufruir dele em larga escala a favor da defesa do território nacional. Não à toa, o evento é chamado na Rússia de “ Grande Guerra Patriótica” até os dias de hoje. Ao examinar certa nostalgia do passado soviético na Rússia contemporânea, Henrique Canary percebe uma manobra parecida ainda nos dias de hoje. Contudo, o autor alerta que esse olhar louvável para o passado não se assenta em uma perspectiva de reavivamento do socialismo, mas justamente ao contrário; trata-se de uma notável transformação no campo da verdade histórica no qual se confluem reavivamentos espontâneos e o usufruto do Estado em benefício de uma história única, assim como moldagem de uma memória nacional vitoriosa e de grandes feitos. Assim, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 345 dizer que a nostalgia soviética é um fenômeno espontâneo não significa minimizar a importância da intervenção do Estado em todo o processo. Isso é assim porque essa nova visão de mundo, de Rússia e do destino do povo russo se manifesta hoje também em uma política de Estado, que se apoia na nostalgia soviética para promover o patriotismo, o militarismo e uma compreensão muito particular de “unidade nacional” (Canary, 2017, p.). Crane Brinton, em Anatomia das Revoluções, ao traçar paralelos entre as revoluções inglesa, francesa e russa sugere que os acontecimentos revolucionários passam por uma febre que é seguida de uma convalescença. No caso dos bolcheviques, o momento dos debates internos dos anos 1920 representaria um tempo de aguda crise, que chegaria a chamada convalescença através do primeiro plano quinquenal, e o maior assentamento da burocracia nos anos 1930. Nessa linha, o autor argumenta que em 1917 o nacionalismo havia sido abandonado, contudo, defende que ele passou por uma certa morfologia, adaptando-se a realidade do modelo federalista russo: Nos primeiros dias da Revolução Russa, o nacionalismo, no seu sentido agressivo, foi virtualmente abandonado de acordo com as melhores doutrinas de Marx; Num sentido puramente cultural, o nacionalismo tornou-se a base querida do federalismo soviético. Para muitos admiradores da Revolução Russa, não será claro que a Rússia também se ajustou ao nosso modelo, que se revestiu das uniformidades com que o proselitismo revolucionário messiânico noutros países transforma o nacionalismo agressivo naquilo que nos era familiar (Brinton, 1962, p. 259). 346 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Para além das evocações nacionais, a teoria do socialismo em um só país foi o braço teórico da legitimação da emergente burocracia, obtendo um papel elementar na rejeição da concepção da revolução permanente, bem como as distorções argumentativas e o esforço posterior para o afastamento entre as concepções de Lênin e Trotsky, indubitavelmente presentes no discurso oficial. Um bode expiatório fora criado em simultâneo ao encaminhamento da legitimação dos quadros políticos da burocracia, com destaque especial para a figura de Stálin. Referências bibliográficas BIANCHI, Alvaro . O primado da política: revolução permanente e transição. 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Hay algo en el joven Trotsky que Alain Brossat (BROSSAT, 1976) llama “concepción sociologista” de la hegemonía, que luego Juan Dal Maso toma, en el sentido de marcar mucho el ímpetu del movimiento de masas como la clave del proceso revolucionario, que ponía en el centro a las clases y al movimiento de masas y su énfasis estaba puesto en el proceso y subestimaba la organización partidaria centralizada. Rosa Luxemburg tiene una posición algo parecida en esas primeras críticas. En la polémica con Lenin esta última tenía una idea de que la organización partidaria y el movimiento obrero en su 1 Ponencia expuesta en el simposio temático virtual número 3, “Relaciones posibles entre Trotsky y otros marxistas” en el II° Encuentro Internacional León Trotsky de San Pablo, Brasil, 22 de agosto de 2023. 2 Guillermo Iturbide (La Plata, Argentina, 1976): Licenciado en Comunicación Social (FPyCS-UNLP). Forma parte del comité editorial del semanario Ideas de Izquierda. Compiló, tradujo y prologó Rosa Luxemburg, Socialismo o barbarie (2021) y AA.VV., Marxistas en la Primera Guerra Mundial (2014), entre otros libros. Participa en la traducción y edición de las Obras Escogidas de León Trotsky de Ediciones IPS y actualmente también en la traducción de los Cuadernos de los trotskistas de la prisión de Verjneuralsk (1932-33). Milita en el Partido de los Trabajadores Socialistas de Argentina (PTS), parte de la Fracción Trotskista – Cuarta Internacional (FT-CI). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 353 conjunto son una suerte de equivalentes, retomando de alguna manera cierta idea del “partido político en sentido amplio” como la clase en su conjunto, que estaba en algunas formulaciones tempranas de Marx, que restringía a los comunistas a ser solo la parte más decidida de ese partido, pero, en estas nuevas condiciones. En Rosa Luxemburg es algo más acotado y el “partido histórico” pasa a ser el movimiento obrero, que es una parte relativamente más avanzada de la clase obrera en su conjunto, es decir, su parte organizada aunque sea económicamente pero conducida y puesta en acción por sindicatos que se consideran socialistas. En tanto, Lenin planteaba la no identidad entre movimiento obrero y partido, digamos, retomando el otro polo de la idea de Marx, la de que los comunistas, al ser la parte más decidida de la clase obrera de alguna manera tienen una suerte de agrupamiento y un programa propio como el que expresaba la Liga de los Comunistas y su Manifiesto. El rechazo de Trotsky y Luxemburg a las ideas de Lenin en cuanto a la organización partidaria se ligaba a una valoración negativa de una suerte de jacobinismo residual, una concepción autoritaria de la revolución como una suerte de sustitucionismo de las masas por los líderes, que emparentaban también con la tradición de los populistas rusos. Hace poco traduje desde el ruso dos trabajos de Trotsky que estaban inéditos en castellano, “Antes del 9 de enero” y “Tras el levantamiento de San Petersburgo”, ambos de entre fines de 1904 y comienzos de 1905, donde se describe la idea de la autoactividad de las masas con pinceladas similares. En esos textos, Trotsky introduce los primeros elementos de su teoría de la revolución permanente. Por ejemplo, en “Tras el levantamiento de San Petersburgo”, Trotsky plantea: “Pues lo que se necesita ahora no son ardientes ilusiones sino 354 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) una clara conciencia revolucionaria, un plan de acción definido, una organización revolucionaria flexible” (TROTSKY, 2023). Cuando se refiere a las “ilusiones ardientes” se refiere a la aparición de figuras “milagrosas” como el cura Gapón que lideró el movimiento del 9 de enero de 1905. Trotsky, en 1906, hace una suerte de prólogo a este texto donde aclara que finalmente se encontró ese tipo de organización, y que se trataba del soviet de diputados obreros surgido a mediados del año anterior y de cuyo consejo de San Petersburgo él fue el presidente. Ahí también hay un elemento interesante tanto en Trotsky como en Rosa Luxemburg sobre la insurrección: “Marchar hacia la revolución no significa, necesariamente, equiparse para un levantamiento armado en un día determinado con anterioridad. No se puede designar un día y una hora para una revolución como para una manifestación. El pueblo nunca ha hecho revoluciones siguiendo una orden. Pero lo que puede hacerse es, en vista de la catástrofe inevitable que se viene, elegir las posiciones más convenientes, armar e inspirar a las masas con una consigna revolucionaria, llevar en simultáneo a todas las reservas al campo de acción, ejercitarlas en el arte de la guerra, mantenerlas en armas todo el tiempo y, en el momento oportuno, hacer sonar la alarma en toda la línea” (TROTSKY, 2023, pp. 76-77). Más adelante volveremos sobre este tema cuando veamos cómo recapituló el Trotsky post-revolución de Octubre en 1923 sobre este tema, pero por ahora digamos que se emparenta con los reparos hacia los elementos conspirativos que la propia Rosa Luxemburg ponía previamente a la revolución de 1917 al respecto sobre los preparativos insurreccionales, a los que tendía a identificar con un deslice hacia el sustitucionismo. A veces hay alguna “vulgata” que suele afirmar que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 355 Rosa Luxemburg estaba en contra de la idea de insurrección, pero la realidad es, como suele ocurrir, más compleja: “Esta vez, por el desarrollo lógico interno de los acontecimientos sucesivos, la huelga de masas se transformó en insurrección abierta, en barricadas armadas y, en Moscú, en lucha callejera. Las jornadas de diciembre de Moscú cerraron el primer año de la revolución, que tuvo una gran riqueza en experiencias, y constituyeron el punto culminante de la línea ascendente de la acción política y del movimiento de la huelga de masas. Los acontecimientos de Moscú muestran igualmente, como una pequeña muestra, el desarrollo lógico y el futuro del movimiento revolucionario de conjunto: la culminación inevitable en una insurrección general abierta, que no puede darse de otra forma que a través de la escuela de una serie de insurrecciones parciales preparatorias, las cuales terminan en ‘derrotas’ parciales que, consideradas aisladamente, pueden parecer ‘prematuras’” (LUXEMBURG, 2021, pp. 183-184). Entonces, encontramos en esta etapa una coincidencia entre Trotsky y Luxemburg en cuanto al énfasis en la autoactividad de las masas y la crítica al “jacobinismo” conspirativo. En el texto de donde sacamos la cita anterior, Huelga de masas, partido y sindicatos proviene su idea de que la conciencia política se desarrolla entre un estado latente y teórico y otro práctico y activo. Así desarrolla una visión no gradual ni evolutiva del desarrollo de la conciencia, en contraposición a la socialdemocracia alemana que planteaba que era necesario un enorme nivel de organización para recién después organizar a la clase en general y las reservas estratégicas de la clase trabajadora. Pero sin contar Rusia con la posibilidad de una organización sindical que no fuera totalmente clandestina y limitada era imposible plantearse una 356 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) organización según ese esquema clásico. A su vez, Trotsky mismo reconoce que su primera hipótesis revolucionaria está muy ligada a la idea de la huelga de masas, muy parecida al modelo de Rosa Luxemburg. Esta lógica va formando un armazón de pensamiento sobre cómo construir una fuerza social, en el caso de Trotsky para habilitar la hegemonía de clase trabajadora sobre los campesinos, que está muy enlazada con los debates muy posteriores sobre el programa transicional. Trotsky no piensa en un programa solamente en el sentido de cómo sería un programa de la clase obrera como clase en el poder, sino también con la idea de cómo, mediante el desarrollo de la autoactividad de las masas, tender ese puente que va construyendo esa fuerza social. Se podría decir que hay muchos ecos de una idea luxemburguiana ahí. La paradoja es que lo que Luxemburg considera en su modelo de 1905-06 que tiende a organizar esa fuerza social construida es la huelga de masas misma, mientras que Trotsky hace hincapié en la cristalización organizativa en los soviets. La casi “ausencia” de los soviets en esa obra de Rosa Luxemburg podría deberse a que se trataba de un trabajo pensado para ser leído en Alemania y en Occidente, espacios con una saturación de mediaciones organizativas y de sindicatos, mientras que en Rusia la ausencia de todas ellas haría de los soviets instituciones demasiado “rusas”. Si el marxismo hubiera generalizado la idea de los organismos de autogobierno de las masas antes de la experiencia de 1917 y sobre todo de la Historia de la Revolución Rusa de Trotsky, tal vez la obra de Rosa Luxemburg debería haberse llamado “Huelga de masas, partido y soviets”, o “estrategia insurreccional, partido y soviets”. No obstante, Rosa Luxemburg, algunos años más tarde, le asignará a los soviets más importancia como instancias de organización. La idea de reservas II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 357 estratégicas implica la necesidad de poner en acción en los momentos decisivos de la revolución al conjunto de la clase trabajadora y no solamente a sus elementos más activos y conscientes. Luxemburg, muy tempranamente, es consciente de esta tarea y de que tanto los sindicatos (y mucho menos el partido) son incapaces de organizar el conjunto de la clase, es decir, de ser el partido obrero en sentido amplio e histórico en el sentido de Marx, por lo cual hay un vacío teórico allí, hasta que los soviets también para Luxemburg pasen a ser ese tipo de organización del conjunto de la clase trabajadora. Un programa de transición entre la reforma social y la revolución En la construcción de la fuerza social hegemónica de la revolución, el germen de la idea de programa transicional ya se encuentra en ¿Reforma social o revolución? de Rosa Luxemburg. Porque la pelea por las reformas tiene que darse de manera tal que construya un tipo de subjetividad que haga de ella punto de apoyo para la conquista del poder político (y, según Rosa Luxemburg, el partido socialista únicamente puede ser partido de gobierno “sobre las ruinas del capitalismo”, no manteniendo el Estado tal cual es). Es una lógica adelantadísima a su tiempo y que la Internacional Comunista va a empezar a sistematizar como forma de intervención política en sus primeros congresos y que luego la Cuarta Internacional daría una forma acabada como su programa fundacional en 1938. Esta forma de construir una fuerza social revolucionaria como un pasaje de la conciencia teórica y latente de las tácticas, a la conciencia práctica y activa del despliegue del contenido del programa revolucionario en la realidad, que está en el corazón de 358 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la lógica del programa de transición, es la que vuelve a aparecer en la polémica entre Luxemburg y Kautsky sobre cómo luchar por la conquista del sufragio universal en Prusia en 1910, sobre cómo forjar la subjetividad revolucionaria a partir de la autoactividad de las masas, en que su experiencia cotidiana, que en el momento de pasar al momento insurreccional esa subjetividad esté previamente forjada en esa experiencia. En su experiencia en la revolución alemana de 1918, se podría decir que Rosa Luxemburg se adelanta un poco a Trotsky en “sacar de Rusia” la estrategia de la construcción de soviets. Para una gran parte de las interpretaciones de lo que sería la estrategia luxemburguista, los consejos obreros alemanes habrían sido formas auxiliares de un gobierno revolucionario, una suerte de “cámara social” para contrarrestar las tendencias contrarrevolucionarias pero de ninguna manera determinar el gobierno de la revolución. Pero para la revolucionaria polaca los consejos solo valían la pena como organizaciones revolucionarias en tanto existieran como un poder alternativo al del “gobierno de la revolución” que representaba el llamado Consejo de Comisarios del Pueblo (que adoptó ese nombre conscientemente copiado del gobierno revolucionario ruso surgido en Octubre de 1917 como una manera de sembrar confusión en los trabajadores y sembrar ilusiones en sus promesas de “socialización”) encabezado por Friedrich Ebert. Los consejos obreros alemanes entonces eran vistos por Luxemburg como la exclusiva organización de un futuro gobierno revolucionario. En 1923, Trotsky publica un artículo sobre la revolución alemana que se estaba desarrollando en ese momento, llamado “¿Es posible hacer una revolución o una contrarrevolución en una fecha fija?”. En ese trabajo parece como si ajustara cuentas con algunos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 359 puntos de su más temprana conciencia teórica, la de la época de “Antes del 9 de enero” y “Tras el levantamiento de San Petersburgo”, los textos que mencionábamos más arriba. En ellos tendía a aminorar los preparativos insurreccionales como una especie de rezago de la época populista. Ahora, tras la experiencia de Octubre, esto aparecía enfocado de otra manera: “El Partido Comunista no puede tener una actitud de espera ante el creciente movimiento revolucionario del proletariado. (…) El Partido Comunista no puede utilizar la ley liberal según la cual las revoluciones ocurren pero jamás se hacen y, por lo tanto, no se pueden fijar para una fecha específica. (…) Si el país está atravesando una profunda crisis social, si las contradicciones se agravan al extremo y las masas trabajadoras están en constante fermento; si el partido evidentemente se apoya en la indiscutible mayoría de los trabajadores y, en consecuencia, en todos los elementos más activos, con más consciencia de clase, los más sacrificados; entonces la tarea a la que se enfrenta el partido (la única posible bajo esas circunstancias) es fijar el momento preciso en el futuro inmediato, momento en el que la situación revolucionaria favorable no pueda volverse abruptamente en nuestra contra, y entonces concentrar todos nuestros esfuerzos en la preparación del golpe, subordinar toda la política y la organización al objetivo militar, para asestar ese golpe con la máxima potencia” (TROTSKY, 2016, pp. 662-663). Lo mismo puede decirse de la actitud de Rosa Luxemburg frente a la insurrección en la revolución alemana de 1918-19. Por un lado, en un comienzo se opone a la tentativa de insurrección de los primeros días de enero de 1919 organizada por el comité de acción compuesto en su mayoría por militantes del USPD y de los Delegados 360 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Revolucionarios y una minoría de dos comunistas, por considerarla extremadamente prematura y destinada a la derrota, y contando con la perspectiva de una insurrección futura mejor organizada donde uno de los indicadores de la factibilidad de la toma del poder fuera que el PC alemán hubiera derrotado políticamente y liquidado al centrista y vacilante Partido Socialdemócrata Independiente (USPD), del cual los espartaquistas habían formado parte durante casi dos años. Sin embargo, Luxemburg, una vez que la tentativa insurreccional se puso en marcha y era imposible detenerla, se plegó a ella y buscó que triunfara por todos los medios posibles (ver centralmente “El fracaso de los dirigentes”, en LUXEMBURG, 2021, pp. 545-548). Aquí claramente en Trotsky y Luxemburg la ruptura con su conciencia anterior se debe a la experiencia de la organización de la insurrección de Octubre. Y en eso llegó Gramsci Y aquí llegamos a la asociación que hace Gramsci en los Cuadernos de la cárcel entre Luxemburg y Trotsky. Es muy conocida su crítica en ellos a la teoría de la revolución permanente, que en varios pasajes tiende a asociar con la llamada “teoría de la ofensiva” de los llamados comunistas de izquierda, una fracción de la Tercera Internacional que sacaba la conclusión de que las lecciones de la Revolución de Octubre se podían sintetizar en terminar con la separación entre un programa mínimo reformista y un programa máximo socialista dando las batallas “mínimas” y “parciales” con métodos insurreccionales y maximalistas, la pura “guerra de movimiento” como una “revolución ininterrumpida”, enfoque fuertemente combatido por el propio Trotsky y por Lenin: II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 361 “La teoría de Bronstein [Trotsky] puede compararse con la de ciertos sindicalistas franceses sobre la huelga general, o con la teoría de Rosa [Luxemburg] en el folleto traducido por Alessandri. El folleto de Rosa y las teorías de Rosa han influido, por lo demás, en los sindicalistas franceses (…) también depende[n] en parte, de la teoría de la espontaneidad. (…) A propósito de los conceptos de guerra de movimiento y guerra de posición en el arte militar y los conceptos relativos en el arte político, hay que recordar el librito de Rosa [Huelga de masas, partido y sindicatos] (…) En el librito se teorizan un poco precipitada y hasta superficialmente las experiencias histórica de 1905: pues Rosa descuidó los elementos “voluntarios” y organizativos que en aquellos acontecimientos fueron mucho más numerosos y eficaces que lo que ella tendía a creer, por cierto prejuicio suyo “economicista” y espontaneísta. De todos modos, ese librito (y otros ensayos de la misma autora) es uno de los documentos más significativos de la teorización de la guerra de movimiento aplicada al arte político” (GRAMSCI, 1999, pp. 284-285 y 419). No hay espacio aquí para entrar en una discusión extensa sobre Gramsci y estas discusiones sobre Trotsky, para lo cual remito al libro de Juan Dal Maso (DAL MASO, 2018), pero me parece que lo que Gramsci consideraba como “guerra de posiciones” va muy en el sentido de lo que Rosa Luxemburg consideraba como realpolitik revolucionaria y la idea de programa transicional en Trotsky. Para esto hay que dejar de lado cierta “vulgata” que aún existe dentro de una parte del movimiento trotskista que lleva a un rechazo hacia la figura de Gramsci por sus críticas a Trotsky y algunos de sus posicionamientos en los comienzos de la lucha al interior del Partido Bolchevique, o por ejemplo a la manera en que un poco burdamente 362 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) se tiende a relacionar la contraposición entre guerra de maniobra y guerra de posición a la estrategia kautskiana, algo que en parte es un efecto indeseado de cierta lectura de Las antinomias de Antonio Gramsci de Perry Anderson. Que, de vuelta, es un tema que ha sido resuelto por las diversas críticas a esas interpretaciones y que pueden consultarse en la obra de Juan Dal Maso. Me parece que es productivo e interesante analizar los motivos de esta inclusión y esta discusión, donde la lectura de Gramsci creo que está un poco determinada por su polémica al interior del comunismo italiano contra Amadeo Bordiga, que efectivamente forma parte de la tendencia internacional de los “comunistas de izquierda” asociados a la teoría de la ofensiva (donde tenían mucho peso el KAPD alemán, el comunismo austríaco, figuras como György Lukács y los comunistas húngaros en sus comienzos) y quien, además, durante un breve tiempo mantuvo cierta relación política con Trotsky a partir del origen de la Oposición de Izquierda en el Partido Bolchevique. Bordiga, por caso, incluso solo aceptaba a los soviets para organizar el gobierno de la clase trabajadora únicamente luego de la toma del poder pero consideraba que no cumplían ningún rol en la pelea previa por ese poder. La asociación de Luxemburg con una posición similar a la de los sindicalistas revolucionarios italianos, franceses o alemanes y transformarla en una “comunista de izquierda” es muy difícil de sostener. Por poner un ejemplo, concepciones de Luxemburg muy opuestas a la panacea de la teoría de la ofensiva se pueden leer en un texto suyo muy importante como “Lecciones de las tres Dumas”, de mayo de 1908: “La profunda decepción por la larga pausa en la lucha revolucionaria es, por supuesto, solo el reverso de la suposición II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 363 de que la revolución puede y debe ser impulsada en una línea progresiva ininterrumpida de enfrentamientos y victorias. La base de tal expectativa es la opinión de que la revolución es un trastorno puramente político, para el que la sociedad está supuestamente preparada internamente y perfectamente madura desde el principio. Por el contrario, toda revolución es una revolución social, es decir, un período de maduración interna extremadamente tensa de la sociedad, un período de rápida formación, diferenciación y autoesclarecimiento de las clases. El curso inmediato de la agitación política se vuelve confuso y complicado por este proceso de maduración de la clase; periódicamente inhibe la acción revolucionaria en su apariencia externa para procesar sus resultados y reunir material para la acción posterior. Para entender si la revolución solo está pasando por una pausa temporal más o menos larga, o si realmente ha llegado a su fin, es necesario tomar conciencia de las tareas que se presentan ante ella como una necesidad histórica y de las condiciones concretas para el cumplimiento de estas tareas después de que la lucha de clases se haya desarrollado en el curso de la revolución y bajo su influencia” (LUXEMBURG, 2015, p. 249). La opinión de Gramsci sobre Luxemburg como “economicista” creo que se deriva de cierta impresión que da la autora polaca en Huelga de masas, partido y sindicatos cuando caracteriza a la fase más radical de la revolución de 1905 como su etapa de “lucha económica”. Allí, por la forma en que parece ignorar el rol organizativo de los soviets (a los que solo menciona una vez y al pasar) y en cambio la idea de que el movimiento de la huelga de masas en sí es la organizadora, pareciera abonar cierta visión de una conexión bastante inmediata entre la lucha sindical y la insurrección, aunque posiblemente más bien le ponga 364 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) el nombre de “etapa económica” a lo que en realidad significa la etapa en que las clases sociales se diferencian netamente y hay una lucha de “clase contra clase”, podríamos decir, donde los elementos anticapitalistas se despliegan totalmente, diferente a la primera etapa de la revolución de 1905 que ella llama “fase política” en la que burguesía y proletariado parecían ir de la mano en una revolución puramente política, sin cuestionar el régimen económico y social. Dicho sea de paso, el PC alemán, en los primeros meses de 1919, tras el asesinato de Rosa Luxemburg y bajo la conducción de Paul Levi (también parte de la vieja guardia de la Liga Espartaco) parece tener una visión parecida que pone un signo igual entre las huelgas y las insurrecciones en la revolución, ver, por ejemplo, la carta de Paul Levi a Lenin (citada en FOWKES, 1984, p. 31). Pero si tomamos la idea de Gramsci de que la lógica de la guerra de posiciones es la traducción del bolchevismo a Occidente de la etapa de la preparación subjetiva de la revolución mediante la movilización, y si dejamos a un lado las interpretaciones reformistas ya largamente desacreditadas y rebatidas que la entienden literalmente como la conquista de posiciones parlamentarias de manera pacífica, es posible ligarlo a la forma en que Rosa Luxemburg concebía cómo había que hacer política en el día a día, haciendo un puente entre la lucha por reformas reales y la preparación subjetiva para la revolución (realpolitik revolucionaria) y la lógica del programa de transición de Trotsky. Referencias bibliograficas BROSSAT, Alain. En los orígenes de la revolución permanente. El pensamiento político del joven Trotski. Madrid: Siglo XXI, 1976. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 365 DAL MASO, Juan. Hegemonía y lucha de clases. Tres ensayos sobre Trotsky, Gramsci y el marxismo. Buenos Aires: Ediciones IPS-CEIP, 2018. FOWKES, Ben. Communism in Germany under the Weimar Republic. Londres: Macmillan Press, 1984. GRAMSCI, Antonio. Antología. México DF/Madrid: Siglo XXI, 1999. LUXEMBURG, Rosa. Arbeiterrevolution 1905/06. Polnische Texte. Berlín: Karl Dietz Verlag, 2015. LUXEMBURG, Rosa. Socialismo o barbarie (compilación). Buenos Aires: Ediciones IPS-CEIP, 2021. TROTSKY, León. La teoría de la revolución permanente. Buenos Aires: Ediciones IPS-CEIP, 2023. TROTSKY, León. Los primeros 5 años de la Internacional Comunista. Buenos Aires: Ediciones IPS-CEIP, 2016. TROTSKY, León. Tras el levantamiento de San Petersburgo (enero de 1905). Armas de la Crítica, Buenos Aires, n. 48, 2023, https://www. laizquierdadiario.com/Tras-el-levantamiento-de-San-Petersburgoenero-de-1905 366 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) El trotskismo y Louis Althusser Marcelo Novello1 1. Introducción Para comenzar, quisiera enviar un gran saludo militante a los todos los participantes de este II Encontro Internacional Léon Trótski; y obviamente también un sincero agradecimiento a los organizadores del Evento. Comencemos diciendo que el filósofo francés Louis Althusser generó, desde 1964 y hasta su muerte en octubre del ‘90, animadversión e inspiración por partes iguales. Sus textos adquirieron difusión mundial, pueden hallarse sin dificultad en los syllabus universitarios de los cinco continentes, e incluso algunos textos de divulgación escritos por sus discípulos se han vendido por cientos de miles (HARNECKER, 1969). Es decir: Althusser no es ningún “tapado” que debiera ser rescatado de la “enorme condescendencia de la posteridad”, para tomar prestada la elegante frase de un historiador socialista británico. En Brasil, algunos intelectuales históricos con militancia en el PCB (Partido Comunista Brasileiro) como Caio Prado Jr. y Carlos Nelson Coutinho, fueron muy críticos de la obra de Althusser; mientras que actualmente hay jóvenes intelectuales del PCB (por ejemplo, Jones Manoel y Gabriel Landi) que, por el contrario, reivindican abiertamente la obra del filósofo francés. En Argentina, nos resulta muy interesante (y polémico) un libro reciente con el título “Althusser y Sacristán. Itinerarios de dos comunistas críticos” 1 Investigador independiente; participante también del evento virtual Trótski en Permanência (2021), cuando presentó una Ponencia sobre “El trotskismo en la Revolución Portuguesa 1974-75”. Contacto: marcelonovello@hotmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 367 escrito por Juan Dal Maso y Ariel Petruccelli (ambos militantes del Frente de Izquierda y los Trabajadores) y publicado a fines del año 2020 por la casa editorial del PTS - Partido de los Trabajadores Socialistas (organización hermana del MRT en Brasil), que parece venir a querer reescribir la historia. El libro comienza preguntando ingenuamente “qué relevancia podría tener hoy su pensamiento para la cultura revolucionaria” (DAL MASO & PETRUCCELLI,2020, p.7). Pero en el caso de Louis Althusser, y sin ir muy lejos en la cultura revolucionaria (¿?) en la cual el Frente de Izquierda y los Trabajadores argentino se supondría que debiera abrevar –tratándose de un frente político de 4 organizaciones que se reclaman trotskistas– ese asunto de la “relevancia” ya debiera estar bastante claro después de los ríos de tinta escritos sobre el tema desde los años ‘60. Por ejemplo, las publicaciones del Secretariado Unificado de la IV Internacional (de inveterado seguidismo a las corrientes políticas y tendencias intelectuales más diversas que pudieran ser identificadas como “nueva vanguardia”) fueron siempre extremadamente críticas hacia Althusser. Señalemos, por ejemplo: un artículo polémico en la revista Quatriéme Internationale (MANDEL, N° 41, 1970), también el libro colectivo “Contre Althusser” de 1974 que reunía las contribuciones de insignes intelectuales ligados al SU mandelista (Jean-Marie Vincent, Daniel Bensaïd, Denise Avenas, Alain Brossat, etc) y el dossier de Daniel Bensaid “Les intellectueles du PCF, dos au stalinisme” publicado en 1973 por el semanario Rouge. Mientras que algo similar ocurrió con Nahuel Moreno (MORENO, 1973), y en anteriores polémicas desde las filas del mismo PTS argentino (CASTILLO, 1999). En una abrumadora coincidencia teórica que no mereciera dejar de resaltarse, digamos que también se opusieron a las implicancias althusserianas 368 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) las publicaciones del lambertismo (THIVEL,1972) y del healyismo (SLAUGHTER,1979), sectores por décadas enfrentados al oficialismo mandelista. 2. Una rehabilitación política de Althusser Siendo conscientes del riesgo de spoilear a la audiencia las conclusiones del libro de Dal Maso y Petruccelli, diremos no obstante que los autores celebran a Althusser como un comunista crítico por “los innumerables aportes a la reflexión teórica … con aciertos y errores… [que] muestran que su potencia crítica podía ir más lejos” (DAL MASO & PETRUCCELLI, p.279). El problema no está ni en nuestra supuesta falta de voluntad para sostener un “diálogo crítico con diversos cuerpos teóricos”, ni en el objeto de análisis del libro (NOVELLO, 1997) si no, exclusivamente, en su abordaje: mayormente expositivo (¡¡como si en 2020 hiciera falta otro libro más sobre teoría althusseriana!!), con escasas críticas y plagado de omisiones. ¿Exageramos? Lamentablemente, no. Recordemos, especialmente para los camaradas más jóvenes, algunas de las posiciones políticas de Althusser. En 1974, en su libro Para una crítica de la práctica teórica – Respuesta a John Lewis puede leerse, por ejemplo, que “Stalin no puede ser reducido a la desviación que nosotros vinculamos a su nombre. Tuvo otros méritos ante la historia. Comprendió que era necesario renunciar al milagro inminente de la ‘revolución mundial’ y emprender la ‘construcción del socialismo’ en un solo país” (ALTHUSSER, 1974, p.100). Para Althusser la desviación estaliniana surgió recién en los años ‘30 y “guardando bien todas las proporciones … pero más allá de los fenómenos más visibles, que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 369 son, a pesar de su extremada gravedad, históricamente secundarios … la desviación estaliniana puede ser considerada… una forma de la revancha póstuma de la II Internacional, como un resurgimiento de su tendencia principal [que] era en el fondo, como sabemos, economicista” (ALTHUSSER, 1974, p.98-9). Entonces vemos que la fórmula althusseriana para explicar el estalinismo era de una pobreza conceptual (e histórica) espantosa, e indigna de un “comunista crítico”, podio al cual Dal Maso/Petruccelli quisieran subir al filósofo francés. Se trataba de una ecuación = metafísica (“revancha póstuma”) + teoricismo (la misma naturaleza de la “desviación”) + idealismo (el dúo economicismo/humanismo como verdadero generador de hechos históricos, sin interrogar las fuerzas materiales actuando detrás de esas ideas). Realmente tenía razón el mandelista Daniel Bensaïd cuando decía que la explicación althusseriana borraba de un plumazo 40 años de historia del movimiento obrero (BENSAÏD, 1973, p.12). Unas páginas más atrás en este mismo libro, en una amalgama digna de Vyshinsky, dirá Althusser que el trotskismo representó sólo una crítica de derecha al estalinismo, exactamente en el mismo plano que el anti-comunismo burgués, que “se aferra y se limita a ciertos aspectos de la superestructura jurídica y, claro está, puede entonces invocar al Hombre y sus Derechos, y oponer el Hombre a la violación de sus Derechos (o los simples ‘consejos obreros’ a la ‘burocracia’)” (ALTHUSSER, 1974, p.90). Para Althusser la denuncia de Khrushchev de los crímenes de Stalin en el XX Congreso del PCUS (1956) le dio al trotskismo “un argumento histórico inesperado: una justificación, un nuevo aliento y una segunda vida… Es lo que explica… el refortalecimiento de organizaciones que subsisten desde hace cuarenta años sin haber logrado ninguna victoria histórica” 370 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) (ALTHUSSER, 1974, p.91). Pero ¿¡cómo es eso de lamentarse acerca de una “segunda vida” para el trotskismo!? Acá tenemos o bien una sospechosamente pésima sintaxis por parte de Althusser, o la idea de que éste realmente confiaba en el carácter eterno de la faena asignada a Ramón Mercader en México. Increíblemente sobre todo esto no hay nada en el libro de Dal Maso y Petruccelli publicado y promocionado por el PTS. E incluso señalan que “en distintas ocasiones, Althusser ... manifestó respeto e incluso cierto interés por Trotsky... De allí que sin hacerse trotskista, se asumió como comunista cada vez más distanciado del estalinismo” (DAL MASO & PETRUCCELLI, p.2789) pero en un libro escrupulosamente dotado de 370 notas a pie de página distribuidas en 279 páginas de texto, los autores no citan siquiera un par de ejemplos concretos de ese “respeto e interés” de Althusser (un escritor prolífico si los hubo!!) hacia Trotsky –un hecho que además le habría pasado totalmente desapercibido durante 60 largos años a diversos autores como Mandel, Fougeyrollas, Bensaïd, Slaughter, Geras, Gerratana y un larguísimo etcétera. 3. Cuestiones biográficas – y no sólo Analizando algunos aspectos biográficos de Althusser (y Sacristán, claro) sostienen los autores que ellos “vivieron, escribieron y lucharon en Europa, en un momento en el que –con excepción del ’68– el empuje revolucionario se hallaba sobre todo en otras geografías: Asia, África y América Latina” (DAL MASO & PETRUCCELLI, p.7). La primera omisión es que parecen excluir del “empuje revolucionario”, por ejemplo, a los heroicos levantamientos obreros en Berlín oriental (1953) y en Hungría (1956). Pero si la II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 371 intención era no manchar los pergaminos de supuestos “comunistas críticos” de Althusser y Sacristán, entonces al menos se entiende el motivo. La segunda omisión se refiere proceso revolucionario en Portugal, entre 1974/75, que Althusser y Sacristán sí pudieron vivir en Europa, y que además tuvo cierta influencia en la situación política de España, que iba camino al post-franquismo y durante el cual el Partido Comunista Español (PCE) liderado por Santiago Carrillo se desmarcó enfática y públicamente de la línea seguida por el Partido Comunista Portugués (PCP) liderado por Álvaro Cunhal –por lo que hubiera sido interesante que los autores analizasen la posición de Sacristán (militante del PCE) durante esa etapa. Pero, además, del lado de Althusser la llamada Revolução dos Cravos portuguesa también tuvo gran impacto tras los Pirineos, donde la alianza PS-PCF en la llamada “Union de la Gauche” (tan tenazmente defendida por Althusser) crujía sonoramente a medida que subía en Portugal la intensidad del choque entre socialistas y comunistas lusitanos (MACLEOD, 1984). Althusser incluso visitó Portugal a mediados del ‘75, igual que otros intelectuales de izquierda como Jean Paul Sartre, Paul Sweezy, Michel Foucault y tantos otros. La correspondencia epistolar de Althusser con el abogado y dramaturgo Luis Francisco Rebello, a la sazón miembro renunciante del Partido Socialista portugués, fue publicada con avidez por el Diário de Noticias lisboeta (donde el escritor José Saramago, militante del PCP, oficiaba de Director Adjunto) y en revistas locales de gran tiraje, como Vida Mundial y Vértice, para ser luego impresas también en la forma de un pequeño librito (ALTHUSSER & REBELLO, 1976). En ese intercambio de cartas con Rebello sorprende el dilettantismo del análisis althusseriano: • contra la tradicional caracterización de la Comintern 372 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) del período estalinista (que alguien como Althusser no podía desconocer) del fascismo como “la dictadura terrorista declarada de los elementos más reaccionarios, más nacionalistas, más imperialistas del capital financiero” (DIMITROV, 1984, p.154), por el contrario Althusser descartaba la caracterización del fascismo como algo “anormal” del dominio burgués (ALTHUSSER & REBELLO, 1976, p.17) pero si el uso de métodos de guerra civil contra la clase obrera fuera lo “normal” del dominio burgués, entonces ¿por qué tanta alharaca sobre la centralidad de los Aparatos Ideológicos de Estado? • sostenía que en el 25 de Abril portugués el imperialismo había sido tomado por sorpresa por el MFA (ALTHUSSER & REBELLO, 1976, p.18-9) como si general Spínola no contase previamente con la venia del Departamento de Estado, algo preanunciado con la publicación, a inicios de 1974, de su libro best-seller Portugal e o Futuro, un hecho visto por el propio dictador Marcelo Caetano como señal inequívoca de que las cartas estaban echadas • se mofaba, después del golpe de Eanes en Noviembre del ’75, de la ingenuidad de los “centristas” del MFA (el Grupo dos Nove liderado por Melo Antunes) por no haber visto el “peligro de la derecha”, cuando anteriormente el mismo Althusser jamás mencionó siquiera la existencia de una dura lucha faccional en el seno del MFA, durante la etapa de la alianza Povo/MFA –es decir, del fracasado intento bonapartista liderado por Vasco Gonçalves • apoyaba decididamente la política de “frente amplio II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 373 antifascista” propugnada por Álvaro Cunhal del PCP, incluso después del golpe de Eanes (ALTHUSSER & REBELLO, 1976, p.42) Para un filósofo obsesionado con teorizar “la coyuntura” realmente fue muy poquito lo que Althusser consiguió aprehender de la situación política portuguesa, porque en un trabajo de 1976 (que sólo será publicado póstumamente) llegó a decir que “en Portugal… hay un movimiento bastante fuerte de tendencia maoísta y, en cierta medida, las relaciones entre el PC local y esos maoístas no son tan conflictivas como las que mantienen el Partido francés y el escaso número de maoístas franceses” (ALTHUSSER, 2019, p.61). Esto parece más una broma, una boutade, que un análisis político serio: todos en Portugal durante 1974/75 sabían que primero el PCP y sus contactos en la ‘izquierda militar’ (el coronel Varela Gomes y la llamada 5° Divisão) empujaban al primer ministro Vasco Gonçalves hacia la represión abierta contra los maoístas del MRPP y AOC (CRUZEIRO, 2002, p.123-56), y que luego estos grupos maoístas participarían, junto a fanáticos de la Iglesia Católica y a los fascistas del MDLP, del asalto y quema de locales partidarios del PCP en el Norte y Centro del país, durante el llamado Verão Quente de 1975. La izquierda maoísta en Francia, personificada por ejemplo en Judith Balso, escribió un famoso libro que incluía una breve Introducción del filósofo Alain Badiou (muy cercano a Althusser) y de Sylvain Lazarus, que enmarcaba positivamente la política del MRPP (BALSO, 1976, p.110-47). 4. Fuego a discreción Aunque el economista belga Ernest Mandel ya había 374 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) polemizado tempranamente con algunas ideas de Althusser, por ejemplo: la ‘madurez’ del pensamiento económico de Marx al momento de los Manuscritos de 1844, la supuesta centralidad del concepto de ‘trabajo alienado’ en el Marx de la Introducción a la crítica de la Economía Política, la desaparición del concepto de ‘alienación’ en el Marx maduro, etc., desde las páginas de su libro “La formación del pensamiento económico de Marx” (MANDEL, 1967), quizás el primer debate desde la prensa partidaria trotskista contra las posiciones de Althusser haya sido un artículo (MANDEL, 1970, p.39-47) donde reaccionaba a la curiosa “Advertencia” del filósofo francés con la que comenzaba la edición “de bolsillo” del Libro I de El Capital, publicado por Flammarion en 1969. Mandel polemizaba allí con algunas afirmaciones, previsibles por estar básicamente en línea con lo ya expuesto en Pour Marx y Lire Le Capital, en las que Althusser arremetía contra las “insuficiencias” del Libro I (o sea, distinción entre valor y forma-valor; composición orgánica del capital; el fetichismo de la mercancía; etc.) y contra el orden de exposición de la Sección I, donde al comenzar por el tópico de la “Mercancía” el pobre Marx habría pagado muy cara su adhesión a la concepción hegeliana de la ciencia. Mandel también salió en defensa del Marx de la “Contribución a la crítica de la Economía Política” (1859), bajo feroz ataque althusseriano por estar supuestamente impregnado de un hegelianismo y evolucionismo fatal, del cual Lenin jamás habría cedido a dejarse influenciar (MANDEL, 1970, p.44). Finalmente, Mandel se indignaba duramente contra la distinción ontológica, infranqueable, que Althusser establecía entre “huelgas generales” puramente económicas (y defensivas) por un lado, y “huelgas generales” políticas (y ofensivas) por el otro. Mandel estaba seguro de ver, con razón a nuestro juicio, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 375 una burda escolástica “metafisica” que serviría de justificación althusseriana para la política del PCF durante los recientes acontecimientos del Mayo Francés (MANDEL, 1970, p.47). Posteriormente en 1974 la LCR mandelista publicará en Francia un libro elocuentemente titulado “Contra Althusser”, donde además del artículo de Mandel anteriormente citado, se incluyen otras contribuciones donde se destacan, a nuestro criterio, las de D. Avenas & A. Brossat (“Las malsanas ‘lecturas’ de Althusser”), J.M. Vincent (“El teoricismo y su rectificación”) y C. Colliot-Théléne (“Releer El Capital”). El texto de Avenas y Brossat critica el auto-confinamiento de Althusser en la “ciencia” pretendidamente marxista, pero manteniendo a distancia la “historia”, en su contenido concreto y político. Apuntan a la “interpretación cientificista y formalista del marxismo que constituye la quintaesencia del marxismo universitario actual” (AVENAS & BROSSAT, 1974, p.140) y señalan los problemas causados por dos reducciones básicas althusserianas: en el tiempo (jamás capta un sistema en relación con su génesis, en su devenir histórico), y en el espacio (considera cada formación social en sí misma, antes de referirla a su contexto internacional). El texto de J.M. Vincent criticaba el teoricismo de Althusser, que transformaba la filosofía en teoría de la producción de conocimientos, por lo que su utilización como basamento de las ciencias bastaba para –sin referencia directa a las prácticas sociales surgidas del movimiento obrero– dar un impulso decisivo al pensamiento revolucionario. Respecto del nuevo estatuto dado por Althusser a la filosofía marxista (“lucha de clases en la teoría”) Vincent señalaba el evidente offside en el que caía la nueva posición althusseriana: lo lógico-teórico no permitía que sus categorías se sometieran a un punto de vista de clase 376 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) pero, simultáneamente, se proponía relacionar íntimamente el trabajo científico con el movimiento proletario (VINCENT, 1974, p.256). Finalmente, el texto de Colliot-Théléne es bastante más salomónico: reconoce un punto a favor de Althusser en lo referente a la crítica a Engels por haber sincronizado el punto de partida de la exposición científica con el comienzo histórico, y por este zafarrancho Engels declara que la “ley del valor” rige para el período de la producción simple de mercancías (¿tuvo una existencia histórica concreta?) y hasta el siglo XV, curiosamente dejando afuera al periodo del modo de producción capitalista!! (THÉLÉNE, 1974, p.97-100). De cualquier manera, el propio Marx ya había sostenido que sería un error situar las categorías económicas en el orden en que han sido históricamente determinantes; sino que su orden está determinado por las relaciones existentes entre ellas en el seno de la formación social capitalista. Pero mientras que Marx solamente se refería al método de la Economía Política, en cambio Althusser creía ver en ello un estructuralismo avant-la-lettre mientras él mismo elaboraba una teoría de la praxis científica en general (THÉLÉNE, 1974, p.101-2). Rechazando “in limine” cualquier disyuntiva ciencia burguesa versus ciencia proletaria, Althusser no podrá identificar el punto exacto que separa a Marx de la ciencia burguesa. Pero para Colliot-Théléne no considerar el carácter histórico y transitorio del modo de producción capitalista tiene incidencia directa en la inteligibilidad de su funcionamiento, porque no permite determinar la especificidad de la forma de explotación capitalista, es decir: de “producir” los conceptos de fuerza de trabajo y plusvalía. Por lo que entonces, pace Althusser, la crítica de la ciencia económica burguesa está subordinada a un punto de vista de clase que le permita trascender el punto de vista burgués y los II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 377 límites que le son propios. La adopción de un punto de vista de clase no es una elección individual arbitraria, apoyada en el rigor y genialidad de un determinado economista, sino una consecuencia del desarrollo de la lucha de clases. Así la “crítica de la economía política” y la “economía política proletaria” son sinónimos (THÉLÉNE, 1974, p.124-31). Con una distancia de 25 años en las que, digámoslo sucintamente, varias cosas sucedieron políticamente (incluyendo la transformación de la propia LCR en “otra cosa”) habrá en 1999 una reedición de este libro, intitulado ahora “Contre Althusser, Pour Marx” y con ciertos cambios que ameritan ser resaltados. En primer lugar, el artículo original de Daniel Bensaïd (“Los intelectuales del PCF ante el estalinismo”) fue reemplazado por otro de producción más reciente llamado “Un universo de pensamiento abolido”, que a pesar de mantener las distancias políticas con Althusser, sin embargo era mucho más conciliador al nivel de la teoría, especialmente en lo referido al modelo de “temporalidad plural” althusseriano, en combate contra el llamado ‘historicismo absoluto’ asignado a Gramsci, Lukács y Korsch (BENSAÏD, 1999, p.229-64). En segundo lugar, el texto inédito de Jean-Marie Brohm (“La recepción de Althusser: historia política de una impostura”) era un amargo ajuste de cuentas con sus viejos excamaradas, que habían desertado de la LCR en el transcurso de esos largos 25 años, entre 1974 y 1999. Y se los podía encontrar ahora en la socialdemocracia (Jean-François Godchau, Henri Weber, Gérard Filoche); en la academia ecléctica ecuménica (Jean-Marie Vincent); en el nihilismo escéptico “anti-dogmático” (Alain Brossat); o en la derecha “republicana” anti-inmigrantes (Sami Naïr). De esa ‘lista negra’ del oprobio hecha por Brohm sólo se salvaban Ernest Mandel y Daniel Bensaïd. Por el lado del lambertismo, será el filósofo Pierre 378 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Fougeyrollas que bajo el pseudónimo de ‘Antoine Thivel’ escribirá dos artículos desde las páginas de La Vérité, el primero atacando de manera general a la corriente estructuralista (THIVEL, 1972a) y el segundo delimitándose tajantemente de las posiciones de Louis Althusser (THIVEL, 1972b). Está claro que estos dos artículos posteriormente constituirán la piedra angular de su libro “Contre Lévi-Strauss, Lacan et Althusser” (FOUGEYROLLAS, 1976). En su artículo Fougeyrollas se enfocará en analizar el famoso Prefacio de Althusser al libro “Pour Marx”, donde el mismo Althusser enumeraba sus numerosos traumas político-teóricos: las revelaciones sobre los crímenes de Stalin en el famoso XX Congreso del PCUS; el llamado “culto a la personalidad” como explicación oficial soviética; la política cultural de Zhdanov (¡¡asociada por Althusser con el Proletkult!!); el famoso affaire Lyssenko; la “acertada” incursión del propio Stalin en lingüística en la polémica contra Marr; la ausencia de teóricos marxistas en Francia; el temible fantasma del “izquierdismo teórico” (Lukács, Korsch). Fougeyrollas atacará como un “regreso completo al idealismo tradicional” (THIVEL, 1972b, p.100) el aforismo althusseriano por lo cual el concepto de historia no puede ser empírico, histórico, de la misma manera que el concepto “perro” no ladra (Spinoza dixit), en el mismo sentido en que Althusser citaba elogiosamente a Stalin por haber llamado a evitar cualquier posible confusión entre “economía política” (teoría) y “política económica” (su aplicación técnica). La Vérité se ocupará nuevamente de Althusser después de 4 años (COLLIN, 1976) en un artículo donde se verá en el dúo Althusser/Jean Ellenstein una verdadera división del trabajo: mientras el filósofo Althusser proporcionaba la “teoría” anti-trotskista (tal como enunciada en el miserable libro “Para una crítica de la práctica teórica – II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 379 Respuesta a John Lewis”) el historiador Jean Ellenstein proporcionaba los “argumentos” histórico-políticos para proseguir la lucha contra el trotskismo. A pesar de tratar otros tópicos del pensamiento althusseriano, distintos a los desarrollados por Fougeyrollas en la misma revista cuatro años atrás, el artículo de Collin curiosamente omitirá cualquier referencia a la nueva situación política creada por el 22° Congreso del PCF en febrero de 1976, en el cual había decidido (¡¡luego de 50 años de práctica contrarrevolucionaria!!) el “abandono” formal del concepto de dictadura del proletariado –y la posición adoptada por Althusser en esa coyuntura. Del lado del healyismo, y básicamente interviniendo con motivo del revuelo causado en el mundo intelectual británico por el iracundo libro de E.P. Thompson contra Althusser (THOMPSON, 1978) será el sociólogo Cliff Slaughter quien publicará un brevísimo artículo en la prensa partidaria (SLAUGHTER, 1979). Claramente Slaughter se sitúa más bien del lado thompsoniano de la trinchera, y gana un punto fácil citando a Hirst y Hindess, dos discípulos británicos de Althusser, para quienes “el marxismo, como práctica teórica y política, no gana nada mediante su asociación con la escritura e investigación histórica. El estudio de la historia es no sólo científica, sino también políticamente inútil” (SLAUGHTER, 1979, p.6). Slaughter señala la ruta que Hirst y Hindess siguieron en los 2 volúmenes de “Marx’s Capital and Capitalism Today” (es decir: rechazo de la teoría del valor marxista y de las leyes del desarrollo del capitalismo) diciendo que Althusser, al menos hasta ese momento, había evitado transitar ese sendero. En realidad, Slaughter no lo sabía, pero en Althusser “la procesión iba por dentro” y ya había hecho declaraciones polémicas en ese mismo sentido (véase su conversación privada con Perry Anderson en 1977, y 380 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) su ponencia en el Coloquio de Venecia). El healyismo, en apariencia, daba enorme importancia a la discusión filosófica y sobre la dialéctica –hasta fundamentó su ruptura con la OCI (BLOCH,1972) en el llamado Comité Internacional en 1971 sobre estas dudosas bases– por lo que era muy previsible que Slaughter encontrase huellas de “metafísica kantiana” en Althusser por enfatizar la diferencia entre los “objetos reales” de un lado y los “objetos del pensamiento” del otro; y criticará a E.P. Thompson por no resaltar debidamente esa tara althusseriana, mientras que simultáneamente Slaughter encontrará muy problemática la noción de “experiencia” thompsoniana, que éste contraponía a la abstracción marxista de “relaciones sociales de producción” (SLAUGHTER, 1979, p.8-12). Finalmente, digamos que Mandel volverá a polemizar con Althusser en dos ocasiones, a raíz del sorpresivo –en ese momento– aporte althusseriano a la toda la parafernalia de la época sobre la “crisis del marxismo” en un Coloquio organizado por la revista italiana Il Manifesto (MANDEL, 1977) y también a raíz de las críticas de Althusser contra la dirección partidaria de Georges Marchais (MANDEL, 1979) y la ‘carta abierta’ dirigida al Comité Central del PCF que seis intelectuales comunistas (el propio Althusser, Étienne Balibar, Georges Labica, Guy Bois, J.P. Lefebvre y Maurice Moissonier), harán publicar en abril de 1978 en el diario Le Monde (ALTHUSSER, 1978). 5. La excepción que confirma la regla Exponiendo acerca del clásico tópico althusseriano de la contradicción sobredeterminada Dal Maso y Petruccelli sostienen en al menos dos oportunidades que Alex Callinicos, filósofo y II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 381 dirigente del Socialist Workers Party (SWP) británico, en su libro Althusser’s Marxism señala “la afinidad de esta conceptualización con las reflexiones teóricas de Trotsky en torno al desarrollo desigual y combinado” indicando que en los archivos de Althusser estaban anotados con especial interés (sic) pasajes de la Historia de la Revolución Rusa que hacían referencia al desarrollo desigual y combinado, con lo cual concluyen “no se puede afirmar que los planteos de Althusser acerca de la contradicción sobredeterminada puedan atribuirse directamente a esa lectura de Trotsky, pero sí se puede considerar que en algún momento el propio Althusser se interesó por aquellos análisis de Trotsky que Callinicos consideró afines con la elaboración de Althusser” (DAL MASO & PETRUCCELLI, p.22). Conocida es la innegable simpatía de Callinicos por algunos temas del althusserismo, que lo llevaron a criticar duramente la posición anti-Althusser de las organizaciones del SU mandelista, a las que llegó a calificar de “muy decepcionantes” y como un claro ejemplo de “polémica flácida, argumentación chapucera y reafirmación dogmática de las más grises ortodoxias trotskistas” (CALLINICOS, 1976, p.47) y que, por otra parte, también le generaron fuertes polémicas al interior del mismo SWP británico (véase BINNS, 1982 y también HARMAN, 1983), pero la verdad es que la cita exacta en aquel libro de Callinicos dice únicamente lo siguiente “thus Althusser takes the example of Lenin’s writings in 1917; these writings reveal that it was the unevenness of Russia’s development –the combination of a highly advanced heavy industry with a semifeudal monarchy and agrarian system confronted with the demands of a modern interimperialist war– that rendered a socialist revolution possible in Russia before it came to the West. A similar analysis can be found in Trotsky’s writings (for example: 382 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 1905, and The History of the Russian Revolution), although no doubt this addition to the pedigree of the concepts of over-determination and conjuncture would be an unwelcome one for Althusser” (CALLINICOS, 1976, p.125) con lo cual la insistencia de Dal Maso/Petruccelli nos parece en verdad un poco forzada. Más aun, realmente en ninguno de los siguientes libros en la extensa producción de Callinicos (desde Is there a future for Marxism? de1982, seguido de Marxism and Philosophy en 1983, su famoso Against Postmodernism: a Marxist critique de 1990, y especialmente su ponencia What Is Living and What Is Dead in the Philosophy of Althusser en un libro recopilatorio de 1993) está siquiera señalada esta similitud y/o posible relación entre la contradicción sobredeterminada por un lado, y el concepto de “desarrollo desigual y combinado” por el otro. Inclusive, algunos años más tarde el mismo Callinicos escribirá este breve reproche “Althusserians have tended to neglect a peculiar property of the capitalist mode of production, its tendency to establish a world system of which individual social formations are component parts, and which is subject to processes of uneven and combined development: see especially L. Trotsky, The Third International after Lenin” (CALLINICOS, 2004, p. 41). Redondeando finalmente este punto: más que “afinidad” a nosotros nos parece que aquí hay “diferencia” en cambio, porque Althusser, en su artículo sobre “La dialéctica materialista” publicado originalmente en agosto de 1963 en la revista La Pensée (sostenida por el PCF), cuando discuta la “ley del desarrollo desigual”, pontificará que toda interpretación que remite los fenómenos de desigualdad interna a la desigualdad externa (por ejemplo: Rusia 1917, como el eslabón más débil de la cadena imperialista) cae o en el mecanicismo, o en la teoría de la acción recíproca entre “lo de afuera y lo de adentro” II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 383 (ALTHUSSER, 1967, p.176) con lo que Althusser, pese a la jerga estructuralista, se mostraba más bien como un tributario (inconsciente) de lo sostenido por el bloque Stalin/Bukharin en el VI Congreso de la Comintern. 6. China significa “reino del miedo” A partir del cisma de 1961 en el llamado “movimiento comunista internacional” Althusser siempre se consideró a sí mismo como un maoísta convencido. La mejor exposición sobre el maoísmo de Althusser es el cuarto capítulo “The time of Theory, the time of Politics” del ya clásico libro de Gregory Elliot (ELLIOT, 2006), al tiempo que evidenciaba un miedo paralizante de enfrentarse a la dirección del PCF, que se había alineado incondicionalmente con Moscú en esa disputa. Podemos suponer que Althusser de algún modo compartía la famosa apreciación de Mao: “Stalin? 70% de aciertos y 30% de errores. Gran dirigente del proletariado mundial” y toda la cuestión quedaba zanjada ahí nomás. A fines de 1966 Althusser escribió un breve artículo, muy apologético, llamado “Sobre la Gran Revolución Cultural Proletaria”, que fuera publicado (con seudónimo) en la revista Cahiers marxistes-leninistes, que era el órgano de la juventud maoísta enrolada en la UJC (ML). Pero el artículo tenía una visión totalmente idealizada de lo que en realidad estaba sucediendo en China. Es que Mao, con su liderazgo personal duramente cuestionado desde el fracaso del “Gran Salto Adelante”, lanzó a la juventud obreraestudiantil organizada en los Guardias Rojos contra las facciones rivales del PC chino y luego en 1967, tras la formación (¡¡completamente inesperada por Mao!!) de la Comuna Popular de Shanghai y los graves 384 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) incidentes de Wuhan, el mismo Mao movilizó al Ejército Popular de Liberación para que reprimiese a los Guardias Rojos. Obviamente existen innumerables análisis marxistas sobre la verdadera dinámica de la Revolución Cultural, pero hoy aquí queremos señalar especialmente los dos artículos publicados por Pierre Broué en la revista “La Vérité” de la OCI, aparecidos en los números # 551 (BROUÉ, 1971a) y # 553 (BROUÉ, 1971). Por esa auténtica infatuación con la Revolución Cultural es que tampoco sea casualidad que Althusser haya sostenido que el maoísmo representó “la única ‘critica’ histórica (de izquierda) de lo esencial de la ‘desviación estaliniana’ que podemos encontrar y que, por añadidura, sea también contemporánea de la misma desviación… una crítica concreta, en los hechos, en la lucha, la línea, las prácticas, sus principios y sus formas: la crítica silenciosa, pero en actos, realizada por la Revolución china en los combates políticos e ideológicos de su historia, de la Larga Marcha a la Revolución cultural y sus resultados. Crítica de lejos. Crítica “entre bastidores”. Que debe mirarse de cerca, que debe descifrarse. También crítica contradictoria –aunque fuera sólo por la desproporción entre los actos y los textos” (ALTHUSSER, 1974, p.102). Pero este elogio no impedirá que los grupos maoístas franceses rompan ya sin retorno con Althusser (véase por ejemplo LISBONNE, 1978) cansados de esperar por años que el filósofo de la École Normale Supérieure finalmente rompa orgánicamente con el PCF “revisionista”. Pero así fue que se terminará sabiendo que, ni en el primer instante ni en el último, para Althusser jamás suena la hora solitaria del “maoísmo”. En marzo de 1976, en una conferencia en la Universidad de Granada, Althusser sostendrá que “sería absurdo considerar que las posiciones filosóficas de Stalin estuvieron en el origen de su línea política y de sus II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 385 prácticas terroristas, aunque no es difícil mostrar que esas posiciones filosóficas de Stalin, no sólo no eran extrañas a la línea política del estalinismo, sino que, mejor aún, le fueron perfectamente útiles” (ALTHUSSER, 1984, p.37). Pero luego, 8 años después, el Althusser tardío dirá en entrevista a Fernanda Navarro que “pienso que la URSS ha pagado caro esta impostura filosófica [el materialismo dialéctico]. No creo exagerar al decir que la estrategia política de Stalin y toda la tragedia del estalinismo estuvo, en parte, fundada en el materialismo dialéctico, monstruosidad filosófica dirigida a justificar, y servir teóricamente de garantía, al poder por encima de la inteligencia” (ALTHUSSER, 1988, p.61-2). Entre ambas declaraciones mediaba no solamente la tragedia familiar acaecida en 1980 sino, fundamentalmente, la quiebra estrepitosa en la fe maoísta de Althusser, que hasta fines de los años ‘70 todavía reivindicaba la Revolución Cultural china sosteniendo que “la exterioridad política del partido en relación con el estado es un principio fundamental que puede encontrarse en los pocos escritos de Marx y Lenin al respecto. Arrancar el Partido al Estado para entregarlo a las masas fue el intento desesperado de Mao en la revolución cultural” (ALTHUSSER, 1983, p.17). En el arco de unos poquísimos años el charme político del maoísmo se devaluó totalmente, y eso tuvo un duro impacto en el ánimo político de Althusser. La extraña muerte de Lin Piao (1971); el giro diplomático tras la entrevista Nixon-Mao (1972); el regreso de Deng Xiaoping a las altas esferas del poder luego de ser rehabilitado por gracia de su ‘protector’ Chou En-Lai (1973); la llamada “teoría de los tres mundos” y la identificación del “social-imperialismo ruso” como el enemigo principal, que implicó que allí donde sus fuerzas lo hicieran posible (Portugal, Angola, Argentina, Chile, etc.) eso diera lugar a políticas 386 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) que excedían largamente el sectarismo hacia otras corrientes de izquierda para convertirse en simple colaboración contrarevolucionaria. Y finalmente el repentino “giro a la derecha” en China, producido entre la muerte de Mao (9 de septiembre del ‘76) y la defenestración y arresto de la “Banda de los Cuatro” maoísta (11 de octubre del ‘76) que significaba no solamente el súbito final, sino básicamente el repudio por parte del nuevo gobierno chino de todo el período de la Revolución Cultural. Last but not least, el régimen del Khmer Rouge en Camboya: si Althusser tenía problemas para caracterizar a la URSS bajo Stalin, menos aún iba a poder comprender la naturaleza del régimen de Pol Pot en 1975/79 (y el apoyo dado por Mao y el gobierno chino) que fue derribado tras la invasión de Vietnam a Camboya, lo que a su vez generó la “represalia” militar de China contra Vietnam. Game over entonces para un Althusser cada vez más aislado políticamente en su propio milieu intelectual, con numerosas deserciones del maoísmo (Sollers, Kristeva, Glucksmann, Lardreau, Jambet y un larguísimo etcétera) hacia la derecha más rancia. Precisamente de esta coyuntura política dirá Perry Anderson que “hoy día Paris es la capital de la reacción intelectual europea” (ANDERSON, 1983, p.32). Así cuando en noviembre de 1977 Althusser participa del coloquio “Poder y oposición en las sociedades postrevolucionarias” organizado en Venecia por la revista Il Manifesto (Rossana Rossanda, Lucio Magri, etc.) estamos ya ante un militante en honda crisis. En ese coloquio se mostrará desmoralizado por “la extrema dificultad…y tal vez, en el estado actual de nuestros conocimientos teóricos, la casi imposibilidad de dar una explicación marxista de verdad satisfactoria de una historia que, sin embargo, se ha hecho en nombre del marxismo” (ALTHUSSER, 1980, p.221). Lo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 387 mínimo que puede decirse es que Althusser, apenas unos años después de caracterizar torpemente al estalinismo como mera “desviación” (y “revancha póstuma” de la II Internacional, además) pretendía ahora poner en cuestión a todo el marxismo. Althusser iría todavía más a fondo, sosteniendo que “hay algo patético [en] la conferencia pronunciada por Lenin sobre el Estado, el 11 de julio de 1919, en la universidad Sverdlovsk. Lenin insiste: es un problema muy intrincado, muy difícil, muy embarullado por los ideólogos burgueses … Veinte veces Lenin insiste: el Estado es un aparato especial, una máquina especial… Lo patético de Lenin y de Gramsci es intentar superar la definición negativa clásica, pero como tanteando y sin llegar de verdad” (ALTHUSSER, 1980, p.229). Por fuera del formalismo antidiacrónico “estructuralista” el pensamiento de Althusser se ahogaba como pez en el asfalto. Porque en realidad no había nada de “patético” en el esfuerzo de Lenin por entender, no el “concepto” general de Estado, si no las batallas políticas por venir, deducibles a partir del carácter concreto del Estado soviético en cada etapa del periodo transicional: estado obrero, estado obrero deformado, estado burgués sin burguesía, etc. Althusser, en ese mismo Coloquio del ‘77 organizado por Il Manifesto, creyó detectar claramente dos “lagunas”, dos “puntos débiles” de la teoría marxista: 1.“no existe verdaderamente una ‘teoría marxista’ del Estado… lo que se encuentra en nuestros autores es, bajo las formas de relación del Estado con la lucha de clases y la dominación de clase… una advertencia repetida de apartarse de las concepciones burguesas del Estado: por lo tanto una definición esencialmente negativas” (ALTHUSSER, 1980, p.228-9) 2.“no encontramos una verdadera teoría de las organizaciones 388 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de la lucha de clases, y antes que nada del partido político y del sindicalismo… ningún análisis que permita comprender de verdad su funcionamiento efectivo, es decir, las condiciones y las variaciones de ese funcionamiento, y … las formas de su posible disfuncionamiento” (ALTHUSSER, 1980, p.229) Esta clara ignorancia sobre la enorme riqueza conceptual de los debates políticos al interior del marxismo (desde sus orígenes e incluyendo a la IV Internacional), también era un rasgo distintivo de Althusser, y lamentablemente esta fase de la deriva althusseriana está completamente ausente en el libro de Dal Maso y Petruccelli. También la banal constatación fáctica de que “el Estado burgués no deja de intentar integrar, a menudo con éxito, las organizaciones de lucha de la clase obrera a su propio funcionamiento” (ALTHUSSER, 1980, p.230) era transformado, y no podía ser de otra manera tratándose de Althusser, en un problema teórico. Es que para un Althusser desmoralizado, simultáneamente “la ideología no tiene historia” pero el fetichismo de la mercancía sería un torpe resabio humanista del joven Marx, mientras que el Estado Burgués cooptaría organizaciones políticas y sindicales por vías misteriosamente insondables. Ante el mismo auditorio Althusser preguntará cándidamente “¿cómo modificar la idea que el Partido Comunista se hace tradicionalmente de sí mismo, tanto como ‘partido de la clase obrera’ o ‘partido dirigente’ … cómo modificar pues su ideología para que en la práctica, la existencia de otros partidos, de otros movimientos, sea reconocida?” (ALTHUSSER, 1980, p.230). Por un lado, ya fue dicho hace mucho tiempo atrás que el “partido único” de la clase obrera no era más que una ficción policiaca (TROTSKY, 1991, p.198). Y por otro lado también se advirtió que la burocracia en cuanto tal no podía “modificar su idea”, y la de su II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 389 regeneración parcial (la expectativa de Isaac Deutscher, entre otros) era una perspectiva política liquidacionista. Por eso el pronóstico fundamental de la IV Internacional. 7. El Althusser senil (… y póstumo) Reiteradamente Dal Maso y Petruccelli actúan de abogados del filósofo francés y así argumentan, por ejemplo, que “podemos considerar la autocrítica althusseriana como un presupuesto necesario para comprender su modo de pensar e intervenir en el debate marxista, más que como una suerte de trampa destinada a salir indemne de la crítica de terceros” (DAL MASO & PETRUCCELLI, p.12). Acaso la misma existencia de una “teoría de Althusser” pudiera ser puesta en duda por lo narrado por su amigo y colaborador, el filósofo Étienne Balibar, en un texto en Les Temps Modernes de diciembre de 1988 (es decir, antes de la muerte de Althusser) donde recordará amargamente la manera en que “Althusser, como impulsado por una fuerza implacable, destruía, deconstruía o deshacía lo que había hecho” (BALIBAR,2004, p.51). Aunque Althusser le confesase abiertamente a Balibar únicamente en agosto de 1980: “No me suicidaré. Será peor. Destruiré lo que hecho, lo que soy para los demás y para mí mismo” en realidad su amigo Étienne Balibar cree poder remontar a 1976 la raíz de esa tendencia autodestructiva en Althusser, citando cuatro casos emblemáticos: la ponencia “El descubrimiento del doctor Freud”; la entrada “Le marxisme aujourd’hui” escrito para la Enciclopedia Garzanti; la intervención “¡Por fin la crisis del marxismo!” escrita para un Coloquio organizado por la revista italiana Il Manifesto en Venecia; y el texto “El marxismo como teoría finita” 390 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) donde el atribulado filósofo francés volvía sobre viejos textos con “pasajes argumentativos enteros… con formulaciones idénticas. Pero las conclusiones que extraía eran diametralmente opuestas” (BALIBAR, 2004, p.52-5). En otro párrafo Dal Maso y Petruccelli nos dicen que “en 1970, Althusser se preguntaba cómo se podía cambiar algo sustancial en el partido y pensaba que internamente era imposible. Afirmaba que el partido podía cambiar solo a partir de algún acontecimiento externo muy grave. No jugaron ese papel los acontecimientos del ’68 pero Althusser consideró propicia la crisis abierta por las elecciones de marzo de 1978, ocasión en la que hizo una denuncia pública de los métodos burocráticos y de los zigzags políticos de la dirección” (DAL MASO & PETRUCCELLI, p.272). En primer lugar, aunque Dal Maso y Petrucelli lo omiten en su libro, el caso es que Althusser sí menciona explícitamente cuáles serían esos “acontecimientos externos muy graves” que pudieran producir cambios sustanciales [recontra sic] en el PCF: cambios en la línea política y/o en la existencia de la URSS. Reconociendo se trataba de algo difícil de imaginar y predecir, Althusser daba tres ejemplos puntuales: una crisis muy seria en la URSS; una crisis irremediable en la política internacional o internacionalista de la URSS (conflictos con EE.UU. o China); una grave crisis política-económica en la URSS que llevase a una desintegración nacionalista (ALTHUSSER, 2020, p.38-9). La restauración del capitalismo en la URSS por parte de la burocracia aparecía entonces como un verdadero “punto ciego” indecible para Althusser, quien podía aceptar que algo anduviese muy mal bajo la dirección de Waldeck-Rochet (o de Georges Marchais) pero nunca siquiera imaginó una restauración capitalista en la URSS de la mano de Brezhnev y sucesores. Una notable ceguera althusseriana, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 391 comparada incluso con la más pequeña e insignificante de las “sectas” trotskistas. Ceguera más llamativa aun cuando su viejo colega y amigo Étienne Balibar colaboraba por esos años con el economista Charles Bettelheim que, desde posiciones teóricas maoístas muy similares a las de Althusser, caracterizaba una restauración como ya habiendo sido consumada en la URSS desde 1956. En segundo lugar, y aunque Dal Maso/Petruccelli lo celebren en su libro, quizás habría que analizar más detenidamente esa súbita perdida de “mesura política” por parte de Althusser en marzo de 1978. El filósofo hasta ahí incapaz de levantar su voz y criticar al PCF en innumerables ocasiones anteriores porque “partido de la clase obrera” y arriesgarse a ser expulsado era condenarse a vegetar en el desierto, finalmente explota porque se pierden unas elecciones parlamentarias. Realmente la situación política no daba para “volverse loco”, especialmente considerando que apenas tres años tarde, exactamente en mayo de 1981, finalmente François Mitterrand llegaría al gobierno francés, y desde allí mostraría ampliamente los límites insalvables de una política frente-populista, timorata y pro-imperialista. En definitiva, Althusser, que no se animó a criticar al PCF cuando el partido calumniaba de “colaboracionista nazi” a su esposa Héléne Rytmann, ni cuando el partido promovía la defensa de “los intereses de Francia” en la política colonial hacia Vietnam y Argelia (MONETA, 1971) ni durante o después del Mayo del ‘68, ni con la invasión soviética a Praga, etc., ahora sí parecía perder todo miedo y salía a criticar el rumbo del PCF tras perder unas elecciones parlamentarias. Si el “acontecimiento” en sí mismo no lo valía, entonces debió haber sido ésta la gota que rebalsó el vaso. Un bello ejemplo ilustrativo del “salto de la cantidad en calidad” según la dialéctica hegeliana, además de toda una ironía tratándose de Althusser. 392 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) También es cierto que en la intervención crítica, recopilada en su libro Lo que no puede durar en el Partido Comunista, además de algunas ideas básicas y sensatas, no había en Althusser ninguna propuesta a favor del derecho de tendencias en el PCF, tal como existieron en el Partido Bolchevique hasta su 10° Congreso cuando fueron prohibidas (temporariamente, en la intención de Lenin) en medio de condiciones excepcionales y la guerra civil, pero luego jamás re-instauradas por la burocracia estalinista. Sin embargo, apenas dos años antes, Althusser se manifestaba absolutamente a favor del derecho de tendencia. Véase este clarísimo contraste en su libro póstumo (ALTHUSSER, 2019). Llama la atención que Dal Maso/Petruccelli no mencionen ni siquiera brevemente el tema del “derecho a tendencia”, apuntando hacia esa notable omisión althusseriana: sin ir más lejos, Ernest Mandel no dudó en señalar esa notable contradicción histórica-política (MANDEL, 1979). Una posible explicación es que para el PTS el “derecho a tendencia” pareciera ser un principio muy selectivo: aplica ciertamente en Francia cuando la dirección del NPA (Nouveau Parti Anticapitaliste) se lo niega a su organización hermana Révolution Permanente; pero lamentablemente no aplica en absoluto en Argentina, cuando en 2019 el Partido Obrero (integrante del mismo Frente de Izquierda y los Trabajadores donde militan Dal Maso/Petruccelli) procedió a negarlo y así terminó expulsando a un millar de militantes. Volviendo a Althusser, los libros que fueron publicados póstumamente en los últimos años muestran una absoluta falta de rigor histórico, demostrando que el filósofo francés teorizaba sin rigor alguno, a partir de su propia ignorancia o inventiva. Así es que, por ejemplo, se encuentran frases delatoras como “when Czarism was overthrown in 1917 and Kerensky’s Mensheviks took power” (ALTHUSSER, 2020, p.111) o se incurre, en II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 393 varias ocasiones, en claro revisionismo histórico y teórico. Por ejemplo: Palmiro Togliatti, uno de los pocos “enviados de Moscú” que no fue purgado tras la derrota de la República Española, es elogiado por la “genialidad” (sic) de llevar al PCI a trabajar dentro de los sindicatos fascistas, lo cual explicaría, según Althusser, que el PCI se convirtiese en partido de masas en la posguerra del ’45 (ALTHUSSER, 2020, p.140-1). Trabajar clandestinamente en los sindicatos bajo condiciones durísimas era una obligación para todo grupo revolucionario que quisiera reconstruir el partido de la clase obrera. León Trotsky también promovió esa orientación política de intervención en los sindicatos fascistas, al redactar el Programa de Transición. El problema político con el PCI de Togliatti es que pronto terminó degenerando en una política de “reconciliación nacional” tras la guerra en Abisinia (1935) y en el llamado al “frente único” con los fascistas (GRIECO, 2004) llamamiento que fuera redactado, por una ironía de la historia, apenas dos días antes del levantamiento militar de Franco en España. Volviendo al tema del origen del PCI como “partido de masas”, la mayoría de los análisis más reputados, por ejemplo, por parte de Paolo Spriano, historiador oficial del partido por décadas (SPRIANO, 1975), Giorgio Bocca (BOCCA, 2014) o Donald Sassoon (SASSOON, 2014) están lejísimos de dar asidero a la afirmación de Althusser. En definitiva, también en sus escritos póstumos Althusser teorizaba a partir de su propia fantasía o ignorancia de la historia del movimiento obrero y comunista. Lo mismo ocurre con su caracterización del peronismo como mero “estado fascista” en un texto ausente en la versión original publicada en 1970 de Ideología y Aparatos Ideológicos del Estado. A los intelectuales kirchneristas (del tipo Artemio López) aún encandilados por el “rigor” conceptual 394 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) althusseriano, acaso pudiera interesarles comparar el texto sobre los AIE incluido en “La filosofía como arma de la revolución” de 1974 con la versión completa ahora finalmente disponible (ALTHUSSER, 2014, p.97). Quizás fuera cierto que el PCF no promoviese mucho la lectura de Althusser, pero también parece que éste tampoco leía L’Humanité con atención, o al menos la sección de Noticias Internacionales, porque el PCA de Codovilla ya no sólo no caracterizaba de “fascista” a Perón como en 1945, sino que incluso había creído detectar un “giro a la izquierda” del peronismo en 1962, y apenas unos años después del texto althusseriano sobre Ideología y Aparatos Ideológicos del Estado el PCA ya estaría apoyando al gobierno de Perón del ‘73. Otra curiosidad de los escritos póstumos de Althusser es su caracterización, supuestamente basada en el Tomo III de El Capital, de la competencia capitalista como una mera “ilusión”. Una lectura unilateral y mono-causal de la tendencia a la caída de la tasa de ganancia (o sea, el cambio en la proporción C/V como mero efecto de la lucha de clases) llevaba a Althusser a caracterizar a la competencia como un “efecto subordinado” de la lucha de clases (ALTHUSSER, 2020, p.101-10). Quizás no sea tan imprescindible recurrir, por ejemplo, a aquél gran libro de Roman Rosdolsky para recordar que el Tomo III de El Capital trata ya no sobre el “capital en general” (tal como conceptualizado en el Tomo I) sino como “pluralidad de capitales” (ROSDOLSKY, 1978). O sea, para Marx la ley del valortrabajo se impone por vía de la competencia, y esta competencia actúa fundamentalmente mediante la “guerra de precios”. A fines de los años ‘70 Althusser terminará sosteniendo que toda la teoría del valor de Marx estaba errada, y que debía ser abandonada. Más aún, todo El Capital de Marx, sostenía Althusser, estaba completamente mal escrito II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 395 por haber comenzado con el tema de la “Mercadería” en el Capítulo I del primer Tomo, según le confió a Perry Anderson en una súbita visita a las oficinas en Londres de la New Left Review en #6 Meard Street, una tarde del verano europeo de 1977 (ANDERSON, 2018, p. 59-66). Habiéndonos enterado de esto recién ahora en estos últimos años, nos llama bastante la atención que el propio Perry Anderson siguiera defendiendo estoicamente a Althusser en su libro polémico contra E.P. Thompson (ANDERSON, 1980) sabiendo incluso que el pensamiento althusseriano estaba ya en pleno naufragio. 8. L’avenir dure longtemps Sea como fuere, a quienes deseen ahondar en la temática de esta humilde Ponencia pero desde una mirada menos iracunda, permítanme indicarles un texto llamado “Philosophical tendencies of bureaucratism” que León Trotsky, seguramente abrumado por urgencias políticas más apremiantes, probablemente haya dejado –tal como sucediera a Marx y Engels con las páginas de “La ideología alemana”– librado a la crítica roedora de los ratones. En un pasaje que guarda una fortísima semejanza con la clásica problemática althusseriana, Trotsky se pregunta cómo es posible separar a la “dialéctica” del “idealismo” de Hegel de una manera tan mecánica como la explicada por medio de la “inversión”, la separación de la “corteza mística”, y otros eufemismos (TROTSKY, 1981, p.500). A pesar del estado absolutamente inacabado de ese texto, quizás otros militantes e intelectuales logren dar a la posible relación filosófica entre Trotsky y Althusser un nuevo desarrollo conceptual. 396 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Referencias bibliográficas ALTHUSSER, Louis. La revolución teórica de Marx. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 1967. ALTHUSSER, Louis. Para una crítica de la práctica teórica. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 1974. ALTHUSSER, Louis. Lo que no puede durar en el Partido Comunista. Madrid: Siglo XXI de España Editores, 1978. ALTHUSSER, Louis. ¡Por fin la crisis de marxismo! Poder y oposición en las sociedades postrevolucionarias, Barcelona: Editorial Laia, 1980, p.219-32. ALTHUSSER, Louis Althusser. El marxismo como teoría finita. Discutir el Estado. Buenos Aires: Folios Ediciones, 1983, p.11-21. ALTHUSSER, Louis. La transformación de la filosofía. Buenos Aires: Ediciones Metropolitanas, 1984. ALTHUSSER, Louis. Filosofía y Marxismo. 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Para isso, utilizarei como base a introdução de Peng Suzhi (18961983), importante trotskista chinês, ao livro Leon Trotsky on China (1976) e o livro Revolução Permanente (1930), de Leon Trotsky. Trotsky e a Revolução Permanente A Teoria da Revolução Permanente (TRP) não é uma ideia original de Trotsky, pois já havia sido esboçada por Karl Marx 1 Mestrando em Antropologia Social na FFLCH-USP. Pesquiso sobre a relação do marxismo e nacionalismo na China e no Peru. Militante do PSOL. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 401 (1818-1883) e Friederich Engels (1820-1895), a partir dos estudos das revoluções de 1789 e 1848. Nos estudos desses casos, a pequena burguesia deveria assumir a direção da revolução, apesar da tendência a se tornar por si própria uma nova burguesia. Após a revolução de 1848, Marx se convence de que a traição da pequena burguesia era inevitável, sendo necessário que o proletariado, apoiado por outras frações da classe trabalhadora, assumisse a direção da revolução, para levar a cabo todas as tarefas que a revolução pretendia resolver. A revolução não ficaria apenas nos marcos democráticos, mas transborda para as tarefas socialistas e só se encerra com a liquidação da sociedade de classes. Já no Manifesto do Comitê Central da Liga Comunista surge a primeira menção ao conceito de Revolução Permanente. (SACCHETTA, 1946, pp. 7-13) A Teoria da Revolução Permanente pôde ser mais elaborada a partir do estudo da revolução de 1905, na Rússia. Nela, Trotsky e Vladimir Lenin (1970-1924) divergiram acerca da possibilidade e o grau de independência do campesinato na revolução. Após os acontecimentos da Revolução de Outubro de 1917, Lenin aderiu à posição de Trotsky sobre o campesinato. Mas somente com a morte do primeiro que começou a perseguição e estigmatização em relação à TRP e sua suposta polêmica com o leninismo. Todos os velhos bolcheviques, com exceção de Lênin, tiveram uma linha recuada na Revolução de Fevereiro, não colocando a questão do poder em suas palavras de ordem. A TRP surge no contexto da Revolução de 1905, como parte do debate de que, apesar de ser uma revolução democrática, não havia clareza de que classe lideraria a revolução. A posição dos mencheviques era de que, se a revolução era de caráter burguês, cabia à burguesia liberal liderá-la. 402 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Já para Lênin, dado o caráter íntimo da relação entre burguesia e os latifundiários e a contradição dos interesses desta com os interesses do proletariado, caberia a uma aliança entre operários e camponeses a tomada do poder (Ditadura democrática dos proletários e camponeses [uma hipótese estratégica]). Trotsky defendia a mesma posição de Lênin, com a exceção de que Trotsky não pensava ser possível o campesinato assumir o poder, acabando por ficar nas mãos do proletariado. O conteúdo dessa ditadura seria dois: realização da revolução agrária e reconstrução democrática do Estado. Ou seja, a ditadura do proletariado cumpriria as tarefas democráticas da revolução burguesa, mas não pararia aí. Mesmo o capitalismo russo não estando maduro por si para uma revolução socialista, há de se considerar que o capitalismo é uma totalidade e, como tal, este já estava maduro para o socialismo. (TROTSKY, 1930, pp. 55-60) Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), diversos erros do Comintern contribuíram para o fracasso das situações pré revolucionárias em diversos países, como Alemanha, Inglaterra, Bulgária, China, Estônia, França e Espanha. Essa situação de isolamento internacional combinada com a fadiga do proletariado soviético pósGuerra Civíl e intervenção imperialista no país, serviram de base para a teoria de construção do socialismo em um só país, preparando o terreno para a ascensão do stalinismo. (SACCHETTA, 1946, pp. 2025) Stalin formula a Teoria do Socialismo em Um País em 1924, sendo esta uma teoria de caráter nacionalista. Essa teoria foi um reflexo da consolidação do poder da burocracia à frente de um estado nacional (URSS). Para isso, houveram diversas distorções acerca das posições de Trotsky, com o objetivo de desmoralizar a TRP. A caricatura II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 403 stalinista da TRP tem dois eixos: a subestimação do campesinato por Trotsky e a necessidade de etapas nas revoluções em países coloniais. A industrialização é o motor da civilização capitalista moderna. Industrialização e coletivização da terra andam juntas, como o visto pela realização da reforma agrária nos primeiros países que desenvolveram o capitalismo. O melhor ritmo de desenvolvimento socialista seria aquele que, além de desenvolver a indústria e coletivizasse a agricultura, também garantisse a estabilidade do regime, reforçando a união entre proletários e camponeses. Só existem dois rumos possíveis para isso: a construção de um socialismo nacional isolado ou a busca pela expansão do socialismo para países vizinhos. Stalin apresenta um pensamento mecânico ao separar traços gerais do capitalismo dos traços específicos, frutos das realidades nacionais próprias. São as particularidades nacionais que dão forma ao capitalismo como totalidade. O capitalismo como totalidade se expressa de maneira particular em cada país, pois não existe um capitalismo modelo abstrato. O internacionalismo proletário é baseado no papel de cada particularidade na totalidade capitalista. A interpretação stalinista está em contradição com a lei do desenvolvimento desigual do capitalismo, pois o desenvolvimento desigual que fundamenta historicamente as particularidades nacionais. A Teoria do Socialismo em Um País parte de uma interpretação de um particularismo russo que permitiria a construção do socialismo em um só país, em decorrência de seu caráter altamente original. O nacionalismo pungente e um internacionalismo frio andam juntos, associada a uma ideia da URSS como pátria do socialismo. O capitalismo já é uma totalidade global maior que a soma das partes, o socialismo deve ser uma elevação disso, não um recuo provincial para 404 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) mercados nacionais. (TROTSKY, 1930, pp. 40-45) A interdependência das economias capitalistas e a divisão internacional do trabalho torna irreal a possibilidade de um socialismo nacional, pois todos os países capitalistas dependem um do outro, em alguma medida, por mais desigual que seja. Nikolai Bukharin (18881938), em aliança com Stalin, formulou a teoria de construção lenta do socialismo em um só país. Contudo, não deve ser tarefa dos estados operários atingir a independência em relação ao mercado mundial ou construir uma sociedade socialista nacional o mais rápido possível. O internacionalismo é um dos aspectos centrais no coração da TRP. É impossível construir um socialismo nacional em um mundo capitalista internacional, pois o imperialismo juntou organicamente diversas partes do planeta em sua ação predatória. A conclusão da TRP é que a revolução deve se expandir mundialmente e não é possível construir socialismo em um só país, pois o socialismo apenas pode se concretizar internacionalmente. O raciocínio é simples: o que não avança, retrocede. Uma análise acurada só pode ser feita em escala global, não limitada pelas fronteiras nacionais. A revolução não tem freio, ela transborda suas tarefas e suas fronteiras para ir se realizando, até a vitória internacional do socialismo. A burguesia nacional teme mais seu proletariado do que a ação do imperialismo, pois em última instância se aliar a ele sempre é uma alternativa mais segura. A tomada do poder pelo proletariado se define em meio à luta política, não como uma profecia à espera do dia de se realizar. É um processo dinâmico que está em constante disputa. (SACCHETTA, 1946, pp. 30-34) A Revolução Permanente é a transformação de toda a nação sob a direção do proletariado (em aliança com o campesinato) com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 405 sua chegada ao poder. O objetivo da TRP não é saltar etapas, porém o salto sobre elas acontece a depender da dinâmica da revolução, não havendo etapas indispensáveis, pois não há meio termo entre a ditadura burguesa e a ditadura do proletariado. Três ideias se fundem na TRP: a primeira é que em países atrasados, não é a democracia que é a antessala da revolução, mas o contrário é verdade, isto é, a democracia só pode ser realizada através da revolução socialista; a segunda é que não é possível chegar em uma espécie de equilíbrio após a revolução, sendo os confrontos e dinâmicas parte da realização desta, daí seu caráter permanente que só se encerra com o fim da sociedade de classes; a terceira é o aspecto internacional da revolução, reflexo do capitalismo internacional, sendo impossível manter a revolução dentro de limites nacionais por muito tempo, sendo o resultado ou a derrota da revolução, ou a vitória desta. O caso da China é o mais emblemático dos problemas da linha do Comintern. Stalin forçou o PCCh a se submeter ao Guomindang (GMD), partido nacionalista burguês, reconhecendo este como partido dirigente. Ao fim, no auge da revolução chinesa, o PCCh foi aniquilado pelo GMD. Quando o GMD rachou, foi declarado apoio a sua ala “à esquerda”, que terminou de entregar o PCCh a Chiang Kai-shek. Após o esmagamento do PCCh, os remanescentes deste foram orientados a construção de insurreições armadas contra o GMD, o que terminou de destruir o partido. (TROTSKY, 1930, pp. 70-78) A Revolução Permanente e a China Durante a Segunda Revolução Chinesa (1925-1927), duas 406 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) linhas distintas foram debatidas no Comintern: a de Trotsky e a de Stalin. A primeira menção de Trotsky à revolução chinesa foi em 1926, citando sua posição contrária à união com o GMD em 1923. Os dois primeiros grupos comunistas na China foram fundados em 1920: o Grupo Comunista de Shanghai e sua juventude socialista, com críticas aos anarquistas e sociais democratas em sua gênese. Sua primeira grande definição política foi a linha da revolução nacional democrática (1922), um ano após a fundação do PCCh, baseada numa aliança do proletariado com camponeses pobres e a pequena burguesia, organizada em sete objetivos. (PENG, 1976, p. 37-38) Em 1922, há um giro de 180° da política do Comintern em relação à China. Mahring exige a dissolução do PCCh no GMD, o que é oposto por toda a direção do PCCh. Grigori Zinoviev (1883-1936) levanta a discussão sobre a China no Politburo em 1923, aprovando com o acordo de todos, menos Trotsky, a aliança GMD-PCCh. Isso leva ao acordo entre a União Soviética e os nacionalistas de Sun Yatsen em torno da reunificação nacional chinesa e da não aplicabilidade do socialismo em território chinês. Isso prepara o terreno para o giro de 180° no PCCh realizado em seu terceiro congresso, em 1923, apoiado na debilidade física de Lenin e na formação do “Triunvirato” (Stalin, Kamenev e Zinoviev). Esse congresso aprovou a entrada do PCCh no GMD. Na mesma época, é lançado o artigo de Mao “The Peking Coup d’État and the Merchants”, colocando esperanças na liderança da burguesia nacional contra o militarismo. Chen Duxiu (1879-1942), originalmente contra a aliança com GMD, escreve dois artigos de conteúdo muito semelhantes ao de Mao. Isso foi corroborado por um artigo escrito por Qu Qiubai (1899-1935) , em 1923. (PENG, 1976, p. 48-50) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 407 Os quadros do PCCh ficaram profundamente engajados com tarefas do GMD, sendo parte central de sua reconstrução, levando a um negligenciamento das tarefas referentes ao PCCh. Isso chegou ao auge em 1924, com a reorganização do GMD nas linhas de um partido bolchevique e a entrada de quadros do PCCh em seu comitê central. Para apaziguar a crescente oposição à cooperação com os comunistas, Sun deliberou a revisão de todas as resoluções e ordens do Comintern em relação ao PCCh. Isso foi fortemente rechaçado por Peng Shuzhi. Peng, em debate com Chen, foi apontado editor do jornal teórico do PCCh e organizou uma edição só sobre “Revolução Nacional”, em que expõe nos artigos em debate sua posição acerca da importância da direção proletária. Nesse debate, Chen revê novamente sua posição, se aproximando de Peng. O quarto congresso do PCCh, em 1925, revê sua posição acerca da classe que dirigirá a revolução, voltando a sua confiança para o proletariado, contrariamente a sua posição no último congresso de apoio a uma direção burguesa (PENG, 1976, pp. 55-56) Mais ou menos ao mesmo tempo, estourou uma greve dos trabalhadores dos moinhos de algodão, fortemente reprimida. A escalada de confrontos ao longo das semanas seguintes culminou no incidente de 30 de maio, que iniciou um maciço levante nacionalista anti imperialista em toda China. Frente às greves nacionais que se sucederam em Cantão e Hong Kong, o imperialismo britânico apostou nas divisões de classe e no medo da burguesia em relação ao proletariado para cindir o sentimento nacionalista policlassista e minar o movimento dos trabalhadores, pressionando o GMD a reprimir o PCCh. As lutas frutos de 30 de maio levaram a um giro à esquerda do PCCh, buscando ampliar seus recrutamentos, e seu confronto em 408 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) artigos com o principal teórico do GMD, limitados em razão da política de cooperação entre os dois partidos. Em agosto de 1925, Chen propôs a saída do PCCh do GMD, que foi rejeitada internamente, com o apoio do agente local do Comintern. A perspectiva apontada foi a de intervir no segundo congresso do GMD (1926), buscando levar o partido mais à esquerda. (PENG, 1976, pp. 60-61) Apesar de ampliarem sua presença na direção do GMD ao fim do congresso, os comunistas, junto à ala esquerda do GMD, foram duramente golpeados ainda em 1926, com o golpe de Cantão, arquitetado por Chiang Kai-shek. Mesmo após o golpe, a política do Comintern de cooperação com o GMD foi mantida a todo custo. Apesar dos crescentes atritos, o PCCh conseguiu organizar camponeses e trabalhadores num esforço de minar a autoridade dos senhores da guerra de Beijing, garantindo um avanço surpreendentemente rápido das tropas nacionalistas, ao longo da Expedição do Norte. As vitórias da Expedição elevaram a moral da classe trabalhadora e contribuíram para o início de um ascenso, com o surgimento de diversos sindicatos e associações camponesas. O ascenso levou a diversas dessas entidades sindicais a se confrontar com o próprio capitalismo. Ameaçadas pelo crescimento do movimento dos trabalhadores, as burguesias nacional e imperialista se organizaram em torno de Chiang Kai-shek, lhe garantindo apoio político em troca da repressão aos sindicatos e ao PCCh, o que foi aceito de pronto. (PENG, 1976, pp. 68-69) Concomitantemente, o Comintern continuava a apoiar o governo de Cantão e o GMD. Ilusões, graves ilusões permeiam as resoluções de Stalin quanto ao governo de Chiang Kai-shek. Apesar de ter tomado Shanghai, em 1927, o PCCh teve que esperar as tropas II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 409 nacionalistas chegarem à cidade, sob o risco de qualquer avanço comunista a mais significar o rompimento da frente GMD-PCCh, baseado no conceito de “bloco de quatro classes”. Já era claro a todos o golpe planejado por Chiang, mas seria impensável ir contra as resoluções do Comintern, levando o partido a um impasse Após o massacre de Shanghai, o PCCh realizou seu quinto congresso. Nele, quase não foi comentado o golpe que ocorreu a menos de duas semanas e a política adotada foi de fortalecimento de laços com a ala à esquerda do GMD. Junto a isso, foi declarado que a linha adotada era a “única linha correta”, impedindo a realização de qualquer balanço. Com a diretiva de apoiar o governo do GMD de esquerda, o PCCh assumiu dois ministérios do governo de Wuhan com o objetivo de segurar os piores excessos dos trabalhadores e camponeses, além de parar quaisquer indícios de reforma agrária. A ausência de uma organização independente dos trabalhadores, assim como a proibição expressa de organizar sovietes, levou a um refluxo contrarrevolucionário. Isso se concretizou no desmantelamento das associações camponesas e nos seguidos golpes militares nas províncias. O Comintern, de novo, centralizou o PCCh a continuar no GMD a qualquer custo. Desconfiados das intenções dos comunistas, o governo de Wuhan se reúne com Chiang Kai-shek em busca de um terreno comum para a unificação de forças. A resposta do PCCh foi de depositar mais fé no governo de Wuhan e depor armas e piquetes, além de entregar seus ministérios. (PENG, 1976, pp. 88-89) Stalin se recusou a reconhecer a situação que deteriorava e deu um giro para o aventureirismo. Isso culminou na insurreição de Nanchang. Em uma conferência extraordinária, jogaram toda a culpa do fracasso da “frente única” chinesa em Chen Duxiu. Após o episódio 410 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de Nanchang, os próximos passos foram as insurreições de Hubei e Hunan e o movimento pela formação do soviete de Hailufeng, também de caráter insurrecional, culminando na insurreição de Cantão, todas em 1927. (PENG, 1976, pp. 92-95) O debate sobre as posições stalinistas e trotskistas nas principais polêmicas na China podem ser sistematizados em seis pontos: Primeiro, a atitude de cada classe em relação à revolução anti imperialista. Stalin defendeu a formação de um bloco de 4 classes (burguesia, pequena burguesia, campesinato e proletariado), pois todos sentiriam o peso do imperialismo de maneira semelhante. Trotsky discorda e defende que o imperialismo na verdade amplifica as divisões de classe, em vez de amortece-las, pois a burguesia sempre vai trair o bloco em favor do imperialismo. Segundo, a questão da independência do partido comunista. Stalin defende que o Guomindang é a melhor expressão do bloco de quatro classes, e portanto o PCCh deveria ser parte dele. Trotsky defende um PCCh independente, sob o risco de ser aniquilado pela burguesia, o que efetivamente ocorreu em 1927. (PENG, 1976, pp. 95-99) Terceiro, o problema dos sovietes. Stalin foi contra a criação de sovietes e apostou na organização por dentro do GMD. Trotsky defendeu a criação de sovietes (unindo soldados, trabalhadores e camponeses), para a organização da tomada do poder e unificação da classe. Quarto, o problema da estratégia após a derrota da revolução. Após a derrota do PCCh com o golpe de Chiang, Stalin deu um giro que veio a ser conhecido como “Terceiro Período”, ordenando a organização de insurreições armadas a partir dos restos do PCCh. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 411 Trotsky defendeu a adoção de uma política defensiva (programa transitório de reivindicações democráticas) por parte do PCCh, para preservar o que restava do partido. A linha de Stalin desembocou na Longa Marcha. Com a mudança de política em 1935, no sétimo congresso do Comintern, e o lançamento das Frentes Populares, o PCCh mudou sua orientação de derrubar o GMD para construir uma nova “frente única” com este partido. Após o incidente de Xian, o PCCh depôs armas e se integrou ao governo do GMD, através da garantia que este lideraria a luta contra o Japão. (PENG, 1976, pp. 100-108) Quinto, a questão da natureza da revolução chinesa. Stalin defendia a ideia de revolução por etapas, com um primeiro estágio democrático-burguês e um outro momento socialista. Trotsky já defendia as linhas principais do que depois ele organizou na Teoria da Revolução Permanente. Após a vitória da terceira revolução chinesa em 1949, o PCCh não imediatamente começou a implementação de seu programa, defendendo a noção de revolução por estágios. Contudo, a ameaça do imperialismo americano e da contrarrevolução interna empurraram o PCCh a adotar medidas de cunho socialista. Em 1956, a China foi declarada uma ditadura do proletariado. Sexto, a política em relação à guerra sino-japonesa. Devido a caráter contraditório da guerra (agressão reacionária do Japão e resistência justa liderada pelo reacionário Chiang Kai-shek), diversas posições se desenvolveram. A adotada pelo PCCh foi ultra oportunista, abrindo mão de tudo por um apoio acrítico a Chiang. A posição ultraesquerdista sectária era a de que ambos os lados são reacionários, logo indignos de apoio, culminando em uma posição derrotista. Essa última posição foi adotada pela maioria dos trotskistas chineses. 412 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky defendeu uma linha de participação na luta, mas mantendo a independência e programa próprios. Dessa forma, é possível dividir a história do PCCh em sete períodos: primeiros anos, entrada no GMD, crescimento no movimento operário, discordâncias entre PCCh e o Comintern, derrota do PCCh, giro ao Terceiro Período, giro para a frente popular. (PENG, 1976, pp. 118-120) Conclusão Apesar da afiliação do PCCh, e de Mao Zedong, seu dirigente mais importante, ao marxismo-leninismo soviético, não foram poucas as vezes que as linhas políticas impostas exteriormente pelo Comintern levaram o partido à beira da extinção. O esforço de cooperação e respeito mútuo entre as direções partidárias foi constantemente atropelado por uma tentativa de reproduzir na China um suposto modelo universal de revolução à partir da experiência russa. Essa relação só deixou de ser assimétrica com a vitória da revolução chinesa em 1949, a contragosto de Stalin, que tentou negociar a possibilidade de duas chinas divididas ao longo do Yangtzé. Os trotskistas chineses cometeram erros sectários ao longo de sua trajetória, o que foi decisivo para o insucesso na sua tentativa de ganhar relevância como corrente política. Contudo, as linhas defendidas por Trotsky se mostraram mais corretas quando comparadas com as linhas do Comintern. A defesa do PCCh de linhas próximas às preconizadas por Trotsky foram essenciais para sua sobrevivência e a sua consequente vitória. Mesmo quando não adotou as posições de Trotsky, o PCCh acabou sendo empurrado para posições muito II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 413 semelhantes para preservar suas conquistas, como o que ocorreu na quarta e na quinta polêmica citadas acima. Em um ambiente de debate democrático no movimento comunista internacional, seria possível uma o desenvolvimento de posições que não precisam prestar homenagem a uma ideologia oficial e que, quando não fizessem isso, não fossem associadas a uma inerente posição herética, como foram as posições trotskistas. Referências bibliográficas: TROTSKY, Leon. A Revolução Permanente. São Paulo: Expressão Popular, 2007. TROTSKY, Leon. Leon Trotsky on China. New York: Pathfinder Press, 1976. 414 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PARTE VI TRÓTSKI E A REVOLUÇÃO ALEMÃ II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 415 La revolución alemana de 1923 y la formación del trotskismo Luis Brunetto1 La revolución alemana de 1923, el Octubre alemán, es un hecho decisivo en el proceso de constitución del trotskismo como corriente política, porque marca el final del ciclo revolucionario que abrió la revolución de Octubre de 1917. En numerosas oportunidades Trotsky mismo se refirió a ese período como un ciclo revolucionario que va desde el triunfo bolchevique en Rusia hasta el fallido levantamiento de octubre de 1923 en Alemania. Es absolutamente sensato y lógico que Trotsky estableciera estas fechas como límites de inicio y de finalización de este período porque justamente en la perspectiva revolucionaria de los bolcheviques el triunfo en Alemania implicaba el cumplimiento de uno de los requisitos fundamentales de la extensión mundial del proceso revolucionario. Me permito para ilustrar este punto citar el muy conocido discurso de Lenin en la Estación Finlandia de Petersburgo, el día de su retorno desde el exilio en abril de 1917: “De pie en medio del salón parecía como si todo lo que estaba ocurriendo allí no tuviera nada que ver con él. Miraba a derecha e izquierda, se fijaba en los 1 Historiador y periodista, Director de Estación Finlandia, Codirección con Daniel López del documental Catorcedoscincuenta, autor de los libros ¡14250 o Paro nacional!: bases obreras, direcciones sindicales y peronismo en la crisis del rodrigazo, Junio y julio de 1975 (Estación Finlandia, Buenos Aires, 2007); Imperialismo, burguesía nacional y revolución permanente. Un análisis de los escritos latinoamericanos de León Trotsky (EAE, Barcelona, 2012); El camino hacia Oktubre (Sudestada, Buenos Aires, 2017); Fui, soy, seré: Rosa Luxemburgo y la revolución alemana (Sudestada, Buenos Aires, 2018). 416 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) que le rodeaban, clavaba los ojos en el techo, arreglaba su ramo de flores que armonizaba muy mal con su figura, y después, volviendo completamente la espalda a la delegación del Comité ejecutivo, «contestó» del modo siguiente: “Queridos camaradas, soldados, marineros y obreros: Me siento feliz al saludar en vosotros a la revolución rusa triunfante, al saludaros como a la vanguardia del ejército proletario internacional… No está lejos ya el día en que, respondiendo al llamamiento de nuestro camarada Carlos Liebknecht, los pueblos volverán las armas contra sus explotadores capitalistas… La revolución rusa, hecha por vosotros, ha iniciado una nueva era. ¡Viva la revolución socialista mundial!…” (TROTSKY, 1985, p. 240)2 Cómo se ve, y por supuesto no estoy diciendo nada nuevo ni que la audiencia de esta mesa no sepa de sobra, la perspectiva del triunfo de la revolución alemana era no solamente clave en la estrategia revolucionaria del bolchevismo, sino que, como que además tenía para Lenin tenía una importancia incalculable por múltiples razones. Era su primer discurso al retorno del exilio y su primer mensaje a la clase obrera revolucionaria rusa. Contenía, además, un clarísimo mensaje en el sentido de que la revolución no podía detenerse hasta darle el poder al proletariado, dirigido tanto a los demás “partidos soviéticos” como al ala derecha de su partido encabezada entonces por Kámenev y Stalin, que desde la Pravda promovían la política de un bolchevismo “ala izquierda” del soviet reformista y oposición leal al gobierno provisional. En ese discurso, que es como él mismo dice, la primera proclama de “una nueva era”, Lenin ubica a la revolución rusa como 2 Trotsky cita las memorias del menchevique internacionalista Nikolái Sujánov. Contato: brunettoluis@yahoo.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 417 prolegómeno de la revolución alemana: “En la estación de Finlandia, al volver la espalda a Cheidse para volverse de cara a los marineros y los obreros, al abandonar la defensa de la patria para apelar a la revolución mundial y trocar el gobierno provisional por Liebknecht, Lenin anticipaba como un pequeño ensayo la que había de ser toda su política ulterior” dice Trotsky (TROTSKY, 1985, p. 240)3. Ahora bien: esta perspectiva revolucionaria mundial del bolchevismo no estaba implícita ni se desprendía automáticamente de la trayectoria anterior del partido. Los bolcheviques habían sido educados en la fórmula de la dictadura revolucionaria del proletariado y los campesinos, y ya desde el discurso en la Estación Finlandia, y mucho más desde la conferencia del partido en la que la intervención de Lenin ha quedado registrada en sus conocidas Tesis de Abril, intervención de la que el propio Sujánov, que militaba en el grupo menchevique internacionalista de Martov y que había sido invitado por Kámenev, fue testigo y a la que describió como “un martillazo en la cabeza”. El “martillazo en la cabeza” no sólo aturdía a los extraños como Sujánov, sino a los propios, a quienes estaba dirigido en primer lugar. Es que esas tesis de Lenin se apoyan en el concepto de “revolución permanente”, al que Lenin había llegado según Trotsky, en forma “infinitesimal”. Esa reorientación que Lenin promovió en su partido no sin lucha, es evidente que fue la base de la reconciliación con Trotsky y su ingreso al bolchevismo que, creo yo, es algo que Lenin 3 Cheidse era el presidente menchevique del Sóviet de Petrogrado. En su discurso de bienvenida se dirigió a Lenin del siguiente modo “...entendemos que en la actualidad la principal misión de la democracia revolucionaria consiste en defender nuestra revolución contra todo ataque, tanto de dentro como de fuera... Confiamos en que usted abrazará con nosotros estos mismos fines.” Trotsky (1985, p. 240). 418 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) siempre esperó y promovió activamente desde la mismísima ruptura de 1903, independientemente de los cruces más o menos virulentos que los separaron hasta 1917. Vale la pena recordar que fue Lenin quien “descubrió” a La Pluma, el joven que todavía no era Trotsky, y cuya presencia en Londres y su integración a la redacción de la vieja Iskra fue el primero en propiciar. Sobre la base de esa colaboración, basada en la admisión de facto por Lenin de la teoría de la revolución permanente, y de la admisión explícita por parte de Trotsky de la teoría bolchevique de partido, que había rechazado en 1903 pero ahora aceptaba haciendo suyo el concepto del centralismo democrático, se construyó la hegemonía de estos dos jefes revolucionarios sobre un partido que, sin ellos, no hubiese tomado el poder en Octubre del ‘17. La revolución de Octubre es muchas cosas, pero a escala del partido bolchevique, es la primera gran consecuencia política de la hegemonía de Lenin y Trotsky sobre el partido. Un Lenin clandestino tras las jornadas de julio, obligado a sublevar a la base de obreros y soldados bolcheviques contra un aparato partidario que resiste la necesidad de la insurrección, es el que pone al servicio de Trotsky el partido con el que el presidente del Soviet de Petrogrado organiza en forma meticulosamente brillante el asalto al poder. Podría parecer una exageración, pero es un hecho que la revolución de Octubre exigió primero, o al unísono, una lucha encabezada por Lenin por enderezar el rumbo del partido hacia la insurreción, una lucha apoyada en la voluntad de las bases de obreros y soldados del partido contra la pasividad o, como en el caso de Zinoviev y Kámenev, directamente la resistencia de la vieja guardia y del aparato, de la que podría decirse que tuvo en Trotsky al único II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 419 apoyo incondicional de principio al fin. En su Historia… Trotsky lleva este razonamiento al extremo de considerar que la revolución de Octubre no podría haber triunfado si Lenin hubiese sido asesinado durante las Jornadas de Julio. Él, un recién llegado, sostiene, no habría podido convencer al partido de la necesidad imperiosa de pasar a la acción insurreccional. Y, en la vigencia de esta hegemonía dirigente en el partido, la revolución alemana representaba un aspecto decisivo. Durante la crisis alrededor de la paz de Brest- Litovsk, en la que la escisión fue una posibilidad práctica, el anatema lanzado contra Lenin y Trotsky por los comunistas de izquierda encabezados entonces por Bujarin y Preobrazhensky es justamente el de “abandonar a Liebcknecht y a la revolución alemana”. La novemberrevolutionen del ‘18 y la sublevación espartaquista de enero del ‘19, lanzada a pesar de la oposición tanto de los bolcheviques como de Rosa Luxemburgo, contaron con el apoyo político y material de los bolcheviques. La propia decisión de poner en práctica la tarea de organizar la nueva Internacional fue consecuencia directa de la revolución del ‘18- 19, y repetidas veces Lenin propuso trasladar su sede a Alemania para contrarrestar la tendencia a que se convirtiera en un apéndice del partido ruso. En definitiva, la hegemonía Lenin- Trotsky era la hegemonía de un programa, el programa de la revolución permanente, aunque como señalara Trotsky al respecto, no se volviera a hablar de ella hasta que la troika Zinóviev- Kámenev- Stalin la devolviera al centro de la discusión cuando desató la lucha contra el “trotskismo”. Y el objetivo práctico fundamental en el contexto de ese programa era la victoria de la revolución alemana. Ningún otro triunfo revolucionario podría haber cumplido el papel de la victoria alemana. Alemania era 420 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) entonces la principal potencia industrial de Europa y había disputado la supremacía económica mundial con la decadente Gran Bretaña y los EEUU en ascenso, y era un objetivo de las potencias capitalistas vencedoras en la primera Guerra convertirla y reducirla de potencia imperialista a semicolonia. El triunfo de la revolución alemana, entonces, era concebido como el siguiente mojón en el proceso abierto por la revolución de Octubre. En la perspectiva de Lenin y Trotsky, la reconstrucción socialista en Alemania hubiera abierto el camino a choques decisivos con la burguesía mundial. Resulta lógico imaginar que una reconstrucción socialista alemana hubiera dado como resultado un poderío económico superior al que produjo la reconstrucción burguesa bajo Hitler, además de que hubiera facilitado la victoria del partido Comunista, en principio, en las extremadamente importantes Austria y Hungría, cuyos procesos revolucionarios se desarrollaron prácticamente al unísono con la novemberrevolutionen alemana al compás del desmoronamiento de los imperios alemán y austrohúngaro, en un proceso cuyos cauces y ritmos tendían a unificarse. Y, por supuesto, hubiese sido un golpe decisivo a las perspectivas del desarrollo del fascismo. Pero el costado débil de esta hegemonía era justamente Trotsky. Su condición de recién llegado al bolchevismo habilitaba los celos y las intrigas contra el número 2 de Lenin. Cualquiera que conozca mínimamente la historia de la revolución rusa sabe que los mensajes, saludos, discursos en cualquier instancia partidaria que fuera, iban dirigidos a Lenin y Trotsky, y la prensa extranjera y el público en general usaba frecuentemente la expresión “el partido de Lenin y Trotsky, para referirse al partido bolchevique. Por eso, durante su colaboración activa, Lenin ofreció incluso en exceso, con ese celo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 421 que lo caracterizaba para remarcar aquello que le parecía fundamental, señales políticas de confianza. Desde aquella frase de “desde que ingresó al partido no hay mejor bolchevique que Trotsky” a la hoja en blanco con membrete del Sovnarkom en la que estampó su firma ante la mirada atónita de los quejosos dirigentes de la vieja guardia, celosos del poder y la popularidad del organizador del ejército rojo. Esa endeblez de Trotsky dentro del partido, a pesar de su condición de número 2 de la revolución y de su popularidad entre la clase obrera ganada con sus propios méritos como dirigente práctico de Octubre y luego como Comisario de Guerra y jefe del Ejército Rojo, quedó expuesta en el proceso político que se desató a partir del primer ataque de Lenin. La lucha por la sucesión sacó a la luz la profundidad del proceso de burocratización que se había desarrollado a partir aislamiento de la Rusia Soviética y de la instauración del la NEP que debió adoptarse como respuesta a la emergencia económica y social posterior a la guerra civil. La primera expresión política de esa burocratización que Lenin empezó a contemplar con horror luego de su provisoria recuperación, era la Troika Zinoviev-Kámenev- Stalin, en la que el georgiano jugaba un papel la astutamente auxiliar, un discreto segundo plano, desde su cargo de secretario general. Fue la troika justamente, la que introdujo por iniciativa de Zinoviev y Kámenev el uso del término “trotskismo” como un rótulo negativo para conjurar el peligro que significaba para la burocracia la continuidad de la perspectiva revolucionaria permanente, es decir mundial. Su consecuencia directa fue, por tanto, la creación de las condiciones para que, a la teoría de la revolución permanente se opusiera el engendro de la posibilidad del “socialismo en un sólo país.” En ese contexto de controversias decisivas acerca de la orientación de 422 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la Internacional Comunista, no hay que perderlo de vista, es que se produjo la derrota, o la capitulación sin lucha mejor dicho, del Octubre alemán. La revolución alemana Pero hagamos un breve raconto sobre el proceso revolucionario alemán abierto por la novemberrevolutionen de 1918. Ese proceso tuvo como hitos la sublevación espartaquista de enero de 1919 en la que fueron asesinados Liebcknecht y Rosa Luxemburgo; la huelga general contra el putsch de Kapp, con la formación del Ejército Rojo del Ruhr, con cifras que distintos autores ubican entre 30 y 100 mil obreros armados; la ultraizquierdista Acción de Marzo del 21; y por último, el Octubre alemán del ‘23. En los albores de ese proceso, en diciembre de 1918, durante los acontecimientos revolucionarios de 1918, nace alrededor de la corriente espartaquista que habían organizado Liebcknecht y Rosa Luxemburgo, el Partido Comunista Alemán (KPD). Ya de entrada su base “ultraizquierdista” impone sus deseos políticos a la dirección. En el Congreso fundacional, y contra la posición de Rosa y Leo Jogiches, de Paul Levi, del representante de los bolcheviques Karl Rádek, y de la mayoría de la Zentrale (el Comité Central) se aprueba por abrumadora mayoría el boicot a la participación en las elecciones para la Asamblea Nacional convocada por el gobierno socialdemócrata, de la que participaría el 19 de enero nada menos que el 83% de la población alemana. Durante la sublevación espartaquista de enero del ‘19, la Zentrale resolvió el 10 de enero retirarse del Comité Revolucionario que dirigía la acción, pero el propio Liebcknecht II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 423 desobedeció. El resultado fue el aplastamiento de un levantamiento que se había iniciado con una huelga general armada de la clase obrera berlinesa y el asesinato por los freikorps de Rosa y Liebcknecht. Es decir: el descabezamiento del partido recién nacido. Uno se pregunta por las conclusiones que una cabeza tan formidable como la de Rosa, de haber sobrevivido, pudiera haber sacado de la rebelión derrotada de enero… Esa tendencia ultraizquierdista se volvió a manifestar durante el putsch de Kapp en 1920, cuando el partido se declaró neutral frente al asalto al poder por parte de las freikorps y ante el que la clase obrera alemana había reaccionado con una huelga general total, que atravesó al país de una punta a la otra, y con la conformación del ejército Rojo del Ruhr, del que los estudiosos más conservadores sostienen que contaba con unos 30 mil obreros armados. Paul Levi, que había asumido la dirección del partido alemán después del asesinato en marzo del 19 de Jogiches, promovió una política que pretendió revertir la orientación ultraizquierdista predominante, y que contenía los elementos fundamentales de lo que después sería la táctica del frente único adoptada por el III Congreso de la IC. En el segundo congreso del partido, en Heildelberg a fines de 1919, y en toda una serie de escritos suyos, denostó las tácticas que luego Lenin bautizaría como “izquierdistas” en El izquierdismo, enfermedad infantil del comunismo. Frente a la agitación ultrasectaria que el KPD emprendió frente al putsch de Kapp, envió desde la cárcel de Moabit una carta fuertemente crítica y, finalmente, promovió en el Ejecutivo la declaración de “Oposición leal” en la que, como salida al vacío de poder abierto por la derrota de Kapp a manos de la clase obrera, promovía la aceptación por el KPD bajo ciertas condiciones de 424 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la propuesta de formación de un gobierno obrero que había realizado el socialdemócrata Legien. Respecto a esta declaración, Lenin decía en El izquierdismo… lo siguiente: “Esta declaración es absolutamente justa tanto en la premisa fundamental como en su conclusión práctica. La premisa fundamental es que, en el momento actual, no existe ‘base objetiva’ para la dictadura del proletariado, por cuanto la ‘mayoría de los obreros urbanos’ apoya a los independientes. Conclusión: promesa de constituir una ‘oposición leal’[es decir, renuncia a preparar ‘un derrocamiento violento’] a un ‘gobierno socialista si éste excluye a los partidos burgueses-capitalistas’. Pero después dice: ‘jamás se deben escribir cosas como las que contiene el párrafo cuarto de la declaración, que dice: Un estado de cosas en el que se goce sin restricciones de libertad política y en el que la democracia burguesa no pueda actuar como la dictadura del capital, es de la mayor importancia, desde el punto de vista del desarrollo de la dictadura del proletariado, para seguir ganando a las masas proletarias para el comunismo…’ Semejante estado de cosas es imposible. (…) Habría bastado decir (si se quería dar muestras de cortesía parlamentaria): mientras la mayoría de los obreros urbanos siga a los independientes, nosotros, los comunistas, no debemos hacer nada por impedir que esos obreros se desembaracen de sus últimas ilusiones democrático-pequeñoburguesas (es decir ‘burguesas-capitalistas’) haciendo la experiencia de tener un gobierno ´propio’. Esto es motivo suficiente para un compromiso, que es verdaderamente necesario y que debe consistir en renunciar durante cierto tiempo a todo intento de derrocamiento violento de un gobierno que cuenta con la confianza de la mayoría de los obreros II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 425 urbanos.” (LENIN, 1973, p. 210). Cito este comentario de Lenin porque separa perfectamente a las dos mitades de la posición de Levi: la mitad correcta y la mitad incorrecta. Levi, según interpreto yo, creía que el ciclo revolucionario se hallaba ya liquidado y su promoción de la táctica del frente único tenía que ver más con la idea de la conquista de las masas que con la conquista del poder. Pero hay que admitir que fue resultado de la política que Levi promovió que el KPD se convirtiera en un partido de masas, explotando la división del partido de los socialdemócratas independietntes en el Congreso de Halle, un congreso en el que el tema crucial fue la adhesión o no a la IC y del que participó como orador el propio Zinoviev, presidente de la IC. El resultado fue un partido que pasó a contar con alrededor de 400 mil miembros. Pero en el contexto de las discusiones acerca de la organización de la IC, Levi resistía la idea de una IC “sucursal del partido ruso”. Se trata de una cuestión con la que Lenin y Trotsky tenían un acuerdo absoluto, pero que precipitó su expulsión de la IC y del KPD luego de haber hecho pública su posición opuesta a la expulsión de los centristas italianos dirigidos por Serrati en el Congreso de Livorno, oponiéndose a la creación del PCI promovida por Gramsci. Se trataba de una violación de la disciplina que fue aprovechada por Zinoviev y Rakosi, enviado de la IC, y los “ultraizquierdistas” alemanes promotores de la llamada teoría de la ofensiva (los posteriomente stalinistas Ruh Fischer y Arkadi Maslow, dirigentes del KPD de Berlín), para atacarlo. Levi renunció entonces a la Zentrale, algo que Lenin, que compartía en general sus puntos de vista, consideró inexplicable. La nueva dirección, con Heinrich Brandler a la cabeza, y bajo la presión directa de Bela Kun, el fracasado dirigente de la revolución húngara 426 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) del ‘19, patrocinado por Zinoviev y Bujarin desde la dirección de la IC, abandonaría la política de “frente único” que patrocinó Levi y retomaría la línea ultraizquierdista defendida por el partido berlinés. El resultado sería la completamente putchista Acción de Marzo del ‘21, un absoluto fracaso político y militar del KPD. que Levi criticará furiosamente en Nuestro camino: contra el putschismo (LEVI, 2021). Pero la crítica de Levi no se detendrá en las fronteras de Alemania, y apuntará contra el funcionamiento de la IC, la imposición por los dirigentes rusos de líneas y cursos de acción políticos y la idea de una IC apéndice del partido ruso. La respuesta de Zinoviev y la IC fue su expulsión el 29 de abril, luego de la previa expulsión por parte de la Zentrale del KPD. Trotsky dice en la Pravda del 6 de enero de 1922 en “Paul Levi y algunos izquierdistas”: “Levi se opuso no sólo a los errores de marzo, sino también al partido alemán y a los trabajadores que habían cometido estos errores. En su temor de que el tren del partido sufriera un descarrilamiento tomando una curva peligrosa, Levi, a causa del miedo y el rencor, cayó en tal frenesí que diseñó una ‘táctica’ de salvación que lo envió abajo por el terraplén.” (TROTSKY, MIA) Y Lenin diría en su “Carta a los Comunistas alemanes” del 17 de diciembre de 1921: “Defendí y tuve que defender a Levi por cuanto sus adversarios se limitaban a vociferar acerca del menchevismo y del centrismo y se negaban a ver los errores de la acción de marzo y la necesidad de explicarlos y corregirlos. […] Levi tuvo que ser expulsado por violar la disciplina.” (LENIN, 1973) Aun así, Lenin le envió una carta a través de Clara Zetkin ofreciendóle la readmisión en el partido bajo ciertas condiciones, que Levi rechazó. A mi juicio, Levi era un hombre muy inteligente, al que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 427 Lenin valoraba mucho, pero que nunca dejó de ser un socialdemócrata. Su planteo del frente único se detenía por así decir en el problema de la conquista de las masas, sin plantearse el problema de que esa conquista tenía como fin la conquista del poder. No pudiendo llevar a la IC por ese camino, terminó violando la disciplina partidaria creyendo que podría emprender un curso intermedio absolutamente fallido entre la perspectiva bolchevique y la de la socialdemocracia tradicional. Es, entonces, en el contexto de estos vaivenes alemanes y de los choques que empezaban a desarrollarse en la Rusia Soviética alrededor de la sucesión de Lenin y de las perspectivas de la revolución, es que la nueva dirección del centrista Brandler debió afrontar la tarea de acometer el asalto al poder. El Octubre alemán En el Informe de diciembre del ‘22 al IV Congreso de la IC, dice Trotsky: “En el Cuarto Congreso nos enfrentamos concretamente a la cuestión de un gobierno obrero con respecto a Sajonia. Allí los socialdemócratas, junto con los comunistas, comprenden una mayoría ante la burguesía en el landtag sajón. Creo que hay 40 diputados socialdemócratas y 10 diputados comunistas, mientras que el bloque burgués totaliza menos de 50. Y así, los socialdemócratas les propusieron a los comunistas la formación conjunta de un gobierno obrero en Sajonia. En nuestro partido alemán hubo algunas dudas y vacilaciones sobre este tema. La cuestión se examinó aquí en Moscú y se decidió rechazar la propuesta. ¿Qué quieren realmente los socialdemócratas alemanes? ¿Qué pretendían con esta propuesta? Todos ustedes saben que la república alemana está encabezada por 428 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) un socialdemócrata, Ebert. Bajo Ebert hay un gobierno burgués, llamado al poder por Ebert. Pero en Sajonia, uno de los sectores más proletarizados de Alemania, se propone instituir un gobierno del trabajo, de la coalición entre socialdemócratas y comunistas. El resultado sería: un verdadero gobierno burgués en Alemania, sobre el país en su conjunto, mientras que en el landtag de una de las regiones de Alemania estaría actuando como un pararrayos una coalición gubernamental socialdemócrata y comunista. En el Comintern damos la siguiente respuesta: si ustedes, nuestros camaradas comunistas alemanes, opinan que es posible en Alemania una revolución en los próximos meses, entonces les aconsejamos que participen en Sajonia en un gobierno de coalición y utilicen sus puestos ministeriales en Sajonia para el fomento de las tareas políticas y de organización y para transformar a Sajonia, en cierto sentido, en un campo de batalla comunista para tener un baluarte revolucionario ya reforzado en un período de preparación para el estallido próximo de la revolución. Pero esto sólo sería posible si la presión de la revolución ya se hiciera sentir, sólo si ya estaba al alcance de la mano.” (TROTSKY, MIA) Esta situación que Trotsky había descripto y la IC había discutido, es lo que se materializaría casi a la perfección en el Octubre del´23 (BROUÉ, 2020).4 Por empezar, la ocupación del Ruhr por las tropas franco- belgas produjo un estado de agitación general. El KPD comenzó a crecer en toda Alemania disputando exitosamente con la ultraderecha y los nazis, especialmente en la zona del Ruhr, la lucha por la conquista del sentimiento nacional contra la ocupación. Eso exigió una política audaz, empezando por la reorganización de las Centurias 4 De aquí en adelante el texto se apoya en las investigaciones y conclusiones de Broué. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 429 Proletarias, grupos de choque que el partido usaba para la autodefensa y para disolver demostraciones nazis o ultraderechistas. Especialmente en Sajonia y Turingia, donde gobernaban los socialdemócratas de izquierda con voto de confianza de los comunistas, las Centurias actuaban abiertamente. Según Pierre Broué el KPD contaba con mayoría en 2 mil de los 20 mil consejos de fábrica del país, que habían puesto en pié comités de control de precios, de abastecimiento y de alquileres impulsados por los consejos de fábrica. Die Rothe Fane duplicaba la tirada del Vorkwarts, el órgano de la socialdemocracia oficial. En junio se da una primera oleada de huelgas contra el gobierno de Willheim Cuno, que representaba el interés directo de los grandes industriales. Para el 29 de julio las Centurias Proletarias llaman a una manifestación armada en las principales ciudades, que es prohibida salvo en Sajonia y Turingia. El partido acepta la prohibición y se realizan actos en locales cerrados para evitar provocaciones que en Berlín reunieron a 200 mil personas. En Chemnitz, la ciudad de Brandler, en Sajonia, 60 mil centurias desfilan armados abiertamente, en Dresde 20 mil y 30 mil en Leipzig, todo en Sajonia. En Gotha, en Turingia, 25 mil (BROUÉ). A principios de agosto la ola de huelgas rebasa a las direcciones socialdemócratas y es impulsada desde el Congreso de los Consejos de Fábrica. La huelga de la imprenta nacional de billetes a iniciativa de la célula comunista juega un papel simbólico en las condiciones de un país que atraviesa una hiperinflación inaudíta. Las Centurias Proletarias confiscan ganado en Halle y Leipzig y lo distribuyen entre la población trabajadora. La ola de huelgas y disturbios se extienden por toda Alemania. El 12 los tiroteos dejan 30 muertos, el 13 más 430 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de 100. Cae Cuno y se forma un nuevo gobierno del gran capital ahora dirigido por Gustav Stresseman, al que el Reischtag confiere “plenos poderes”, con participación del PSD de derecha, con Rudolf Hilferding, el mismo que influyó en la teoría del imperialismo de Lenin, en Finanzas… En estas condiciones se realiza en Rusia la reunión decisiva entre la dirección de la IC y la dirección del partido alemán. Brandler. Zinoviev, Trotsky y Radek promueven el levantamiento. Stalin no cree que haya condiciones, según deja constancia en una carta a Bujarin. Brandler pide que Trotsky vaya a dirigir la insurrección, pero Stalin y Zinoviev se oponen: ¡un Trotsky victorioso no sólo en Rusia sino también en Alemania era algo imposible de permitir! El plan insurreccional está, sin embargo, casi calcado del informe de Trotsky al IV Congreso de la IC. Mientras el gobierno prohíbe a las Centurias en todo el país, los gobiernos SDI de Sajonia y Turingia resisten la prohibición. El gobierno amenaza con entrar a esos estados y liquidar a las Centurias, del mismo modo que amenaza al gobierno ultraderechista de Baviera, aunque su verdadero objetivo es liquidar las Sajonia y Turingia rojas. El KPD acepta unirse al gobierno de Zeigner en Sajonia el 10 de octubre, y al de Turingia de August Frölich el 13. El fin es usar el aparato estatal para armar al proletariado. En el Congreso de los Consejos de Fábrica de toda Alemania, reunido el 21 de Octubre en la Chemnitz que es el bastión político del propio Brandler, el jefe del KPD propone la huelga general para defender a los gobiernos obreros de Sajonia y Turingia, defensa sobre cuya base se apoyaba la estrategia del plan insurreccional. El ministro de trabajo de Sajonia se opone y Brandler, en nombre de la unidad, retira II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 431 la propuesta. El KPD entrega así, sin combate, todas las posiciones. En Hamburgo, cuyos dirigentes no fueron informados a tiempo de la capitulación en Chemnitz, hay combates que dejan un saldo de 21 comunistas y 17 policías muertos. Un mes después, en la ex república soviética y ahora ultraderechista Baviera, Hitler es derrotado en el putsch de la cervecería, pero en una Alemania en la que el poder está a las manos de quien esté dispuesto a afrontar una prueba de fuerza, los nazis conquistan una posición que el KPD alemán pierde… Para no extenderme demasiado más, veamos brevemente cuáles son las consecuencias políticas de la frustración alemana en el partido bolchevique. Sin dudas, representa una derrota decisiva de Trotsky en un momento además en que Lenin ha estado, por su enfermedad, completamente ausente de las discusiones y las decisiones tomadas. El espíritu internacionalista y de reavivamiento del sentimiento revolucionario que según numerosos observadores y testigos de todo tipo se había apoderado de la sociedad soviética en los meses previos detrás de la perspectiva del triunfo alemán, se estrelló contra lo que parecía ser la prueba de que la revolución mundial, al menos en lo inmediato, ya no era posible. Decenas de miles de soldados el ejército rojo, de Komsomols, de estudiantes, se habían preparado para una conflagración decisiva, para un nuevo Octubre cuyo triunfo hubiera representado la estabilización del proceso revolucionario mundial, que hubiera conquistado en Alemania su punto de apoyo más decisivo. En las altas esferas de la IC y del partido bolchevique la troika, que con Zinoviev a la cabeza se había convertido en la campeona del triunfo alemán, se reorientó oportunistamente poniendo como chivo expiatoria a Brandler, descabezando por enésima vez en menos de un lustro al KPD. La oposición de Trotsky a usar a Brandler como chivo 432 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) expiatorio, que era la posición que correspondía, no podía más que representar un escombro más de la derrota que caía sobre sus espaldas. La troika presentó a Trotsky como el patrocinador de Brandler y el promotor de una aventura para la que, descubría ahora contra lo que había sostenido antes, no había condiciones. El fracaso alemán fue presentado como un intento de Trotsky de colgarse una nueva medalla en su ego. Fue Stalin quien, invocando su “advertencia” a Bujarin, capitalizaría a fondo la situación. El no se había equivocado y no se había dejado embrujar por los cantos de sirena de la revolución alemana y mundial. Ahora la troika quedaba en su bolsillo, y aprovechando el relato ya construido por Zinoviev y Kámenev, ya podía empezar a librar la lucha contra el trotskismo, sólo que ahora en nombre de su omnímodo poder personal como representante de la burocracia. El stalinismo fundaba así al trotskismo. La muerte de Lenin en enero de 1924 barrería el último obstáculo a la consolidación definitiva de su poder personal sobre el partido y sobre el estado obrero. Epílogo: un breve balance de Trotsky sobre el Octubre alemán En la siguiente entrevista de CLR James a Trotsky creo que está contenido el mejor “balance breve” posible sobre el Octubre alemán: “James.- Brandler llegó a Moscú convencido del éxito de la revolución ¿Qué le hizo cambiar de parecer? Trotsky.- mantuve numerosas entrevistas con Brandler. Me decía que lo que le atormentaba no era la toma del poder sino qué hacer después. Yo le decía: “Veamos, Brandler, dice usted que las perspectivas son buenas pero la burguesía está en el poder, controla el estado, la policía, el ejército, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 433 etc. La cuestión es romper ese poder.” Brandler tomó muchas notas durante muchas discusiones conmigo. Pero ese arrojo no era, por su parte, más que la cobertura de sus temores secretos. Fue a Chemnitz y allí se encontró con los jefes de la socialdemocracia, una colección de pequeños Brandler. Y en su discurso les comunicó sus temores secretos gracias a la misma manera en que les habló. Naturalmente ellos retrocedieron y este estado de ánimo derrotista afectó a los obreros. Durante la revolución rusa de 1905, se desarrolló una discusión en el soviet para saber si íbamos a desafiar al poder zarista con una manifestación en el aniversario del domingo sangriento. Hoy en día todavía no sé lo que habría que haber hecho o no haber hecho en aquel momento. El comité no pudo zanjar la discusión por lo que consultamos al soviet. Yo presenté el informe, exponiendo la alternativa de forma objetiva, y el soviet decidió no manifestarse por una aplastante mayoría. Pero estoy seguro de que si yo hubiese dicho que era necesario manifestarse, y si hubiese hablado en consecuencia, habríamos tenido una amplia mayoría a favor de la manifestación. Ocurre algo parecido con Brandler. Lo que faltaba en Alemania en 1923 era un partido revolucionario…” (CLR James- Trotsky, MIA) La conclusión de Trotsky no sólo es válida para el Octubre alemán. Todos los procesos rebeldes posteriores a la caída de la URSS carecieron de la dirección de un partido revolucionario. Por eso fracasaron. En Latinoamérica, una rebelión de la potencia de la chilena de 2019, la más profunda de la serie de rebeliones que se produjeron en el subcontinente en los últimos años, asiste al descenlace reaccionario que representa el gobierno de Boric, que no se ha privado siquiera de hacer la apología del asesino Sebastián Piñera. Las futuras rebeliones 434 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) que se producirán, sin dudas, como resultado de furiosos choques de clase como los que ya se desarrollan en mi país, la Argentina, exigirán el concurso dirigente de un partido revolucionario. En ese punto ya no hay nada que inventar: sin partido no hay conquista del poder por las masas trabajadoras, sino se conquista el poder triunfa la reacción, y sin conquistar el poder no se puede cambiar el mundo. Referências bibliográficas BROUÉ, Pierre: La revolución alemana 1917- 1923, T II, Buenos Aires, IPS, 2020 JAMES, CLR: “Sobre la historia de la Oposición de Izquierda” Marxits Internet Archive https://www.marxists.org/espanol///trotsky/ ceip/escritos/libro6/T10V213.htm LENIN, V.I.: Obras Completas, T XXXIII, Madrid, Akal, 1978 LEVI, Paul: Nuestro camino; contra el putchismo, Jacobin, abril 2021. TROTSKY, León: Historia de la revolución rusa, Buenos Aires, Sarpe, 1985. “Informe sobre el Cuarto Congreso Mundial de la Internacional Comunista” Marxits Internet Archive https://www.marxists.org/ espanol/trotsky/1922/diciembre/28.htm “Paul Levi y algunos ‘izquierdistas’” Marxits Internet Archive https:// www.marxists.org/espanol/trotsky/eis/1922.01.06.LeviIzquierdistas. pdf II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 435 Trotsky e a Revolução Alemã Osvaldo Coggiola1 Depois da revolução de outubro de 1917 na Rússia, as expectativas do movimento operário internacional ficaram postas na revolução proletária alemã, que poderia tirara a Rússia soviética de seu isolamento e realizar um passo gigantesco na direção da revolução socialista mundial. Novembro 1918, a “revolução dos marinheiros”, foi seu primeiro ato, seguido pela queda do regime monárquico e a criação do Partido Comunista da Alemanha (KPD). O assassinato de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, seus principais dirigentes, no entanto, privou o partido de suas principais cabeças e figuras. A desastrada ação putschista de março de 1921, impulsionada pelo KPD, foi, em boa parte consequência disso. Os eventos do março alemão de 1921 foram debatidos no III Congresso da Internacional Comunista, em junho e julho, em Moscou. Trotsky mais tarde descreveu o Congresso como um “marco”: “Ele apontou o fato de que os recursos dos partidos comunistas, tanto politicamente quanto organizativamente, não foram suficientes para a conquista do poder. Ele promoveu o slogan ‘Às massas,’ isto é, a conquista do poder através de uma conquista anterior das massas, realizada com base na vida cotidiana e nas lutas. As massas continuam vivendo sua vida cotidiana em uma época revolucionaria, mesmo que de uma maneira diferente”. O Congresso desenvolveu a tática das reivindicações 1 Professor de História da USP. Contato: coggiola@usp.br 436 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) transitórias, da Frente Única Operária, e a palavra de ordem de “governo operário”, para ganhar a confiança dos trabalhadores que ainda apoiavam os social-democratas. Insistiu-se na necessidade de trabalhar nos sindicatos. Isso foi de encontro com a resistência das tendências de esquerda e ultraesquerda dentro do KPD, que promoviam a chamada “teoria da ofensiva”, rejeitando qualquer forma de compromisso político, assim como o trabalho no parlamento e nos sindicatos. Eles eram apoiados por Nikolai Bukhárin, dirigente bolchevique russo, que defendia uma “ofensiva revolucionaria ininterrupta”. Foi em resposta a essas tendências que Lênin escreveu seu folheto contra o esquerdismo. Lênin, assim como Trotsky, tentou uma aproximação paciente das diferentes facções no KPD, prevenindo rachas prematuros. Contiveram os esquerdistas e também a direita do partido, que queriam expulsar seus oponentes. Intransigentes em relação à “esquerda infantil”, também perceberam certo conservadorismo na liderança do partido. O KPD (partido comunista alemão) passou de 360 mil membros em finais de 1920, depois da sua fusão com a maioria do USPD, para metade desse efetivo em finais de 1921... Depois de uma precária estabilização econômica e política em 1922, com a hiperinflação de 1923 uma situação revolucionária desenvolveu-se na Alemanha. O clima de polarização e violência política vinha se acentuando desde 1922, quando, a 24 de junho, fora assassinado, por bandos de direita, o ex ministro e banqueiro Walther Rathenau, provocando uma passeata de 200 mil pessoas. O controle do Estado sobre as organizações paramilitares (de direita ou esquerda) continuava quase nulo. Em 1923, o Partido Comunista Alemão (KPD), em estreita colaboração com a Internacional Comunista, preparou uma II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 437 insurreição e cancelou-a no último minuto. Trotsky, depois, referiuse ao fato como “um clássico exemplo de como é possível perder uma situação revolucionária excepcional de importância histórica e mundial”. A ocupação pelas tropas francesas e belgas do Rühr reacendera a crise social e política. O governo francês justificou a ocupação militar do centro da indústria alemã de aço e carvão declarando que a Alemanha não havia cumprido com suas obrigações de pagar as reparações de guerra. O governo alemão — um regime de direita liderado por Wilhelm Cuno e tolerado pelo SPD— reagiu chamando a “resistência pacífica”. Na prática, isso significou o boicote das forças de ocupação pelas as autoridades locais e as companhias do Rühr. O governo continuou a pagar os salários da administração local e ofereceu subsídios aos barões do carvão e do aço para compensar suas perdas. O resultado desses enormes gastos e da ausência de carvão e aço do Rühr, produtos de extrema necessidade, foi o colapso completo da moeda alemã. O marco, já altamente inflado, era negociado a 21.000 por dólar no início do ano. Ao final do ano, quando a inflação alcançou seu ápice, a taxa de câmbio chegou a quase 6 trilhões de marcos por dólar — um número com 12 casas decimais. O impacto social e político da hiperinflação foi explosivo. A sociedade alemã foi polarizada de forma jamais vista. Para os trabalhadores, a inflação era uma ameaça à vida. Quando recebiam seus salários ao final da semana, estes mal cobriam o valor do papel sobre o qual as enormes somas eram impressas. As esposas aguardavam nos portões das fábricas para correrem ao mercado mais próximo e comprarem algo antes que o dinheiro perdesse seu valor no dia seguinte. Em 1923, após as greves contra o governo Cuno, 438 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) o KPD e a Internacional Comunista perceberam a oportunidade revolucionária que havia se desenvolvido na Alemanha. Em 21 de agosto, o Bureau Político do Partido Comunista da URSS (PCUS) decidiu preparar-se para uma revolução na Alemanha. Formou uma “Comissão de Obrigações Internacionais” para supervisionar o trabalho na Alemanha, composta por Zinoviev, Kamenev, Radek, Stalin, Trotsky e Chicherin — e, depois, Dzerzhinsky, Piatakov e Sokolnikov. Nos dias e semanas que se seguiram, houve numerosas discussões e contínua correspondência com os líderes do KPD, que freqüentemente viajavam a Moscou. Suporte financeiro, logístico e militar foi organizado para armar centenas de operários, preparados nos meses anteriores. Em outubro, Radek, Piatakov e Sokolnikov foram mandados para a Alemanha, para preparar o levante. Trotsky, acima de tudo, lutou para superar o fatalismo e a complacência existentes na seção alemã e no Partido Comunista russo. Enquanto isso, Stalin escreveu a Zinoviev: “Na minha opinião, os alemães precisam ser contidos e não encorajados”, e “para nós, seria uma vantagem os fascistas entrarem em greve antes”. Trotsky insistiu que e insurreição devia ser preparada em um período de semanas, ao invés de meses, e a data definitiva devia ser escolhida. O que parecia só uma proposta organizativa — a escolha de uma data — era, na realidade, uma proposta política. De acordo com a preocupação de Trotsky, a principal tarefa no momento era concentrar todas as energias e atenções do partido no preparo da revolução. De uma preparação propagandística geral, tinha de passar à preparação prática da insurreição. Durante o encontro do Bureau Político, em 21 de agosto, Trotsky disse: “Quão longe vai o ânimo das massas revolucionárias alemãs? A sensação de que estão no caminho da revolução — tal II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 439 sentimento existe. O problema posto é o problema da preparação. O caos revolucionário não pode ser selado com borracha. A questão é: ou começamos a revolução, ou a organizamos”. Trotsky alertou sobre o perigo de que fascistas bem organizados poderiam esmagar ações descoordenadas de trabalhadores, e exigiu: “O KPD precisa escolher um tempo limite para a preparação, para a preparação militar e — em tempo correspondente — para agitação política”. Trotsky sofreu oposição por parte de Stalin, que argumentava contra um prazo marcado, alegando que “os trabalhadores continuam acreditando na social-democracia” e que o governo poderia durar por outros oito meses. Brandler, principal dirigente do KPD, em uma carta para o Comitê Executivo da Internacional Comunista de 28 de agosto, também sustentava um longo período: “Eu não acredito que o governo Stresemann vai viver muito mais”, escreveu. “Entretanto, não acredito que a próxima onda, que já se aproxima, vai decidir a questão do poder. Nós devemos tentar concentrar nossas forças para que possamos, se for inevitável, assumir a luta em seis semanas. Mas, ao mesmo tempo, fazer os preparativos para estarmos prontos com o trabalho mais sólido em cinco meses”. Além disso, acrescentou que acreditava que um período de seis a oito meses seria o mais provável. Em discussões entre a comissão russa e a liderança alemã, um mês depois, Trotsky voltou ao assunto do cronograma. Interrompeu a discussão a respeito do problema do Rühr, e disse: “Eu não compreendo por que tanta relevância é dada para o caso Rühr. O problema, agora, é tomar o poder na Alemanha. Essa é a tarefa, o restante decorrerá disso”. Trotsky respondeu, então, às preocupações de que os 440 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) trabalhadores alemães lutariam por reivindicações econômicas, mas não tão facilmente por objetivos políticos: “A inibição política é nada mais que certa dúvida, por conta das marcas que as derrotas anteriores deixaram no cérebro das massas... o partido só pode ganhar a classe trabalhadora alemã para a luta revolucionária decisiva — e a situação está aqui, agora — se convencer um largo segmento da classe trabalhadora, sua direção, de que também é organizativamente capaz de liderar a vitória no sentido mais concreto da palavra... A expressão de tendências fatalistas pelo partido, aí é que está o grande perigo”. Trotsky explicou, em seguida, que o fatalismo podia assumir diferentes formas: primeiro, se diz que a situação é revolucionária, o que é repetido todos os dias. Isso se torna usual e a política passa a ser esperar pela revolução. Então, se dá armas aos trabalhadores e se diz que isso levará ao conflito armado. Mas, ainda assim, seria apenas o “fatalismo armado”. Através da informação repassada pelos comunistas alemães, Trotsky concluiu que eles concebiam a tarefa como fácil demais: “Se a revolução é para ser mais do que uma perspectiva confusa”, disse ele, “se é para ser a tarefa principal, deve ser tomada por uma tarefa prática, organizativa... É preciso estabelecer uma data, preparar e lutar”. Em 23 de setembro, Trotsky publicou, inclusive, um artigo no Pravda: “Pode uma contrarrevolução ou revolução ser feita com tempo marcado?” Trotsky discutia a questão em termos gerais, sem mencionar a Alemanha, já que o pedido público de definição de uma data para a revolução alemã por um representante-chave da direção, como ele, poderia provocar uma crise internacional ou mesmo uma guerra. Sete dias depois, o mesmo Trotsky (com Lênin seriamente doente, ele era a principal figura pública da URSS) concedeu entrevista ao senador II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 441 norte-americano King, preocupado com o risco de uma nova guerra no coração da Europa, devida aos acontecimentos alemães. À pergunta: “É possível que a URSS intervenha em caso de uma revolução na Alemanha?”, Trotsky respondeu: “Antes do mais, nós queremos a paz. Não enviaremos nenhum soldado do Exército Vermelho além das fronteiras da Rússia soviética, se não formos forçados. Nossos operários e camponeses não permitiriam ao governo que tomasse a iniciativa de uma ação militar, inclusive se o governo enlouquecesse ao ponto de optar por uma política de agressão. Se os monarquistas alemães fossem vitoriosos e chegassem a um acordo com a Entente, recebendo dos aliados um mandato para intervir militarmente na Rússia (o que já foi proposto por Luddendorf e Hoffman) nós lutaríamos e seriamos, creio, vencedores. Mas não acho que isso acontecerá. Em qualquer caso, não interviríamos numa guerra civil. Não poderíamos fazê-lo se não fazendo a guerra à Polônia. E não queremos a guerra”. 2 O plano da Internacional Comunista (e do KPD) parta da defesa dos governos da Saxônia e Turíngia contra a intervenção da Reichswehr, para deflagrara a greve geral e a insurreição. Esta estava planejada nos mínimos detalhes, política, técnica e militarmente, com um plano financeiro, um projeto de constituição do Exército Vermelho da Alemanha, a clandestinidade dos dirigentes do KPD 2 Alguns trotskistas, como o célebre escritor negro C. L. R. James, viram nesta entrevista uma tentativa de freio de Trotsky à revolução alemã. Anos depois, Trotsky teve que esclarecer o caráter diplomático da mesma, do qual eram cientes os comunistas alemães, e que, nesse mesmo momento, o chefe do Exército Vermelho tinha um regimento, comandado por Dybenko, prestes a entrar em combate na fronteira polonesa. 442 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) enquanto durasse a ação, com todas as medidas de proteção cabíveis. A “provocação” seria a constituição de “governos operários” e “milícias operárias” pelos governos de esquerda (KPD + esquerda do SPD) dos dois Länder. Na URSS, em fábricas e centros de ensino, se produzia uma mobilização de massas à espera do “Outubro alemão”. Ameaçado pela Baviera, que faz fronteira com a Saxônia e a Turíngia no Sul, e pelo governo central em Berlim, situado ao norte, o KPD teve de adiantar seus planos para a revolução. Chamou um congresso de conselhos de fábrica em Chemnitz, Saxônia, no dia 21 de outubro. O congresso deveria convocar uma greve geral e dar o sinal para a insurreição em toda a Alemanha. Quando o Exército deu o ultimato e preparou a entrada no Länd, os social-democratas de esquerda, no entanto, negaram-se a fazer o chamamento à greve geral. Como eles não concordavam, Brandler cancelou os planos e interrompeu o levante armado, já acertado com a Internacional Comunista. O KPD vacilou e sem um plano de recâmbio, anulou a ordem de insurreição. A decisão de cancelar a revolução não chegou em Hamburgo a tempo: uma insurreição foi organizada e deflagrada na cidade, mas permaneceu isolada e foi derrotada em três dias. Os militantes comunistas lutaram nas ruas enquanto as fábricas trabalhavam em ritmo lento e a população, ainda que simpatizando com os insurretos, olhava passiva. Embora o congresso de Chemnitz ainda estivesse reunido, o Reichswehr começou a ocupar a Saxônia. Conflitos armados causaram a morte de vários trabalhadores. Em 28 de outubro, o presidente social-democrata Friedrich Ebert deu ordens ao Reichsexekution contra a Saxônia. Ordenou a remoção forçada do governo da Saxônia — encabeçado por Erich Zeigner, socialdemocrata de esquerda — pela Reichswehr. A indignação pública II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 443 obrigou o SPD a retirar-se do governo Stresemann em Berlim. Alguns dias depois, a Reichswehr entrou na Turíngia e removeu também o governo local. A deposição desses dois governos de esquerda por Ebert e Seeckt encorajou a extrema-direita da Baviera. Em poucos dias, portanto, a história balançou: a conferência operária de Chemnitz, dominada pelos socialistas saxões, deveria lançar a greve geral. Não o fez, e os comunistas adiaram então a insurreição. Em 1924, Trotsky escreveu: “O PC não foi suficientemente firme, clarividente, resoluto e combativo para garantir a intervenção no momento necessário, e a vitória”. Só os comunistas de Hamburgo (dirigidos pela ala esquerda do KPD) cumpriram a ordem insurrecional, enquanto, na Rússia, a “troika” (Stalin-ZinovievKamenev), empenhada no combate contra Trotsky, prestava pouca atenção aos acontecimentos alemães. Em finais de 1923, quando a situação exigia uma mudança brusca de orientação, o KPD a tomou sem convicção, com um considerável atraso e quando já era muito tarde. A vacilação e, finalmente, a claudicação de Heinrich Brandler (principal dirigente do KPD) foi o capítulo final de uma longa série de vacilações, confusões e recuos. A revolução fora adiada (sine die). Ela não voltaria a se apresentar nas próximas décadas. A maioria dos delegados de Chemnitz teria apoiado a convocação da greve geral, como Brandler escreveu em uma carta a Clara Zetkin. Mas, mesmo assim, ele não quis agir sem o apoio dos social-democratas de esquerda: “Durante a conferência de Chemnitz eu percebi que não poderíamos, sob quaisquer circunstâncias, partir para a luta decisiva, uma vez que não havíamos conseguido convencer a esquerda do SPD a assinar a decisão de greve geral”, escreveu Brandler. E acrescentou: 444 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) “Com a massiva resistência [social-democrata de esquerda], eu mudei o curso e evitei que nós, comunistas, fossemos ao combate sozinhos. É claro que poderíamos ter recebido uma maioria de dois terços em favor de uma greve geral na conferência de Chemnitz. Mas, o SPD teria deixado a conferência, e seus slogans confusos, sobre como a intervenção do Reich contra a Saxônia tinha simplesmente o propósito de ocultar a intervenção do Reich contra a Baviera, teriam quebrado nosso espírito de luta. Então, eu conscientemente lutei por um compromisso desagradável”. E desastroso. É impossível ler essas (e outras) ponderações de Brandler, sem sentir um frio na espinha, sabendo que da sua decisão (ou, melhor, da falta dela) dependia a sorte da revolução alemã e, por extensão da revolução europeia e mundial. Na verdade, porém, a decisão da direção do KPD foi endossada pela “comissão alemã” da Internacional Comunista – Radek, Piatakov, Ounschlicht – que se encontrava, no mesmo momento, em território alemão. O ano de 1923 mudou o rumo da Internacional Comunista. Com Lênin doente, o choque de Trotsky e a Oposição de Esquerda (que foi lançada publicamente em outubro desse ano na URSS, com a “Plataforma dos 46”) contra a direção do PCUS estourou abertamente, no mesmo momento em que o KPD fracassava na sua tentativa de tomar o poder na Alemanha. Trotsky refletiu: “Zinoviev definia nestes termos a significação do que acontecera na Alemanha: «Esperávamos a revolução alemã, mas não veio (Pravda, 22 de junho de 1924)». Em realidade, a revolução estava no seu direito de contestar: «Eu viera, mas vocês, senhores, chegaram tarde a cita»”. O KPD e a Internacional Comunista haviam deixado escapar uma situação revolucionária excepcional, de importância II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 445 histórica mundial. O PC alemão (KPD) fez depender a insurreição revolucionária da ala esquerda da socialdemocracia, que desertou o campo revolucionário no último momento, quanto até a preparação técnica da insurreição operária estava pronta, e com data marcada. O KPD perdeu a principal batalha, e sua maior oportunidade histórica, praticamente sem dar batalha. A burguesia alemã encontrou, então, um novo eixo de estabilidade: o abandono da “resistência passiva” (à França), a prisão dos comunistas e também dos nazistas (Adolf Hitler, preso pelo Reichswehr, aproveitaria o tempo passado na prisão para redigir, ou ditar, seu libelo esquizofrênico-paranóico Mein Kampf). O capital norte-americano colaborou com o novo governo Stresemann através do Plano Dawes (com um empréstimo inicial de 800 milhões de dólares): até 1930, a Alemanha tomou emprestados 30 bilhões de marcos, 70% dos bancos americanos. O Doktor Hjalmar Schacht, ministro de Finanças (que, depois, seria o “mágico financeiro” de Hitler) pôde criar então o marco forte. Quatro meses depois do fracasso da insurreição comunista, Trotsky se perguntava: “Porque não houve vitória na Alemanha?”. E respondia: “Porque não havia ali um partido bolchevique, nem um dirigente como nós [na URSS] tivemos em Outubro [de 1917]”. Teriam sido Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo os “Lênin e Trotsky” alemães? Dois meses mais tarde, Trotsky precisou ainda mais: “O KPD não apreciou em tempo o surgimento de uma crise revolucionária com a ocupação do Rühr e o fim da resistência passiva (janeiro-junho de 1923). Falhou no momento crucial. É difícil para um partido revolucionário passar de um período de agitação e propaganda prolongado para uma luta direta pelo poder através de uma insurreição. Isso 446 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) provoca inevitavelmente uma crise no partido... De um lado, o partido esperava uma revolução, de outro, havida conta que se tinha queimado os dedos nos acontecimentos de março [de 1921] evitou até o final de 1923 a própria idéia de organizar uma revolução, ou seja, preparar a insurreição. A atividade política do partido continuava em ritmo de tempos de paz quando o desfecho se aproximava. O momento da insurreição foi fixado quando, essencialmente, o inimigo já havia usado o tempo perdido pelo partido e reforçado suas posições. A preparação militar e técnica do partido começou de modo febril, mas cortada da atividade política do partido, que continuava em ritmo de tempos de paz. As massas não compreendiam o partido e não o acompanhavam. O partido sentiu essa ruptura com as massas, e ficou paralisado. Daí aconteceu a retirada sem combate das posições – sem combate, a mais amarga das derrotas” (grifo nosso). A derrota operária alemã de 1923 teve consequências de longo alcance. Graças a ela, a burguesia alemã consolidou seu domínio e estabilizou a situação por seis anos. Quando a grande crise mundial irrompeu, em 1929, a classe trabalhadora não estava reposta das derrotas de 1919-1923. Mundialmente, a derrota do “Outubro Alemão” aprofundou o isolamento da URSS, e constituiu um importante para a ascensão da burocracia stalinista. A 23 de novembro o KPD foi proibido em todo o território do Reich (essa proibição seria levantada em março de 1924), do mesmo modo que o partido nazista, por obra de Von Seeckt, quem recebera poderes excepcionais no dia do putsch nazista de Munique. Uma nova etapa se abriu nesse momento na Europa, caracterizada pelo isolamento da URSS, o “neorreformismo” governamental e a “prosperidade” econômica, comandada pelos EUA. A Europa, dólar-dependente, tendia também a se subordinar II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 447 politicamente ao novo imperialismo emergente. A derrota da revolução alemã, condenou à Revolução Russa a um período indefinido de isolamento: a oposição de Trotsky na Rússia soviética, já organizada, seria, no entanto, condenada na XII Conferência do PC da URSS, em janeiro de 1924. Trotsky, atento aos novos desenvolvimentos, escreveu em 1924: “O programa americano de tutela do mundo inteiro não é um programa pacifista, mas grávido de guerras e crises. Os EUA afirmam poder fabricar barcos de guerra como pãezinhos: eis a perspectiva da próxima guerra mundial, que terá por teatro o Atlântico tanto quanto o Pacífico, se é que a burguesia pode continuar governando até lá... Os conflitos militares são inevitáveis. A ‘era americana’ que parecia abrir-se não é mais do que a preparação de novas guerras monstruosas”. Trotsky já era, no entanto, na URSS e no mundo, uma voz crescentemente isolada... Qual era o balanço da revolução alemã? A primeira fase da revolução (novembro 1918 – janeiro 1919) fracassou, segundo Rosa Luxemburgo, pela sua imaturidade, mas sem deixar de apontar o que seria a questão chave da fase sucessiva (a direção política das massas trabalhadoras): “A nossa crise tem um duplo rosto, o da contradição entre uma enorme decisão ofensiva por parte das massas e a falta de convicção por parte dos chefes berlinenses. Falhou a direção. Mas este é o defeito menor, porque a direção pode e deve ser criada pelas massas. As massas são com efeito o fator decisivo, porque são a rocha sobre a que será edificada a vitória final da revolução. As massas cumpriram com a sua missão, porque fizeram desta nova “derrota” o elo que nos une legitimamente 448 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) à cadeia histórica de “derrotas” que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. Podemos ter a certeza de que desta “derrota” também há de florescer a vitória definitiva. A ordem reina em Berlim!... Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não reparastes em que a vossa “ordem” está a alçar-se sobre a areia. A revolução alçar-se-á amanhã com a sua vitória e o terror pintar-se-á nos vossos rostos ao ouvir-lhe anunciar com todas as suas trombetas: era, sou e serei!”. A ocupação francesa do Rühr, principal região mineira da Alemanha, de janeiro de 1923, e a inflação enorme, colocaram novamente na ordem do dia a revolução proletária. Os operários desertavam em massa dos sindicatos e a social-democracia que os dirigia através destes perdeu o controle. No entanto, também a direção do Partido Comunista alemão (KPD) fracassou na prova da revolução. Sua debilidade, assim como a dos outros PCs, tornara-se visível em 1921, quando atuou de modo ultra esquerdista. Até agosto de 1923, houve uma política prudente do KPD e da Internacional Comunista (depois do fracasso de 1921, ambos chamaram a “conquistar as massas”), mas uma greve geral espontânea derrubou o governo Cuno. Os dirigentes do KPD, em Moscou, marcaram a insurreição para novembro, no sexto aniversário da revolução russa. As “centúrias proletárias” se armaram, a insurreição foi planejada para partir dos governos social-comunistas de Saxônia e Turingia. Para Trotsky, “a história nunca criou e dificilmente criará condições mais favoráveis para a revolução proletária e a tomada de poder. Se se pedisse aos pesquisadores marxistas imaginar uma situação mais favorável à tomada do poder pelo proletariado, não conseguiriam”. Mas a insurreição não aconteceu, cancelada pela direção do KPD, sob o olhar passivo da direção da Internacional Comunista. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 449 O balanço da direção do KPD e da Internacional Comunista em seu V Congresso (1924), conduzido pela fração de Stálin e do presidente da IC, Zinoviev, considerou a revolução alemã como um simples episódio perdido e não a derrota mais importante do processo revolucionário europeu iniciado em 1917. Desta maneira, afirmavam que haveria outros “Outubros”, ou mesmo diziam ter exagerado as condições que estavam colocadas para a revolução, o que impediu que a IC extraísse as conclusões necessárias para o futuro da luta de classes. Trotsky, pelo contrário, considerou que a derrota da revolução alemã foi o ponto de virada para a formação de frações na URSS (no PCUS) e na Internacional Comunista, dada a escala gigantesca da luta de classes de onde se expressavam as diferenças. Respondia de forma categórica, seguindo as definições que formulou conjuntamente com Lênin sobre o desenvolvimento da revolução mundial: “Estavam dadas todas as condições para o triunfo da revolução na Alemanha? Penso que teríamos que responder com absoluta claridade e firmeza, sim, todas exceto uma. A Alemanha não tinha um partido bolchevique, não tinha uma direção tal como tivemos em Outubro [de 1917, na Rússia]”. Escrevendo retrospectivamente, para Fernando Claudín, ao contrário, as condições revolucionárias não estavam ainda maduras naquela ocasião, e 1923 não deveria ser considerado “o ano da derrota” do KPD, uma vez que, no ano seguinte, obteria quase 4 milhões de votos (compare-se com os 600 mil de 1920): adiando a insurreição, a direção do KPD teria salvo o partido de ser novamente esmagado, como acontecera em março de 1921.3 3 O argumento de Claudín contra Trotsky é fraco: os votos do KPD tiveram uma trajetória, em geral, ascendente até 1933, o que não lhe poupou ser derrotado, e esmagado da pior maneira imaginável, pelo nazismo. 450 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky afirmou também que o erro fundamental do KPD foi não ter compreendido “a tempo” a necessidade de uma virada tática abrupta: “O que é mais difícil para uma direção revolucionária é saber no momento oportuno tomar em suas mãos a situação política, perceber sua inflexão brusca e mudar firmemente o rumo. Semelhantes qualidades de direção revolucionária não se obtém simplesmente pelo fato de prestar juramento de fidelidade a última circular da Internacional Comunista; se conquistam, se as premissas teóricas indispensáveis existem, pela experiência adquirida por si mesma e praticando uma auto-crítica verdadeira”: “Duas grandes lições marcam a história do KPD: março de 1921 e novembro de 1923. No primeiro caso, o partido confundiu a sua própria impaciência com uma situação revolucionária madura; no segundo, foi incapaz de reconhecer uma situação revolucionária madura e a deixou escapar. Estes são os perigos extremos da “esquerda” e da “direita”; estes são os limites entre os quais passa, geralmente, a política do partido proletário em nossa época”. A conclusão de Trotsky era aberta, indicando os perigos, mas sem propor uma solução única e fechada. Trotsky escrevia como político, no calor dos acontecimentos. Com recuo histórico, cabe perguntar se era possível que uma direção revolucionária surgisse da Armata Brancaleone de massas que era o KPD entre 1919 e 1924, não só, nem principalmente, pelas suas inúmeras viragens políticas, mas também pelas suas divisões internas e pelo fato de ter mudado por completo sua liderança uma dezena de vezes durante esse curto período, pondo essa responsabilidade, a cada virada, em equipes que careciam de qualquer experiência na direção de um partido político. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 451 Para o próprio Trotsky, este fora o problema central da revolução europeia a partir do final da guerra mundial: “Em escala mundial, houve três ocasiões em que a revolução proletária chegou ao ponto em que era necessário um bisturi. Foi em outubro de 1917 na Rússia, em setembro de 1919 na Itália, e na segunda metade do ano passado (julho-novembro), na Alemanha”, disse, em discurso de abril de 1924 em Tiflis (já embrenhado na luta de frações dentro do PCUS) – como se sabe, somente na primeira dessas ocasiões o bisturi funcionou (ou, simplesmente, existia). Em meados da década de 1930, o revolucionário russo seria ainda mais contundente acerca do alcance histórico da derrota alemã: “Se, em 1918, a social-democracia alemã tivesse aproveitado o poder que os operários lhe confiavam para consumar a revolução socialista e não para salvar o capitalismo, não seria difícil conceber, apoiando-nos no exemplo russo, o invencível poder econômico que seria hoje o do maciço socialista da Europa central e oriental e de uma parte considerável da Ásia. Os povos do mundo terão ainda que pagar, com novas guerras e novas revoluções, os crimes históricos do reformismo”. Para Pierre Broué, referindo-se ao “fiasco alemão”, “jamais na história contemporânea houve preparativos tão cuidadosos, sérios e sistemáticos para uma insurreição, em nenhum país. Nunca uma revolução em um país foi tão esperada, com seus fundamentos edificados como os de uma catedral pelos braços de dezenas de milhares de pessoas humildes. Jamais, portanto, uma decepção foi tão forte para os crentes e os combatentes”. A “incapacidade” do KPD para levar a cabo a revolução, por outro lado, foi endossada, como vimos, pela direção da Internacional Comunista. Por isso, embora “nacional” pela sua forma, a derrota alemã foi internacional no pleno 452 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) sentido do termo, isto é, remete a uma limitação decisiva do processo revolucionário europeu (e mundial) iniciado em outubro de 1917, ou seja, da própria Revolução de Outubro e de seu instrumento mundial, a Internacional Comunista. Nos anos sucessivos à crise alemã, os problemas da direção política revolucionária se poriam, em toda a Europa, em condições muito piores, devido à consolidação da burocracia stalinista e a ascensão do nazismo. A bisonha tentativa insurrecional nazista de 1923 ensinou ao (até então pitoresco) futuro Führer que, para obter uma audiência de massas, o uso das margens de legalidade da República era indispensável. Nascido nas margens do exército, o NSDAP era timidamente financiado, no início, por setores empresariais menores: o editor Bruckham, o fabricante de pianos Bechstein.4 A partir de 1924, o NSDAP começou a participar de atividades políticas legais e eleitorais, centrando-se nelas. Às classes médias desesperadas, destruídas pela hiperinflação, os nazistas propunham remédios contra a angústia: xenofobia, racismo, nacionalismo exacerbado, acompanhados de uma demagogia anticapitalista que apontava os judeus (desde o século XIX designados popularmente como “encarnação do capital”: o fundador do Partido SocialDemocrata, August Bebel, já chamava o antissemitismo de “socialismo dos imbecis”). Também eram denunciados o “imperialismo” (o diktat de Versalhes), os bonzos (os dirigentes operários, acusados de colaboração com os judeus): os nazistas chegaram a apoiar as “greves selvagens”. E, sobretudo, o NSDAP não deixou de usar a violência 4 Com a crise de 1929, e já transformado em partido de massas, o caixa nazista recebeu o apoio dos konzern (Kirdorf, do carvão; Vorgler e Thyssen, do aço; IG Farben; o banqueiro Schroeder), preparando a sua conquista do poder na década de 1930. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 453 e o terror contra seus “inimigos”, para demonstrar ao seu “público” sua determinação em atingir seus objetivos. Derrota bélica, inflação galopante, decomposição das relações econômicas capitalistas, frustração revolucionária, adaptação definitiva da social-democracia ao capital, emergência do stalinismo na URSS, maduração e início da ascensão do nazismo na Alemanha: a conjuntura econômica e política alemã entre 1918 e 1924, e sua irradiação internacional, foi a matriz a partir da qual desenvolver-se-ia a história mundial do século XX. Referências bibliográficas AUTHIER, Denis. A Esquerda Alemã (1918-1921). Porto, Afrontamento, 1975. BADIA, Gilbert. Histoire de l´Allemagne Contemporaine (19171933). Paris, Éditions Sociales, 1962. BADIA, Gilbert. Los Espartaquistas. Barcelona, Mateu, 1971. BROUÉ, Pierre. 1923: la bascule? Cahiers Léon Trotsky nº 55, Saint Martin d´Hères, março 1995. BROUÉ, Pierre. Histoire de l´Internationale Communiste. 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Cahiers Léon Trotsky nº 55, Saint Martin d´Hères, março 1995. TROTSKY, Leon. La responsabilité du KPD (junho 1924). Cahiers Léon Trotsky nº 55, Saint Martin d´Hères, março 1995. TROTSKY, Leon. Lecciones de Octubre. De Octubre Rojo a mi Destierro. Madri, Zeus, 1931. TROTSKY, Leon. Revolução e Contra-Revolução na Alemanha. São Paulo, LECH, 1979 [1932]. ZINOVIEV, Grigorii. Les problèmes de la révolution allemande. Cahiers Léon Trotsky nº 55, Saint Martin d´Hères, março 1995. 456 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Trotsky, a ascensão do nazismo e o papel de Stalin Osvaldo Coggiola1 Entre 1930 e 1933, a evolução política da Alemanha foi o eixo do debate político na Europa e na Internacional Comunista (IC). Nas vésperas do levantamento nazi de Hitler, Trotsky criticou a recusa da IC em propor uma frente única de trabalhadores dos partidos socialista e comunista contra o nazismo. Em 1920, o nazismo ainda era referido como “fascismo alemão” pelos meios de comunicação de esquerda de todo o mundo. No meio das condições sociais criadas pela crise econômica mundial nascida em 1929, que determinou um novo papel do Estado para a estabilidade da ordem capitalista, o nazismo assumiu, no entanto, características únicas e inquestionáveis, incluindo um movimento de reação política extrema, ainda que originalmente inspirado pelo “Estado corporativo” de Mussolini. Houve, sem dúvida, uma ligação entre a crise econômica mundial e a ascensão do fascismo na Europa. Se, entre 1918 e 1933, a Alemanha foi o ponto crítico da estabilidade política e econômica na Europa, também se tornou, sem dúvida, o centro da tendência contrarrevolucionária antibolchevique da Segunda Guerra Mundial a partir do último ano mencionado. O mundo político foi realinhado de acordo com o nazismo. O NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, ou simplesmente Partido Nazi) foi fundado em Munique em janeiro de 1919. O seu sétimo membro, Adolf Hitler, um pintor de origem 1 Professor de História da USP. Contato: coggiola@usp.br II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 457 austríaca, estava imbuído de um nacionalismo antissemita e racista e de um ódio ao comunismo. O NSDAP adquiriu rapidamente uma fisionomia peculiar no seio das facções nacionalistas, devido à sua insistência em temas “sociais” e à personalidade dos seus líderes, obviamente Hitler, mas sobretudo Goebbels, mestres da propaganda. Rapidamente recebeu o apoio do mundo dos negócios e do exército, através de Ludendorff, para ganhar estatura nacional após os acontecimentos de 1923 (tentativa de golpe militar na Baviera). A doutrina era simples e tinha o seu eixo na oposição entre a Alemanha e os seus “inimigos internos e externos”. Era essa: 1) O povo alemão era ariano, trabalhador e generoso, mas foi “traído” durante a guerra; 2) O povo judeu, que inspirou as ideologias marxistas e as relações democráticas e universais, destruiu o Estado a partir do seu interior; 3) É necessário restaurar a Alemanha eterna, o Lebensraum (espaço vital), regenerar o seu povo para torna-lo “a raça superior” do mundo; 4) Concentrar-se em questões como a “comunidade nacional”, o “sangue puro”, a “pureza da raça”, a “ordem”, as virtudes dos guerreiros, o esmagamento dos inimigos, a expansão territorial à custa da URSS bolchevique e da França decadente. O NSDAP foi impulsionado por ex-soldados e oficiais medíocres do exército alemão, que se sentiram “traídos” pela derrota nacional de 1918, e por pequeno-burgueses espantados com a “igualdade social”. Eram eles: Ernest Röhm, o instigador que tinha laços com o exército e ajudou a formar uma milícia privada dos nazis, conhecida como “camisas marrons”; Hermann Goering, herói da aviação, brutal e 458 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ambicioso, chefe das SA (Sturmableitungen, tropas de assalto); Rudolf Hess (secretário de Hitler); Heinrich Himmler e Martin Bormann; homens sem escrúpulos; o alemão báltico Alfred Rosenberg, filósofo amador, teatrólogo da “raça”, ignorante e pretensioso; demagogos antissemitas como Julius Streicher e Gregor Strasser. Controlados pelo Führer, formaram um verdadeiro bando. Depois de uma “prosperidade” de curta duração, a crise alemã de 1929 acentuou os efeitos da hiperinflação de 1923. No seio da burguesia, só os grandes industriais e banqueiros sobreviveram. A pequena-burguesia foi arruinada pela alternância entre inflação e deflação e transformaram-se em subproletários. Os agricultores, menos afetados pela crise, eram uma minoria no país industrializado. Os trabalhadores industriais sofreram uma enorme miséria com o desemprego em massa. Encontrar um emprego naquele cenário parecia uma busca interminável. Os jovens não tinham qualquer perspectiva de trabalho ou de vida “normal”. Milhões de jovens tornaram-se “nómades”, muitos inundaram o “trabalho no campo”. Os fenômenos de decomposição social desenvolveram-se em grande escala (drogas, alcoolismo, prostituição). O desespero e a ira voltaramse contra o governo, muitas vezes ocupado pelos socialistas (SPD). Todas as esperanças, todos os “bodes-expiatórios” eram aceitos. Tanto o nazismo como o fascismo italiano, em maior escala, conseguiram mobilizar a pequena-burguesia desesperada (explorando o seu medo da “proletarização”), esse grupo social que o eloquente Gramsci apelidou de “povo macaco”. Nascido à margem do exército, o NSDAP foi financiado, no início, por setores burgueses: O editor Bruckham, o fabricante de pianos Bechstein. Com a crise de 1929, a tesouraria nazi recebeu II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 459 o apoio dos “Konzern” (Kirdorf, carvão; Vorgler e Thyssen, aço; IG Farben; o banqueiro Schroeder, etc.). As possibilidades da sua agitação e propaganda, a sua autoconfiança e, sobretudo, a sua capacidade de subornar os funcionários públicos (polícias, juízes, militares) cresceram então em proporções geométricas. As classes médias estavam desesperadas e os nazistas propunham remédios contra a angústia: xenofobia, racismo, nacionalismo exacerbado, acompanhados de uma demagogia anticapitalista que apontava para os judeus (que desde o século XIX eram conhecidos como a “encarnação do capital” e August Bebel, o fundador do Partido Social-Democrata, já tinha designado o antissemitismo como “socialismo dos imbecis”). O “imperialismo” (os ditames de Versalhes) e os bonzos (os dirigentes sociais-democratas dos sindicatos operários, acusados de colaborar com os judeus) são igualmente denunciados. Os nazis passaram a apoiar as “greves selvagens”, levadas a cabo independentemente dos sindicatos. Acima de tudo, o NSDAP utilizou a violência e o terror contra os seus “inimigos” para demonstrar ao seu “povo” a sua determinação em atingir os seus objetivos. Os símbolos nazis (a cruz suástica, retirada dos povos germânicos da Idade Média, e também as enormes paradas militares) exprimiam os seus princípios como uma unidade. A extorsão (chantagem da “proteção”) foi amplamente utilizada para encher os cofres do NSDAP. Acima de tudo, o nazismo oferecia uma oportunidade imediata aos jovens desempregados: o emprego nas fileiras do exército, como oficiais fardados, na milícia armada das SA (tropas de assalto), depois nas SS (Schutzstafel, destacamento da guarda, também como guardas privados de elite de Hitler, chamados “camisas negras”). O emprego, o salário e o uniforme devolveram aos jovens o que eles acreditavam 460 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ser uma existência que a sociedade lhes negava. A militância nazi aumenta, de 176.000 no final de 1928 para 800.000 no final de 1931 (e ultrapassa um milhão de membros no ano seguinte). Mas o número de comunistas e socialistas também aumentou: nas eleições gerais de 1928, os dois partidos de esquerda obtiveram, em conjunto, 12.418.000 votos. Em 1930, 13.160.000 (os nazis apenas 6,4 milhões). Em julho de 1932, os partidos operários obtiveram 13.300.000 votos (mas os nazis já tinham chegado a 13.779.000). Em novembro desse ano, o SPD (Socialistas) e o KPD (Partido Comunista da Alemanha) obtiveram em conjunto 13.230.000 votos, o NSDAP, 11.737.000. Quando as forças nazis entraram em declínio no cenário político, o Presidente Hindenburg (eleito em 1925 com o apoio do Partido Socialista, SPD) chamou (em janeiro de 1933) o líder nazi Hitler para ocupar a chancelaria do Reich. No entanto, o fator decisivo foi a recusa dos partidos de esquerda em formar uma frente única contra os nazis. O SPD contava com um milhão de membros, 5 milhões de sindicalizados, centenas de milhares de membros organizados no Reichsbanner (milícia socialdemocrata). Em setembro de 1930, tinha também obtido 8,5 milhões de votos (143 parlamentares) contra 6,4 milhões do NSDAP (107 parlamentares). Mas o SPD procurava um “meio-termo” entre o nazismo e o “bolchevismo”: a sua política era “a defesa da República (de Weimar)”, a introdução de leis repressivas contra o nazismo, a ação da polícia e dos tribunais. Por fim, apoiava a política pró-deflação do chanceler Brüning (que causava miséria), a suspensão do Reichstag, o governo por decreto-lei. Defendeu o voto no Marechal Hindenburg (que depois elevou Hitler) para a Presidência da República. Os votos do SPD baixaram para 7,96 milhões em julho de 1932 e para 7,25 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 461 milhões em novembro do mesmo ano. Os defensores da “Frente Unida dos Trabalhadores” no SPD tinham sido excluídos: eram o SAP (Partido Socialista dos Trabalhadores), com dezenas de milhares de membros. Foi este partido que, em 1933 (após a ascensão de Hitler), assinou, juntamente com os apoiadores de Trotsky (Liga Comunista Internacional) e dois partidos da esquerda holandesa, o RSP e o PSO, a “Declaração dos Quatro” por uma Quarta Internacional. O KPD (Partido Comunista) também avançou: 3,27 milhões de votos em 1928, 4,59 milhões em 1930, 5,37 milhões em julho de 1932, 5,98 milhões em novembro do mesmo ano. Tal como o SPD, tinha todas as possibilidades de deter a propagação do nazismo, mas a sua política de divisão (denúncia do SPD como “social-fascista”) levou o historiador R. T. Clark a refletir: “É impossível ler a literatura comunista da época sem sentir arrepios perante o desastre que levou um grupo de homens inteligentes a recusar usar a sua inteligência de forma independente”. O KPD insistia em procurar temas comuns com os nazis (contra Versalhes, pela independência nacional) para utilizar uma terminologia semelhante (“revolução popular”). Afirmava que, antes de lutar contra o “fascismo”, era necessário combater o “socialfascismo” (o SPD), para depois propor uma “frente única a partir de baixo” aos trabalhadores socialdemocratas. Globalmente, a política foi definida pelo dirigente da Internacional Comunista, Manuilski: “O nazismo será a última etapa do capitalismo antes de uma revolução social”. Ainda assim, há quem insista, como Heinz Brahm, que “Trotsky se distanciou dos chefes do KPD, que, mesmo durante os tempos do governo de Hermann Müller (SPD, 1928-1930), declaravam que o fascismo reinava na Alemanha. Trotsky descobriu, como ninguém, 462 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) os perigos do nacional-socialismo. Previu que o NSDAP professava a Constituição apenas para chegar ao poder. Parece ter avisado que Hitler, que preparou o golpe de Estado no quadro da Constituição, não agiu de forma muito diferente dele quando, em 1917, utilizou a legalidade soviética em proveito da revolução de Petrogrado. Desde setembro de 1930, convidou incansavelmente o SPD e o KPD a formarem uma frente única, mas, após a tomada do poder por Hitler, rejeitou mesmo um pacto de não agressão entre os dois partidos. O facto de Trotsky ter previsto a catástrofe da ditadura de Hitler fala em sua honra. No entanto, não é correto responsabilizar exclusivamente Stalin e o Komintern pelo triunfo de Hitler”. Em abril de 1931, o KPD lançou um apelo conjunto com o NSDAP para que se votasse contra o SPD para derrubar o governo socialdemocrata da Prússia, o “referendo vermelho” (a que os nazis chamaram “referendo negro”). Em novembro de 1932, os nazis formaram uma aliança contra os socialdemocratas bonzos numa greve dos transportes em Berlim. Estas situações provocaram crises políticas que derrubaram o governo centrista de Brüning, o gabinete de Von Papen, em novembro de 1932, e depois o governo do general von Schleicher, até que Hitler foi finalmente convocado para se tornar chanceler em 30 de janeiro de 1933. Hitler chegou ao poder sem qualquer resistência da classe operária e com o apoio da burguesia, mediado pelo antigo ministro das finanças do governo centrista de Stressemann, Hjalmar Schacht. Este chegou a um acordo com o NSDAP com a mediação do banqueiro Schroeder (SCHACHT, 1953). Os novos detentores do poder começaram rapidamente a organizar um novo regime, não sem antes lançar um desafio contra o KPD, incendiando o Reichstag do II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 463 parlamento alemão (27 de fevereiro de 1933) (WILLARD, 1968). Com 3.000.000 de marcos alemães fornecidos pelo grande capital e com mais terror das SA, os nazis obtiveram mais votos nas eleições de 1933, passando de 33% para 44%. A 23 de março, o Reichstag elegeu Hitler para os poderes plenos, contra os votos da bancada do SPD, mas com o apoio do Zentrum católico. A 2 de maio, os sindicatos são dissolvidos e os seus bens confiscados. A 14 de julho (aniversário da Revolução Francesa), os partidos políticos são dissolvidos e o NSDAP é proclamado “partido único” (KLEIN, 1970). Com a morte do Presidente Hindenburg, Hitler começou a reforçar estes poderes, bem como as funções da chancelaria. Os poderes plenos, que permitiam a violação da Constituição, foram renovados em 1934 e 1937: o juramento de fidelidade ao Führer tornou-se obrigatório para todos os funcionários públicos, incluindo os ministros. Em seguida, o Landstag (assembleias) e o Reichrat (conselhos do Reich) foram suprimidos: a lei Gleichhaltung combinou as leis dos estados com as do Reich. Os Staatshalter substituíram os governos dos Länder (estados), os presidentes de câmara foram nomeados pelo poder executivo, aplicando-se a mesma regra ao presidente da câmara municipal. O NSDAP, como partido, também tinha uma organização centralizada: 32 Gaulen (distritos), chefiados por um Gauleiter, divididos em círculos, grupos, células e blocos. Desenvolveram-se organizações paralelas, como a Hitlerjugend (juventude pró-Hitler), as corporações de estudantes, professores e advogados. As SA foram praticamente destruídas após a “noite dos longos punhais” (junho de 1934), quando Hitler assassinou os seus próprios líderes, incluindo Ernst Röhm. Em troca, concedeu privilégios às SS, chefiadas por Himmler, inicialmente apenas um guarda-costas de Hitler: 200.000 464 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) homens em 1936, com unidades “de missão interna” (em campos de concentração) e unidades militares de elite das Waffen SS. As SS eram um corpo especial de polícia, chefiado por Heydrich, que se ocupava da própria polícia do Reich (KERSHAW, 1985[2000]). A polícia foi reorganizada: a contraespionagem (Abwehr) com Canari, a segurança, a polícia criminal, a polícia secreta do Estado (a Gestapo). Os campos de concentração nascem e crescem rapidamente: eram “apenas” 50 sob o controle das SA, mas aumentam para 100 nas mãos das SS em 1939, célebres por seus três campos desde essa época: Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen. Tinham um milhão de prisioneiros (inicialmente opositores políticos, mas rapidamente também judeus, ciganos, homossexuais...) sob as ordens dos Kapos. Fato gritante: os campos forneciam uma enorme mão de obra gratuita a grande indústria privada (Krupp, Mercedes Benz, Volkswagen, Thyssen). O trabalho de um homem custava 70 centavos por dia e produzia o equivalente a 6 marcos (a taxa média de lucro e de acumulação de capital aumentava então geometricamente). A Justiça perdeu toda a autonomia, sendo parcialmente substituída pelos “tribunais populares”. O ministro da propaganda (Goebbels) controlava os meios de comunicação, a edição de livros, a rádio, o cinema, os setores que tratavam da “limpeza” das massas. Os “criadores” e os jornalistas recebiam instruções precisas: as bibliotecas sofriam razias (só a 10 de maio de 1933, foram queimados 20.000 volumes). Também na educação se assiste a uma “purga” dantesca: racismo, revisão dos textos e manuais escolares, orientações para alunos e professores nas corporações. As organizações juvenis começaram a incluir crianças a partir dos oito anos, e em breve a lei começou a autorizar a esterilização de certos indivíduos ou grupos. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 465 Os bens dos sindicatos passaram para a “Frente do Trabalho”, dirigida por Robert Ley. A filiação na “Frente” era obrigatória para os sindicatos. Em janeiro de 1934, foi publicada a “lei sobre a organização nacional do trabalho”. A “Frente” estava dividida em 22 grupos. Os sindicatos deviam ser os instrumentos da política social do regime. Os locais de trabalho deviam eleger “delegados” a partir de uma lista apresentada pelo diretor. As greves são proibidas: os “tribunais de trabalho” começam a aplicar sanções e introduzem o “serviço laboral” durante um ano, para ambos os sexos. Os tempos livres são igualmente organizados pelo KDF (“Força pela Alegria”) (FREI, 1993). Hjalmar Schacht, o homem do grande capital, foi novamente nomeado ministro das Finanças (1934-37). Uma década antes tinha tido a responsabilidade econômica na República de Weimar, depois foi ministro sem pasta até 1943. Apoiou a retomada da produção com o bloqueio dos capitais estrangeiros, “a substituição das importações”, e uma política de crédito a curto prazo. Desenvolveu também uma política de grandes obras públicas, que absorveu uma enorme quantidade de desempregados. Os salários, no entanto, foram congelados. A concentração de capitais revelou um favoritismo maciço, com o Estado a assumir os sectores não rentáveis da base, nomeadamente para a indústria de armamento: aço, metal (as Hermann Goering Werke). Verificou-se também um êxodo rural devido aos incentivos à produção agrícola, bem como à restauração das multas e dos castigos corporais nos campos, aos salários em gêneros e ao fornecimento de mão de obra (Serviço Laboral). A produção aumentou rapidamente de um índice de 100 em 1932 para 225 em 1939 (duplicando em menos de 7 anos) com uma “inflação controlada”. Para a controlar, foi satisfeita a procura crescente 466 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de produção de armas (prelúdio, de fato, da guerra de conquista). Os monopólios foram então reforçados: os lucros cresceram 250%, mas os preços só aumentaram 25%. Os salários reais tiveram de baixar: a juventude, que já não estava desempregada foi forçada a trabalhar obrigatoriamente. O programa “anticapitalista” original limitouse à expropriação dos capitalistas... judeus (para encorajar outros capitalistas, “arianos”) e à nacionalização das indústrias deficitárias, essenciais para o rearmamento da Alemanha (BETTELHEIM, 1971). Os contemporâneos de Trotsky admiravam a sua análise da ascensão do nazismo, que foi amplamente difundida devido à sua extraordinária lucidez, mas poucos se apercebem de que ela se inseria num corpus teórico geral sobre a época histórica em questão, a “época da revolução permanente”. Qualquer teoria da revolução é também uma teoria da contrarrevolução. Trotsky descreveu precisamente as consequências, para a sociedade humana e para a civilização, da nova etapa imperialista do capitalismo, definida por Lenin em 1916, quando a Primeira Guerra Mundial estava em pleno desenvolvimento, como uma “época de guerras e revoluções”, uma “época de reação em toda a linha”. Síntese de Trotsky: “A guerra eclodiu com uma série de convulsões, crises, catástrofes, epidemias e bestialidades. A vida econômica da humanidade caiu num impasse. Os antagonismos de classe tornaram-se agudos e nus. As válvulas de segurança da democracia começaram a explodir umas atrás das outras. Os preceitos morais elementares pareciam ainda mais frágeis do que as instituições democráticas e as ilusões reformistas. A mendacidade, a calúnia, o suborno, a venalidade, a coação, o assassínio atingiram dimensões sem precedentes. Para um simplório atónito, todos estes dissabores parecem um resultado temporário da guerra. Na verdade, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 467 são manifestações do declínio imperialista. A decadência do capitalismo denota a decadência da sociedade contemporânea com o seu direito e a sua moral.” (TROTSKY, 1973). A transformação do “regime relativamente reacionário” de concorrência aberta num “regime absolutamente reacionário” de monopólio, privou a expansão global do capital de qualquer vestígio histórico progressivo, com consequências desastrosas para os países mais atrasados: “Ao mesmo tempo que destrói a democracia nos velhos países-mãe do capital, o imperialismo impede a ascensão da democracia nos países atrasados. O fato de, na nova época, nem uma única colônia ou semicolônia ter consumado a sua revolução democrática - sobretudo no domínio das relações agrárias - deve-se inteiramente ao imperialismo, que se tornou a principal trava do progresso econômico e político. Pilhando as riquezas naturais dos países atrasados e impedindo deliberadamente o seu desenvolvimento industrial autônomo, os magnatas monopolistas e os seus governos apoiam simultaneamente financeira, política e militarmente os grupos de exploradores nativos mais reacionários, parasitários e semifeudais. A barbárie agrária artificialmente preservada é hoje a praga mais sinistra da economia mundial contemporânea. A luta dos povos coloniais pela sua libertação, ultrapassando as etapas intermediárias, transforma-se necessariamente numa luta contra o imperialismo, e alinha-se assim com a luta do proletariado nos paísesmães. As revoltas e guerras coloniais, por sua vez, abalam mais do que nunca os alicerces do mundo capitalista e tornam menos do que nunca possível o milagre da sua regeneração.” (TROTSKY, 1939). 468 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Para analisar as consequências políticas da nova era, marcada pela guerra mundial e pela crise geral do capitalismo em 1929, Trotsky teve de desenvolver ainda mais a teoria do desenvolvimento desigual do capitalismo e, tal como da primeira vez que elaborou a “revolução permanente”, confrontou-se novamente com Marx que, segundo Trotsky, “retratou de forma demasiado unilateral o processo de liquidação das classes intermédias, como uma proletarização em massa do artesanato, dos pequenos ofícios e do campesinato”. A crise capitalista, a era dos monopólios, teve, no entanto, consequências imprevistas: “O capitalismo arruinou a pequena burguesia a um ritmo muito mais rápido do que a proletarizou. Além disso, o Estado burguês há muito que orienta a sua política consciente para a manutenção artificial dos estratos pequeno-burgueses”. As consequências políticas deste processo de contrarrevolução contemporânea eram enormes: “Se o proletariado, por uma razão ou por outra, se revela incapaz de derrubar com um golpe audacioso a ordem burguesa ultrapassada, então o capital financeiro, na luta para manter o seu domínio instável, não pode fazer mais do que transformar a pequena burguesia arruinada e desmoralizada por ele no exército de pogrom do fascismo. A degeneração burguesa da socialdemocracia e a degeneração fascista da pequena burguesia estão interligadas como causa e efeito.” (TROTSKY, 1938). No entanto, “causa e efeito” não significam que a socialdemocracia e o nazismo fossem “gêmeos”, uma ideia que serviu à Internacional Comunista como base para a teoria do “social-fascismo”, negando qualquer possibilidade de unidade proletária e de vitória contra o nazifascismo. Enquanto os partidos comunistas “stalinizados” consideravam a vitória nazi como um “mal menor”, Trotsky já tinha II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 469 alertado para a terrível originalidade do novo tipo de contrarrevolução em 1932: O fascismo: “põe de pé as classes que estão imediatamente acima do proletariado e que temem ser forçadas a descer às suas fileiras; organiza-as e militariza-as à custa do capital financeiro, sob a cobertura do governo oficial (...). O fascismo não é apenas um sistema de represálias, de força brutal e de terror policial. O fascismo é um sistema governamental particular baseado no desenraizamento de todos os elementos da democracia proletária dentro da sociedade burguesa.” (TROTSKY, 1932). A sua natureza revolucionária de base teria levado Trotsky, em todo o caso, a opor-se à política estalinista antes do levantamento nazi, mas não se limitou a isso, graças à sua compreensão teórica centrada no fenómeno. Isto levou Perry Anderson a dizer com admiração: “Isolado numa ilha turca, escreveu, a uma certa distância dos acontecimentos, uma sequência de textos sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, como estudos de uma política específica. Eles têm uma qualidade inigualável em toda a gama do materialismo histórico. O próprio Lenin nunca produziu qualquer trabalho de profundidade e complexidade comparáveis neste domínio. De fato, os escritos de Trotsky sobre o fascismo alemão são as primeiras verdadeiras análises marxistas de um Estado capitalista do século XX - o estabelecimento da ditadura nazi”. (ANDERSON, 1976) Trotsky não tinha qualquer confusão, e muito menos qualquer fascínio pela máquina de símbolos e cerimônias que rodeava o mito do Führer: “No início da sua carreira política, Hitler destacavase apenas pelo seu grande temperamento, uma voz muito mais alta do que as outras e uma mediocridade 470 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) intelectual muito mais segura de si. Não trouxe para o movimento nenhum programa já pronto, se não se tiver em conta a sede de vingança do soldado insultado. (...) Havia no país muita gente arruinada e afogada, com cicatrizes e nódoas negras recentes. Todos eles queriam bater com os punhos na mesa. Isso Hitler sabia fazer melhor do que os outros. É verdade que ele não sabia como curar o mal. Mas os seus discursos ressoavam, ora como ordens, ora como preces dirigidas ao destino inexorável. As classes condenadas, como as fatalmente doentes, nunca se cansam de fazer variações das suas queixas nem de ouvir consolações. Os discursos de Hitler estavam todos sintonizados com este tom. A falta de forma sentimental, a ausência de um pensamento disciplinado, a ignorância e a erudição espalhafatosa - todos estes pontos negativos se transformaram em pontos positivos. (...) O fascismo abriu as profundezas da sociedade para a política. Hoje, não só nas casas dos camponeses, mas também nos arranha-céus das cidades, vive ao lado do século XX o século X ou o século XIII.” (TROTSKY, 1933). Em última análise, a contrarrevolução capitalista e a contrarrevolução do “Estado Operário” (a URSS stalinista) responderam ao mesmo padrão totalitário típico das necessidades de defesa do capital global no seu período de decadência: “A ‘síntese’ da torpeza imperialista é o fascismo, diretamente gerado pela falência da democracia burguesa perante os problemas da época imperialista. Restos de democracia continuam a existir apenas nas aristocracias capitalistas ricas: por cada ‘democrata’ em Inglaterra, França, Holanda, Bélgica há um certo número de escravos coloniais; as ‘60 Famílias’ dominam a democracia dos Estados Unidos, e assim por diante. Além disso, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 471 os rebentos do fascismo crescem rapidamente em todas as democracias. O stalinismo, por sua vez, é o produto da pressão imperialista sobre um Estado operário atrasado e isolado, um complemento simétrico, no seu próprio gênero, do fascismo.” (TROTSKY, 1938). Muito antes do nascimento da “semiologia”, Trotsky advertia: “Se o caminho para o céu é pavimentado com boas intenções, então as avenidas do Terceiro Reich são pavimentadas com símbolos”, porque “nem todo pequeno-burguês exasperado poderia ter se tornado Hitler, mas uma partícula de Hitler está alojada em todo pequeno-burguês exasperado” (TROTSKY, 1933). Trotsky não só previu o nazismo, nos seus traços essenciais e nas suas piores consequências, mas também o desmistificou na mesma análise. Ao fazê-lo, Trotsky não só ajudou a salvar a falência completa da teoria marxista nos “tempos sombrios”, como refere Perry Anderson, mas talvez também a salvar simplesmente o processo de pensamento social, face à barbárie consumada nos berços da civilização ocidental. A evolução da URSS na década de 1930, por sua vez, parecia complementar simetricamente a tendência para o Estado totalitário que caracterizava o mundo capitalista imerso na crise econômica mundial, tendo como principal consequência o crescente intervencionismo estatal “keynesiano”. Diz-se que teria sido possível imaginar outra história da URSS nos anos 30, se o mundo capitalista não estivesse em crise. Nessa altura, poderiam dedicar tempo a hostilizar o regime soviético, mas isso não foi possível devido aos seus próprios problemas nesse período. Do mesmo modo, não é difícil imaginar o destino do capitalismo em crise, com as suas massas desempregadas e esfomeadas, se a URSS tivesse sido uma força revolucionária e um 472 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) exemplo internacional, não pela propaganda, mas pela realidade do seu desenvolvimento econômico e social. De fato, nos anos 30, a URSS e o mundo capitalista estavam em equilíbrio devido às suas dificuldades internas: mais uma prova da unidade orgânica e da interdependência de todos os setores do mundo contemporâneo, bem como da tendência real para a unificação do seu ritmo histórico. É precisamente por estas razões, e tendo como pano de fundo a vitória internacional do fascismo (ou seja, a derrota da revolução proletária na Europa), que Trotsky apreciou a atitude dos trabalhadores perante a burocracia soviética durante este período: “Não é preciso duvidar que a esmagadora maioria dos trabalhadores soviéticos está insatisfeita com a burocracia e que uma parte considerável, de modo algum a pior, a odeia. No entanto, não é simplesmente devido à repressão que esta insatisfação não assume formas violentas de massa; os trabalhadores temem que eles vão limpar o campo para o inimigo de classe se eles derrubarem a burocracia. As inter-relações entre a burocracia e a classe operária são, na realidade, muito mais complexas do que parecem aos ‘democratas’ espumosos. Os operários soviéticos teriam acertado contas com o despotismo do aparelho se outras perspectivas se tivessem aberto diante deles, se o horizonte ocidental não tivesse ardido com a cor castanha do fascismo, mas com o vermelho da revolução. Enquanto isso não acontecer, o proletariado suporta (‘tolera’) a burocracia e, nesse sentido, reconhece-a como portadora da ditadura proletária. Numa conversa de coração para coração, nenhum trabalhador soviético se pouparia a palavras fortes dirigidas à burocracia stalinista. Mas nem um só deles admitiria que a contrarrevolução já teve lugar.” (TROTSKY, 1980). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 473 A URSS de Stalin tornou-se um país industrial, não só com indústrias pesadas, mas também onde a indústria de bens de consumo começou a ser negligenciada. As principais consequências seriam: ritmo acelerado de urbanização, crescimento da burocracia, salários diferenciados em nome da “emulação socialista”, severidade da disciplina no trabalho. Estes fatores enfraqueceram completamente o sistema “socialista”, pelo menos no significado histórico que este termo já tinha adquirido. A nível internacional, a política ultraesquerdista do stalinismo começou com uma revolta falhada em Guangzhou, na China, em 1927. Em seguida, a política do KPD alemão (denúncia do “socialfascismo”, oposição a uma frente única dos partidos operários contra o fascismo) é levada a cabo em todos os países: cria “sindicatos vermelhos” que organizam setores diretamente influenciados pelos partidos comunistas, proclama o “colapso iminente do capitalismo” e acelera as aventuras sob todas as formas. O resultado foi dramático: as organizações populares controladas pelos partidos comunistas afundaram-se: a CGTU na França, a Trade Union Unity League (TUUL) nos Estados Unidos, o National Minority Movement (NMM) em Inglaterra. Nos Balcãs, as alas juvenis dos partidos comunistas foram quase exterminadas. Na Europa Ocidental, tornaram-se uma espécie de seita: foi o que aconteceu na Bélgica, na Inglaterra, na Espanha (onde várias outras organizações comunistas eram mais fortes do que o PC), na França (onde o PCF tinha 25.000 membros em 1933, um quarto da sua força na segunda metade da década de 1920). Nos países “periféricos”, o nacionalismo e os movimentos pródemocracia (por exemplo, o APRA peruano ou a UCR argentina) foram classificados como “fascistas”, o que isolou e enfraqueceu os partidos 474 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) comunistas “coloniais”. A Internacional Comunista foi reduzida a 600.000 membros, excluindo o PCUS: os seus partidos tornaram-se “monolíticos”, como Stalin queria, com dirigentes “incondicionais” que aceitavam tudo o que vinha “de cima”, incluindo as explicações para as derrotas mais incríveis. “Monolíticos”, mas incapazes de articular uma resposta revolucionária, no seu conjunto, à crise do capitalismo dos anos 30. Era evidente que os dirigentes da URSS temiam os movimentos revolucionários no estrangeiro, que poderiam desestabilizá-los. Por isso, a “esquerda” contemporânea que emergia na socialdemocracia ocidental e no nacionalismo da “periferia” foi pouco influenciada pelos partidos comunistas (apesar dos congressos “antiimperialistas” mundiais, como o celebrado em Frankfurt e presidido por William Münzenberg, ou os congressos “contra o fascismo”). Em contrapartida, o capitalismo mundial parecia ter renunciado momentaneamente à sua intervenção direta na URSS (intervenção iniciada após a ruptura diplomática anglo-russa de 1927), pelo menos até à consolidação da Alemanha nazista. Desde 1933, Trotsky descrevia Hitler como o “super-Wrangel” (nome do general russo, chefe do campo “branco” da guerra civil de 1918-1921) e como “ponta de lança do imperialismo mundial”. Os dirigentes stalinistas descreveram então Trotsky como “social-fascista”, “belicista”, visivelmente ansioso por conseguir um status quo com o “novo regime” alemão. Simultaneamente, uma série de “revoluções palacianas” na URSS fracassam, indicando, no entanto, a fragilidade crescente da posição de Stalin na URSS: em 1931, os “casos” de Syrtsov e Lominadzé, acusados de formarem um “bloco antipartido” (os dois dirigentes acusavam os líderes do partido de “tratarem os operários e os camponeses como os Barins”) são expulsos do CC. Em 1932, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 475 ocorreu o “caso Ryutin”, que se refere ao dirigente que apelou à descoletivização, à reintegração dos membros expulsos do partido e à destituição de Stalin (quando isto foi descoberto, Ryutin foi expulso do partido, tal como Zinoviev e Kamenev). Muitas pessoas também foram presas, mas o Bureau Político recusou-se a executá-las, conforme o desejo de Stalin). Em 1933, ocorreu o menos conhecido “caso Smirnov”. Os intelectuais foram massivamente expurgados e a mulher de Stalin suicidou-se. A “resistência” à brutalidade de Stalin no próprio Comité Central do PCUS tinha elevado o estatuto de Sergei Kirov. Ele desempenhava o papel de “conciliador”. Estas reações no partido e no aparelho de Estado mostram que a própria burocracia estava consciente e temia o “espírito opositor” que prevalecia em vastas camadas da população. Isso era particularmente evidente na juventude, que rejeitava o stakhanovismo, que se traduzia numa espécie de sistema de trabalho para alguns, ou numa produção mínima, em nome da “emulação”. No entanto, os burocratas que se opunham a Stalin também tinham medo de o destruir: alguns deles tinham certamente pensado que isso iria encorajar a direita e conduzir a uma contrarrevolução. No início de 1934, o XXVII Congresso do PCUS estabeleceu o espírito da maioria: foi aceita uma autocrítica de antigos opositores relativamente “dignos” (Zinoviev, Bukharin, Lominadzé), foi concedido um estatuto legal aos kolkhozianos, os Kulaks perseguidos foram perdoados, a GPU foi reorganizada (transformou-se em NKVD) sob o controle de um “Comissariado (Ministério) dos Assuntos Internos”. No entanto, foi uma calmaria antes da tempestade, ou seja, do grande conflito que se estava a formar no próprio Congresso. Os secretários regionais pediram a Kirov que se candidatasse ao lugar de 476 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) secretário-geral (Kirov recusou). 270 delegados votaram contra Stalin, que foi eleito para o CC na última posição, segundo Roy Medvedev. Os delegados cercaram Kirov, que considerou que era necessário aplicar o desejo de Lenin (de destituir Stalin do cargo de Secretário-Geral e da sua posição de liderança). Roy Medvedev também confirma que, durante o Congresso, teve lugar uma reunião de secretários regionais do PCUS, dedicada à causa da substituição de Stalin. Alguns deles - incluindo Anastas Mikoyan, o georgiano Ordjonikidzé, Petrovsky, Orachenlanchvili - receberam instruções para pressionar Kirov a candidatar-se ao cargo de Secretário-Geral. Pela primeira e única vez na “era estalinista”, formou-se um semi-consenso sobre a readmissão dos opositores de Stalin no partido, com exceção de Trotsky, ou dos trotskistas, bem como de Ivar Smirnov e dos seus amigos do “bloco da oposição”. O assassinato de Kirov, em dezembro de 1934, deve ser avaliado à luz desta situação, bem como os julgamentos de Moscovo, em que Trotsky era o principal acusado. Stalin, no meio de todas as dificuldades do Congresso do PCUS de 1934, ainda não tinha nomeado os seus “homens” (Kaganovitch, Ekhov e o jovem Malenkov) para posiçõeschave. Kirov foi claramente designado como “número 2”, promovido ao cargo de “Secretário do Partido”: este foi o “compromisso” de 1934. Onze meses depois, em 1 de dezembro de 1934, Kirov foi assassinado por um jovem comunista, Nikolaiev. Foi desencadeada uma rápida e espetacular repressão em massa, com leis partidárias. Milhares de pessoas foram deportadas para a Sibéria (transportadas nos chamados “comboios Kirov”), todas “suspeitas” de conspiração para assassinar... Kirov. Nikolaiev, julgado à porta fechada, foi executado. A repressão em massa terminou com a “sociedade dos velhos bolcheviques”. Os II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 477 trotskistas passaram a ser chamados de “assassinos” (KNIGHT, 2000). Nessa altura, Trotsky indicou que o assassinato de Kirov foi “facilitado”, se não mesmo organizado, pelo NKVD. Ele foi o pretexto para os “Julgamentos” que acabaram com toda a velha guarda bolchevique. No entanto, para além dos julgamentos públicos (que eram apenas a ponta do iceberg), havia os processos “à porta fechada”, que se deviam, sem dúvida, à incapacidade de extrair confissões dos acusados. Em junho de 1937, teve lugar a condenação e execução dos chefes do Exército Vermelho, como veremos mais adiante, matando os seus chefes, o marechal Tukhachevski e o general Piotr Iakir, em julho de 1937; o julgamento, condenação e execução dos dirigentes do Partido Comunista da Geórgia (Mdivani e Okudjava) em dezembro de 1937, a continuação do mesmo, com a condenação e execução de Enukidzé. Em 1938, com as execuções em massa de opositores de esquerda em pelotões de fuzilamento na Sibéria, a Ekhovtchina stalinista (nome do chefe do NKVD, Ekhov) ficou completa. Com os massacres da década de 1930, Stalin superou a crise política imediatamente anterior (MEDVEDEV, 1971): 270 delegados votaram contra Stalin no XVII Congresso do PCUS (eleito para o CC na última posição entre os eleitos) tentando substituí-lo, o que constituiu o motivo político imediato para os Julgamentos de Moscou. Na grande purga, para além da velha guarda bolchevique remanescente, foram executados 98 dos 117 membros do Comité Central eleitos em 1934, 1108 delegados dos 1966 delegados ao 17º Congresso, 4 membros do Bureau Político e 3 dos 5 membros do Bureau de Organização. O massacre incluiu todos os antigos opositores e as suas famílias, 90% dos oficiais superiores do Exército Vermelho, todos os dirigentes da polícia política que precedeu Ekhov, a maioria dos 478 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) refugiados comunistas estrangeiros na URSS (no total, houve 4 a 5 milhões de prisões, um soviético foi preso por cada 17 detidos e um foi executado por 85) (SORLIN, 1964). Paralelamente, a tendência burocrática para destruir as conquistas de outubro, antecipada por Trotsky, era visível em medidas como a eliminação do direito ao aborto e ao ensino superior gratuito. A “decapitação” do Exército Vermelho teve uma importância imediata para o destino da URSS: em junho de 1937, o Marechal Tukhachevsky, Vice-Ministro da Defesa, foi enviado para um julgamento secreto, condenado à morte e executado quarenta e oito horas depois, com outros sete generais que formavam a nata do Exército Vermelho. Havia alguns dias, o General Gamalrik, Comissário Geral do Exército, tinha-se “suicidado”. Os generais foram acusados de espionagem a favor da Alemanha nazista e de conspirar com Hitler para promover uma derrota soviética. Os acusados eram todos heróis da guerra civil: Iakir, comandante de Leningrado; Uborevich, comandante da frente ocidental; Kork, comandante da Academia Militar; e Primakov, chefe da cavalaria. Poucos dias depois, Voroshilov, marechal stalinista e ministro da Defesa, acusou-os de conluio com Trotsky. “O Exército Vermelho foi decapitado”, disse Trotsky, comentando as execuções. Os soldados foram treinados com ele durante a guerra civil e, sem ter qualquer afinidade política particular com eles, considerou-os os melhores exemplos do Exército Vermelho e, de longe, os mais populares e capazes. O julgamento dos generais foi, no entanto, apenas a parte visível de uma espantosa purga que desintegrou as Forças Armadas soviéticas. Em agosto de 1937, segundo Leopold Trepper (criador da rede de informação soviética durante a Segunda Guerra Mundial, conhecida como Orquestra Vermelha), “Stalin reuniu-se com os líderes políticos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 479 do Exército para preparar a purga dos ‘inimigos do povo’ que pudessem existir nas forças armadas. Foi o sinal para o início dos massacres: 13 dos 19 comandantes do Exército, 110 dos 130 comandantes de divisão e de brigada, os chefes de metade dos regimentos e a maioria dos comissários políticos foram executados. Assim desintegrado, o Exército Vermelho esteve fora da cena de combate durante alguns anos”. Calcula-se que mais de 35.000 oficiais tenham sido mortos. Os quatro marechais que subscreveram as acusações contra Tukhachevsky também foram rapidamente liquidados. A “purga” também se infiltrou na Internacional Comunista: os dirigentes de vários partidos comunistas foram eliminados. Trepper (de origem polonesa) afirma que, quando era estudante na Universidade para Estrangeiros em Moscou, 90% dos militantes comunistas de origem estrangeira que viviam em Moscou morreram. O confronto entre Stalin, a GPU (NKVD) e o Exército Vermelho era inevitável na situação criada pelos “julgamentos”. Em 1937, os comandantes do Exército Vermelho eram formados por oficiais que tinham combatido na guerra civil, a maior parte deles sob o comando de Trotsky, fundador do Exército Vermelho. Mesmo que não fosse uma oposição, a crise permanecia latente. Os chefes do exército dispunham de uma autonomia relativa e não estavam sob a alçada de Stalin. A sua popularidade era enorme, nomeadamente a de Tukhachevsky, reconhecido mundialmente como aquele que modernizou o Exército Vermelho e o colocou num nível técnico e estratégico muito elevado (mecanização, esquadrões, etc.). Tukhachevsky e outros comandantes do Exército Vermelho observavam ansiosamente os desenvolvimentos na Alemanha nazista e pressentiam um conflito militar inevitável com esta. Embora Tukhachevsky e Kirov não fossem exatamente 480 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) comparáveis a Trotsky e Zinoviev como líderes políticos, o primeiro tinha poder sobre o Exército e o segundo sobre a burocracia. Isto tornava-os rivais potencialmente perigosos para Stalin. Por ironia do destino, os chefes do Exército Vermelho, aqueles que criticaram Stalin por preparar insuficientemente a URSS para uma guerra inevitável com a Alemanha nazista, foram condenados como espiões alemães, através de documentos falsos preparados pelos próprios nazistas. As falsificações foram reveladas por Trepper, que foi preso pela Gestapo durante a guerra como chefe da rede da Orquestra Vermelha. O seu captor, Hermann Goering, disse-lhe que tinha forjado documentos para acusar falsamente Heydrich, o comandante das SS. Para o efeito, contou com o apoio de um antigo general do Exército da Rússia Branca, Skoblin (que, na altura, trabalhava para o GPUNKVD), que se queixou de que Tukhachevsky estava a tramar uma conspiração. Foram rapidamente reunidas provas falsas e o material foi levado a Stalin através do governo da Frente Popular Checa, chefiado por Benès. Após este “caso”, Hitler proclamou: “Neutralizamos a Rússia durante dez anos”. A partir daí, podia preparar-se a conquista da Checoslováquia e a guerra na sua frente ocidental. As execuções enfraqueceram decisivamente o Exército Vermelho e criaram as condições para o pacto entre Hitler e Stalin de 1939. Quando Hitler finalmente invadiu a Rússia em 1941, o Exército Vermelho sofreu inicialmente terríveis derrotas e levou muitos meses para se recuperar, à custa de milhões de mortos e prisioneiros. Os novos comandantes, promovidos após a purga, eram visivelmente subservientes ao grande líder (então chamado generalíssimo). O massacre dos chefes do Exército Vermelho foi um fator não só de enfraquecimento, mas também que pôs em questão a própria existência II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 481 de um Estado saído de uma revolução. Em 1939, após o fracasso das negociações entre a URSS e França-Inglaterra, Stalin assinou um pacto com Hitler, declarando o seu apoio a um regime contrarrevolucionário alemão: “Não se tratava apenas de um pacto de não agressão, mas de uma delimitação de esferas de influência, de um acordo para dividir a Europa de Leste. Stalin reconheceu que a guerra entre a Alemanha e o Ocidente era inevitável” (NETTL, 1976). Além disso, o Pacto Hitler-Stalin (ou, Pacto Molotov-Ribbentrop, nos nomes dos ministros dos Negócios Estrangeiros que o assinaram) não era apenas político: as importações soviéticas na Alemanha aumentaram (em termos de dois anos de pacto, 1939-1940) de 56,4 para 419,1 (milhões de rublos), e as exportações de 61,6 para 736,5 (NOVE, 1990). Ao mesmo tempo, Trotsky denunciou a ilusão stalinista de uma neutralização duradoura da Alemanha através do pacto, estabelecendo a inevitabilidade de uma invasão da URSS pelo nazismo de Hitler. Isto foi reafirmado no seu último grande documento publicado em vida, o Manifesto da Conferência de Emergência da Quarta Internacional (maio de 1940, que antecipava a inevitabilidade e a iminência da invasão alemã). Enquanto os analistas anunciavam a convergência bem sucedida dos “totalitarismos fascista e comunista”, Trotsky não perdia de vista a natureza diversa da base de classe de ambos os Estados, as contradições sociais e as políticas nacionais envolvidas. Aqueles que descrevem a vitória de Stalin sobre Trotsky como um produto da sua superioridade em termos de realpolitik esquecem-se, sem dúvida, do seguinte: a agressão nazista de julho de 1941 apanhou de surpresa o “realista” Stalin. Não acreditava na sua iminência, apesar dos relatórios da rede de espionagem soviética (TREPPER, 1975). 482 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Para resumir o período, quase todos os “revolucionários profissionais” da era pré-revolucionária e da guerra civil, na sua maioria compatriotas de Lenin, foram assassinados. Quanto ao partido, foi usurpado por homens que tinham aderido no período stalinista. Isto desencadeou as “carreiras” de Brejnev, Kossyguin, Gromyko, que se juntaram aos “homens de Stalin” (Beria, Malenkov, Postrebychev). Uma grande parte das conquistas sociais da revolução foi destruída e registou-se um reforço sem precedentes da disciplina do trabalho. Neste contexto, desenvolveu-se o “culto da personalidade” de Stalin. Trotsky concluiu que, embora baseados em sistemas sociais diferentes e opostos, o nazismo e o stalinismo são simetricamente complementares, uma vez que ambos se desenvolveram no terreno histórico da contrarrevolução global, na segunda metade dos anos 1920 e nos anos 1930. Referências bibliográficas ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. Verso, 1976. BETTELHEIM, Charles. L’Économie Allemande sous le Nazisme. Paris, François Maspéro, 1971. FREI, Norbert. Der Führerstaat: Nationalsozialistische Herrschaft 1933 Bis 1945. Dtv (O Estado do Führer, 1933-1945), Oxford, 1993. KERSHAW, Ian. The Nazi Dictatorship. Problems and Perspectives of Interpretation. Londres, 1985, 4ª ed., 2000. KLEIN, Claude. De los Espartaquistas al Nazismo. La República de Weimar. Barcelona, Península, 1970. KNIGHT, Amy. Who Killed Kirov? The Kremlin’s Greatest Mystery, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 483 Hill & Wang, 2000. MEDVEDEV, Roy. Le Stalinisme. Origines, histoire, conséquences. Paris, Seuil, 1971. MEDVEDEV, Roy. Let History Judge: The Origins and Consequences of Stalinism. Edição revista e aumentada, Columbia University Press, 1989. NETTL, J. P. The Soviet Achievement. Londres, Thames and Hudson. 1976, Reimpressão. NOVE, Alec. An Economic History of the USSR. Penguin, 1990. SCHACHT, Hjalmar. 76 Jahre meines Lebens. Kindler und Schiermeyer Verlag, Bad Wörishofen, 1ª edição, 1953. SORLIN, Pierre. A Sociedade Soviética: 1917-1964. Armand Colin, 1964. TREPPER, Leopold. O Grande Jogo. Paris, Albin Michel, 1975. TROTSKY, Leon. A sua moral e a nossa. A Nova Internacional. Vol. IV No.6, junho de 1938. TROTSKY, Leon. Ninety Years of the Communist Manifesto [Noventa anos do Manifesto Comunista]. The New International, Nova York, Vol. IV, No.2, fevereiro de 1938. TROTSKY, Leon. O marxismo no nosso tempo. 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Os textos são do ano de 1923, porém refletem sobre as contradições acumuladas após a vitória da Revolução, sendo uma parte em relação aos problemas carregados do antigo aparelho czaristas, mas principalmente pelas novas dificuldades encontradas na construção do novo aparelho de Estado soviético. Em suas lembranças, Trotsky afirmou que o “ano de 1923 foi o primeiro de uma luta feroz, mas ainda desprovida de ruído, pelo sufocamento e destruição do partido bolchevique” e essa luta, sobre a capa da “luta contra o trotskismo”, era, na verdade, uma “luta contra a herança ideológica de Lenin” que, por seus problemas de saúde, estava sem condições de participar ativamente3 da luta contra os problemas em que se encontrava o partido (TROTSKY, 2017, p. 551). Os textos reunidos no Novo Curso podem ser considerados a primeira batalha aberta de Trotsky para defender a herança ideológica de Lenin e lutar contra a decomposição política do partido bolchevique e do que mais tarde foi nomeado como stalinismo. 1 Esse texto é uma adaptação da apresentação realizada II Encontro Internacional Leon Trotsky. A apresentação pode ser encontrada no YouTube do evento. 2 Professor de Ciências Políticas e Econômicas na FATEC Sumaré. Doutor em Ciência Política e membro do Laboratório de Pensamento Político da Unicamp. Contato: renatoferreirafernandes@gmail.com 3 Mesmo nessas condições, Lenin tentou contribuir com a luta contra a burocratização do partido durante os primeiros meses de 1923 (LEWIN, 2005). 486 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Apesar da importância do texto de Trotsky, a primeira edição impressa dele em português só saiu em 2023, com cem anos de atraso4. Essa é uma edição bastante completa contando com três seções: a) uma primeira seção com os setes textos principais de Trotsky no debate do Novo Curso que falam sobre o problema das gerações, os problemas da burocracia, da economia, da questão camponesa, entre outros – a maioria das edições, incluindo estrangeiras, considera apenas estes textos com parte integrante do livro; b) uma segunda seção com documentos internos do partido bolchevique publicados no calor da luta, como a Declaração dos 46, as duas cartas ao Comitê Central, entre outras, que demonstram como a luta externa foi traduzida na luta interna pela direção do partido; c) uma terceira seção de contextualização com textos de Valentina Vilkova, Euclides Agrela e Max Shachtman que ajudam o leitor a entender os processos sociais e políticos que envolviam a luta pelo Novo Curso. Nessa apresentação, mais do que debater o texto, quero propor uma reflexão sobre a atualidade da obra: por que é importante, para militantes, historiadores e cientistas sociais, lerem o Novo Curso 100 anos após a sua publicação? Vou tentar responder essa questão, demonstrando dois pontos fortes e atuais da obra de Trotsky. O Novo Curso é uma obra fundamental para entender a degeneração do Partido Bolchevique 4 No mesmo ano foram lançadas duas edições: uma online pela FCM editora com o título Curso Novo (disponível para download: https://acomunarevista.org/ wp-content/uploads/2023/03/livro_curso_novo_pdf_capas.pdf) e a edição da Usina Editorial e Contrabando. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 487 Uma das questões mais clássicas frente a revolução russa é entender como o processo de transformação revolucionária que tinha o objetivo da emancipação da classe trabalhadora se transformou em um processo de ditadura sobre a classe trabalhadora, isto é, como o programa inicial do socialismo se transformou, principalmente após os anos 1930, no stalinismo como regime de terror? O Novo Curso é a primeira tentativa de resposta de Leon Trotsky a esse problema – importante afirmar que ela não é a única e que o revolucionário escreveu uma obra, em 1936, fundamental para entender essa degeneração – A revolução traída (2005). Porém, podemos dizer que O Novo Curso inaugura a reflexão de Trotsky sobre o processo de degeneração da revolução. As principais preocupações dele no livro foram sobre a criação do novo aparelho estatal e o problema do burocratismo da velha guarda de militantes nesse aparelho. A expressão “novo curso” é retirada por Trotsky das resoluções adotadas pelo Comitê Central do Partido Bolchevique em dezembro de 1923. Nessas se reconheceu os diversos problemas que existiam no funcionamento do partido e que estes deveriam ser combatidos pela direção – o debate já havia sido iniciado nas páginas do Pravda com intervenções de Zinoviev, Bukharin, Preobrazhenski, entre outros (BROUÉ, 2014, p. 179–184). Ao mesmo tempo que está ocorrendo esse debate público no partido, há um combate no interior do partido pela direção do mesmo, isto é, para onde deve caminhar o partido na solução dos problemas. Um dos pontos centrais da luta de Trotsky e da sua contribuição nesse debate foi entender o processo de formação do fenômeno burocrático no partido. Trotsky, em seu primeiro texto público na polêmica, reconhece o importante papel que a velha guarda teve 488 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para a revolução, afirmando que o partido só preservou seu caráter revolucionário em razão dela (2023, p. 18). Porém, após a vitória na Guerra Civil, é necessário compreender que “o partido como um todo está para entrar em uma etapa histórica mais elevada” (ibidem, p. 19. Grifos do autor) e que para isso, é fundamental reconhecer os problemas e dificuldades para combatê-los. Dentro disso, o burocratismo aparece como um elemento central que não pode ser reduzido a um pequeno desvio ou uma questão secundária das províncias, mas que atravessa toda a organização: O burocratismo não é um traço fortuito de certas organizações provinciais, mas um fenômeno geral. Ele não passa da organização de distrito para a central por meio da organização regional, mas antes da organização central para a de distrito por meio da organização regional. Não é uma “sobrevivência” do período de guerra; é o resultado da transferência para o partido dos métodos e maneiras administrativas acumulados nesses últimos anos. (TROTSKY, 2023, p. 21) A intervenção de Trotsky busca compreender que a culpa pelos métodos administrativos e militares não era dos indivíduos, mas era parte de um processo social mais amplo e que tinha, na velha guarda, uma materialização dessas práticas. Não era um resquício secundário do período de guerra civil, mas uma permanência na prática das relações sociais partidárias que atravessaram aquele período e que se mantiveram após a vitória na Guerra Civil (1918-1921). Compreender que a burocratização é um processo mais amplo, mas que se materializa nas relações de funcionamento do partido é importante para Trotsky. Segundo ele, os problemas principais que o partido e a revolução enfrentavam eram: “Em última análise, a questão será resolvida por dois grandes fatores de importância internacional: II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 489 o curso da revolução na Europa e a rapidez de nosso desenvolvimento econômico” (ibidem, p. 29). Porém, isso não quer dizer que os bolcheviques devem esperar que esses problemas se resolvam para combater as questões internas do aparelho estatal e do partido, ao contrário, é necessário rejeitar o fatalismo objetivista e subjetivista, pois “nas mesmas condições internacionais, o partido irá resistir mais ou menos às tendências de desorganização na medida em que está mais ou menos consciente dos perigos e que combata esses perigos com mais ou menos vigor” (ibidem). O chamado a juventude do partido faz parte da necessidade de ampliar a resistência do partido ao burocratismo: por mais que a base social do partido esteja nas fábricas, na classe operária, é necessária trazer a juventude, “sua mocidade e sensibilidade” para combater de forma ativa os velhos hábitos enraizados no aparato, pois a “juventude é nosso meio de corrigir a nós mesmos, nossos substitutos; o futuro pertence a eles” (ibidem, p. 31). Um terceiro debate importante em relação ao combate aos problemas do partido é a questão dos agrupamentos temporários como grupos e frações no interior da organização. A primeira questão levantada por Trotsky é que esses tipos de agrupamentos não devem ser vistos como problema em um partido centralizado, ao contrário, qualquer partido que pretende envolver os militantes na elaboração e debate das resoluções acabará por promover agrupamentos temporários (ibidem, p. 36). Faz parte do próprio mecanismo do centralismo democrático assumir esses agrupamentos como parte do seu funcionamento. O problema aparece quando esses agrupamentos temporários se transformam em agrupamentos permanentes. A formação de agrupamentos permanentes, pela própria luta interna 490 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) e externa, acabaria por ceder às pressões de classe que existem na sociedade, inclusive materializando interesses contrários aos do proletariado. Porém, o que nos parece interessante no argumento de Trotsky, é justamente a ideia de que a formação dos agrupamentos temporários não reflete necessariamente as pressões de classe, isto é, não existe uma correlação imediata. Pode existir, porém, não é de uma forma essencialista e nem de maneira direta: “não deve haver uma supersimplificação e vulgarização na compreensão da ideia de que as diferenças do partido, e isso é ainda mais verdadeiro para os agrupamentos, não são nada exceto uma luta pela influência de classes antagônicas” (ibidem, p. 44) e acrescenta: Frequentemente ocorre que o partido é capaz de resolver o mesmo problema por meios diferentes, e diferenças a respeito de quais desses meios são os melhores, os mais úteis, os mais econômicos. Essa diferenças podem, dependendo da questão, abarcar consideráveis setores do partido, mas isso não significa necessariamente que se têm duas tendências de classe. (2023, p. 45) Essa me parece uma questão bastante importante quando pensamos nas polêmicas no interior das organizações de esquerda, principalmente nas organizações trotskistas. Durante as polêmicas internas nas organizações, muitas vezes, a caracterização de classe é antecipada as próprias divergências (AGUENA, 2023, p. 121-132), ignorando a pluralidade que o próprio Trotsky defendeu na questão dos “meios diferentes” que podem existir para resolver um mesmo problema. Todas essas contribuições de Trotsky ajudam a explicar o processo de degeneração por meio do burocratismo do partido II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 491 bolchevique e do Estado soviético. Logo após as revelações dos crimes cometidos por stalinistas, diversos militantes e intelectuais comunistas tentaram explicar os problemas ocorridos na URSS a partir do conceito de culto à personalidade. O filósofo francês Louis Althusser fez um ataque bastante forte a esse conceito como não marxista (o que temos pleno acordo), porém, ao fazê-lo atacou a teoria trotskista igualando-a às teorias burguesas anticomunistas no sentido que elas explicam por redução aos indivíduos, os “desvios” políticos e teóricos ocorridos no partido e no Estado (ALTHUSSER, 1978, p. 54–55). Nada mais longe da explicação de Trotsky que via nos processos sociais à chave de interpretação do fenômeno burocrático: É indigno de um marxista considerar que o burocratismo é apenas o agregado dos maus hábitos detentores de cargos. O burocratismo é um fenômeno social, isto é, um sistema definido de homens e coisas. Sua causa profunda está na heterogeneidade da sociedade, a diferença entre os interesses cotidianos e fundamentais de vários grupos da população. O burocratismo é complicado pela falta de cultura das amplas massas. Conosco, a fonte essencial do burocratismo reside na necessidade de criar e sustentar um aparato estatal que una os interesses do proletariado e do campesinato em uma perfeita harmonia econômica, da qual ainda estamos longe. A necessidade de manter um exército permanente é igualmente outra fonte importante do burocratismo. (TROTSKY, 2023, p. 54–55) Dessa forma, nos parece que a contribuição de Trotsky, que foi desenvolvida posteriormente em textos e livros, desenvolve um bom caminho para compreender a burocratização e degeneração da revolução russa, assim como seu combate. Por um lado, ela é o 492 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) resultado do isolamento da revolução combinada ao baixo nível de desenvolvimento social e cultural das classes russas; por outro lado, ela é fruto da adaptação das velhas guardas a práticas administrativas mantidas do período de guerra, de forma a criar barreiras para a participação dos mais jovens e a sufocar a democracia necessária para o desenvolvimento do partido e do Estado soviético. Tradição, dialética e contradição na construção do partido bolchevique É muito comum, entre militantes e historiadores, conceber a história do partido bolchevique como um processo de luta entre as correntes, desde os combates no interior da social-democracia, entre bolcheviques e mencheviques, mas também a luta entre as diversas frações no interior do bolchevismo, incluindo as diferentes polêmicas na própria dinâmica da tomada do poder: o momento da tomada do poder, a paz de Brest-Litovsk, a questão da militarização dos sindicatos, a questão da NEP, da oposição operária, etc. Porém, também é muito comum entre liberais e socialistas (incluindo anarquistas) contrários à revolução russa, uma acusação de que o partido bolchevique sempre foi um partido monolítico, que era um partido com regras e normas burocráticas, de que o centralismo era da direção sobre os militantes, que a base não tinha qualquer peso ou participação nas decisões do partido, etc. Essa interpretação inclusive se utiliza, muitas vezes, das críticas de Rosa Luxemburgo e do jovem Trotsky. Essa caracterização, sem dúvida, ficou reforçada após a vivência do partido quando o burocratismo enfim venceu a batalha na URSS (BROUÉ, 2014, p. 285–300), isto é, na era stalinista. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 493 Apesar disso, essa não foi a realidade do partido ao longo de toda sua trajetória. Na batalha pelo novo curso, uma das questões que apareceu em relação a história do partido foi a questão da tradição bolchevique. Em determinado sentido, a reivindicação de uma tradição foi uma manobra da burocracia, materializada na troika Stalin, Kamenev e Zinoviev, para excluir Trotsky da “linhagem” bolchevique. E é, com essa concepção, que o revolucionário vai polemizar ao falar da tradição. O primeiro questionamento de Trotsky é justamente se existe uma tradição e o papel dessa na construção da organização. Para ele, a defesa da tradição em geral se caracteriza como uma tendência conservadora, no sentido, de que “a pressão automática de ontem sobre hoje, a tradição representa uma força extremamente importante a serviço dos partidos conservadores e profundamente hostil ao partido revolucionário” (TROTSKY, 2023, p. 63). Essa parte é interessante, pois poderíamos assimilar aqui uma ideia presente na teoria sociológica dos partidos políticos de Robert Michels que é a de “quem diz organização, diz tendência para oligarquia” (MICHELS, 2001, p. 54), isto é, de que a própria organização pressiona ao conservadorismo e burocratismo. Dessa forma, para essa teoria, a própria organização é conduzida por suas leis internas a um processo de burocratização e adaptação à ordem, inclusive os partidos revolucionários (FERNANDES, 2023). A tradição, nesse sentido, nada mais é do que a pressão para a manutenção do status quo da direção do partido. Segundo o trotskista Nahuel Moreno, o problema da organização é sempre complexo e encerra em si mesmo uma contradição aguda: “Toda organização ou estrutura é conservadora, precisamente porque 494 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) tende a evitar que o que existe desapareça, destrua-se” (MORENO, 2021, p. 4. Tradução nossa). Essa estrutura conservadora que pressiona a organização materializa, muitas vezes, na reivindicação de uma tradição partidária. Porém, um partido que quer ser revolucionário, quer transformar a sociedade, deve por si próprio, romper essas amarras conservadoras da própria tradição. É por isso que a tradição de um partido revolucionário deve ser inteiramente diferente da dos partidos conservadores. Segundo Trotsky, a tradição do partido bolchevique não está em um conjunto de fórmulas ou regras burocráticas de funcionamento, mas sim na aplicação do método marxista a própria realidade Se tomarmos agora o partido bolchevique em seu passado revolucionário e no período após Outubro, reconheceremos que sua qualidade tática fundamental mais preciosa foi sua capacidade única de se orientar rapidamente, mudar de táticas rapidamente, renovar seu arsenal e aplicar novos métodos, em uma palavra, realizar giros abruptos. (...) Não significa, naturalmente, que nosso partido é completamente livre de certo tradicionalismo conservador: um partido de massas não pode ser idealmente livre. Mas sua força e potência se manifestam no fato de que a inércia, o tradicionalismo e a rotina se reduzam a um mínimo por uma iniciativa tática perspicaz, profundamente revolucionária, ao mesmo tempo audaciosa e realista. (TROTSKY, 2023, p. 63) A virada tática aparece para Trotsky como o ponto principal da tradição histórica do bolchevismo. Não uma virada para qualquer tática, logicamente, mas saber analisar a realidade para, a partir dela, mudar a ação dos partidos para construir a melhor forma de atingir as transformações revolucionárias. Se olharmos para a história do II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 495 bolchevismo, podemos pensar que essas viradas se materializaram diversas vezes, como no boicote às eleições até acordos eleitorais com setores burgueses democratas ou liberais, de lutar contra o imperialismo a fazer acordos parciais com eles (como foi Brest-Litovsk), entre outros. Nesse sentido, Trotsky está trabalhando com uma definição de marxismo aberta, longe de qualquer esquematismo: “O marxismo é um método de análise histórica, de orientação política, e não uma massa de decisões preparadas de antemão.” (ibidem, p. 64). Sendo o leninismo uma “aplicação desse método em condições de uma época histórica excepcional” que é a época da revolução socialista (ibidem). Essa compreensão de Trotsky vai muito além do debate histórico contingente, e nos revela questões fundamentais da teoria marxista. O que o revolucionário russo defende é que frente às situações da luta de classes, os revolucionários não devem “buscar na tradição e descobrir lá uma proposta inexistente, mas aproveitar toda a experiência do partido e descobrir por si uma nova solução adequada à situação e, fazendo isso, enriquecer a tradição” (ibidem, p. 65). Frente à tradição não buscar fórmulas, mas conhecimentos para melhor enfrentar a situação concreta. Essa tese de Trotsky sobre a tradição bolchevique tem implicações práticas e gnosiológicas. A questão prática é que frente a situação da luta de classes, os revolucionários devem se engajar, mergulhar na realidade e procurar as forças e o caminho necessário para a vitória, isto é, o caminho para levar as massas para a vitória. Essa era a aposta política de Lenin e foi assim que ele chegou na formulação das táticas vitoriosas de Outubro. Por outro lado, está a questão da verdade, tema tão discutido no marxismo. Se não existem fórmulas gerais, se a explicação não 496 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) pode ser feita por uma “referência formal ou uma citação acidental”, isso significa que o método marxista ou a verdade do seu método é “sempre concreta” (ibidem, p. 67). É por isso que Trotsky chama o leninismo de “realismo”, isto é, “a mais elevada apreciação qualitativa e quantitativa da realidade, do ponto de vista da ação revolucionária” (ibidem). É um realismo da práxis que busca na determinação efetiva das relações sociais, o caminho para a transformação revolucionária da sociedade – a verdade é imanente ao desenvolvimento das relações e não podem ser encaixotada na cor cinza da teoria. Essas teses sobre a tradição revolucionária do bolchevismo, transformando-a numa tradição anti-conservadora (o que podemos afirmar que é uma contradição em termos) está unida diretamente a luta de Trotsky pela democracia no partido: se a verdade é sempre concreta, é necessária a discussão dos pontos de vistas diferentes, não para a inação e inércia, mas para a melhor tomada de decisão coletiva que permita que transforme o conjunto de ideias em ação no movimento de massas. A tradição bolchevique é a da práxis no sentido de assegurar a unidade entre prática e teoria, democracia e ação que é a própria tradução do regime partidário do centralismo democrático. Considerações finais O livro O Novo Curso é um documento histórico importante da luta pela transformação revolucionária socialista. Por um lado, ele demonstra como, no processo de construção da URSS, Trotsky e outros bolcheviques lutaram contra o burocratismo e a degeneração da revolução. Por outro lado, ele apresenta teses novas para o marxismo sobre a burocratização, o partido e considerações preciosas sobre o II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 497 próprio método marxista. São essas contribuições que buscamos recuperar e que consideramos que tem validade ainda hoje. É importante ressaltar que as duas contribuições que trouxe aqui sobre o livro não são as únicas de Trotsky na obra. Existem importantes discussões sobre a questão econômica, a questão camponesa, entre outras. Acredito que algumas dessas compreensões são fundamentais para entendermos os debates e problemas históricos, porém, há outras que são importantes para refletirmos sobre a estratégia política atual também. Porém, precisamos ler toda essa contribuição de Trotsky utilizando a sua própria metodologia de compreensão da tradição: devemos conhecer como foi a experiência e luta dos bolcheviques em um momento chave da sua própria história, mas conhecer não para repetir as fórmulas e o que está expresso na obra, e sim para ampliar o nosso próprio repertório para atuar sobre a nossa atual situação da luta de classes, aprendendo com a experiência do passado, mas orientandose para construção de um novo futuro, de um novo curso da história das classes subalternas. Referências bibliograficas AGUENA, P et al. Coragem, confiança e esperança: Catatau, presente!. São Paulo: Usina, 2023. ALTHUSSER, L. Posições I. Rio de Janeiro: Graal, 1978. BROUÉ, P. O Partido Bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014. 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II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 499 A Nova Política Econômica (NEP): debates sobre a lei do valor e a transição ao socialismo Seiji Seron Miyakawa1 O presente capítulo é uma transcrição ligeiramente adensada da comunicação oral feita pelo autor destas linhas no Simpósio Temático 09 do II Encontro Internacional Leon Trótski.2 Tal comunicação baseou-se fundamentalmente na magistral tese de doutorado de Jesus de Blas Ortega (1994), A formação do mecanismo econômico stalinista na antiga URSS e sua imposição na Europa oriental: o caso da Hungria, lida e debatida com grande afinco, entre 2018 e 2019, no Grupo de Estudos de Planificação Econômica e Coletivismo (GPPEC), do Laboratório de Economia Política e História Econômica da Universidade de São Paulo (LEPHE-USP), Grupo este coordenado pelo prof. Dr. Everaldo de Oliveira Andrade. O objeto de interesse de Blas Ortega, evidente no título da tese, é a economia do Estado operário húngaro, instaurado após a Segunda Guerra Mundial. Todavia, a necessidade de teoria e metodologia apropriadas para a intelecção do funcionamento de uma economia não-capitalista, de transição ao socialismo, fez com que Blas Ortega dedicasse toda a primeira metade da sua tese, cuja extensão total se aproxima das 700 páginas, a uma revisão minuciosa da experiência soviética, em especial, do período da Nova Política Econômica (NEP, na sigla em russo) e dos debates que esta suscitou nas fileiras do Partido Comunista da URSS nos anos 1 Mestrando em Desenvolvimento Econômico – Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). ORCID: 0009-0006-4384-7668. e-mail: seijism@outlook.com. 2 <https://www.youtube.com/watch?v=dMh_yL7QapQ>. 500 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 1920. A comunicação dividiu-se em duas partes. A primeira apresenta, de maneira muito resumida, a diferença entre as orientações de política econômica propostas pela Oposição de Esquerda e pela direção stalinizada do Partido no período de 1923 a 1927. Já a segunda concerne ao desenvolvimento de uma teoria da transição ao socialismo como resultado destas disputas de orientação e, particularmente, sobre o controverso destino da lei do valor em tal transição. O conteúdo do capítulo também se beneficiou da leitura de A revolução traída (Trótski, 2023), referência incontornável de qualquer estudo sério acerca da URSS, e que embasa a própria tese de Blas Ortega. O debate sobre a NEP Como se sabe, o fim da guerra civil russa, em 1921, é seguido da substituição do “comunismo de guerra” – caracterizado, em grande medida, pela requisição forçada da produção camponesa – pela NEP, que reestabelece as relações de mercado entre a cidade e o campo, a fim de garantir, por meio de incentivos comerciais-pecuniários, o abastecimento de gêneros agrícolas da Rússia Soviética e, assim, permitir a recuperação dos níveis de produção do pré-Primeira Guerra Mundial e o prosseguimento da industrialização do país. Em 1923, aparecem as primeiras diferenças no Partido a respeito da condução da NEP, no contexto do adoecimento de Lênin, do avanço do processo de burocratização do Estado operário e da formação da Oposição de Esquerda, no intuito de se contrapor a este processo. O deflagrador da disputa, no âmbito econômico, foi a “crise das tesouras”, ou seja, o encarecimento dos bens industriais em relação aos bens agrícolas de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 501 tal modo que a trajetória de afastamento entre os preços dos dois tipos de bens descrevia graficamente uma tesoura cada vez mais aberta. O diagnóstico das causas da crise feito pela Oposição e pela direção stalinizada do Partido foram diametralmente opostos, assim como o foram, portanto, as políticas prescritas para enfrentar a crise. A “oposição” caracterizava a crise de 1923 como um fenômeno provocado pela desproporção entre a recuperação agrária e a industrial, o que gerava uma escassez crônica de produtos industriais e uma pressão para o seu encarecimento nas redes comerciais varejistas, majoritariamente em mãos privadas. A maior capacidade aquisitiva (potencial) do campo não podia ser satisfeita pela indústria. Por outro lado, os baixos preços de compra dos produtos agrícolas por parte do Estado [...] demoviam o campesinato de colocar seus excedentes nos circuitos estatais, o que gerava uma situação de escassez de produtos agrícolas, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, obtinhase uma boa colheita (Blas Ortega, 1994; p. 90-1 – tradução nossa). Para a Oposição, a solução da crise exigia o aumento dos investimentos estatais na indústria, sobretudo, na indústria pesada, de bens de capital, etc., aumento este que deveria ser financiado por meio de uma tributação progressiva, que transferisse recursos do setor privado para o setor estatal-socialista da economia soviética. A direção stalinizada, contudo, rejeitava qualquer medida que pudesse reduzir a renda do campesinato, por atribuir as tesouras não à desproporcionalidade intersetorial, ou à baixa produtividade da indústria soviética, e sim à superprodução, ou seja, a um excesso de oferta de bens industriais em relação à capacidade de absorção de tais bens pela demanda camponesa. Este diagnóstico é, no mínimo, estranho, já que as típicas 502 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) crises de superprodução capitalistas ocasionam quedas, não aumentos, de preços. Mas, como ressalta Bosch (s.d.), tal direção argumentava que a superprodução da indústria soviética não se manifestava desta forma típica porque a indústria estatal-socialista praticava preços de monopólio. Contra a Oposição, a direção stalinizada defendia, portanto, a redução destes preços industriais de atacado3 e a contração da oferta de crédito de modo a contribuir para a redução dos preços também no varejo, obrigando as empresas a escoarem seus estoques para se manterem líquidas; além de outras medidas visando a proteção do poder de compra dos camponeses contra possíveis pressões inflacionárias, como a redução dos gastos públicos e a priorização de importações de bens de consumo e de insumos para a indústria leve, em detrimento das importações de bens de capital e de insumos para a indústria pesada. Blas Ortega classifica como “agrário-monetarista” ou “agro-monetarista” esta orientação econômica de subordinação do processo de industrialização soviético ao ritmo de crescimento da acumulação camponesa privada, que incluía ainda a liberalização do arrendamento de terras e do emprego de mão de obra assalariada no campo. Duas palavras de ordem conhecidas do período eram “camponeses, enriquecei-vos!” e “construir o socialismo a passo de tartaruga”, ambas provenientes dos textos de Nikolai Bukhárin, à época, o principal teorizador da política econômica agrarista. Sob a prevalência desta política, duas outras crises de abastecimento resultantes desse desequilíbrio 3 Para a Oposição, esta forma de proceder era exatamente o contrário do que ditava a racionalidade econômica: a redução dos preços deveria resultar de, e não preceder, o ganho de produtividade. Ao invés de reduzir os preços no varejo, a redução administrativa dos preços de atacado apenas aumentaria as margens de lucro do varejo privado em prejuízo da indústria estatal-socialista. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 503 da relação entre campo e cidade se seguirão à de 1923, em 1925 e 1927. A forma paliativa como as crises de 1923 e 1925 foram encaradas, sustentando o poder de compra camponês às custas da industrialização, resultou apenas na reprodução da crise, em 1925 e 1927, em escala ampliada, por causa da crescente diferenciação socioeconômica do campesinato promovida pelas políticas agro-monetaristas. Assim, o peso social adquirido pelos camponeses ricos, os cúlaques (ou kulaks), era tão grande que o boicote à comercialização de grãos, após uma colheita recorde, transformou-se em uma ameaça à própria continuidade da URSS como um Estado operário, motivando a cisão do bloco agro-monetarista e o giro para a industrialização acelerada e a coletivização rural forçada, pouco tempo depois da expulsão da Oposição de Esquerda do Partido – expulsão esta à qual a unidade do bloco agro-monetarista, até então, encabeçado por Stálin e Bukhárin, não resistirá. À essa ameaça interna, somavam-se as ameaças externas representadas pelo triunfo contrarrevolucionário de Chiang Kai-Shek, na China, e a ruptura das relações diplomáticas entre a Grã-Bretanha e a URSS, sempre segundo Blas Ortega. Na comunicação, abstivemo-nos de maiores considerações a respeito desse giro. No entanto, é mister problematizar o entendimento de que, ao romper com os agraristas, encabeçados por Bukhárin, Stálin estava, na prática, “adotando o programa econômico da Oposição”. Tal entendimento foi tido, inclusive, pelo principal economista da Oposição de Esquerda, Ievguêni Preobrajenski, que, junto a outros oposicionistas, irá capitular ao stalinismo, renunciando à Oposição no intuito de ser readmitido no Partido. Há ao menos três razões pelas quais esse entendimento é errôneo. Em primeiro lugar, o giro à coletivização e à industrialização foi 504 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) uma reação desesperada e improvisada às consequências desastrosas da política agro-monetarista que o stalinismo havia levado adiante no período anterior. Insistindo na industrialização, a Oposição pretendia criar as condições técnico-materiais para um avanço gradual, progressivo, da coletivização. Na ausência destas condições e de uma preparação prévia ao giro, o colapso da produção agropecuária e a fome foram as primeiras consequências, por demais conhecidas, da coletivização forçada. Em outras palavras, a premeditação e o gradualismo distinguem a política da Oposição da que se implementou, a partir de 1928-9, sob Stálin. Em segundo lugar, a Oposição não preconizava a completa abolição dos mecanismos de mercado nas circunstâncias da URSS de então, caracterizada pelo parco desenvolvimento das forças produtivas e pela dependência do mercado mundial. Como observa Blas Ortega, a palavra de ordem da Oposição, neste sentido, era: superar a NEP pelos métodos da própria NEP. Em terceiro lugar, a democracia operária não era uma reivindicação secundária, acessória, muito menos alheia ao programa econômico, da Oposição. Em uma economia planificada, a democracia desempenha um papel fundamental na consecução e, sobretudo, na verificação e retificação do plano a partir dos resultados aferidos. A inovação e a qualidade dos produtos, mais do que o aumento extensivo da produção ou o cumprimento de metas quantitativas, são problemas nos quais, “quanto mais longe for, mais a economia tropeçará”, problemas estes que, ademais, “escapam das mãos da burocracia como uma sombra”, e cuja resolução, portanto, “supõe a democracia dos produtores e consumidores, a liberdade de crítica e de iniciativa, coisas incompatíveis com o regime totalitário do medo, da mentira e da bajulação” (Trótski, 2023; p. 235). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 505 Socialismo e lei do valor A introdução aos Grundrisse4 (Marx, 2011) não admite nenhuma dúvida acerca do fato de que Marx se recusava a conceber a economia política como uma ciência das relações de produção humanas em geral, em qualquer época, em qualquer sociedade, ou seja, como uma ciência social e historicamente indeterminada, que só poderia, então, reduzir-se a trivialidades banais ou naturalizar as relações capitalistas de produção, transformando o “homem das cavernas” no primeiro capitalista, e a machadinha ou a lança de pedra deste ser humano primitivo, no primeiro capital. Para Marx, o objeto da economia política era, e só poderia ser, as relações de produção de uma sociedade ou época histórica específica, qual seja, a capitalista. Assim, tanto Bukhárin quanto Preobrajenski comungavam do entendimento metodológico de que uma “economia política do socialismo” seria um disparate, um contradictio in adjecto, pois as leis econômicas do socialismo são de natureza absolutamente distintas das do capitalismo, estas últimas, descritas em O capital e nos demais escritos da crítica da economia política de Marx. [S]e, no campo da realidade econômica, o produto se opõe, na economia planificada, à mercadoria do modo de produção capitalista, se a medida pelo tempo de trabalho se opõe ao valor, se a contabilidade da economia planificada se opõe ao mercado na qualidade de esfera de manifestação da lei do valor, se o produto excedente se opõe à mais-valia, do mesmo modo, no campo da ciência, 4 Tal introdução havia sido publicada pela primeira vez por Kautsky, na revista Die Neue Zeit, em 1903, muito antes de, e de maneira avulsa a, os Grundrisse, e anexada à edição de 1907 da Contribuição à crítica da economia política, tornando-se conhecida desde então como “Introdução à Contribuição...” (Marx, 2008). 506 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) a economia política cede o cargo à tecnologia social, isto é, à ciência da produção socialmente organizada (Preobrajenski apud Blas Ortega, 1994; p. 23 – tradução nossa). Nesta ocasião, convém nos determos neste ponto um pouco mais do que era possível na comunicação, em razão da confusão recorrente entre tempo de trabalho e valor. Uma leitura atenta do célebre capítulo 1 do Livro I de O capital (Marx, 1983), sobre a mercadoria, em conjunto com o pertinente comentário de Rubin (1980), esclarece que, em todas as sociedades humanas, o trabalho produz valores de uso. Porém, é apenas em uma sociedade de produtores privados individualizados, atomizados, na qual a produção é mediada pelo mercado, que os valores de uso se tornam também valores, ou mercadorias, isto é, valores de uso que também são portadores de valor, suportes materiais do valor. Em outras palavras, os produtos do trabalho, os valores de uso, só assumem a forma social de valor sob as relações mercantis e capitalistas-mercantis de produção. Ainda que o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma mercadoria determine a magnitude do valor desta mercadoria, a mensuração e distribuição do produto social, dos valores de uso, por meio da contabilização do tempo de trabalho não é sinônimo de produção e troca de mercadorias. Uma economia regida pela lei do valor caracteriza-se justamente por ser uma economia de mercado, não-planificada. Nesta economia, os trabalhos privados só adquirem caráter social, ou socialmente necessário, quando o produto do trabalho, a mercadoria, é vendida. Primeiro, dispende-se trabalho na produção de mercadorias, e apenas a posteriori, após as mercadorias já terem sido produzidas e ofertadas no mercado, é que o comportamento da demanda e dos preços revela se o trabalho contido em tais mercadorias é socialmente II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 507 necessário ou não. Se menos trabalho que o socialmente necessário for empregue na produção de determinado artigo, a oferta deste artigo será inferior à demanda, e os preços de tal artigo subirão, assim como subirá, por conseguinte, a taxa de lucro do ramo produtor do artigo. Se, pelo contrário, mais trabalho que o socialmente necessário for empregue, a oferta será superior à demanda, e a queda dos preços e o acúmulo de estoques invendáveis reduzirá a taxa de lucro. Estas variações dos preços e das taxas de lucro – detalhadas no Livro III de O capital (Marx, 1984), em especial, nos capítulos 9 e 10 – irão, então, redistribuir o capital e, por conseguinte, o trabalho entre os vários ramos e setores econômicos, adequando a oferta à demanda, sempre de maneira aproximada, por meio de oscilações ininterruptas e desvios sucessivos, para mais e para menos.5 Na Crítica ao programa de Gotha, Marx (2001) assinalava a sobrevivência do “direito burguês” sob o socialismo, isto é, o estágio inferior do comunismo, no qual a sociedade ainda não pode inscrever em sua bandeira: de cada um, segundo suas capacidades; a cada um, segundo suas necessidades. O produtor individual recebe, nessa medida, uma vez feitas as deduções, o equivalente exato do que dá a sociedade. O que ele lhe deu é sua quota individual de trabalho. Por exemplo, a jornada social de trabalho compõe-se da soma das horas de trabalho individual. O tempo de trabalho 5 Para simplificar o raciocínio, estamos enfocando apenas a maneira como a lei do valor adequa a produção às necessidades sociais, satisfeitas por produtos de distintos ramos e setores econômicos, e abstraindo as diferenças de produtividade entre as várias empresas que competem no mesmo ramo, isto é, produzem o mesmo tipo de artigo. A leitores menos familiarizados com as categorias da (crítica da) economia política, recomendamos enfaticamente a leitura dos dois primeiros capítulos do breve e didático Mandel (1973). 508 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) individual de cada produtor é a parte da jornada de trabalho social que ele forneceu, a parte que nela tomou. Ele recebe da sociedade um bônus [um título, cédula ou voucher – S.S.M.], certificando que forneceu determinada quantidade de trabalho (deduzido o trabalho efetuado para os fundos das cooperativas) [para a reposição e acréscimo dos meios de produção e para o custeio de serviços públicos como educação, saúde, aposentadoria, etc., etc. – S.S.M.] e, com esse bônus, retira da reserva social uma quantidade de objetos de consumo equivalentes ao custo de uma quantidade igual de seu trabalho. A mesma quota de trabalho que ele deu à sociedade sob uma forma, esta devolve-lhe sob outra (Marx, 2001; p. 104-5). Na medida em que a distribuição ainda é mediada pelo tempo de trabalho, “[...] reina o mesmo princípio que para a troca de mercadorias: uma quantidade de trabalho sob uma forma é trocada pela mesma quantidade de trabalho sob outra forma” (Marx, 2001; p. 105). Mas, imediatamente acima desse trecho em que Marx explica como o tempo de trabalho media a distribuição, lê-se que... No interior da sociedade coletiva fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; da mesma forma, o trabalho incorporado em seus produtos já não aparece como valor desses produtos, como uma qualidade material inerente a eles, pois agora, ao contrário do que acontece na sociedade capitalista, já não é por um desvio, mas sim diretamente, que os trabalhos individuais se tornam parte integrante do trabalho comum [...]. Trata-se aqui de uma sociedade comunista, não tal como se desenvolveu em suas próprias bases, mas, ao contrário, tal como acaba de surgir da sociedade capitalista. Portanto, ela apresenta, em todos os seus aspectos – econômico, moral e intelectual – os estigmas II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 509 da antiga sociedade que a engendrou. (Marx, 2001; p. 104 – itálicos no original). Portanto, Marx é inequívoco: a economia socialista não é regida pela lei do valor. Nesta economia, todo trabalho é direta e imediatamente social e produz apenas valores de uso, não valores (de troca). Apesar de o tempo de trabalho ser contabilizado, o produto social não mais assume a forma de mercadoria e, por conseguinte, tampouco os certificados de trabalho por meio dos quais os meios de subsistência são distribuídos assumem a forma de dinheiro. A circulação de tais certificados não retroage sobre a produção socialista do mesmo modo automático, espontâneo, como a circulação do dinheiro retroage sobre a produção – determinando o que, quanto e como será produzido – nas economias mercantis e capitalistas-mercantis, nas quais os trabalhos privados precisam da chancela do mercado para se tornarem trabalho social.6 A teoria da transição Como esclarece Blas Ortega, foi o stalinismo que consagrou a vulgar concepção da “economia política do socialismo”, e a consequente extensão teórica do funcionamento da lei do valor ao socialismo, a fim de conferir maior legitimidade aos desmandos econômicos da burocracia, vinculando-os falsamente ao próprio Marx. Neste sentido, um importante marco foi a publicação do artigo Problemas econômicos do socialismo na URSS, de Stálin, em 1952, como parte das discussões de preparação do Manual de economia política da Acade- 6 Outras evidências textuais de que era essa a posição de Marx (e Engels) são expostas e comentadas por Rosdolsky (2001). 510 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) mia de Ciências da URSS, lançado dois anos mais tarde. Este foi o primeiro livro-texto de economia editado no país desde 1928. A operação ideológica é dúplice, pois não só a planificação se opõe à lei do valor, conforme vimos, como também a URSS nunca foi socialista. Mesmo depois do giro stalinista para a industrialização e a coletivização, a URSS não adentrou o estágio inferior do comunismo a que a Crítica ao programa de Gotha se refere, mantendo-se em transição ao socialismo. Este caráter transicional da economia soviética decorria não só da existência de 25 milhões de propriedades camponesas e de outras formas, inclusive, urbanas, de economia privada, abolidas com o fim da NEP; mas, sobretudo, do fato de a URSS subsistir no interior do mercado mundial, regido pela lei do valor e dominado, ademais, pelo imperialismo, “ao qual nos encontramos subordinados, com o qual nos encontramos ligados e do qual não podemos nos desprender” (Lênin apud Blas Ortega, 1994; p. 176 – tradução nossa). Por conseguinte, Preobrajenski havia concluído que a teoria da transição teria de se situar a meio caminho entre a economia política e a tecnologia social, “na medida em que ambas analisam formas puras de economia mercantil e capitalista-mercantil, no primeiro caso, e de economia organizada e planificada, no segundo caso” (Blas Ortega, 1994; p. 25 – tradução nossa). Afinal, a economia de transição caracteriza-se pela coexistência, não pacífica, harmônica e complementar, mas contraditória, antagônica, note-se, entre duas leis reguladoras: a lei do valor e a lei da acumulação socialista primitiva, ou originária, definida como [...] a soma de todas as tendências conscientes e semi-espontâneas da economia estatal que estão orientadas à ampliação e ao fortalecimento da organização coletiva do trabalho na economia II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 511 soviética e que ditam ao Estado, sobre a base da necessidade: 1) proporções determinadas na distribuição das forças produtivas, proporções que se estabelecem sobre a base da luta contra a lei do valor no interior e fora dos limites do país, e que têm como tarefa objetiva alcançar o nível ótimo da reprodução socialista ampliada em condições dadas, e o máximo do potencial defensivo de todo o sistema em luta com a produção capitalistamercantil; 2) proporções determinadas de acumulação dos recursos materiais com vistas à reprodução ampliada, principalmente às expensas da economia privada, na medida em que um volume determinado desta acumulação é ditado com uma força coercitiva ao Estado soviético, sob a ameaça: a) de desproporção econômica, b) de crescimento do capital privado, c) de debilitamento dos laços da economia estatal com a produção camponesa, d) da ruptura, no curso dos anos futuros, das proporções necessárias da reprodução socialista ampliada, e do debilitamento de todo o sistema em sua luta com a produção capitalista-mercantil no interior e fora dos limites do país (Preobrajenski apud Blas Ortega, 1994; p. 74 – tradução nossa). A influência do contexto específico da NEP russo-soviética sobre esta formulação é explícita, pois a teoria da transição como um todo, que tem em Preobrajenski um de seus maiores mestres, é um subproduto dos problemas concretos postos aos bolcheviques pela NEP e, mesmo antes, pelo comunismo de guerra, na sequência da primeira revolução proletária da história a triunfar na escala de um país inteiro, embora este fosse um país economicamente atrasado e predominantemente rural, no qual o próprio proletariado era, como se sabe, uma ínfima minoria da população. Porém, essa teoria não pretendia informar apenas o processo de transição da Rússia ao socialismo, até porque, até 1924, todos os bolcheviques, inclusive Stálin, sabiam que 512 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) o socialismo jamais poderia existir encerrado em fronteiras nacionais. A universalização teórica das conclusões da experiência soviética era, ao contrário, ensejada pela perspectiva do triunfo da revolução em outras localidades, em especial, na Alemanha, como nota Blas Ortega. Portanto, a percepção de Preobrajenski de que a pressão da lei do valor contra o setor estatal-socialista é exercida não só pelo setor privado doméstico, mas também pelo mercado mundial, é de suma importância. Segundo Preobrajenski, tal pressão se faz sentir, ainda que de maneira indireta, até nas transações restritas ao setor estatal-socialista. Por exemplo, é possível que um maquinário industrial vendido por uma empresa estatal, do ramo de bens de produção, a outra empresa estatal, do ramo de bens de consumo, possa ser importado a um custo inferior ao do maquinário de fabricação nacional. Entende-se, assim, por que, como salienta Trótski, o predomínio da propriedade estatal dos meios de produção, como na URSS a partir do fim da NEP, é condição necessária, mas não suficiente, para a vitória definitiva do socialismo, isto é, para o ingresso da sociedade no estágio inferior do comunismo, que pressupõe superar a produtividade das economias capitalistas mais desenvolvidas e escapar, assim, do “campo gravitacional” da lei do valor. Parafraseando Trótski, tão ou mais perigosa que a artilharia bélica do imperialismo, para a construção do socialismo, é a artilharia das mercadorias baratas do exterior. Por isso, a Oposição de Esquerda defendia com unhas e dentes o monopólio estatal do comércio exterior, a fim de administrar os riscos inerentes à integração da URSS ao mercado mundial, reduzindo parcialmente a pressão da lei do valor exercida por este mercado contra a débil indústria soviética. Ao mesmo tempo, a Oposição rechaçava o engodo burocrático de que a URSS II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 513 poderia construir o socialismo de maneira autárquica, prescindindo do mercado mundial como meio de obtenção, seja de tecnologia, seja até de financiamento. Ademais, este rechaço da Oposição às implicações econômicas da tese antimarxista e antileninista do “socialismo em um só país”, apregoada por Stálin e Bukhárin, era indissociável do rechaço às implicações políticas desta mesma tese, ou seja, da luta da Oposição por orientar a Internacional Comunista para o aproveitamento das oportunidades de extensão internacional da revolução, contra a subordinação burocrática dos partidos comunistas de todo o mundo à diplomacia soviética, luta esta que encontrou expressão teórica em obras como Stálin: o grande organizador de derrotas (Trótski, 2020) e A revolução permanente (Trotsky, 2011). Considerações finais Nos anos 1920, a crise das tesouras dividiu os bolcheviques em relação à condução da economia soviética e o sentido e os rumos da NEP. A Oposição de Esquerda preconizou uma política para fortalecer progressivamente, pelos métodos da própria NEP, o setor estatal-socialista, em detrimento do setor privado. Apesar de alguns vaivéns, a política agro-monetarista, de concessões aos cúlaques, prevaleceu naqueles anos, até a estratificação e polarização socioeconômica do campesinato pôr em risco a sobrevivência da URSS, obrigando a burocracia stalinista a girar 180º, da “assimilação do cúlaque ao socialismo” para a “liquidação do cúlaque como classe” por meio da coletivização forçada e da industrialização acelerada. No decorrer das disputas entre a Oposição e a direção stalinizada do Partido Comunista da URSS, os problemas candentes da economia soviética forneceram o material 514 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para o desenvolvimento de uma teoria da transição ao socialismo, que aspirava, contudo, a uma validez universal, a fim de que outras tentativas de transição ao socialismo, no futuro, pudessem se beneficiar dos ensinamentos legados por essa experiência pioneira. A despeito de sua posterior capitulação ao stalinismo, Preobrajenski desempenhou um papel crucial em tal desenvolvimento,7 ao situar no centro desta teoria o embate entre os dois reguladores econômicos da transição: a lei do valor e a da acumulação primitiva socialista. A “transição” a qual a teoria diz respeito significa, portanto, a desaparição da lei do valor, junto com todas as categorias da velha economia política, e o fim desta ciência, que, no futuro socialista, cederá lugar a uma nova: a tecnologia social, “a ciência da previsão da necessidade econômica organizada, a ciência que aponta – em matéria de produção ou em outra – a obter o que é necessário da maneira mais racional” (Preobrajenski apud Blas Ortega, 1994; p. 23 – tradução nossa). Revisitar o debate econômico soviético da década de 1920 hoje, à luz da história do século XX como um todo, e do desfecho deste século, em particular, traz à tona uma importante lição: a expropriação econômica e política da burguesia e a instauração de Estados operários, em um único país ou em um conjunto de países, como ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, não significa que estes países se desprenderam do mercado mundial e conformaram outro sistema econômico, que coexiste e compete com o sistema capitalista. Ao contrário do que sustentavam as vulgatas da “economia política do socialismo”, tais países continuam subsumidos ao mercado mundial, regido pela lei do 7 Em que pesem os seus extraordinários méritos, a tese de Blas Ortega parece ignorar a existência de algumas sutis diferenças e matizes de opinião entre Trótski e Preobrajenski que, no entanto, são sugestivos para a elucidação da capitulação deste último ao stalinismo. cf. Day (1977). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 515 valor e dominado pelo imperialismo, e podem apenas iniciar um processo de transição ao socialismo, cujo desenlace – obstaculizado pela pressão da lei do valor oriunda do mercado mundial – só é possível à nível internacional e, em última instância, mundial. Este corolário da teoria da transição foi comprovado de maneira trágica pelo fracasso da transição ao socialismo, e a consequente restauração do capitalismo, não só na URSS e nos demais Estados operários burocratizados da Europa Oriental, mas também em países como, por exemplo, a China, onde a restauração capitalista assumiu formas inusitadas, sendo encoberta por outro contradictio in adjecto: o “socialismo de mercado”, fórmula ideológica tão incompatível com o marxismo quanto a “economia política do socialismo” que lhe deu origem. Referências bibliográficas BLAS ORTEGA, Jesus. La formación del “mecanismo económico estalinista” (M.E.E.) en la antigua U.R.S.S. y su imposición en la Europa del Este – el caso de Hungría: crisis de la concepción estalinista autárquica versus integración en la economía capitalista mundial. Tese de doutorado: Universidade Complutense de Madrid, 1994. BOSCH, Victoria. “La polémica Bujarin, Trotsky y Preobrajensky”. <https://ceip.org.ar/La-polemica-Bujarin-Trotsky-y-Preobrajensky>. Acesso: fev. 2024. DAY, Richard B. “Trotsky and Preobrazhensky: The Troubled Unity of the Left Opposition”. Studies in Comparative Communism, v. 10, n. 1-2, p. 69-86, primavera/verão (boreal) de 1977. MANDEL, Ernest. An Introduction to Marxist Economic Theory. Nova Iorque: Pathfinder Press, 1973. 516 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro primeiro: o processo de produção do capital. v. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro terceiro: o processo global da produção capitalista. v. 1. São Paulo: Abril Cultura, 1984. MARX, Karl. Crítica ao programa de Gotha. In: ; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Porto Alegre: L&PM, 2001; p. 85-131. MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. MARX, Karl. Introdução à Contribuição à crítica da economia política. In: . Contribuição à crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008; p. 239-274. ROSDOLSKY, Roman. Gênese e estrutura de O capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ/Contraponto, 2001. RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980. TRÓTSKI, Leon. A revolução traída: o que é e para onde vai a URSS?. São Paulo: Iskra, 2023. TRÓTSKI, Leon. Stálin, o grande organizador de derrotas: a Internacional Comunista depois de Lênin. São Paulo: Iskra, 2020. TROTSKY, Leon. A revolução permanente. 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Hay muchos indicios de la inconformidad de Shostakovich con el régimen en su correspondencia privada y el testimonio de amigos y familiares, pero no fue un disidente político, como lo fueron por ejemplo miles de opositores de izquierda. Tampoco fue un disidente artístico, pues su período de mayor experimentación vanguardista se corresponde con un momento previo al control partidario conservador sobre la música soviética. Shostakovich se caracterizó por acompañar la marea político-estética, buscando generalmente un terreno medio entre la vanguardia y la retaguardia conservadora. La crítica de Trotsky (2001) de la estructura social soviética, 1 Músico e investigador venezolano, integrante de la Unidad Internacional de Trabajadoras y Trabajadores-Cuarta Internacional. 518 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) particularmente su elaboración de la categoría de la burocracia como capa social privilegiada con un rol dirigente en una sociedad en la que se había frustrado la transición al socialismo, pero que había abolido la propiedad capitalista, nos permite comprender la ubicación social de Shostakovich en la altamente jerarquizada sociedad soviética entre las décadas del 30 y el 50 del siglo XX, y acercarnos a las controversias en torno a la estética musical como expresiones de disputas interburocráticas. En su libro “La revolución traicionada”, de 1936 Trotsky (2001) alude al “artículo-consigna” del Pravda contra la ópera Lady McBeth de Shostakovich, como ejemplo de la arbitrariedad estalinista en este campo de la regulación y dirección estatal del arte bajo los preceptos difusos y reaccionarios del “realismo socialista”. No es casual. Shostakovich fue el más importante de los compositores soviéticos que se formaron en el período posterior a 1917 y por esa razón estuvo en el centro de las dos grandes campañas de regimentación en el ámbito de la música, las llamadas campañas antiformalistas de 1936 y 1948 (NELSON, 2000). Trotksy era un ácido crítico de esta regimentación del arte. Decía en “La Revolución traicionada” que: “La doctrina oficial de la cultura cambia con los zigzags económicos y las consideraciones administrativas; pero en todas sus variaciones conserva un carácter absolutamente categórico. Al mismo tiempo que la teoría del socialismo en un solo país, la de la cultura proletaria, que hasta entonces había permanecido en segundo plano, recibió la investidura oficial.” (TROTSKY, 2001, p. 139) Y continua: “la impresión que una ópera produce a los altos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 519 dignatarios se transforma en una directiva para los compositores” (TROTSKY, 2001, p. 143). Luego de las revoluciones de 1905 y 1917 había una intensa exploración musical vanguardista. En 1909, el pintor Kulbin, quien había sido el primero en invitar a Schoenberg a Rusia en 1912, proponía una estética musical que incorporara sonidos de la naturaleza como los producidos por el viento, el mar, el trueno o los cantos de los pájaros, los cuartos y octavos de tono. Mosolov, Meytuss y Prokofiev incorporaron a sus obras sonoridades alusivas a los procesos industriales. Avraamov, quien consideraba al timbre como “el alma del sonido musical”, escribió y dirigió el macroconcierto Sinfonía de Sirenas, inspirado en los trabajos literarios de Gastev y Maiakovsky para conmemorar la Revolución de Octubre en los años 1919 y 192123 en distintas ciudades soviéticas. En la presentación de Bakú, miles de personas eran al mismo tiempo espectadores y participantes de un espectáculo sonoro que incluía varios regimientos de infantería, dos baterías de artillería, las cornetas para la niebla de toda la flota del mar Caspio, 25 locomotoras, todas las sirenas de fábricas de la ciudad, trenes e hidroplanos. Las autoridades soviéticas publicaron las instrucciones para la ejecución un día antes en los tres periódicos de la ciudad, el 6 de noviembre de 1922, y pusieron en movimiento los recursos materiales y humanos necesarios (SMIRNOV, 2013). La obra de Avraamov tuvo presentaciones exitosas y reflejaba tanto la valoración de las sonoridades de la vida social para la construcción musical como, en un sentido complementario, el potencial de la música para la organización y movilización de los trabajadores, y el apoyo soviético al arte innovador. La música académica era considerada una expresión artística y 520 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) cultural muy importante por las autoridades soviéticas, Lunacharsky en persona presentaba los conciertos dominicales de la Orquesta del Teatro Bolshoi (FROLOVA-WALKER & WALKER, 2012). Los miembros de la propia comunidad musical tomaban la mayoría de las decisiones relacionadas con su propia actividad desde Narkompros, el ministerio de Educación, sobre la base de lineamientos muy generales. Esa política reflejaba una actitud análoga a la adoptada ante el trabajo de los científicos, que tenían autonomía para definir sus planes de investigación (NELSON, 2004). El contraste no podría ser mayor entre estas experiencias y la posterior regimentación musical por parte del estalinismo. La noción misma de que una revolución social entrañaba cambios revolucionarios en la técnica compositiva, defendida por músicos como Roslavets, pasaría a ser considerada una expresión paradigmática de formalismo e izquierdismo (FROLOVA-WALKER & WALKER, 2012). Tan pronto como en 1924 hubo la primera purga en el Conservatorio de Moscú, con el despido de 36 profesores y la tercera parte de los estudiantes, incluyendo al compositor vanguardista Mosolov, por presuntos vínculos con Trotsky (NELSON, 2004; FROLOVA-WALKER & WALKER, 2012). Dentro de la lucha de tendencias en el ámbito musical de los años 20 en Rusia, se distinguían tres grandes corrientes: 1) los tradicionalistas, defensores del legado musical del siglo XIX, en líneas generales liberales y partidarios de la educación musical de masas; 2) los partidarios de la cultura proletaria, herederos ideológicos del Proletkult como la Asociación Rusa de Músicos Proletarios (RAPM), la Organización de Compositores Revolucionarios (ORK), la Facción de Profesores Rojos y el colectivo de estudiantes Prokoll; y por último II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 521 3) los promotores de la música contemporánea agrupados en la ASM. Participaban en la ASM desde un marxista militante como Roslavets hasta apolíticos acérrimos como Mysakovsky y Lamm (NELSON, 2000). A medida que se fue consolidando el proceso contrarrevolucionario estalinista, hacia fines de la década del 20, la política estatal dejó de reflejar la correlación de fuerzas en el propio ámbito académico musical, dominado por los modernistas y tradicionalistas, y pasó gradualmente a promover a las organizaciones proletarias, con escasa formación profesional musical. Los grandes objetivos de las tres tendencias político-musicales, la masificación de la educación musical, promoción de la música contemporánea y promoción de la creación de música agitativa, no eran en sí mismos incompatibles. Pero hay que entender que no se trataba de un mero debate de prioridades sino al mismo tiempo una disputa por los puestos administrativos dirigentes. El estalinismo, al abandonar la política de Lenin y Trotsky de no interferencia en la competencia entre corrientes artísticas, distorsionó los debates al apoyarse en los grupos proletarios en su ataque a la autonomía de los artistas. Hacia fines de 1929 la RAPM había empezado a usar contra la ASM el epíteto de socialfascistas empleado por los estalinistas contra los socialdemócratas en Europa (FROLOVA-WALKER & WALKER, 2003). En el punto más alto de su influencia, la RAPM logró imponer una prohibición total de la transmisión de música popular urbana llamada ligera en la radio en 1930. Entre 1929 y 1932 se prohibió el ingreso de grupos de jazz de occidente (FAIRCLOUGH, 2006). En febrero de 1930 se realizó una purga de la Administración General 522 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de la Literatura y el Arte (Glaviskusstvo) en la que se expulsó a quienes se consideraba cómplices de la promoción de la música ligera popular urbana, equiparándolos con saboteadores industriales, como el compositor Roslavets, y se dejó la institución en manos de la RAPM (NELSON, 2000; FROLOVA-WALKER & WALKER, 2012). Así como se pretendía sustituir a los ingenieros y técnicos industriales con cuadros políticos formados en poco tiempo, la RAPM también reflejaba el mismo método y aspiración de sustituir a un sector de músicos profesionales (NELSON, 2000). El fracaso de la RAPM fue no poder suplantar a los especialistas y académicos con partidarios de una música proletaria que fueran mínimamente competentes en el terreno teórico y práctico. Pero elementos clave del discurso de la RAPM se asimilarían a la doctrina oficial (FROLOVA-WALKER & WALKER, 2012). La crítica musical proletaria incorporaría a la doctrina estalinista los siguientes elementos de juicio extramusicales: a.- la filiación política del compositor, b.- la influencia de compositores no revolucionarios, c.- las connotaciones políticas de las letras, títulos o programa; así como los siguientes elementos musicales: a.- el uso de temas provenientes de la música popular urbana y rural, que podría motivar elogios o condena, b.- el uso condenado de elementos modernistas alejados de la estética del siglo XIX como la politonalidad, dodecafonismo, ritmos sincopados o no convencionales. En 1932 fueron disueltas las organizaciones artísticas y asimiladas a los sindicatos corporativos (FROLOVA-WALKER & WALKER, 2012). Entre 1932 y 1935 también se redactó una nueva constitución que teóricamente garantizaba ciertos derechos democráticos, y en el ámbito musical también hubo una cierta II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 523 apertura, si se compara con los años anteriores de apogeo de la facción autodenominada proletaria. Pero en 1936 se intensificaría la represión totalitaria y esto se reflejó también en el ámbito musical (FAIRCLOUGH, 2006). Varios familiares y allegados de Shostakovich sufrieron la represión por los vínculos sociales que habían creado durante su pasado revolucionario. Un cuñado de Shostakovich fue detenido, su hermana mayor María fue exiliada a Asia Central y su suegra fue enviada a un campo de trabajos forzados. En mayo el mariscal Tujachevsky, amigo personal de Shostakovich, fue arrestado y ejecutado luego de un juicio sumario. Su tío Kostrikin fue fusilado. El compositor y musicólogo Zhilyayev, amigo de Tujachevsky y de Sostakovich, también fue ejecutado. Shostakovich fue interrogado por la NKVD por sus conexiones con Tujachevsky pero se salvó cuando su propio interrogador fue detenido. El director de teatro Meyerhold, de quien Shostakovich era amigo, también fue detenido y ejecutado (FAY, 2000; FAIRCLOUGH, 2019). Así como las campañas de la RAPM contra la música considerada reaccionaria, prácticamente toda a excepción del género agitativo cultivado por los miembros de esa corriente, tenían como trasfondo el arribismo y el intento de copar las instancias administrativas culturales, las purgas posteriores también tuvieron la connotación de disputas faccionales, pero ya sin posibilidades de debate público. Por lo tanto fueron procesos mucho más violentos propiciados por la dirección política estalinista en su desesperación por cerrar la crisis generada por sus propias directrices desastrosas durante la guerra civil contra el campesinado y los planes de industrialización acelerada. Es preciso entender entonces que los extraordinarios 524 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) privilegios sociales y económicos que el estalinismo otorgaba a sus artistas emblemáticos como Shostakovich, los colocaban al mismo tiempo en el foco de una feroz competencia interburocrática por la asignación de recursos. En mayo de 1932 Shostakovich se pudo comprar un apartamento en Leningrado con los honorarios de la ópera Lady Macbeth de Mtsensk (FAY, 2000). Poco después se le asignó otro apartamento, dejando el primero a su madre y mudándose con su esposa al nuevo (FAIRCLOUGH, 2019). Esto representaba indudablemente un privilegio muy grande en el contexto de la enorme crisis de vivienda que se inicia con la migración interna masiva del campo a las ciudades, como consecuencia de la desastrosa colectivización forzosa y las hambrunas en el campo. Entre fines de la década de 1920 y fines de la década de 1930 la población urbana se duplicó. En las ciudades las viviendas típicas eran apartamentos hacinados con una familia por habitación, llamadas kommunalkas. En Moscú la superficie habitable per cápita era 5,5 m2 en 1930 y siguió cayendo a lo largo de la década. Los pocos apartamentos nuevos construidos a comienzos de los 30 se adjudicaron a sectores como el Comité Central, la OGPU, el Ejército Rojo, el Ministerio de Relaciones Exteriores, la Unión de Escritores, a los compositores, ingenieros y otros sectores privilegiados (FITZPATRICK, 2019). Eso explica que, paralelamente a su consolidación en la nomenklatura artística, Shostakovich se incorporó a los cargos oficiales. En 1934 Shostakovich fue electo al concejo municipal de Leningrado y de ahí en adelante estuvo de manera permanente en cargos públicos, aunque con una función más bien simbólica; en 1947 fue electo diputado del Soviet Supremo de la República Federada Socialista Soviética de Rusia (RFSSF) por el distrito Dzerzhinsky, y II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 525 fue reelecto para el cargo hasta su elección al Soviet Supremo de la URSS en 1962, cargo que ejerció hasta su muerte (MAXIMENKOV, 2004). Las redes clientelares, un sistema no oficial de privilegios en base a favores llamado blat, eran un elemento permanente del funcionamiento del régimen estalinista. En la década de los 30 Shostakovich se benefició de relaciones de patronazgo con altos burócratas, entre ellos Beria, jefe de la NKVD, gracias a cuya intercesión se le asignaron en 1947 dos apartamentos en Moscú, así como una casa de campo y un vehículo nuevo (MIKKONEN, 2007). Luego de aceptar que se presentara su Quinta Sinfonía como una autocrítica en 1937, el estatus de Shostakovich dentro de la burocracia mejoraría aún más. En 1941 recibió el Premio Stalin en su primera clase, 100 mil rublos en metálico, por su Quinteto para piano y cuarteto de cuerdas del año anterior. En 1946 fue electo Secretario General del capítulo de Leningrado del Sindicato de Compositores, recibió su tercer Premio Stalin y la Orden de Lenin, y fue nombrado en 1947 Artista del Pueblo de las Repúblicas Soviéticas de la Federación Rusia (FAY, 2000; FAIRCLOUGH, 2019). Para la década del 40 era una práctica consolidada del estalinismo el asignar ingresos, cantidad de premios y privilegios materiales, de acuerdo con una valoración de la importancia que tenía cada funcionario del frente ideológico y cultural, y en consecuencia su ubicación dentro de la nomenklatura. Un ejemplo de ello es la recompensa obtenida por Shostakovich en 1943 al participar en el concurso para la composición del himno nacional. Obtuvo 32 mil rublos, mientras que el ganador del concurso, Aleksandrov, solo obtuvo 12 mil rublos (MAKSIMENKOV, 2004). 526 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) En febrero de 1948, la resolución impulsada por Zhdanov contra la ópera La gran amistad de Muradeli, se convirtió en un ataque sistemático contra supuestas perversiones formalistas y tendencias antidemocráticas, se señaló a Shostakovich como uno de sus principales exponentes (SCHWARZ, 1983). El trasfondo del escándalo era la disputa por el control del aparato económico del Sindicato de Compositores Soviéticos, que administraba cuantiosos ingresos privados bajo la forma de las regalías. Mientas que el salario oficial de Stalin era de diez mil rublos y el salario promedio era de entre 400 y 500 rublos, entre 1946 y 1947 Shostakovich había recibido del sindicato pagos por 230.200 rublos y Prokofiev 309.900 rublos; este último además acumulaba una deuda con el sindicato de 182.000 rublos. En vez de denunciar los manejos financieros y los altos gastos en la producción de óperas por parte del sindicato, Agitprop acusó a los compositores soviéticos más emblemáticos de hacer música extraña al pueblo ruso (MAXIMENKOV, 2004). Desde 1939 el Orgkomitet del sindicato estaba integrado por compositores como Shostakovich, Gliére, Shaporin, Kabalevsky, Kachaturian y Belyi (FERENC, 2004). En 1954 Shostakovich fue condecorado como Artista del Pueblo de la URSS. Fue electo miembro del secretariado del Sindicato de Compositores de la URSS en 1956 y Primer Secretario del Sindicato de Compositores de la Federación Rusa de Repúblicas Soviéticas en 1960. A pesar de todo, su ingreso al PCUS en 1960 lo hizo de manera renuente, bajo presión (FAIRCLOUGH, 2019). El compositor tenía un agudo sentido de la ironía y lo dirigió contra sí mismo en la canción titulada Prefacio a la Edición Completa de mis obras y una breve reflexión acerca de este Prefacio, estrenada en 1966, cuyo texto, escrito por él mismo, hace una lista de sus II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 527 títulos, cargos y honores. Además de satirizar los rituales burocráticos, Shostakovich ridiculiza su propia absorción a la capa social dirigente de la URSS. Para Fairclough (2019), Shostakovich ingresa a la élite burocrática al cabo de su ingreso al PCUS. Pero como hemos podido constatar, desde la década de 1930 el compositor era objetivamente un integrante del sector materialmente privilegiado y socialmente dirigente de la URSS, la burocracia. No resulta entonces extraño que Shostakovich se sintiera atraído por la figura trágica de Galileo, a la que está dedicado el texto del último movimiento de su Treceava Sinfonía (BOTSTEIN, 2004). El régimen estalinista reconocía dos clases en la URSS, el campesinado y los trabajadores, y un estrato, la intelectualidad, dentro del cual se ubicaba a la élite del partido y el Estado, pretendiendo otorgarle una connotación de superioridad cultural (FITZPATRICK, 2019). Empleando la categorización de Trotsky, que no se refiere a una mera división social del trabajo sino que constata una estratificación económica asociada al rol de la burocracia en la dirección del Estado soviético, es evidente que Shostakovich forma parte de este sector. Esta ubicación contextualiza históricamente tanto las persecuciones como las recompensas y privilegios que rodearon la trayectoria artística de Shostakovich. Referências bibliográficas FAIRCLOUGH, P. A soviet Credo. Aldershot: Ashgate Publishing Limited, 2006. FAIRCLOUGH, P. Dmitry Shostakovich. Londres: Reaktion Books, 2019. 528 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) FAY, L. “Shostakovich versus Volkov: Whose Testimony?”. En.: BROWN, M. H. A Shostakovich Casebook. Bloomington: Indiana University Press, 2004, P. 11-66. FERENC, A. “Music in the socialist state”. En.: EDMUNDS, N. (Ed.). Soviet Music and Society under Lenin and Stalin. London: Routledge, 2004, p. 8-18. FITZPATRICK, S. La vida cotidiana durante el estalinismo. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2019. FROLOVA-WALKER, M. “From modernism to socialist realism in four years: Myaskovsky and Asafyev”. Muzikologija, 2013, p. 199-217. FROLOVA-WALKER, M., & WALKER, J. Music and Soviet Power 1917-1932. Woodbridge: Boydell Press, 2012. MAXIMENKOV, L. “Stalin and Shostakovich: Letters to a friend”. En.: FAY, L. Shostakovich and his world. Princeton: Princeton University Press, 2004, p. 43-58. MIKKONEN, S. 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II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 529 Leon Trotsky e a questão georgiana: o problema nacional e a burocracia soviética Wanderson Fabio e Melo1 Apresentando as reflexões O tema da comunicação é sobre Leon Trotsky e a questão nacional georgiana no início da década de 1920. O objetivo do presente trabalho é situar a obra de Trotsky no tocante à questão nacional e discutir as possibilidades de compreendê-la enquanto continuadora das posições de Vladimir Ilitch Lênin, tendo como referência a questão georgiana, no momento formativo da União Soviética. O que entrou para a história como “a crise da questão georgiana” remete às sequências problemáticas da instauração do socialismo na região do Cáucaso e, em particular, na Geórgia. Vários fatores compuseram a situação: as intervenções da divisão do XI Exército Vermelho para a “sovietização” do país, que desconsideraram até mesmo os próprios comunistas georgianos, em fevereiro de 1922; a ausência da democracia interna no Partido Comunista da Geórgia após a sovietização; as perseguições aos dirigentes que discordavam do projeto da Transcaucásia soviética; e os indícios de burocratização no partido e no Estado. Esse conjunto de episódios evidenciava o predomínio grão-russo na URSS. As posições de Trotsky no assunto do problema nacional georgiano no começo da União Soviética tem sido matéria recorrente em estudos de autores diversos e com diferentes posições 1 Doutor em História Social pela PUC-SP, professor na UFF, Campus de Rio das Ostras, Curso de Serviço Social. E-mail: wfabiomelo@yahoo.com.br 530 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) políticas. Adversários de Trotsky, estudiosos acadêmicos, biógrafos, simpatizantes e, até mesmo, partidários do revolucionário ucraniano trataram do que teriam sido as “suas inconsistências”, ou os seus “erros políticos” naquele caso. Segundo vários autores, Leon Trotsky não lutou pelo direito à autodeterminação do povo georgiano. Inúmeros e distintos motivos foram elencados na construção dos argumentos. Dos vários itens da controvérsia georgiana, o ponto relevante talvez esteja nas preparações, no desenvolvimento e nos encaminhamentos do XII Congresso do Partido Comunista de Rússia (bolchevique), em abril de 1923. Desde o final do ano anterior, intensificou-se os contatos entre Lênin, já bastante doente, e Trotsky, por meio de cartas, com mediações das duas secretárias de Vladimir Ilitch, Lydia Fotieva e Mariya Gliasser. Apesar do problema de saúde, Lênin acompanhava os preparativos do evento. Ele estava indignado com as ações do Secretário Geral do PC russo e Comissário para as Nacionalidades, o georgiano de nascimento Josef Stálin. Vários pontos essenciais estiveram em discussão naquele momento: o tema do aparato burocrático expresso nas deficiências da Comissão Estatal de Planejamento (Gosplan) e da Inspeção Operária e Camponesa (Rabkin), as relações das instituições soviéticas e o partido; a matéria da sucessão partidária, que foi tratada por Wladimir Ilitch na sua Carta ao Congresso (1979, pp: 49-53), texto que ficou conhecido como o “Testamento de Lênin”; e o incidente ocorrido entre Stálin e Nadejda Krupskaya, que fez com que Lênin enviasse uma mensagem rompendo relações com Stálin (LÊNIN, 1979, p. 62). A despeito dos numerosos assuntos do XII Congresso e a sua importância histórica, neste artigo será tratado apenas a “questão georgiana”. Lênin também escreveu para o Congresso “O problema das II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 531 nacionalidades ou da ‘autonomia’” (1979, pp: 57-61), e enviou a Trotsky previamente. Trotsky sugeriu a Fotieva mostrar a mensagem a Lev Kamenev, dirigente bolchevique de longa data. Após consultar Lênin, a secretária veio com a comunicação: “‘Absolutamente não. Vladimir Ilitch diz que Kamenev mostrará a carta a Stálin, o qual procurará um compromisso podre, para depois nos trair’” (TROTSKY, 2012, p. 681). Além disso, Fotieva avisou a Trotsky “‘Vladimir Ilitch prepara uma bomba contra Stálin, para o próximo Congresso’” (TROTSKY, 1978, p. 402). Os efeitos explosivos da “bomba” leniniana implicariam no afastamento de Stálin do cargo de Secretário Geral do Partido, na mudança da política soviética na Geórgia, criticava a posição de Stálin sobre a questão nacional, condenava as ações de Grigory “Sergo” Ordjonikidze – georgiano próximo a Stálin e dirigente da divisão do XI Exército Vermelho posicionado no Cáucaso –, defendia o afastamento de Felix Dzerjinsky das suas funções e o desligamento de Ordjonikidze do Partido. Sabendo da pretensão leniniana, Kamenev que, naquele momento, articulava a formação de um novo núcleo dirigente partidário junto a J. Stálin e G. Zinoviev, movimentou-se em conversar com Trotsky, que disse a ele: Tenha isso em mente e diga aos outros que não tenho absolutamente a intenção de iniciar no Congresso luta pelas modificações na organização. Sou pela manutenção do status quo. Se, antes do Congresso, Lênin puder levantar-se, o que infelizmente é pouco provável, discutirei novamente com ele o problema. Sou contra a destituição de Stálin, contra a exclusão de Ordjonikidze, contra o afastamento de Dzerjinsky /.../. Mas, no essencial, estou de acordo com Lênin. Desejo uma mudança radical da política 532 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) nacional, que cessem as perseguições contra os adversários de Stálin na Geórgia, assim, como a pressão do partido sobre a administração; uma orientação mais segura quanto à industrialização e uma colaboração mais honesta entre os dirigentes. O projeto de Stálin sobre a questão nacional não vale nada: coloca no mesmo plano a opressão brutal por parte dos representantes de uma grande potência e os protestos e a resistência dos povos pequenos, fracos e atrasados. Dei à minha proposta a forma de emenda à de Stálin para lhe facilitar a indispensável mudança de direção. /.../ É preciso que ele não se furte a isso, que não intrigue mais. É preciso colaborar honestamente. E você, - disse a Kamenev – é preciso que consiga na conferência de Tíflis uma mudança radical de rota em relação aos adeptos da política de Lênin na Geórgia (1978, p. 404). De fato, Trotsky não declarou guerra a Stálin, como Lênin queria. Mas, exigiu do Comissário das Nacionalidades o compromisso por mudanças na condução dos processos na Geórgia. Stálin fingiu concordar. Contudo, antes do evento congressual houve a piora na saúde de Lênin que, daquele momento em diante, não falava nem escrevia. Na conferência dos comunistas georgianos no mês de março, Kamenev defendeu a política de Stálin contra a de Lênin. No XII Congresso, Stálin aprovou o seu projeto. A direção executiva do Comitê Central “decidiu não encaminhar ao Congresso as notas de Lênin sobre a questão georgiana, alegando não estar claro o uso que dela pretendera Lênin”. (DEUTSCHER, 1970, p. 228). O resultado do encontro celebrou o triunvirato na direção executiva do Comitê Central do PC russo, formado por J. Stálin, G. Zinoviev e L. Kamenev. Para Isaac Deutscher, intelectual marxista polonês, importante biógrafo de Trotsky e participante da Oposição de Esquerda II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 533 Internacional, o revolucionário desconsiderou a advertência de Lênin, e aceitou o “acordo podre” com Stálin (1968, p. 104). Deutscher interpretou que Trotsky pactuou com o Secretário Geral porque não enxergava nele uma alternativa à sucessão de Lênin no Partido. O biógrafo anotou: Lênin não esperava que Trotsky agisse assim e insistiu com ele para que fosse inflexível, falasse ao Congresso com toda franqueza e não aceitasse nenhum acordo para solução de diferenças. Mas todas essas advertências não foram ouvidas por Trotsky que, com a sua magnanimidade, ajudou os triúnviros a esconder do mundo a confissão feita por Lênin em seu leito de morte, de vergonha e culpa pelo renascimento do espírito czarista no Estado bolchevique (DEUTSCHER, 1968, p.105). Trotsky, então, ao invés de seguir os apontamentos de Lênin, na visão de Deutscher, absteve-se na questão georgiana, assim, teria assumido um “compromisso incrivelmente tolo” (1968, p. 105), uma vez que, “não fez ao Congresso a menor insinuação de discordância entre ele e os triúnviros e manteve-se no segundo plano” (1968, p. 107), por consequência, a política soviética na Geórgia não foi modificada. Estudioso da história da União Soviética, Moshe Lewin defendeu que Trotsky “não compreendera as recomendações essenciais” (2021, p. 106) de Lênin. No tema da questão nacional no XII Congresso, o revolucionário “sucumbiu a uma fetichização do Partido, a um legalismo e uns escrúpulos que o paralisaram e o impediam de responder sem vacilações ao que os seus inimigos faziam contra ele” (LEWIN, 2021, p. 107), explicando, assim, a derrota da composição Lênin-Trotsky naquele combate. No entendimento do biógrafo Ian Thatcher, Trotsky não quis enfrentar Stálin na questão georgiana em razão de seu “preconceito 534 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) contra a Geórgia”, por ser historicamente uma área de influência menchevique (2002, p. 122). Durante o XII Congresso, segundo Eduardo Mancuso, Trotsky teria recuado, ao não assumir “a direção do combate partidário. Outros dirigentes bolcheviques entram em cena. Rakovsky e Bukhárin assumem a frente do debate sobre a questão das nacionalidades” (2017). A “inação” de Trotsky naquele momento teria sido o seu maior “erro”, legitimando o triunvirato na direção do PC, tornando a situação no aparato estatal muito mais difícil para aqueles que lutavam pela democracia socialista. Em síntese, os críticos de Trotsky sinalizam que o tratamento da questão georgiana teria despontado certa ingenuidade do revolucionário, em razão da sua autoconfiança, além da displicência e a avaliação equivocada acerca da fase do poder soviético e os lances posteriores. Contudo, emergem as dúvidas: Leon Trotsky conciliou com a burocracia, “rifando o problema nacional da Geórgia”? O revolucionário não teria dado prosseguimento ao bloco político com Lênin? O dirigente elaborou uma errônea avaliação das circunstâncias? Para a compreensão das questões, devemos tomar o que Lênin e Trotsky escreveram naquele contexto. Lênin deixou registradas as suas preocupações acerca dos acontecimentos na Geórgia em cartas e mensagens (1979, pp: 28-36; 57-63), (1986). Trotsky registrou a sua posição em vários dos seus escritos (1973), (1978, pp: 399-406), (1989), (1981, pp: 69-77) e (2012, pp: 552-555; 675-684). O intento de nossa reflexão será evidenciar os argumentos de Trotsky e situá-los à luz dos acontecimentos e das diferentes visões sobre aquela crise, elucidando o seu processo conjuntural e histórico-social. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 535 Complexidades sócio-históricas georgianas e do Cáucaso A Geórgia é um dos países que se encontra na região caucasiana. O Cáucaso está situado no extremo Sudoeste da Europa, abarcando o local entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. O território comporta a Cordilheira do Cáucaso que ocupa boa parte do território, uma cadeia de montanhas longa de 1200 km, iniciando nas margens do Mar Negro e seguindo até a costa do Mar Cáspio, de um lado a outro, daí a derivação do nome do lugar. A área serve de fronteira natural entre a Europa Oriental e a Ásia Ocidental. A cordilheira forma duas cadeias de montanhas distintas. O Grande Cáucaso estende-se da cidade russa de Sóchi, nas margens noroeste do Mar Negro, até alcançar o Mar Cáspio, perto de Baku, no Azerbaijão. Ao Norte do Grande Cáucaso estão a Rússia, a Chechênia e o Daguestão. O Pequeno Cáucaso estende-se paralelamente ao Grande Cáucaso, a uma distância média de 100 km ao Sul. As fronteiras da Geórgia, Armênia e do Azerbaijão correm através dessa cadeia, apesar das cristas das montanhas não definirem os limites de modo geral. O total do território caucasiano é de 158.000 km². A área entre as montanhas do Grande e Pequeno Cáucaso é separada por um vale com três rios principais: o Rio Rioni, que corre em direção ao Mar Negro. O Rio Arax, que nasce no planalto armênio, teve o seu curso servindo de linha fronteiriça entre o Império Russo e a Pérsia, as suas águas descem a montanha em direção à parte baixa e desaguam no Rio Kura. Este último, nasce na região oriental da Turquia e aflui em direção à Geórgia, banha a capital Tbilisi, é o maior rio que cursa o vale, e chega ao Azerbaijão, percorrendo ao todo 1515 km, até despejar no Mar Cáspio. A população da Geórgia é composta por inúmeros povos 536 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) e etnias. Uma característica do Cáucaso é que em relativo pouco espaço geográfico, por conta das dificuldades de vencer as montanhas, ocorreu a preservação de tribos que originaram vários povos. Até meados do século XIX, não se falava em georgiano, mas em povos da Geórgia, isto é, em cartavelianos, suanos, mingrelianos, ossetianos, adjarianos, abecásios, armênios, tártaros, lesgos, inguches e judeus. O idioma georgiano foi estabelecido a partir da hegemonia cartaveliana, na língua falada e nos caracteres escritos. Nas regiões da Geórgia observa-se, durante o Império Russo, com mais nitidez, ao Norte os ossetianos, a Oeste os abecásios, a Leste os adjarianos e ao Sul os armênios. O Cáucaso foi palco de inúmeras disputas violentas ao longo da história. A Geórgia, em particular, foi marcada por dramáticos infortúnios. Por achar-se no cruzamento de rotas e vias comerciais do Mar Negro ao Cáspio, e da Rússia à Ásia, a sua história foi marcada por invasões e sofreu dominações incessantes. Na antiguidade foi conquistada pelos romanos, depois cristianizada pelo Império Bizantino, no século IV. Desde o século V, a Geórgia sofreu ataques do Império Persa, a seguir, no século VII, padeceu às invasões dos árabes ansiosos por converter a população ao islamismo. As incursões ocorreram com pilhagens e massacres sobre o território. No século XII, durante o reinado da rainha Tamara, a Geórgia conheceu a sua “era dourada”, após sucessos militares, estabilidade política e conquistas culturais. No entanto, logo o progresso foi varrido por mongóis da horda de Gengis Khan e, depois, das legiões de Tarmelão, do Império Timúrida. Do século XIII ao XV, invasores roubaram, deportaram, mataram e incendiaram na região. Em seguida, os turcos e os persas partilharam o território, dominando a população até o século XVIII. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 537 Os persas ocupando o Leste, enquanto os turcos a Oeste. Tíflis (antigo nome de Tbilisi), a principal cidade da Geórgia, no espaço temporal de quinze séculos, foi saqueada e destruída dezoito vezes. Com vistas a proteção das incursões militares inimigas, a Geórgia buscou alianças com a Rússia. Em 1783, o rei georgiano Irakli assinou um tratado com Catarina da Rússia, tornando a Geórgia um protetorado russo. O Império czarista buscava abrir caminho no Cáucaso e aumentar as suas forças contra a Turquia e a Pérsia. Embora o acordo não tenha sido capaz de evitar a invasão persa e, por consequência, a destruição de Tíflis no final do século XVIII. No entanto, em 1801, com o czar Paulo I, a Geórgia transformou-se numa província do Império Russo, aprofundando ainda mais a subordinação aos Romanov. A incorporação barrou as invasões. Entretanto, a Igreja Ortodoxa georgiana é forçada a se submeter ao Sínodo da Igreja Ortodoxa Russa, interrompendo a autonomia existente desde o século IV. De acordo com Pokrovsky (1944), a nobreza georgiana compôs o aparelho da administração da dominação russa, tendo alguns de seus membros cooptados ao generalato do exército Imperial, outros foram vice-governadores e a nobreza local manteve o controle sobre as terras. A dominação czarista no Cáucaso durante o século XIX, segundo Richard Pipes (1997, p. 15), continha a seguinte composição administrativa: seis províncias (Baku, Tíflis, Erevã, Elisavetpol, Kutaisi e Chenomore); cinco regiões (Batumi, Dagestão, Kars, Kuban e Terek); e um distrito (Zakataly). A abolição da servidão na Geórgia aconteceu em 1865, quatro anos após ao ocorrido na Rússia. A medida de Alexandre II se fez em acordo com os nobres georgianos. A pobreza e o atraso persistiram, 538 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) porque não foi viabilizado o acesso dos camponeses às terras, continuando o controle senhorial e a agricultura arcaica. Aconteceram revoltas camponesas contra a nobreza rural por meio do que, entre o povo, chamava-se “galo vermelho”, isto é, o incêndio ateado pelos camponeses aos bens dos fazendeiros, como o gado, as plantações e os bosques (PROKOVSKY, 1944). De acordo com Isaac Deutscher (1970), levantes camponeses eclodiram na Geórgia em 1804, 1811, 1812, 1820, 1830, 1837, 1841, 1857 e 1866. Os russos levaram a ferrovia ao Cáucaso na segunda metade do século XIX, durante o czarado de Alexandre II, empreendimento construído com o dinheiro emprestado ao capital financeiro internacional, sobretudo francês. Nessa fase, o Cáucaso conheceu o avanço e a consolidação do controle russo. As preocupações ferroviárias eram muito mais aos objetivos militares, isto é, na rapidez quanto ao deslocamento de tropas, do que propriamente na dinamização do aparato econômico-cultural das localidades. Por outro lado, permitiu certa unificação do território, e a hegemonia de alguns povos sobre etnias menores, mas todos subordinados aos russos. A chegada do trem favoreceu o vínculo econômico interno, que é um componente fundamental para que se tenha a comunidade nacional. Serviu ao transporte de mercadorias que chegavam ao porto de Batumi, do manganês georgiano extraído na região de Tchiaturi e, depois, do petróleo extraído em Baku, no Azerbaijão. As cidades caucasianas permaneceram centros burocráticos, militares, comerciais e de manufaturas simples, pouco complexas, sem conhecer a transformação do artesanato em indústria. De imediato, os caminhos de ferro não foram suficientes para alavancar a agricultura entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. Tampouco deslanchou II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 539 o desenvolvimento da produção burguesa. Longe disso, no Cáucaso continuou o domínio rural cada vez mais decadente. A modernização do transporte não garantiu a transformação do capital mercantil em capital industrial. Por conseguinte, a ausência da burguesia nacional inviabilizou a existência de movimentos massivos por soberania. No sentido geral, a região caucasiana continuou pobre e com a produção rudimentar. A Geórgia, em particular, permaneceu com a agricultura, sobretudo vinícola, habitual desde os tempos medievais, instrumentada por apetrechos tecnologicamente defasados. Em seu texto de 1913 sobre a questão nacional, J. Stálin ressaltou que existia na Geórgia um ressentimento nacionalista antiarmênio, uma vez que a maioria dos comerciantes enriquecidos eram armênios, vistos por muitos como exploradores do conjunto dos povos georgianos (1979, p. 15). A ausência de senhores rurais russos por aquelas terras explicaria a inexistência do nacionalismo contra a nação dominante do Império. Entretanto, os acontecimentos permitem problematizar a afirmação de Stálin, em razão dos eventos importantes que afloraram nos seminários e escolas de Tíflis, nas últimas duas décadas do século XIX. O domínio da Igreja Ortodoxa Russa sobre a localidade impôs o idioma russo nas aulas, além do tratamento pejorativo à língua vernácula. Pode-se aferir que essa russificação nos estudos foi reforçada com a ascensão do czar Alexandre III, que exercia uma política reacionária, com a preocupação de manter a fidelidade do Império Russo à Igreja Ortodoxa e o predomínio dos czares às nações subalternizadas. Em 1884, no Seminário Teológico de Tíflis, o estudante Silvestre Djibladze esbofeteou o reitor russo que teria qualificado o idioma georgiano “bom para cães”. No ano seguinte, o seminarista Josef Lagiachivili apunhalou um reitor em 540 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) razão da forma depreciativa como se referia aos georgianos; preso e condenado à morte, transformou-se em herói nacional. Até mesmo meninos de treze e quatorze anos organizaram greves escolares e outras manifestações em defesa do idioma nativo (MARIE, 2011, p. 40). Vários desses estudantes, nos anos posteriores, aderiram aos círculos socialistas. Djibladze foi um dos fundadores da socialdemocracia em solo georgiano. O desprezo do componente cultural antirrusso na parte dedicada à Geórgia do artigo pode ser explicado pelo fato de Stálin estar em posição adversária ao grupo que pertencia Djibladze, quando ele escreveu o texto. De fato, houve o sentimento anti-armênio entre os georgianos. Contudo, existiu também o ressentimento em relação aos russos. A desconsideração de Stálin, sem dúvidas, favorecia ao trabalho de apagamento da importância histórica e política do oponente, por um lado, por outro, obscurecia o conhecimento profundo da especificidade da rebeldia georgiana entre os estudantes. A Geórgia formou-se no Cáucaso, uma região multiétnica subordinada ao Império Russo, que potencializou a composição nacional por meio da ferrovia, embora realçando, muito mais, as inquietações militares em respostas aos turcos e persas, do que aos aspectos produtivos. Entretanto, o efeito na média duração foi o dinamismo no comércio. Nos anos 70 do século XIX, segundo o estudioso Jean-Jacques Marie, os elementos do quadro social georgiano eram os seguintes: Quatro quintos da população são formados por camponeses miseráveis, supersticiosos, iletrados e devotos, e de fidalguetes que se parecem com eles. Os pequenos agricultores com as suas churras de madeira explorações minúsculas entaladas entre latifúndios principescos ou clericais, nos quais eles têm, além disso, de trabalhar gratuitamente. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 541 Os rendeiros à meia entregam ao proprietário até metade dos seus lucros; os direitos de pastagem para o gado são exorbitantes; a usura floresce, com taxas de juros de 40 a 50%. A viticultura, e um pequeno artesanato que repara ferramentas agrícolas primitivas ocupam também essa população mal saída da Idade Média. (2011, p. 22) Cerca de dez anos depois do período comentado, a capital georgiana apresentava tal configuração: Perto de 40% dos 150.000 habitantes de Tíflis são armênios que controlam o seu comércio e indústria; um quarto são russos, núcleo de administração, da polícia e do exército; os georgianos, artesãos, pequenos comerciantes ou empregados da administração civil e militar, formam o outro quarto. O proletariado nascente é constituído ao mesmo tempo por russos (essencialmente os ferroviários) e camponeses georgianos desenraizados. A cidade alberga ainda judeus e alemães, e um subproletariado de persas e tártaros. (MARIE, 2011, p. 39) Em síntese, os elementos que compuseram o quadro da especificidade georgiana foram a sua formação multiétnica, o seu lugar geográfico e social no Império Russo, a sua estrutura produtiva agrária primitiva, a ausência de uma burguesia nacional, mas com a produção mineral em larga escala potencializada pelo capital financeiro internacional. Inexistiu na Geórgia movimentos políticos expressivos por um estado nacional moderno independente dos Romanov, focado na soberania nacional. No início do século XX, de modo geral no Cáucaso, os círculos operários passam a preponderarem-se na constituição dos movimentos políticos. Na Geórgia, em particular, sobretudo nas cidades de Tíflis, Batumi e na região mineira ocorreram agitações por melhorias sociais e contra o czarismo. 542 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Uma vez que a Geórgia era parte do Império dos Romanov, os socialistas locais passaram a organizar o Partido Operário SocialDemocrata Russo, fundado clandestinamente em março de 1898. Na virada do século XIX para o XX já havia o Partido atuante na região, com os militantes, entre outros, Vitor Kurnatovsky, Silvestre Djibladze, Nikolay Chkheidze, Noe Jordânia, Felipp Mikharadze e Koba (Josef Djugachvili, que a partir de 1912 passou a usar o nome J. Stálin). O II Congresso do POSDR, ocorrido em 1903, foi marcado pela divisão política em bolchevique (maioria), regida por Vladimir Lênin, e mencheviques (minoria), conduzida por Julius Martov. A cisão repercutiu na Geórgia. Felipp Mikharadze e Polikarp “Budu” Mdivani dirigiram os bolcheviques georgianos, enquanto S. Djibladze, Nikolay Chkheidze e Noe Jordânia lideravam os mencheviques. Koba aderiu aos bolcheviques no ano seguinte, após o retorno do exílio. Posteriormente, os bolcheviques constituíram um pequeno grupo militante em Batumi e entre os mineiros de Tchiature, enquanto os mencheviques tiveram relativo sucesso na organização dos ferroviários e de camponeses, sobretudo na repercussão revolucionária do 1905 russo nas terras georgianas. O menchevismo passou a ter maior expressão social, o que pode ser atestado no fato da Geórgia ter sido representada por mencheviques nas quatro Dumas convocadas na Rússia. O principal trabalho dos bolcheviques no Cáucaso será entre os petroleiros de Baku, no Azerbaijão, mas com as dificuldades impostas pela ilegalidade durante o domínio czarista. Dimensões do processo georgiano Com a eclosão da Revolução Russa de Fevereiro de 1917, que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 543 derrubou a dinastia Romanov, ocorreu o despertar político das nações oprimidas e do campesinato. Entretanto, o Governo Provisório que se formou recusava-se encaminhar a retirada do país da guerra imperialista, assim como realizar a reforma agrária, ou conceder autodeterminação nacional aos povos não-russos. Na segunda composição do Governo Provisório, após a jornadas de abril, os mencheviques ampliaram a participação nos assuntos estatais. Mencheviques georgianos tiveram destaques nessa fase. Nicolay Tcheidze presidia o soviete de Petrogrado desde fevereiro, foi um importante apoiador do governo; outro socialista de origem georgiana, o eloquente Irakli Tsereteli chegou a ser o Ministro do Interior. Em oposição às nações oprimidas, o ministro menchevique georgiano defendeu a consigna da “República russa, una e indivisível”. Leon Trotsky referiu-se à Geórgia como sendo a Gironda da Revolução Russa (2017, p. 250), visto que, os girondinos na Revolução Francesa de 1789 exerceram o papel de ideólogos da república burguesa, por sua vez, os socialistas moderados georgianos em 1917, portanto em um contexto diferente, tentaram cumprir essa função. Os girondinos franceses bateram por garantir e consolidar a revolução burguesa; enquanto os mencheviques georgianos lutavam para conservar a dominação burguesa contra a revolução soviética. No I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, em junho de 1917, a aprovação da matéria “direito de autodeterminação dos povos” ocorreu por unanimidade, o que demonstrou o apoio dos trabalhadores à essa pauta democrática. Movimentos intensos eclodiram entre os finlandeses, ucranianos e polacos. No II Congresso soviético, a decisão da autodeterminação dos povos foi mais uma vez ratificada. Ademais, a consigna bolchevique de “paz, pão e terra”, abraçada pelos sovietes, impactou decisivamente os camponeses, segmento social que sofreu 544 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) terrivelmente com o conflito imperialista, pois o campesinato foi o principal fornecedor de soldados à carnificina. A autodeterminação nacional e a reforma agrária trouxeram os camponeses para o lado revolucionário, sendo possível a Revolução de Outubro de 1917. O poder soviético instituiu o Comissariado do Povo, no qual contava com a pasta das Nacionalidades, que foi atribuída à direção de J. Stálin. Contudo, os contrarrevolucionários e imperialistas lançaram a guerra à Rússia soviética. Uma vez realizada a Revolução de Outubro, I. Tsereteli tornou-se a voz antissoviética na Constituinte. Outros mencheviques georgianos de expressão no Governo Provisório, mas desgastados politicamente em Petrogrado, retornaram à terra natal, como N. Tcheidze. Em Tíflis, a ascensão revolucionária de Fevereiro de 1917 possibilitou a emergência do Soviete, que contou com a presidência do menchevique Noe Jordânia, apoiado amplamente nos trabalhadores ferroviários e camponeses pobres, o que permitiu travar o impacto imediato do Outubro russo na Geórgia. No entanto, assim como na Rússia do Governo Provisório, os mencheviques locais não viabilizaram a reforma agrária. No momento da guerra civil, os mencheviques intentaram acordos para concretizar a independência georgiana. Eles recusaram a Revolução de Outubro e a direção bolchevique. De início, os mencheviques na Geórgia contaram com a proteção alemã. Ou seja, esses socialistas moderados traíram as deliberações soviéticas, promoveram a divisão do país – fazendo o contrário de que pregavam –, e recorreram à proteção da Alemanha, isto é, apelaram ajuda ao país que meses antes eles propunham a ofensiva russa. Entendiam que o combate prioritário, em 1918, seria contra os bolcheviques. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 545 Com a assinatura do Tratado de Paz em Brest-Litovsk, os alemães abandonaram o apoio político militar à Geórgia. Entretanto, a Inglaterra passou a incentivar o “nacionalismo georgiano” contra os soviéticos, no sentido de levar a contrarrevolução ao solo russo, e depor os bolcheviques. Campeões na defesa da “República russa una e indivisível” no Governo Provisório, os mencheviques georgianos passaram a fanáticos do separatismo após Outubro. Nessa direção, os mencheviques apoiaram a proclamação da República Democrática Federativa da Transcaucásia, em abril de 1918. Mas, em cinco semanas a nova República foi liquida por suas próprias contradições, desdobrando nos três países: Armênia, Geórgia e Azerbaijão, enquanto na capital azerbaijana ocorria a “Comuna de Baku”, um levante socialista. A classe dominante do Azerbaijão buscou a aliança com a Turquia. A Armênia temia os turcos em razão do histórico de violência. A Geórgia se refugiava na proteção alemã, depois inglesa, contra os turcos. No entanto, o impacto revolucionário foi se fazendo sentir. Segundo Trotsky, “A notícia sobre a proposição de paz feita pelo governo soviético e a reforma agrária comoveram não só as massas de soldados, como a população trabalhadora transcaucasiana” (1973, p. 31). Mas, a Comuna de Baku foi derrotada pela intervenção turca. As forças dos paxás puderam contar com a colaboração da Geórgia menchevique, uma vez que as vias férreas foram colocadas à disposição para os turcos chegarem até a capital do Azerbaijão. De 1918 a 1920, durante o governo dos mencheviques na Geórgia, o Partido Comunista estivera condenado à clandestinidade. A imprensa comunista estava proibida. Em abril de 1918, vários comunistas foram presos, insultados, torturados e enviados aos 546 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) territórios controlados pelo Exército Branco (TROTSKY, 1973, p. 71). A Geórgia menchevique colaborou com as hostes contrarrevolucionárias, facilitando o recrutamento de soldados ao Exército Voluntário, as forças armadas brancas em guerra contra o Exército Vermelho dos soviéticos. Ao Norte do Cáucaso, o Exército Branco impôs derrotas aos soviéticos na República dos Gortsi (povos das montanhas do Cáucaso) e Daguestão, no início de 1919. Entretanto, um ano depois, o Exército Vermelho deflagrou a ofensiva, chegando à Baku em abril de 1920. A desconsideração da reforma agrária pelos brancos na guerra civil afastou o campesinato da contrarrevolução. As disputas locais, como a guerra entre Azerbaijão e Armênia, naquele contexto, facilitaram as intervenções do XI Exército Vermelho posicionado no Cáucaso, dirigido por Sergo Ordjonikidze. A independência da Geórgia foi reconhecida em 7 de maio de 1920 pelos soviéticos. A partir de 1920, com a vitória do Exército Vermelho sobre Wrangel e Denikin, ampliaram-se as forças dos comunistas na região caucasiana. No Azerbaijão, em abril, é instaurada a República Socialista Federativa Soviética com a derrubada do governo aliado das tropas britânicas iniciado em janeiro, consolidando uma nova conjuntura favorável aos comunistas no Cáucaso. O impacto imediato foi sobre a Armênia. Em razão de disputas com a Turquia, a Armênia aproxima-se dos soviéticos, processo que desaguou na sovietização daquele país em dezembro, formando a Armênia soviética. Após evidenciar o refluxo das revoluções socialistas no Ocidente, a Internacional Comunista organizou o Congresso dos Povos do Oriente, no mês de setembro de 1920, em Baku. A partir do Azerbaijão, os comunistas atuavam para impactar o campesinato II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 547 caucasiano e oriental. Segundo Pierre Broué: podemos reconhecer que foi lá o começo de um longo desenvolvimento, de uma guinada na história do Oriente, em particular, e de um movimento de nacionalidade que se apoiava historicamente na revolução russa” (2007, p. 228). Naquela conferência foi lançada a consigna “Trabalhadores e povos oprimidos do mundo, uni-vos!” Os mencheviques georgianos, no período em que ocorria o encontro da Comintern na capital azerbaijana, receberam uma delegação com ilustres dirigentes da socialdemocracia, incluindo Karl Kautsky, Emile Vandervelde e Ramsay MacDonald, que elogiaram a experiência liderada por Jordânia. Karl Kautsky escreveu alguns artigos sobre a Geórgia, que depois foram compilados em livro (1923). Louvou a “democracia” dos mencheviques; localizou desafios, tal como: “O governo socialista de Geórgia encontra-se na situação paradoxal de ser obrigado a criar condições que atraiam capital – isto é, prometendo lucro e dando a garantia necessária de que um belo dia não será expropriado sem compensação” (Capítulo VII); e denunciou o que entendeu por “bonapartismo de Moscou” (Capítulo XIII). Por outro lado, no encontro da III Internacional era denunciada a pretensão expansiva georgiana em relação à Armênia, e os massacres sobre os camponeses ossetianos e da Abecásia promovidos no governo menchevique. Evidenciou-se que os acordos dos socialistas moderados com as classes dominantes locais e o imperialismo impediam o encaminhamento do problema da terra. Para Trotsky: os camponeses transcaucasianos se rebelavam não contra a revolução democrática, senão contra a sua lentidão, contra a sua indecisão e contra a sua pusilanimidade, sobretudo na questão agrária. 548 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) [...] As massas camponesas, que formam a imensa maioria da população, atuavam como bolcheviques contra a “democracia” dos mencheviques (1973, p. 64). A sovietização A relativa facilidade das ações do XI Exército Vermelho no Azerbaijão e na Armênia, encorajou Stálin e Ordjonikidze a lançarem os preparativos para a sovietização da Geórgia. Vale dizer que o segundo manifestara, em vários momentos no ano de 1920, o desejo de intervir na Geórgia menchevique. Contudo, sempre recebeu forte oposição de Lênin, a tal ponto do chefe do Exército Vermelho no Cáucaso enviar uma carta se queijando da desconfiança do líder bolchevique. Em resposta, Lênin escreveu em 3 de abril: “Você se engana em encarar minha indagação que é meu dever, como falta de confiança. Espero que, antes de um encontro pessoal entre nós, você já tenha abandonado este tom impróprio de injúria” (apud TROTSKY, 2012, p. 552-553). Em 5 de maio, uma nova missiva de Lênin a Ordjonikidze com os dizeres: “O Comitê Central ordena que você remova todas as unidades do território da Geórgia para a fronteira, e abstenha-se de incursões nesse país” (apud TROTSKY, 2012, p. 553), visto que Lênin sinalizava a necessidade de se reconhecer a independência georgiana. No entanto, mesmo após a assinatura do Tratado de Moscou dois dias depois, a meta da invasão não foi abandonada. Ao contrário, Stálin passou a defender mais intensamente a intervenção. Segundo Jean-Jacques Marie, “Em 17 de novembro, Stálin propõe a Lênin por telegrama que concentre forças num ponto e ‘utilize um pretexto adequado para organizar um movimento envolvente sobre Tíflis’. Lênin se faz surdo” II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 549 (2011, p. 198). Torna-se importante considerar que Lênin não queria a repetição dos erros cometidos na Polônia, em que a intervenção soviética foi considerada como invasão pela população local, o que favoreceu a contrarrevolução polaca. O líder dos bolcheviques agia cauteloso para não gerar desconfianças nos povos oprimidos do Oriente, que ele entendia como os protagonistas na luta contra o imperialismo no curto prazo. Além disso, Lênin, naquele momento, queria evitar maiores indisponibilidades com a Turquia. A despeito das posições de Stálin-Ordjonikidze, os comunistas estavam em dúvidas sobre a forma de agir na Geórgia. Como lembrou Trotsky: não havia unanimidade quanto ao movimento e os métodos da sovietização. Eu opinava por um certo período preparatório de trabalho, dentro das fronteiras do país, a fim de desenvolver-se o levante e, mais tarde, ajudá-lo. Sentia que, após a paz com a Polônia, e a derrota de Wrangel, não havia perigo direto da parte da Geórgia e o desenlace poderia ser adiado. Ordjonikidze insistiu, apoiado por Stálin, em que o Exército Vermelho a invadisse, imediatamente, na presunção de que o levante já estivesse maduro. Lênin propendia a prestigiar os dois membros georgianos do Comitê Central. A questão foi decidida no Politburo, a 14 de fevereiro de 1921, quando eu me encontrava nos Urais (2012, p. 555). Assim, foi deflagrada a “revolução” na Geórgia. Ao relatar acerca de sua efetivação, Trotsky reconheceu a importância do Exército Vermelho: Não temos a menor intenção de dissimular ou menosprezar a importância do papel do exército 550 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) soviético nas vitórias dos sovietes no Cáucaso. Em fevereiro de 1921, este exército prestou um apoio eficaz à revolução, ainda que muito menor que havia prestado, durante três anos, aos mencheviques os exércitos turcos, alemães, ingleses, sem esquecer os guardas brancos russos (1973, p. 102). Em meio à guerra, todos os lados no conflito se dispuseram à utilização das armas. Os movimentos das guerras nas montanhas do Cáucaso estavam indefinidos no começo da década de 20. As tropas ocidentais, o exército turco, a contrarrevolução, mesmo derrotada, ainda oferecia algum perigo de recomposição. Havia a ameaça iminente de invasão das República Soviética do Azerbaijão e da Armênia. Assim sendo, como estratégia de defesa na guerra civil, realizouse a “sovietização” da Geórgia, por meio do XI Exército Vermelho. Entretanto, tal intervenção não foi suficientemente precedida pela articulação dos comunistas com os movimentos operários, camponeses e da juventude. A ação unilateral do XI Exército gerou sequelas. Torna-se importante ressaltar o que disse V. Lominadze, Secretário Geral do Partido Comunista georgiano à época, Nossa revolução no começo de 1921, foi a conquista da Geórgia por meio das baionetas do Exército Vermelho... A sovietização da Geórgia representou-se na forma de ocupação de tropas russas. Os mencheviques, durante quase dois anos, tiraram a sua principal força de um sentimento nacional humilhado não só dos possuidores, mas também das amplas massas trabalhadoras da Geórgia. (apud SOUVARINE, 1985, p. 318). Deve-se ponderar que na Geórgia, a intervenção do Exército Vermelho será muito mais militar do que de apoio político. O PC local II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 551 estava buscando a sua estruturação junto ao proletariado urbano, que tinha a principal categoria profissional nos ferroviários, quanto ao peso político, e estes compunham a base consolidada dos mencheviques. De acordo com Boris Souvarine (1985, p. 318), o menchevismo georgiano contava com cerca de 80.000 membros. O PC da Geórgia ainda não havia se consolidado, o que condicionou que a ação dos Vermelhos aparecesse um golpe de força aos olhos da população. Lênin celebrou a vitória dos soviéticos na Geórgia em 02 de março de 1921. No entanto, após transmitir fortes saudações ao Comitê Revolucionário Georgiano, na figura de Sergo Ordjonikidze, logo passou às instruções: Primeiro: Deve-se armar imediatamente os operários e os camponeses pobres, criando-se um forte Exército Vermelho Georgiano. Segundo: é imprescindível adotar uma política especial de concessões aos intelectuais e pequenos comerciantes georgianos. Terceiro: é de suma importância buscar um compromisso aceitável para um bloco com Jordânia ou com mencheviques georgianos semelhantes a ele, que antes da insurreição não se opunham de modo absoluto à ideia de regime soviético na Geórgia, segundo certas condições (1986, p. 383). Nota-se que Lênin compreendia a edificação do socialismo considerando a especificidade local. A formação do Exército Vermelho georgiano aliviaria o sentimento nacional humilhado. Ele almejou uma política na Geórgia que não repetisse o “comunismo de guerra” que foi vivido na Rússia. Ademais, exigiu o reconhecimento dos mencheviques no regime soviético em Tíflis, e sinalizou, inclusive, a possibilidade de composição política com eles. Por fim, terminou a carta afirmando que os comunistas georgianos não deveriam seguir a 552 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) aplicação do esquema russo, mas criar de modo hábil e flexível uma tática peculiar condicente com a própria situação. Pouco mais de um mês depois, em uma mensagem aos povos do Cáucaso, o líder dos bolcheviques referiu-se a importância de se levar em conta a “peculiaridade e as condições concretas” nas táticas e estratégias de construção do socialismo naquela região, indicando o potencial de ajuda da Rússia soviética, o refluxo da contrarrevolução e o predomínio do campesinato. Aos comunistas caucasianos, ele sugeriu: Mais suavidade, mais cuidado, mais condescendência com respeito à pequena burguesia, a intelectualidade, particularmente, aos camponeses. /.../ Desenvolver as forças produtivas da rica região. /.../ Não deveis copiar nossa tática, mas analisar por conta própria as causas de sua peculiaridade, as condições e os resultados dessa tática aplicando nas condições locais não a letra, senão o espírito, o sentido, as lições que brinda a experiência do período de 1917-1921. /.../ Deveis tratar imediatamente de melhorar a situação dos camponeses e começar o grande trabalho de eletrificação e irrigação”. (LÊNIN, 1978, p. 415-6) Desse modo, a suavidade na condução do poder e as realizações concretas aplainariam a aliança dos comunistas com a pequena burguesia e o campesinato. Em novembro de 1922, em razão do “atraso” na organização das forças armadas da Geórgia, Lênin foi enfático com Ordjonikidze: “é preciso desenvolver e fortalecer o Exército Vermelho georgiano custe o que custar, de forma prática e imediata” (1979, p. 30). Entretanto, a habilidade e a flexibilidade indicadas pelo líder dos bolcheviques não foram seguidas, os encaminhamentos de Sergo Ordjonikidze articulado a Stálin rumaram noutra direção. Os comunistas georgianos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 553 externaram insatisfações e protestos com o modo da condução “revolucionária”. A ocupação não partiu dos anseios da maioria dos dirigentes do PC local. Os comunistas da Geórgia, assim como Lênin, defendiam a tolerância com a oposição menchevique, a democracia no interior do PC, a formação de um Exército Vermelho próprio, o respeito às sensibilidades nacionais e à soberania da Geórgia. Entretanto, a operação policial sucedeu a ação militar do XI Exército na Geórgia sovietizada. Dirigentes mencheviques foram presos e exilados. Embora não estivesse diretamente envolvido na sovietização da Geórgia, Trotsky redigiu o livro Entre o imperialismo e a revolução, publicado em 1922, foi o mergulho na polêmica e traçou a firme justificativa da invasão. Em uma intervenção no Pravda de 1º de maio de 1923, refletindo sobre a questão nacional após o XII Congresso do PCR, Trotsky reiterou a sovietização enquanto “autodefesa revolucionária”, mas explicou: Na questão nacional, como em todas as outras questões, o que importa para nós não são as abstrações jurídicas, mas os interesses e relações reais. Nossa invasão militar da Transcaucásia pode ser justificada, e tem sido, aos olhos dos trabalhadores, na medida em que desferiu um golpe no imperialismo e criou as condições para a autodeterminação das nacionalidades caucasianas. Se, por nossa culpa, as massas populares transcaucasianas tivessem sentido a nossa intervenção militar como um ato de conquista, então esta intervenção teria se tornado o maior dos crimes, não em razão do “princípio” abstrato da nacionalidade, mas em razão dos interesses da revolução (1989, p. 4). Implicitamente, Trotsky atacou a política vitoriosa de Stálin no XII Congresso, ocorrido a uma semana antes, ainda que sem 554 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) mencioná-lo. No caso de permanecer o predomínio do interesse grãorusso no Cáucaso, a ação militar teria sido “o maior dos crimes” contra a revolução. Na biografia que escreveu de Stálin, entre 1938-40, Trotsky registrou: “Na Geórgia, a sovietização prematura fortaleceu os mencheviques durante um certo período e levou à larga insurreição de massas de 1924. Então, segundo o próprio Stálin, a Geórgia teve de ser ‘lavrada de novo’.” (2012, p. 555). Neste último juízo expresso pelo revolucionário, a sovietização prematura está na base dos acontecimentos que levaram ao movimento de 1924 georgiano, que foi duramente reprimido. A composição das nações soviéticas Com vistas a celebrar a sovietização, Stálin se dirigiu ao país, em maio de 1922. O discurso do Comissário das Nacionalidades em sua terra natal delineou a política soviética para o Cáucaso. Uma das “tarefas imediatas”, segundo ele, consistia em liquidar as supervivências nacionalistas, destruílas com ferro incandescente, e criar uma atmosfera sã de mútua confiança entre os trabalhadores das nacionalidades da Transcaucásia, para facilitar e acelerar a união dos esforços econômicos das Repúblicas soviéticas transcaucasianas. (STÁLIN, 1953a, p. 35). Na conclusão de sua exposição, o Comissário foi peremptório: “aplastar a hidra do nacionalismo” (Stálin, 1953a p. 35). Como se constata, além da defesa da formação da República Socialista Federativa Soviética da Transcaucásia, isto é, a junção de Armênia, Azerbaijão e Geórgia numa mesma República, Stálin bradou contra o nacionalismo georgiano. Desse modo, ele não diferenciou o II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 555 nacionalismo oprimido ao nacionalismo opressor, não fez a distinção categorial tão cara a Lênin. O Comissário das Nacionalidades delineava uma política centralizadora, que, inevitavelmente, favoreceria a direção da nação russa, a dominante na composição soviética. No ofício de Comissário das Nacionalidades, Stálin desempenhou o trabalho de redigir o projeto tratando da composição das diferentes Repúblicas Socialistas, que ficou conhecido como Autonomização. Nas suas linhas originais no item 1º, está posto: 1. Considerar a utilidade da conclusão de um acordo entre as Repúblicas Soviéticas da Ucrânia, Bielorrússia, Azerbaijão, Geórgia e Armênia e a RSFSR com respeito a adesão formal destas Repúblicas à RSFSR. (STÁLIN, 2021, p. 111). Como se constata, Stálin defendeu que as nações menores simplesmente integrassem na República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR). A proposta previa certa autonomia das nações não-russas no interior da Federação russa. Sendo assim, Stálin não levou em conta toda a desconfiança das nações que foram oprimidas durante o Império czarista com sede na Rússia, identificado pelos bolcheviques como a “prisão dos povos”. Nesse passo, concebeu a questão nacional como algo meramente administrativo e burocrático, despojado de todo o seu conteúdo histórico, social e político. O projeto de autonomização seria matéria de uma Comissão do PCR. Em resposta às teses de Stálin, o CC do PC georgiano produziu, em 15 de setembro, a seguinte moção: A unificação proposta na base das teses do camarada Stálin sob a forma de uma autonomização das Repúblicas independentes deve considerarse prematura. A unificação dos esforços econômicos e da política comum deve considerarse indispensável, mas salvaguardando todos os 556 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) atributos da independência (apud LEWIN, 2011, p. 44) A Comissão se reuniu em 23 e 24 de setembro. Segundo Lewin (2021, p. 43), ela contou com a seguinte formação, representantes centrais: Stálin, Kuybychev, Ordjonikidze, Rakovsky, Sokolnikov, Molotov, e pelas Repúblicas: Agmali-Ogly (Azeirbaijão), Mjasnikov (Armênia), Midvani (Geórgia), Petrosky (Ucrânia) e Tcherviakov (Bielorrússia). É possível perceber que maioria dos integrantes eram ligados ao Secretário Geral. Presidida por Molotov, a Comissão rechaçou os protestos, e aprovou o projeto de Stálin, com o voto contra de Midvani. De fato, o resultado foi bem favorável Stálin. No entanto, dois dias após, em carta a Kamenev e aos membros do Comitê Executivo do PC russo, Lênin considerou preocupante o viés administrativista do texto aprovado, uma vez que afirmou: “Stálin tem certa tendência a andar depressa” (1979, p. 34), visto que inviabilizava as discussões de temas sensíveis às nações menores. Continuando, ele ressaltou: “A unificação formal, junto com a RSFSR, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas da Europa e Ásia” (1979, p. 35). Como se observa, o projeto de incorporação das nações oprimidas à nação russa foi recusado. O líder dos bolcheviques sinalizou a necessidade de uma composição avançada, não a mera integração das nações menores à nação maior, mas a formação de uma união nova, qualitativamente superior. Lênin batalhava por uma “Federação de Repúblicas com igualdade de direitos entre as nações” (1979, p. 35). Sabendo que não teria a maioria do CC do PCR, Stálin abandonou o primeiro parágrafo, e aderiu ao projeto de união, nos termos colocado por Lênin. Contudo, o restante do escrito servirá de texto base para a discussão. Mesmo doente, Vladimir Ilitch seguiu atento ao desenrolar da II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 557 questão georgiana. Em 29 de setembro, recebeu Ordjonikidze, e no dia seguinte reuniu-se com os representantes comunistas da Geórgia. Em outubro, preocupado com o predomínio russo nas decisões soviéticas, Lênin escreveu: “Declaro uma guerra de vida ou morte ao chauvinismo de grande nação. /.../ É indispensável insistir em que presidam por turno o Comitê Executivo Central da Federação: um ucraniano, um russo, um georgiano, etc. Indispensável!” (1979, p. 31). A solução leniniana previa o rodízio na presidência da União, enquanto antídoto ao predomínio da nação mais forte sobre as menores. O bolchevique entendia que o revezamento no espaço do comando principal da composição poderia ser um instrumento importante com vistas a garantir a igualdade de direitos entre os povos soviéticos. O reavivamento do nacionalismo grande-russo ocorria relacionado aos efeitos da NEP (Nova Política Econômica), aplicada pelos soviéticos com vistas à reconstrução do país após os ataques imperialistas e a guerra civil, no contexto de refluxo da revolução internacional. Tratou-se de um recuo na construção do socialismo, porque reestabelecia a pequena propriedade privada, o comércio, os aluguéis e o assalariamento ao capital privado. Mas foi uma alternativa à penúria terrível do comunismo de guerra. Editou-se um capitalismo sob o dispositivo de controle estatal. Embora tenha sido importante no enfrentamento à miséria, a NEP proporcionou a base material sob a qual se reergueu o nacionalismo grão-russo. Na Rússia, os Kulaks (camponeses que enriqueciam), nepmans (pequenos empresários urbanos) e funcionários estatais alimentaram o nacionalismo opressivo contra o internacionalismo proletário. Uma vez superada a propositura de integração das Repúblicas à Federação russa, tratou-se do tema da Transcaucásia soviética. Vale 558 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) destacar que essa era a proposta bolchevique, com vistas a favorecer a junção de recursos e viabilizar a existência material do poder no Cáucaso, sendo aprovada no Comitê Executivo do PCR com os votos de Lênin, Trotsky, Kamenev, Molotov e Stálin. Vladimir Ilitch declarou em 28/11/1921: 1) Reconhecer que, em princípio, a Federação das Repúblicas da Transcaucásia é absolutamente justa e que tem de constituir-se sem discussão, porém que é prematura no sentido de uma imediata realização soviética, de baixo para cima. 2) Propor aos comitês centrais da Geórgia, Armênia e Azerbaijão que o problema da federação seja colocado com maior amplitude, para que o partido e as massas operárias e camponesas o discutam: que se faça uma intensa propaganda em favor da federação e que esta seja aprovada nos congressos dos sovietes de cada república; em caso de ser encontrada grande oposição deve-se informar de maneira precisa e oportuna ao Politburo do C. C. do PCR. (LÊNIN, 1979, p. 30) Diante do exposto, para Lênin, o projeto da união transcaucasiana não prescindia da aprovação nas instâncias representativas soviéticas das três nações, desde à base, com vistas à sua legitimação e edificação. Contudo, os comunistas georgianos, liderados por Budu Midvani, passaram a reivindicar a existência de sua própria República Soviética, sem a mediação da Transcaucásia. Demandavam um status à Geórgia que permitisse ser representada diretamente na União, a exemplo da Ucrânia e da Bielorrússia. Mas, a propositura formulada pelo Comissariado das Nacionalidades previa a integração dos países do Cáucaso: Armênia, Azerbaijão e Geórgia na República Socialista Federativa Soviética da Transcaucásia, que se somaria às Repúblicas Socialistas Federativas Soviéticas da Rússia, da Ucrânia e da II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 559 Bielorrússia. Nesse passo, a nova administração reservava à Geórgia a autonomia no interior da Transcaucásia, o que, para os comunistas georgianos, limitava as possibilidades políticas, econômicas e sociais. Segundo Moshe Lewin, “surgiu uma onda de protestos mais violentos sob a forma de reuniões clandestinas e inclusive públicas, no curso das quais os georgianos não cessaram de proclamar e reafirmar a sua independência” (2011, p. 49). Stálin acusava a posição dos comunistas georgianos de “desvio nacionalistas”, enquanto os georgianos responderam a posição do Secretário Geral do PCR como “chauvinismo grão-russo”. Stálin e Ordjonikidze passaram a utilizar o recurso da hierarquia partidária. Eles puniram e afastaram membros do PC de Geórgia. Em resposta, Fillip Makharadze e Budu Midvani intensificaram as ações. Exasperado pelas intervenções de Stálin-Ordjonikidze, em 22 de outubro, o CC do Partido Comunista da Geórgia apresentou uma carta de demissão coletiva. Imediatamente, a demissão é aceita, e escolhe-se uma nova direção mais “flexível”, que acata docilmente as indicações de Moscou. Stálin promoveu a centralização por meio da violência contra a direção do Partido Comunista da Geórgia. Em novembro, ele enviou Ordjonikidze ao país, que aplicou severas medidas disciplinares, demitiu, destituiu, afastou e transferiu opositores. Um desses, Kobakhidze, chamou Ordjonikidze de “burro de carga de Stálin”, e foi espancado (MARIE, 2011, p. 233). Lênin soube do caso por meio de uma carta do georgiano Okudjava, e ficou horrorizado. Buscou mais informações em outras fontes para se posicionar. O Comitê Central do PC russo, em dezembro de 1922, destacou Félix Dzerjinsky, chefe da GPU (a polícia política soviética) 560 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para investigar o assunto. Contudo, Dzerjinsky simpatizava com as posições de Stálin e Ordjonikidze, sendo assim, tentou passar a Lênin uma imagem favorável do Comissário das Nacionalidades/Secretário Geral. A pressa na condução do assunto, o conteúdo da decisão e a forma violenta na implementação fizeram com que Lênin percebesse que não se tratava de um simples desequilíbrio, inabilidade ou má gestão de conflitos. Stálin expressava a execução de uma política favorável ao domínio grão-russo no conjunto de nações soviéticas. A despeito das preocupações de Lênin, em 30 de dezembro de 1922, Stálin encaminhou e aprovou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, com Rússia, Bielorússia, Ucrânia e Transcaucásia. Na reunião do Plenum do PCR de fevereiro de 1923, a proposta redigida por Stálin de “autonomização” foi aprovada como texto base para a discussão no XII Congresso, com o parágrafo inicial modificado pela intervenção de Lênin. Para a defesa dos georgianos contra Stálin, Lênin reportou ao “Querido camarada Trotsky”, em 05/03/1923: Muito lhe peço que assuma a defesa da questão georgiana no C.C. do partido. A coisa encontra-se agora sob a “inquisição” de Stálin e de Dzerjinsky, e não posso fiar-me na imparcialidade deles. Pelo contrário. Se você aceitasse assumir a defesa, poderei estar tranquilo. Se por qualquer motivo não aceitar devolva-me a pasta com os papeis. Considerarei isto como sua recusa. (1979, p. 32) Documento divulgado nos anos 80 do século passado, atesta que Trotsky aceitou a solicitação de Vladimir Ilitch. Ele respondeu: “se eu tinha dúvidas sobre a correção da política de Ordjonikidze e da decisão do Politburo, agora essas dúvidas foram reforçadas cem vezes” (apud JOURAVLEV; NENAKOROV, 1990, p. 107). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 561 No dia seguinte, Lênin enviou um memorando a P. Midvani e F. Makharadze com cópia a Trotsky e Kamenev, “Sigo com todo coração seu problema. Estou indignado com a brutalidade de Ordjonikidze e com a conivência de Stálin e Dzerjinsky. Preparei para vocês umas notas e um discurso. Com estimas” (1979, p. 33). Solicitava aos dois últimos que assumissem a defesa dos camaradas georgianos. O modo da escrita tão enfática raramente se encontra nas cartas de Lênin, que preferia um estilo comedido. De certa forma, o tom da mensagem expressava o seu compromisso ardoroso com os comunistas georgianos. Logo depois, ele enviou a Trotsky um dossiê com documentos e o texto de sua autoria O problema das nacionalidades ou da “autonomia” (LÊNIN, 1979, pp: 56-61), artigo que pretendia discutir no evento partidário. A questão nacional no XII Congresso Esperava-se que Lênin se recuperasse em tempo de participar no XII Congresso do PCR. Os médicos alimentavam alguma esperança. Mas, em 9 de março o seu quadro de saúde se agravou com o terceiro derrame. Contudo, ele havia redigido textos desde o final do ano anterior sobre alguns temas, como o monopólio do comércio exterior, o planejamento, o regime interno do partido, as nacionalidades, a comissão da inspeção operária e camponeses e a comissão de controle. No texto sobre a questão nacional, Lênin externou posição teórica, indignação, preocupação e indicou encaminhamentos: Se as coisas chegaram ao ponto em que Ordjonikidze pode exorbitar até aplicar a violência física, conforme me disse o camarada Dzerjinsky, é fácil imaginar em que lodaçal caímos. Ao que parece essa empresa da “autonomia” foi fundamentalmente errônea e inoportuna. /.../ 562 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Acredito que nenhuma inovação, nem ao menos um ultraje, justificam estas vias de fato russas, e que o camarada Dzerjinsky cometeu uma falta irreparável ao considera-las como demasiadamente ligeiras. /.../ Ordjonikidze representa o poder para todos os demais cidadãos do Cáucaso. Não tinha direito a essa irritabilidade que invocam ele e Dzerjinsky. (1979, p. 57-58) O relatório de Dzerjinsky reconheceu a violência física aplicada por Ordjinikidze a um opositor. No entanto, o chefe da GPU minimizou o acontecimento. Lênin não concordou. Enxergou na ação do responsável pelo XI Exército Vermelho no Cáucaso um crime “social-chauvinista”, “uma infinidade de abusos autenticamente russos” (1979, p. 61), um feito de Derszhimorda (personagem literário de Nicolai Gogol, sinônimo de abuso e brutalidade, representado por um policial russo). No texto, Lênin fez a digressão sobre suas contribuições ao tema das nacionalidades: Escrevi, em minhas obras sobre o problema nacional, que é em todo sentido debalde formular em abstrato o problema do nacionalismo em geral. É indispensável distinguir entre o nacionalismo da nação opressora e o da nação oprimida, entre o nacionalismo da grande nação e o de uma pequena. /.../Portanto, o internacionalismo por parte da nação opressora, ou assim chamada “grande” /.../ deve consistir, não apenas com relação à igualdade formal das nações, mas também numa desigualdade que compense, por parte da nação opressora, da grande nação, a desigualdade que se manifesta praticamente na vida. Quem não entendeu isto não entendeu tampouco a atitude verdadeiramente proletária com respeito ao problema nacional (1979, p. 59). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 563 Nota-se que Lênin postulou encaminhamentos acerca do problema das nacionalidades para além da igualdade formal. Ele indicou a necessidade de medidas compensatórias, embora entendendo que somente com a revolução proletária, superadora da propriedade privada, do colonialismo e do imperialismo, poderia realiza-las efetivamente. O entendimento dos bolcheviques sobre a questão nacional foi determinante para embasar a política que levou ao estouro revolucionário de Fevereiro de 1917 à Revolução de Outubro, a conquista do apoio dos operários nos Sovietes e dos camponeses das nações oprimidas, bem como na articulação da defesa militar da Rússia soviética durante a guerra civil e contra os ataques imperialistas. Após defender um “castigo exemplar a Ordjonikidze”, Lênin anotou “Entende-se que Stálin e Dzerjisky é que devem ser feitos politicamente responsáveis por essa campanha nacionalista, de autêntica característica grão-russa” (1979, p. 61). Assim, Vladimir Ilitch indicou a responsabilização do secretário Geral do Partido russo e Comissário das Nacionalidades, juntamente com o chefe da polícia política, por desenvolver o domínio grande-russo na União, identificando a permanência da sobreposição russa nos temas nacionais, perpetuando a preponderância russa como se fazia no antigo Império Romanov. O XII Congresso do PCR ocorreu entre os dias 17 e 25 de abril de 1923. O assunto do Cáucaso e a Geórgia dominaram as intervenções de Stálin no encontro. No Informe do Comitê Central em 17 de abril, falou do enfraquecimento do menchevismo na Geórgia (1953a, p. 83). Na discussão de 19 de abril, deteve-se bastante sobre a Geórgia e o Cáucaso. Aproveitou a ausência de Lênin e da não publicação da 564 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) carta acerca da nacional para desferir contra o líder dos bolcheviques, respondendo a nota de 28/11/1921, Stálin revelou: “O problema é que não se pode ‘realizar’ a Federação na Geórgia ‘desde abaixo’ segundo o método soviético em ‘várias semanas’, pois na Geórgia está iniciando a organizar-se os Sovietes, mas não se há terminado a organização” (1953, p. 85). Passado mais de dois anos da “sovietização”, os conselhos georgianos não haviam sido formados. Esta informação, por si só, demonstra a permanência do caráter da intervenção militar do XI Exército que assolou aquele país. Os conselhos não foram implementados; e por não estarem constituídos, o poder soviético não conseguiu as condições de existir. Restando, então, a condução burocrática dos processos sociais, impedindo os trabalhadores e o povo georgiano da participar nas discussões e deliberações. Ao invés do “de baixo para cima” de Lênin, houve o de cima para baixo de Stálin. Eis a prática do Comissário das Nacionalidades na Geórgia. Na intervenção de 23 de abril, Stálin tematizou longamente a Geórgia, acusou o nacionalismo georgiano de “chauvinismo local”. Equalizou o nacionalismo dos georgianos ao “chauvinismo grão-russo”. Sinalizou que os dois indicavam perigos à edificação do socialismo. Acerca das relações entre as nações, o Comissário postulou: O problema do estabelecimento de relações apropriadas entre o proletariado da antiga nação dominante, que representa a capa mais culta do proletariado de toda nossa federação, e o campesinato, fundamentalmente o das nacionalidades antes oprimidas. Nisto reside a essência de classe da questão nacional (1953c, p. 88) Stálin justificou o predomínio russo na União devido a maior II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 565 composição e a sua “capa mais culta” proletária, em meio ao grande contingente de camponeses. Conjugou o predomínio russo com a dominância do proletário especializado sobre as nações atrasadas e os seus povos. Uma ditadura do proletariado russo sobre os camponeses das nações oprimidas. Assim, é possível identificar o preconceito grão-russo em relação aos povos agrários, em consequência, o desdobramento em uma forma de permanência do caráter colonial russo sobre as nações menores. O privilégio russo é justificado com base no número de operários sempre superiores às outras nações da composição. A russificação por conta do número de operários explicita a concepção da questão nacional que reforça o poder da nação que possui a maior vantagem material. Ao invés dos operários encaminhar as tarefas democráticas que a burguesia e o imperialismo não foram capazes de realizar, o fragmento acima sugere a solução autocrática pelo proletariado da nação mais forte sobre as outras. Após justificar a dominância russa “proletária” em detrimento das nações camponesas, Stálin passa a “desvendar” as raízes do nacionalismo georgiano Ocorre que os vínculos da Federação Transcaucasiana privam a Geórgia da situação privilegiada que poderia ocupar por sua posição geográfica. /.../ Geórgia possui seu próprio porto, Batumi, onde afluem as mercadorias procedentes do Ocidente; Geórgia possui um entroncamento ferroviário tão importante como Tíflis, usado por armênios e azerbaijaneses, que recebem suas mercadorias de Batumi. Caso Geórgia fosse uma República aparte, se não entrasse na Federação Trascaucasiana, poderia apresentar um ultimatum, tanto a Armênia, a qual não pode prescindir de Tiflis, como ao Azerbaijão, que não pode prescindir de Batumi (1953d, p. 92) 566 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Na visão do Secretário Geral do PCR, a recusa da Transcaucásia pelo nacionalismo georgiano decorreria dos componentes materiais que privilegiaria a sua nação nas relações com as outras do Cáucaso. O nacionalismo é compreendido não como artefato de defesa em relação à opressão de um país dominado pelo Império Russo, ou porque foi usado por alemães e ingleses interessados na riqueza natural; ao contrário, representaria a vontade de se beneficiar nas relações com os outros países do Cáucaso. Os comunistas georgianos preocupados com a soberania nacional do próprio país, foram denunciados por Stálin como sendo “Os desviacionistas georgianos que lutam contra a Federação, violando todas as leis do Partido, [eles] querem sair da Federação para conservar os seus privilégios” (1953d, p. 93). Os “desviacionistas” do bolchevismo, contaminados com o veneno nacionalismo, recusaram a conformação da Transcaucásia para manter as vantagens que a ferrovia e a localização geográfica proporcionavam à Geórgia. Presente no Congresso, o líder da Ucrânia soviética, o revolucionário internacionalista Christian Rakovsky enfrentou Stálin. Em sua fala, ele evidenciou o predomínio russo na nova composição, considerou que “a existência de um sentimento de chauvinismo de grande nação que emerge no povo russo, que nunca sofreu a opressão nacional” (1982, p. 2), mas que ao contrário, os russos protagonizaram essa opressão a outras nações durante séculos. Acerca do centralismo do projeto de Stálin, ele notou: “É uma mistura de administração czarista e administração burguesa, reforçada com um verniz soviético e comunista, mas apenas superficialmente e nada mais”. (1982, p. 2) Nicolai Bukhárin, importante dirigente bolchevique e membro do II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 567 CC do PCR, também denunciou a sobreposição da Rússia, diante dos encaminhamentos da União que se formara. Em resposta a Rakovsky e Bukhárin, Stálin reafirmou a equalização do nacionalismo oprimido ao nacionalismo opressor, conjugando “chauvinismo grão-russo” e “chauvinismo da nação oprimida”, esforçando-se por transparecer imparcialidade na sua posição. No último dia do Congresso, o Comissário das Nacionalidades enfatizou a primazia da questão operária (russa) em relação à questão nacional, visto que Não se deve ofender os elementos da nacionalidade não-russa. É completamente justo e estou de acordo. /.../ Mas fazer disso uma nova teoria, de que é preciso colocar o proletariado grão-russo na situação de desigualdade de direitos, em relação às nações antes oprimidas, é um absurdo (1953e, p. 96). A práxis colonizadora pró-Rússia na União Soviética reduziu o problema da nacional à consideração cultural, o reconhecimento da existência, mas não o enfretamento real das desigualdades, a realização da tarefa democrática. A Rússia “operária e culta” dirigiria as nacionalidades respeitando adequadamente os costumes das nações menores. Defensor do domínio russo, o Secretário Geral não prevê nenhum recurso para corrigir as desigualdades entre a nação forte e a oprimida na estruturação do seu ordenamento. Fez uso da igualdade formal, desprezando a desigualdade real cotidiana, sem estabelecer instrumentos de correção efetiva. Levantou o reconhecimento do elemento cultural separado do material. Nota-se, então, quantas diferenças em relação à política de Lênin para as nacionalidades. Em suas considerações sobre o assunto, Vladimir Ilitch previa as necessárias compensações e, inclusive, o revezamento no comando da 568 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) União, com o uso do critério nacional. Mas, durante o período de Stálin na Secretaria Geral, primou a direção “proletária” russa sobre os povos camponeses. O russo Mikhail Kalinin permaneceu na Presidência do Comitê Executivo Central da URSS de 1922 até a sua aposentadoria, após a II Guerra Mundial, sem haver qualquer alternância no cargo. A maior parte das biografias de Leon Trotsky abordaram inadequadamente as intervenções do revolucionário no XII Congresso do PCR. Isaac Deutscher erroneamente fala da abstenção de Trotsky no evento. Jean-Jacques Marie afirmou que Trotsky não se opôs a reeleição do Secretário Geral e saiu da sala quando Rakovsky e Bukhárin faziam a defesa dos georgianos (2009, p. 288), teria sido a consequência do “compromisso viciado” que Lênin avisou para se evitar. Pierre Broué trouxe informações sobre as batalhas naquele fórum, mas pouco da intervenção de Trotsky sobre os georgianos, embora tenha indicado que os comunistas georgianos perseguidos aderiram à Oposição de Esquerda, o que atesta a improcedência do argumento de Ian Thatcher de que Trotsky teria preconceito em relação aos georgianos. Com base na documentação que forma o Acervo de Leon Trotsky guardado no Arquivo da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, Robert Service recuperou a atuação do revolucionário no XII Congresso. Embora seja um biógrafo adversário e crítico do revolucionário ucraniano, os documentos consultados por ele comprovam que Trotsky defendeu os comunistas georgianos da acusação de “desviacionismo”. Além disso, repreendeu o “centralismo exagerado” da Federação Transcaucasiana, e exigiu o afastamento de Ordjonikidze. No entanto, ele perdeu em todas as propostas. Para Service, “Em anos posteriores, viria a ser criticado por não haver apoiado a campanha sobre a questão nacional. Isso foi injusto. Ele II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 569 lutou desde cedo, e lutou com empenho, mas foi derrotado pela maioria do Politburo” (2017, p. 394). Na reflexão sobre o XII Congresso, Trotsky escreveu em suas memórias: A ideia de um “bloco Lênin-Trotsky” contra a burocracia era conhecida somente de Lênin e de mim; os outros membros do bureau político tinham disso apenas vagas suspeitas. Ninguém sabia das cartas de Lênin sobre a questão nacional e do Testamento. Se eu me tivesse adiantado, poderia dizer que eu iniciava a luta pessoal pelo lugar de Lênin no Partido e no Estado. Não podia pensar em tal sem desgosto. Parecia-me que as consequências disso levariam às nossas fileiras uma desmoralização que teríamos que pagar caro mesmo em caso de vitória. Em todos os cálculos entrava o elemento de incerteza: o próprio Lênin mesmo e as suas condições de saúde. Poderá ele manifestar a tempo a sua opinião? O Partido compreenderá que Lênin e Trotsky lutam pelo futuro da revolução e não Trotsky pelo lugar de Lênin enfermo? A situação de Lênin no Partido fazia com que a incerteza a respeito do seu restabelecimento se refletisse sobre as condições mesmas de todo o Partido. A situação continuou provisória, o que favorecia os epígonos. Stálin, Secretário Geral, tornou-se naturalmente o maioral do aparelho em todo o período do “interregno” (1978, p. 401-402). Uma avaliação da derrota do “bloco Lenin-Trotsky” no XII Congresso não pode dispensar a consideração do que ocorria no PCR, sobretudo a partir de 1922. Segundo o historiador A. Podtchekoldin (1994), desenvolveu-se a ampliação dos dispositivos de controle das direções centrais sobre as secretarias regionais e distritais. Houve também a ampliação expressiva no quadro de profissionais do 570 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) partido, selecionados por instâncias superiores. Existiu o aumento nas remunerações dos funcionários, além da viabilização do acesso à privilégios materiais e sociais. O pesquisador fala em partidocracia consolidada naquele ano. O Congresso de 1923 representou o assalto dos funcionários do aparato partidário ao Estado, uma vez que “No final de 1922, o poder real no partido já estava, em grande medida, nas mãos da partidocracia – ‘hierarquia dos secretários’ – em cujo topo se encontrava o Secretário do Comitê Central e, pessoalmente, Stálin” (1994, p. 127). Torna-se importante dizer que a derrota da revolução mundial, sobretudo da revolução alemã em 1923, pavimentou o caminho para que os funcionários formassem a casta privilegiada na União Soviética, com o domínio desde a Rússia. Considerações Finais: burocracia soviética e russificação A República Soviética russa era a maior e a mais populosa, a Rússia foi a nação dominante no Império dos Czares. A despeito da situação de penúria resultante do conflito da guerra civil e do cerco imperialista, o território russo usufruía de condições que as outras nações soviéticas não possuíam, visto que o centro administrativo da nova União se encontrava em Moscou, possibilitando certas vantagens em continuar a desenvolver a hegemonia russa sobre as outras nações menores, o que possibilitaria a permanência de aspectos do antigo regime czarista na configuração social soviética, isto é, a sobreposição da Rússia diante das outras nações. O Estado soviético foi tido enquanto extensão natural da nação russa. O processo de centralização administrativa com base na II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 571 estrutura de partido único inevitavelmente fundiu a construção do socialismo soviético com a difusão do russo como língua predominante na administração, no acesso às escolas, às universidades e ao aparato do partido e do Estado, assim como tornou-se referência de cultura e de mobilidade social para todas as outras nacionalidades que compunham a URSS. O episódio da crise da questão georgiana evidenciou a construção do domínio grão-russo na URSS desde o seu início. Vale destacar que o principal representante da edificação do controle grãorusso no sistema soviético foi um georgiano de nascimento, mas ligado à burocracia do partido russo, setor privilegiado devido à expropriação política do proletariado. Referências bibliográficas BROUÉ, P. Trotsky. Paris: Fayard, 1988. BROUÉ, P. 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Em suas análises “maduras”, Trótski utilizou o conceito de “Estado operário burocraticamente degenerado” para caracterizar e explicar o que era a URSS.2 O primeiro elemento desse conceito (Estado operário) designa uma formação social de transição entre o capitalismo e o socialismo, onde o Estado tem caráter de classe proletário, tendo sido construído por uma revolução proletária vitoriosa, e cujas relações de propriedade e produção mesclam elementos de sobrevivência do modo de produção capitalista com elementos de um nascente modo de produção socialista. Um Estado operário, portanto, pode tanto avançar para o socialismo quanto retroceder para o capitalismo, a depender da correlação de forças entre classes a nível nacional e internacional e dos processos 1 Doutor em História Social pelo PPGH UFF, professor e pesquisador no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFBA) campus Porto Seguro. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trótski / Trotskismo e a Historiografia (GEPTH), é pesquisador associado ao Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-MARX UFF) e é membro do Comitê Mário Pedrosa, que organizou o II Encontro Internacional Leon Trótski (2023) os Eventos Online Trótski em Permanência (2020 e 2021). Contato: marciolmonteiro@gmail.com 2 Para uma síntese mais detalhada, ver ROMÃO e MONTEIRO, 2020. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 577 concretos de desenvolvimento histórico. Contudo, no caso específico do Estado operário soviético, ocorreu um processo de expropriação política da classe trabalhadora por parte de uma burocracia estatal-partidária, que passou a monopolizar o poder político na forma de uma ditadura burocrática. Esse é o segundo elemento do conceito (“burocraticamente degenerado”), que designa um desvio em relação ao projeto socialista, de autogestão da política e economia pela classe trabalhadora (a socialização dos meios de produção acompanhada da socialização de sua gestão). A degeneração burocrática do Estado operário soviético ocorreu em decorrência do isolamento internacional em que se viu a revolução em seus primeiros anos e das consequências desse isolamento, tais como a escassez de recursos e a necessidade de militarização, ao que ainda se somou uma enorme devastação humana e material decorrente da “Guerra Civil” de 1918-1921. Nesse contexto, um setor conservador do partido e da burocracia estatal se fortaleceu e buscou se manter no poder em prol de ter privilégios materiais, através da repressão e de um sistema de nomeações e cargos (nomenklatura). Esse processo de degeneração burocrática Trótski nomeou de “reação termidoriana”, em chave comparativa com a Revolução Francesa e seu período de moderação e reversão das conquistas mais radicais: o poder seguiu com a burguesia, mas assumiu outra forma, tal qual na URSS o poder seguiu com o proletariado, mas sob novas formas. O regime político ditatorial dessa burocracia “termidoriana” em uma sociedade de transição ao socialismo Trótski nomeou de “stalinismo” e o comparou ao bonapartismo, pois manobrava entre o proletariado e o imperialismo e possuía uma autonomia relativa em relação à classe na qual estava assentado (o proletariado). 578 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Essa base teórico-conceitual foi desenvolvida mais a fundo na obra “A Revolução Traída” (TROTSKY, 2005) e na série de artigos e cartas compilados em “Em Defesa do Marxismo” (TROTSKY, 2011), onde Trotsky também expõe o programa de ação da Quarta Internacional para enfrentar o stalinismo: desenvolver a revolução internacional ao mesmo tempo em que luta por uma “revolução política” na URSS, através da qual a classe trabalhadora removeria a burocracia do poder e reestabeleceria o regime de democracia proletária dos soviets. Ademais, em suas várias análises sobre a situação da URSS escritas nos anos 1930, Trótski alertou que essa burocracia, ao mesmo tempo em que defendia (com seus próprios métodos brutais) a propriedade socializada para dela poder parasitar, não obstante colocava em risco a sobrevivência dessa propriedade. Esse risco vinha de várias fontes diferentes, porém interconectadas. Primeiro, Trótski apontou que a burocracia sabotava a internacionalização da revolução soviética para garantir a estabilidade de seu regime, de forma que acabava por prologar o isolamento da URSS e aumentar os problemas dele decorrentes. Segundo, enfatizou que o regime stalinista inevitavelmente se tornaria um freio ao desenvolvimento das forças produtivas soviéticas, pois a propriedade socializada demandava uma gestão igualmente socializada para ser eficaz, através de um planejamento econômico baseado na democracia soviética. A gestão burocrática poderia até produzir grandes saltos iniciais no período de importação de tecnologias e expansão da infraestrutura industrial e agrícola, mas não daria conta de passar de um modelo de desenvolvimento extensivo para um de desenvolvimento intensivo, que demandaria não só uma gestão eficaz da propriedade socializada, como também um clima de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 579 iniciativa e liberdade intelectual para o desenvolvimento científico. Terceiro, alertou que setores dessa burocracia inevitavelmente almejariam tornar-se proprietários, convertendo-se em burguesia, uma vez que não tinham relação de posse legalizada com a propriedade socializada da qual suas condições de vida privilegiadas dependiam. A vida de um burocrata dependia de toda uma delicada rede de alianças políticas para manter o acesso aos privilégios atrelados a seu cargo, e esses privilégios não poderiam ser passados adiante na forma de herança, de forma que bastava um desacordo ou desafeto para um burocrata ir da cúpula do regime de volta para o chão da fábrica e, com isso, ver seu padrão de vida despencar vertiginosamente (isso se não fosse preso ou morto). Sobre as possibilidades de uma contrarrevolução que fizesse a URSS retroceder ao capitalismo e a um Estado burguês, em suas análises dos anos 1930, Trótski estava mais preocupado com a possibilidade de uma contrarrevolução na forma de guerra imperialista – sobretudo uma invasão alemã, que dominasse o território soviético colonizando-o. Não obstante, ele também levantou a possibilidade de uma contrarrevolução interna, impulsionada por esse desejo de setores da burocracia em se tornarem burgueses. Para nós, esse é um elementochave para entender o que houve na URSS e no Leste Europeu ao final do século XX: uma contrarrevolução interna impulsionada por setores da burocracia que desejavam ir além da posição instável de gestores parasitários da propriedade socializada e se tornarem proprietários privados dos meios de produção. É verdade que Trótski enfatizou que a URSS não sobreviveria à 2ª Guerra Mundial se não ocorresse uma revolução política que removesse o stalinismo do poder e assegurasse uma gestão eficiente e 580 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) democrática da economia, capaz de fazer frente às ameaças imperialistas. Para ele, o regime stalinista era altamente instável e ineficaz, de forma que ou seria derrubado pelo proletariado soviético na forma de uma revolução política, ou derrubado por forças imperialistas na forma de uma contrarrevolução externa. Contudo, ele não acompanhou em detalhes a implementação do sistema de planejamento burocrático da economia, que permitiu um salto muito grande como parte do esforço de guerra. Tampouco viveu para ver a redução parcial do isolamento nacional da URSS ao final da guerra, com sua expansão burocráticomilitar que transformou grande parte do Leste Europeu em Estados operários burocratizados e com o triunfo de novas revoluções, ainda que também burocraticamente deformadas, na Iugoslávia, Albânia, China, Coreia do Norte, Vietnã, Laos e Cuba. Isso explica em parte a sobrevivência da URSS à 2ª Guerra Mundial mesmo na ausência de uma revolução política. Não obstante, os elementos de contradição que Trótski já apontava nos anos 1930 se tornaram ainda mais agudos pela sobrevivência prolongada do stalinismo, como os desequilíbrios na economia que forçaram a própria burocracia a buscar reformar o sistema de planejamento hipercentralizado e hiperverticalizado e o desgaste político do regime junto ao proletariado, que levou à eclosão de revoltas de massas em prol de um “socialismo democrático” nos anos 1950-60 e, de forma mais pontual, também nos anos 1970. O conceito de stalinismo como chave explicativa da restauração burguesa Para nós, a URSS e formações sociais equivalentes a ela II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 581 que surgiram no Leste Europeu no pós-Segunda Guerra (o “Bloco Soviético”) permaneceram sendo Estados operários burocratizados até as contrarrevoluções que restauraram o Estado burguês ao final do século e asseguraram a plena restauração da propriedade privada e das relações de mercado naquelas formações sociais. Diferentemente do que supunha Trótski, essa contrarrevolução não se deu na forma de uma guerra imperialista, mas a partir do protagonismo de setores da própria burocracia, com a apoio de setores de massas decepcionadas com décadas de convencimento de que o stalinismo era sinônimo de socialismo e iludidas com as promessas de democracia e prosperidade econômica feita por grupos neoliberais. A tese de que o regime stalinista se tornaria um freio ao desenvolvimento das forças produtivas não tardou a ser comprovada. Já em meados dos anos 1950, a própria burocracia da URSS percebeu uma desaceleração nas taxas de crescimento da economia e se viu forçada a buscar reformas no sistema de gestão hipercentralizada e verticalizada. Ao longo dos anos 1960, 70 e 80 várias outras reformas de flexibilização da gestão foram tentadas, mas todas se chocavam com a resistência de setores da tecnocracia estatal e dos administradores de empresas, que perderiam poder e privilégios materiais se as mudanças fossem adiante. Nos anos 1980, com a crescente deterioração da economia, um setor da burocracia começou a apostar cada vez mais no chamado “socialismo de mercado”, na tentativa de dinamizar a economia, ainda que às custas de gerar desigualdade social. Esse era o significado da Perestroika de Gorbachev. Para romper a resistência de setores da própria burocracia, a ala reformadora se viu forçada a realizar mudanças políticas para enfraquecer os que resistiam, a Glasnost. 582 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Com isso, acabou liberando forças muito poderosas, que rapidamente se organizaram e apresentaram suas demandas, em especial setores contrarrevolucionários neoliberais, que capturaram a crescente insatisfação de setores de massas diante das dificuldades econômicas e falta de democracia e passaram a exigir privatizações em larga escala, economia de mercado e democracia eleitoral-representativa. Seu principal porta-voz era Boris Ieltsin e possuía amplo apoio das forças imperialistas, que chantegeavam o governo da URSS com promessas de empréstimos e fornecimento de alimentos e matéria-prima em troca da aceleração de reformas de mercado. Ieltsin conseguiu unificar setores da burocracia que tinham mais a ganhar com uma conversão em burguesia do que na manutenção da sua instável situação de grupo social gestor parasitário. Com apoio das forças imperialistas e também dos setores de massas que conseguiram iludir com promessas de democracia e prosperidade, esse setor restauracionista conseguiu tomar o controle do aparato de Estado após o fracasso do golpe de agosto de 1991 e realizou um sistemático desmonte desse aparato para erguer em seu lugar um Estado burguês, à serviço da nova classe proprietária que surgia do seio da própria burocracia. Algo similar ocorreu em boa parte do Leste Europeu, com uma ou outra característica secundária diferente.3 Para nós, esses eventos comprovam a teoria do Estado operário burocratizado de Trótski em seus elementos centrais: a ditadura da burocracia e o isolamento nacional bloqueavam a transição ao socialismo daquelas formações sociais onde a burguesia havia sido expropriada; apesar de importantes avanços, o stalinismo se tornou 3 Para uma análise pormenorizada desses processos e também da resposta dos trotskistas da época a eles, ver MONTEIRO, 2021. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 583 um freio cada vez maior ao desenvolvimento das forças produtivas, causando desequilíbrios e ineficiência na gestão da economia; diante da impossibilidade de se autorreformar e das pressões internas e externas, setores da burocracia optaram por se converterem em burguesia operando uma contrarrevolução restauracionista. Vejamos alguns dados que sustentam essa interpretação. Sobre a conversão da burocracia em burguesia, uma pesquisa do início dos anos 1990 apontou que a origem dos 62% dos principais empresários russos de 1992-93 estava na burocracia (“elite estatal-partidária”), dos quais 23% eram advindos da burocracia dos ministérios industriais e comitês estatais, bem como diretores de empresas industriais, 17% haviam passado recentemente pela organização de juventude do PC (Komsomol, local de gestação de muitos empresários, já que todo jovem subindo na hierarquia pessoal passava por ele, onde fazia contatos importantes e podia ficar até o início dos 40 anos), e 14% veio dos bancos, privatizando bancos estatais ou criando os seus próprios. Apesar do aumento progressivo de participação de capitais imperialistas na economia russa, em 1995, outros dados apontam que 61% da burguesia nativa ainda era originária de setores da antiga burocracia.4 Outros dados importantes sustentam a noção de que, a despeito do stalinismo, a URSS era uma formação social em muito superior ao capitalismo. É o caso da brutal queda de diversos índices econômicos: durante quase toda a década de 1990, o crescimento do PNB russo e da economia em geral foi negativo (com exceção de 1997 e 1999); em 1998, mais de 80% das fazendas e cerca de 70 mil empresas havia falido; ocorreu um desmonte das indústrias, na casa de 50% de redução 4 Dados compilados de diferentes fontes, em MONTEIRO, 2021, p. 435. 584 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) entre 1990 e 1991; os investimentos caíram, em 1995, a apenas 8% do PNB; a concentração de renda disparou. É o caso também da brutal queda de índices relacionados ao bem-estar do proletariado: a taxa de desemprego cresceu constantemente entre 1991, quando já era 5,15%, até em 1998, quando atingiu o pico de 13,26% e começou a cair, tendo sido mais acentuada entre os jovens (13,03% em 1991, e 27,14% em 1998); a população considerada pobre (ganhando até 4 dólares por dia) foi de 2 milhões, em 1989, para 74 milhões em 1998; a taxa de mortalidade disparou entre 1988 e 2003 e a de suicídio quase dobrou de 1986 para 1994; os crimes violentos quadriplicaram nesse ano; o consumo abusivo de álcool e também de entorpecentes mais pesados, como heroína, explodiu ao final dos anos 1990; a expectativa de vida despencou continuamente entre 1988, quando era de 69,13 anos, e 2003, quando atingiu 64,95 anos e somente então voltou a subir, recuperando e ultrapassando o índice de 1988 apenas em 2012.5 É verdade que Trótski encarava que uma contrarrevolução, para triunfar, precisaria engendrar uma “guerra civil sangrenta”, pois, em suas palavras, a revolução ainda vivia não só nas formas de propriedade, mas também “na consciência das massas” (TROTSKY, 2005). Para nós, a surpresa de uma contrarrevolução apoiada por setores de massa se explica pelo efeito negativo que décadas de stalinismo produziu sobre a consciência dessas massas. Se, nos anos 1960, setores lutaram em todo o Leste Europeu contra o stalinismo e em prol de um “verdadeiro socialismo”, nos anos 1980 uma nova geração estava convencida de que não havia alternativa ao stalinismo que não fosse o liberalismo capitalista, donde não ter ocorrido uma resistência de massas à contrarrevolução. 5 Dados compilados de diferentes fontes, em MONTEIRO, 2021, p. 438-439. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 585 Conclusão A maior parte do movimento trotskista internacional falhou miseravelmente diante desses eventos. Convencidos de que seria impossível as massas apoiarem até o fim forças políticas contrarrevolucionárias, pois isto iria “contra seus interesses objetivos”, correntes como os mandelistas, morenistas e lambertistas apoiaram os movimentos políticos que possuíam lideranças comprometidas com a contrarrevolução. Os mandelistas, ademais, acreditavam que seria possível ainda uma autorreforma da burocracia e, por isso, apoiavam os setores reformadores acreditando que eles levariam a uma democracia proletária “sob pressão das massas”. O objetivismo e o oportunismo desses grupos os levaram a apoiar e até comemorar a vitória da contrarrevolução burocrático-burguesa e a passar boa parte dos anos 1990 e 2000 sem entenderem que Estados burgueses haviam tomado o lugar dos Estados operários burocratizados do Leste Europeu. Viram na contrarrevolução que teve forma de reação democrática o triunfo da sonhada revolução política anti-stalinista.6 Naquele momento, o correto teria sido se opor de forma intransigente às lideranças neoliberais e contrarrevolucionárias à frente de movimentos de massa pró-democráticos, tentando rachar esses movimentos para tirar da influência dessas lideranças os trabalhadores insatisfeitos com o stalinismo e direcionar sua insatisfação para uma defesa do socialismo. Era necessário defender e apoiar a repressão aos líderes e grupos contrarrevolucionários, inclusive quando ela fosse feita pela “linha dura” da burocracia. E combinar a crítica ao stalinismo 6 Para uma análise pormenorizada, ver MONTEIRO, 2021. Para uma síntese, ver MONTEIRO, 2023. 586 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) à defesa da democracia proletária socialista, e não da democracia em abstrato, que serviu naquele contexto à contrarrevolução burguesa. Para isso, era imprescindível a construção de partidos verdadeiramente trotskistas no interior dos Estados operários burocratizados, em oposição às burocracias stalinistas e às forças neoliberais. Por fim, esse não é um debate acadêmico. Um cenário semelhante está presente hoje nos Estados operários burocratizados remanescentes: Cuba7, China, Coreia do Norte e Vietnã. É obrigação dos socialistas lutarem contra as forças pró-capitalistas dentro desses países, sem capitular às burocracias que os governam, bem como lutarem pela democracia proletária sem capitular às forças contrarrevolucionárias, ao mesmo tempo em que lutam pela reconstrução de um partido mundial da revolução socialista para destruir o capitalismo a nível internacional. Referências bibliográficas MONTEIRO, Marcio Antonio Lauria de Moraes. Stalinismo, revolução política e contrarrevolução: o movimento trotskista internacional e a teoria do Estado operário burocratizado aplicada ao bloco soviético (1953-91). Tese (Doutorado). Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, Niterói, 2021. Disponível em https://www.historia.uff.br/academico/media/aluno/2273/projeto/ TESE_VERS%C3%83O_FINAL_-_Marcio_Antonio_Lauria_de_ Moraes_UJLRnfA.pdf MONTEIRO, Marcio Lauria. “Stalinismo, revolução política e contrarrevolução: o movimento trotskista internacional e a teoria do 7 Ver nosso texto sobre a situação em Cuba presente neste livro. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 587 Estado operário burocratizado aplicada ao bloco soviético (1953-91)”. In: MONTEIRO, Marcio Lauria (Org.). Trótski em Permanência. Anais do evento online de 2021. São José do Rio Preto: Práxis Editorial, 2023. Versão online disponível em: https://rr4i.noblogs. org/2023/09/21/stalinismo-revolucao-politica-e-contrarrevolucao-omovimento-trotskista-internacional-e-a-teoria-do-estado-operarioburocratizado-aplicada-ao-bloco-sovietico-1953-91/. ROMÃO, Morgana Moura; MONTEIRO, Marcio Lauria. O Stalinismo e a União Soviética segundo a interpretação de Leon Trotsky. Aurora - revista de arte, mídia e política, v. 13, n. 38, 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/aurora/article/view/48667. TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. O que é e aonde vai a URSS. São Paulo: ‎Sundermann, 2005. TROTSKY, Leon. Em Defesa do Marxismo. São Paulo: ‎Sundermann, 2011. 588 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) El pronóstico de Trotsky sobre la restauración capitalista, a la luz de esta crisis mundial Rafael Santos 1 No podemos dejar de resaltar el rol revolucionario de León Trotsky en la elaboración político-programática. En su artículo “A 90 años del Manifiesto Comunista”, de 1937, reivindica la plena vigencia del primer programa comunista elaborado por Marx y Engels. Lo que “no significa” –dice- que después de 90 tumultuosos años “el Manifiesto no precise de correcciones y adiciones”. Para Trotsky, “el pensamiento revolucionario no tiene nada en común con la idolatría. Los programas y las predicciones se verifican y corrigen a la luz de la experiencia, que es el criterio supremo de la razón humana”. La tendencia restauracionista de la burocracia stalinista Uno de los mayores aportes de Trotsky a la teoría marxista fue el análisis de la burocratización del Estado Obrero soviético, el carácter transitorio del mismo y la amenaza de la restauración capitalista. Procesos que ni Marx y Engels, y parcialmente Lenin, habían podido prever, porque fueron fenómenos nuevos en la historia de la lucha de clases. Un proceso contrarrevolucionario, dirigido por Stalin se montó sobre el retroceso de la revolución mundial -producto de la derrota de la revolución alemana y otros estallidos revolucionarios europeos 1 Miembro del Comité Nacional del Partido Obrero (Argentina). Editor de la revista “En Defensa del Marxismo”. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 589 y en China- que colocaron en una situación de aislamiento al Estado Obrero surgido de la Revolución Rusa de 1917. La constitución de una casta burocrática que usufructuó el dominio del aparato estatal en su favor, con privilegios materiales, fue acompañada por una fuerte represión al ala revolucionaria bolchevique. Es sabido que en 1940 solo dos de los miembros del Comité Central que dirigió la revolución quedaban vivos: Stalin y Trotsky. Los demás fueron, en su gran mayoría, ejecutados por el terror stalinista. Y el 20 de agosto de 1940 caía asesinado también León Trotsky. Trotsky hizo un análisis de la nueva situación del Estado Obrero en uno de sus textos más celebres: “La Revolución Traicionada”, de 1936. Al triunfar la revolución proletaria en un país de los más atrasados de Europa y no lograr la extensión revolucionaria en las metrópolis capitalistas se creó una nueva contradicción. La expropiación de los capitalistas y latifundistas, el monopolio estatal del comercio exterior y una planificación centralizada de la economía por parte del Estado, planteó un impulso al desarrollo de las fuerzas productivas. Pero estas partían de un gran retraso. Las normas de distribución de lo producido se tenían que atener –dada la baja productividad y una escasa producción de bienes de consumo- a un reparto burgués, insuficiente y desigual. La burocracia contrarrevolucionaria a través del terror logró imponerse como una casta social usufructuando en forma privilegiada ese reparto. Pero esta situación -la contradicción entre normas burguesas de reparto y las formas socialistas de propiedad, en condiciones de expropiación política del proletariado por una burocracia contrarrevolucionaria- no podía mantenerse indefinidamente. Se creaba una fuerte tendencia de la burocracia stalinista a modificar 590 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) las relaciones de propiedad, a la restauración capitalista. Al llevar hasta el extremo -con complacencia de Stalin- las normas burguesas de reparto, prepara una restauración capitalista. Esto, en su época y aún hoy, fue una genial caracterización revolucionaria. De la cual Trotsky deducía el carácter transitorio del Estado Obrero, la posibilidad de volver a retroceder al capitalismo y la formulación de un pronóstico alternativo (en el “Programa de Transición” de 1938) que iba a depender en definitiva de la lucha de clases internacional: “o bien la burocracia, convirtiéndose cada vez más en el órgano de la burguesía mundial en el Estado Obrero derrocará las nuevas formas de propiedad y volverá a hundir al país en el capitalismo, o bien la clase obrera aplastará a la burocracia y abrirá el camino al socialismo”. Era la época en que el llamado ‘movimiento comunista internacional’, consideraba irreversible la constitución del Estado Obrero y, más aún, que se entraba abiertamente en la construcción del socialismo… en un solo país. En contra de la teoría marxista revolucionaria de que el socialismo es un sistema internacional, que recién podrá considerarse irreversible cuando el desarrollo de las fuerzas productivas supere al de las naciones imperialistas desarrolladas. Y que eso era imposible para una sola nación, dado el dominio imperialista del mercado mundial. Trotsky formuló un programa para enfrentar esta tendencia contrarrevolucionaria en la URSS: la necesidad de una revolución política que derroque a la burocracia pro restauracionista y lleve nuevamente al poder al proletariado. Revolución política, porque –a diferencia de las naciones capitalistas- en la URSS ya se había ejecutado la parte de la revolución social que planteaba la expropiación de los capitalistas. La restauración capitalista no iba a respetar el nivel de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 591 desarrollo alcanzado por la URSS. El imperialismo iba a avanzar decididamente hacia la colonización capitalista de toda Rusia. Hitler (y antes otros imperialismos) intentarían imponer la restauración capitalista, a través de la guerra, destruyendo el Estado, incluso a la mayoría de la burocracia stalinista que se apoyaba en él. Trotsky analizó –en “La Revolución Traicionada”- que “sin Ejército Rojo, la URSS ya habría sido derrotada y desmembrada como China”. Y, también caracterizó que un sector de la burocracia stalinista quería transformarse en “compradora”, intermediaria con el imperialismo, considerando –en “El Programa de Transición”- que “la nueva capa gobernante sólo puede asegurar sus posiciones privilegiadas mediante el rechazo de la nacionalización, la colectivización y el monopolio del comercio exterior, en nombre de la asimilación de la ‘civilización occidental’, es decir, el capitalismo”. Después de la segunda guerra mundial, el creciente desarrollo de levantamientos obreros en toda Europa Oriental –Berlín, Hungría, Checoslovaquia, Polonia, etc.- con grandes movilizaciones obreras revolucionarias contra las burocracias stalinistas, fue brutalmente reprimido. Pero indicaba a las burocracias que estaba en desarrollo el proceso de las revoluciones políticas por parte de la clase obrera para tomar el poder político en los países que había sido expropiado el capital. Espantada por esta tendencia revolucionaria, las burocracias se fueron echando en brazos directos de la restauración capitalista. La burocracia se transformó en el principal campo de desarrollo de una nueva clase burguesa oligárquica a través de privatizacionesliquidaciones masivas de amplios sectores productivos. 592 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) La experiencia china En 1949 Mao Tse-tung y el PC chino (PCCh) culminaron una larga guerra civil tomando el poder en Pekín. El acuerdo de Stalin con las potencias occidentales planteaba que la derrota japonesa debía dar lugar a que China fuera nuevamente dirigida por el corrupto Chiang Kai-shek, y su partido nacionalista burgués, el Kuomintang (que incluso había pactado con el imperio japonés para atacar conjuntamente al Ejército revolucionario dirigido por Mao Tse-tung). Pero esta indicación fue desoída por el PCCh que empujado por un fuerte ascenso revolucionario tomó el poder. Fue un gran avance revolucionario que consumó la unidad nacional de China, profundas transformaciones agrarias y –a través de un proceso- la expropiación de los capitalistas. Programáticamente, a diferencia de la Revolución Rusa, el PC chino no pretendía instaurar una República o Federación socialista soviética, es decir un Estado Obrero (como se hizo en la URSS), sino que proclamó la República Popular China. Pretendía llevar adelante una revolución democrática, con la integración del llamado “Bloque de las 4 clases”, que incluía a la raquítica, casi inexistente, burguesía nacional. La contrarrevolución imperialista, manifestada con la guerra de Corea y la recolonización de Vietnam impulsó la radicalización de la revolución. Una vez estabilizada –débilmente- la situación militar, la creciente burocracia china al frente del Partido y del Estado, se propuso construir un “socialismo con características chinas”: una nueva versión del ‘socialismo en un solo país’. Buscando consolidar sus privilegios de casta y buscando mantener un status quo con el imperialismo. Ahogando, para ello, la extensión de la revolución mundial. En primer II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 593 lugar en Asia (masacre de la revolución en Indonesia por una política frentepopuista como la que impuso Stalin en la década del 20 en China, de subordinación al nacionalismo burgués del Kuomintang). Al igual que Stalin, Mao y el PC chino emprendieron, en forma burocrática, una serie de aventuras económicas, violentando la realidad social, que provocaron fenomenales crisis, hambrunas y muertes masivas (el ‘gran salto’ de fabricar más acero que Gran Bretaña creando hornos siderúrgicos en cada aldea, colectivizaciones agrarias forzosas, etc.). Las terribles contradicciones y crisis que produjo esta política aventurera y el desarrollo de una burocracia gubernamental, fomentó las condiciones para el desarrollo de un proceso de restauración capitalista. Proceso que se abrió no sin crisis y resistencias tanto dentro del aparato del PCCh, como en las masas (la Revolución Cultural impulsada por Mao, etc.). La sangrienta represión a la ocupación de la Plaza de Tiananmén (más de 1.500 muertos, más de 30 mil detenidos) en 1989, permitió que se impusieran decididamente los sectores abiertamente restauracionistas de la burocracia. El proceso se había abierto antes, con el giro de Mao al acuerdo con el presidente yanqui, Nixon, y su Jefe del Departamento de Estado, Kissinger. A la muerte del ‘gran timonel’, el ala restauracionista se hizo cargo del aparato del PCCh y del Estado y dio pasos gigantes en este camino. Lo hizo poniendo el mismo bajo ‘control’ de un gobierno bonapartista de mano dura. Límites del proceso restauracionista En pocas décadas China tuvo un fenomenal salto económicoproductivo. Considerada la segunda economía mundial, después de la 594 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de los EEUU, por su Producto Bruto, muchos sectores, incluso de la izquierda, han llegado a considerar que China se habría transformado en un país imperialista. De ser así, China no solo habría consumado su ‘revolución democrática’ sino avanzado hasta salir a competir con el imperialismo yanqui dominante (de la misma manera que este empezó a desarrollarse hace dos siglos luego de su revolución-independencia contra Gran Bretaña). Barrería con las tesis marxistas de que el capitalismo, en su actual etapa imperialista, es “la reacción en toda la línea” y ya no permite un real desarrollo autónomo de nuevas naciones y menos que surjan nuevos imperialismos. China es un país con un desarrollo combinado, sigue teniendo la base de un país atrasado, con inserciones importantes del capital financiero internacional en sus ramas base. El PBI por habitante está lejos de las potencias imperialistas (está en el 69° lugar, por debajo del de Chile, por ejemplo). Aunque ha logrado un lugar en la exportación de sistemas de primer nivel, su dependencia tecnológica, incluso en este campo, es fenomenal. Trotsky caracterizó la existencia de este tipo de estructuras, como expresiones de la ley del desarrollo desigual y combinado, que no responden a un desarrollo armónico de las fuerzas productivas, sino que inserta modernas técnicas, introducidas por el capital imperialista, en un contexto en el que se mantiene el atraso económico. El núcleo central de desarrollo chino provino de la instalación de empresas imperialistas que usan la mano de obra superbarata y ‘disciplinada’ por el régimen burocrático, como plataforma de exportación, fundamentalmente hacia los propios centros imperialistas. Esto asegura superganancias al capital e introduce incluso una competencia a la baja con los salarios de los obreros de las metrópolis. La burguesía china autóctona que está II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 595 surgiendo de este proceso de restauración es una clase relativamente débil, asociada a la burocracia del PCCh, aprisionada entre dos colosos: la fuerte penetración del capital imperialista por un lado –con todo su poderío, no solo económico, sino político y militar- y por un gigantesco proletariado de más de 400 millones de asalariados chinos creado por las inversiones extranjeras y las de ‘capital nacional’. La nueva clase burguesa china, una protoburguesía, está sostenida por el régimen bonapartista que la defiende frente a estos dos monstruos creados por el desarrollo restauracionista. La burocracia restauradora del capital arbitra medidas en defensa de bancos y empresas que debieran ir a la quiebra, pero que son sostenidas ‘artificialmente’ por los fondos estatales, son parte del llamado “capitalismo zombie”. ¿Una restauración pacífica? Hay corrientes de la izquierda que caracterizan que la restauración capitalista en China se ha impuesto de un modo pacífico. No solo no consideran como esencial el violento aplastamiento burocrático de los movimientos de lucha hacia un proceso de revolución política contra la burocracia represora y restauracionista y el establecimiento de un régimen de regimentación totalitaria, sino que no comprenden la naturaleza del proceso restauracionista. Se trata de una restauración incompleta, no acabada. El imperialismo, por su naturaleza monopólica, no puede permitir una China fuerte, en términos capitalistas. Necesita hacer retroceder las conquistas de la revolución de 1949 y avanzar en un proceso de colonización a fondo. Incluso, no se debe descartar como un objetivo estratégico el hacer retroceder la unidad nacional china, hacerla volver al período 596 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) prerrevolucionario. A fines del siglo XIX, distintos imperialismos tenían ‘concesiones’ y áreas exclusivas de dominio. China era un campo de disputa interimperialista. Japón constituyó gran parte de su imperio colonial sobre territorio chino (Manchuria, etc.). La restauración capitalista, llevada a su culminación, planteará la división de China para mejor colonizarla, incluso entregando sectores al control directo del capital financiero imperialista yanqui y otros. Esa fue la experiencia de la restauración capitalista en Yugoslavia, que llevó a sangrientas guerras que destrozaron su unidad nacional, recreando pequeños Estados-protectorados bajo influencia de diversos imperialismos. (Lo mismo ha sucedido en Libia, dividida en dos, bajo distintos protectorados capitalistas). La restauración capitalista no aleja la guerra, sino que la promociona, incentivada por la agudización de la crisis capitalista en desarrollo. Un peligro de rigurosa actualidad: la guerra de EE. UU.-Otan contra Rusia, la preparación militarista y las provocaciones de Trump-Biden contra China, es una política de Estado que abarca a Demócratas y Republicanos por igual. Una eventual culminación del proceso restauracionista no será posible sin grandes guerras y revoluciones en China y en el mundo, como pronosticara Trotsky. La lucha contra la catástrofe de la guerra imperialista es una tarea central de la vanguardia obrera y socialista. Referencias bibliográficas TROTSKY, León. “A noventa años del Manifiesto Comunista”, 1937. TROTSKY, León. “La revolución traicionada”, 1936. TROTSKY, León. “Programa de Transición”, 1938. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 597 Apuntes críticos sobre el balance del estalinismo. Los problemas del objetivismo en el análisis de la ex-URSS Víctor Artavia Quirós1 I. Introducción El ascenso y consolidación del estalinismo en los años veinte y treinta del siglo pasado, generó un intenso debate en la izquierda internacional sobre el carácter de la URSS, debido a las profundas transformaciones –económicas, sociales y políticas- que experimentó el Estado soviético en poco más de una década. Las filas de la Oposición de Izquierda Internacional – y posteriormente la IV Internacional2 – no fueron la excepción, pues, en su interior, hubo tensiones y rupturas sobre la postura a seguir ante el fenómeno de la burocratización estalinista. Por ejemplo, a finales de los años veinte, cuando Stalin operó un giro ultraizquierdista con la 1 Dirigente de la corriente internacional Socialismo o Barbarie. Historiador formado en la Universidad de Costa Rica. Contacto: vic.artq@gmail.com 2 Durante gran parte de la batalla contra la burocracia estalinista, el movimiento articulado alrededor de Trotsky se consideró como una fracción dentro del Partido Comunista y de la III Internacional, por lo cual adoptaron el nombre de Oposición de Izquierda para el caso de la URSS y Oposición de Izquierda Internacional en tanto centro coordinador de las agrupaciones en otros países, cuyo objetivo era reformar el régimen político impuesto por la burocracia. Esto varió cuando se produjo el ascenso al poder de Hitler en 1933 sin ningún tipo de resistencia desde el PC alemán -por la política ultraizquierdista del estalinismo-; ante esa derrota histórica, Trotsky concluyó que era necesario impulsar una nueva internacional y, en consecuencia, formalizar la ruptura con los partidos comunistas en cada país, lo cual daría paso a la conformación de la Liga Comunista Internacional y, posteriormente, de la IV Internacional en 1938, con la tarea explícita de luchar por la revolución política en la URSS –destruir el régimen burocrático y mantener las bases sociales creadas por la revolución de Octubre- y la revolución socialista en los países capitalistas. 598 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) colectivización forzosa del campo y la industrialización acelerada –el llamado “tercer período”-, un sector capituló alegando que la burocracia soviética implementaba el programa económico de la Oposición de Izquierda, sin reparar en la forma autoritaria como se llevaron a cabo esas medidas. Posteriormente, a finales de los años treinta, una minoría dentro del Socialist Workers Party (SWP) de los Estados Unidos – principal sección de la IV Internacional en ese momento-, asumió una política anti-defensista con relación a la URSS, es decir, rehusaron defender a la URSS en caso de un eventual enfrentamiento militar con otras potencias imperialistas. Trotsky analizó al estalinismo en diferentes artículos y libros a lo largo de casi dos décadas, por medio de los cuales dio cuenta del proceso de burocratización y sus repercusiones sobre la URSS; un fenómeno novedoso e imprevisto para las corrientes socialistas revolucionarias previo a la revolución de 1917. A causa de eso, sus textos presentan ángulos y acentos diferentes, los cuales responden al momento cuando se escribieron y, también, a los debates dentro de las filas del joven movimiento trotskista. Así, cuando polemizó con los sectores que capitularon al giro ultraizquierdista de Stalin, enfatizó en la relación entre las tareas, la forma en que se realizaron y los sujetos sociales que ejecutaron las medidas (el qué, el cómo y el quién); en cambio, cuando se enfrentó con los anti-defensistas, reafirmó la defensa incondicional de la URSS en caso de una agresión militar imperialista (una posición totalmente correcta), pero, al calor del debate, “torció mucho la vara” y se deslizó hacia posicionamientos objetivistas sobre la teoría del Estado. Con este trabajo nos proponemos tres objetivos. En primer lugar, destacar los puntos fuertes del análisis de Trotsky sobre el II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 599 fenómeno de la burocratización, particularmente en lo que concierne a las innovaciones teóricas y la riqueza metodológica que desarrolló en La revolución traicionada. Seguidamente, dar cuenta de sus puntos débiles a la hora de sopesar los efectos de la burocratización en la URSS; en concreto, abordaremos críticamente su caracterización de Estado obrero degenerado, la cual, a nuestro modo de ver, fue correcta en tanto trató de reflejar la involución del Estado obrero soviético, pero fue rápidamente superada por la experiencia histórica con el salto cualitativo de la contrarrevolución estalinista (lo cual Trotsky no pudo procesar debido a su asesinato). Por último, retomar su legado teórico para repensar el balance de la burocratización, lo cual implica apoyarse en los aspectos más avanzados de su análisis para ahondar en la comprensión de la contrarrevolución estalinista y sus consecuencias duraderas en la ex URSS -y colateralmente en los países del Este europeo- y, de esta manera, extraer lecciones estratégicas para relanzar el socialismo revolucionario en el siglo XXI. Antes de continuar, es importante resaltar que, el análisis expuesto en este trabajo, es fruto de una elaboración colectiva de la corriente internacional Socialismo o Barbarie (SoB) en torno al balance estratégico del siglo XX y de la experiencia estalinista3. II. La Revolución Traicionada: Innovaciones Teóricas y Puntos Débiles Sin duda alguna, entre la vasta obra teórica de Trotsky sobre el estalinismo, La Revolución Traicionada (1937) constituye su 3 Para conocer más a fondo las elaboraciones de SoB sobre este tema, sugerimos visitar el sitio www.izquierdaweb.com 600 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) trabajo más balanceado y desarrollado, en el cual realizó un estudio a profundidad de la URSS, la cual asumió como una formación social sin precedentes históricos y, a partir de ese criterio, planteó una serie de definiciones abiertas y sin negar las contradicciones que marcaban su carácter social. A lo largo de esta obra desplegó lo mejor de su razonamiento dialéctico y aplicó las herramientas teóricas del marxismo revolucionario para comprender un fenómeno concreto, cuyo desenlace estaba sujeto a los avatares de la lucha de clases en la URSS y a nivel internacional. Un análisis innovador, dinámico y concreto La revolución rusa cosechó una enorme simpatía entre la clase trabajadora y sectores de izquierda a nivel mundial. Debido a esto, en los años subsiguientes a la insurrección de Octubre, proliferó la literatura de los llamados “amigos” de la URSS (particularmente en la década del treinta), en su mayoría compuesta por obras descriptivas y aduladoras del “milagro” ruso bajo la conducción “infalible” de Stalin. Trotsky se refirió a estos libros como la escuela internacional del “bolchevismo para uso ilustrado de la burguesía” o “socialismo para turistas radicales” (TROTSKY, 2001, p. 40). En este contexto, la aparición de La Revolución Traicionada -escrito en 1936 y publicado un año más tarde- fue un punto de quiebre, pues constituyó la primera investigación marxista seria sobre el desarrollo de la URSS hasta ese momento, cuyo objetivo era apreciar críticamente la realidad social del país tras veinte años de revolución. Para llevar a cabo esta tarea, Trotsky movilizó al conjunto de categorías heredadas por el marxismo para comprender un fenómeno profundamente novedoso, que, además, estaba ausente del horizonte II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 601 teórico de los clásicos: una revolución obrera que reconstruyó un Estado y, más complejo aún, degeneró a manos de una burocracia, la cual, al cabo de unos años, expropió el poder a la clase obrera (ARTOUS, 2017). Vale recordar que, antes de la revolución rusa, el proletariado tuvo en la Comuna de París (1871) su más elevada experiencia histórica, pues, por un lapso de tres meses, erigió un gobierno obrero revolucionario. Su prematuro aplastamiento militar a manos de la tropas francesas y prusianas impidió profundizar esta experiencia, pero, aun así, sirvió como una primera referencia concreta sobre los contornos del poder bajo el control de la clase obrera, los cuales Marx sintetizó en su folleto La Guerra Civil en Francia, en el cual concluyó que la Comuna hizo realidad la aspiración de un gobierno barato y, más importante, la describió como “la forma política al fin descubierta para llevar a cabo dentro de ella la emancipación económica del trabajo” (MARX, 1976, p. 233-236). Junto con esto, legó enormes enseñanzas a las futuras generaciones revolucionarias sobre las dificultades de instaurar un poder obrero; en particular, aleccionó sobre la ferocidad de la contrarrevolución burguesa y la necesidad de oponer una resistencia tenaz para derrotarla (LENIN, 1908). Pero la corta existencia de la Comuna no preparó sobre los “peligros profesionales del poder” (término acuñado por Rakovsky al respecto de la burocratización de la URSS), lo cual explica la ausencia de herramientas teóricas –y de alertas políticas- sobre el tema a lo largo del siglo XIX. Sería hasta inicios del siglo XX cuando la generación de Rosa, Lenin y Trotsky, afrontó el fenómeno de la burocratización dentro del movimiento obrero y socialista en diferentes escalas. En el caso de Rosa, lo hizo como parte de sus combates contra el aparato 602 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) conservador y reformista del PSD alemán -por ejemplo en Huelga masas, partido y sindicatos de 1906-; mientras que, a Lenin y Trotsky, les correspondió enfrentar la burocratización en un plano muchísimo más complejo, a saber, la progresiva degeneración de la revolución rusa con el Partido Bolchevique en el poder.4 Todo lo anterior, permite apreciar la magnitud de la tarea que asumió Trotsky con La Revolución Traicionada: interpretar en tiempo real el proceso de burocratización liderado por la camarilla estalinista, estableciendo sus efectos sobre la estructura social de la URSS. Esto requirió apoyarse en la elaboración marxista sobre teoría del Estado, pero dada la complejidad del caso en cuestión, tuvo que innovar muchísimo en su enfoque. Trotsky analizó a la URSS como una formación social concreta, con la particularidad de que no se asentaba sobre un modo de producción estabilizado. A raíz de eso, su abordaje se alejó de esquematismos históricos o categorías lógicas abstractas; desarrolló un método que, como destaca Artous, es una muestra de “dialéctica en acción”, pues contrastó todo el andamiaje teórico del marxismo con la experiencia de la primera revolución que se planteó la transición del capitalismo al socialismo (ARTOUS, 2017). A partir de este ángulo, destacó que, el desarrollo de la URSS, no era lineal y, por el contrario, lo describió como muy contradictorio y no armonioso. Para explicar eso, Trotsky retomó un criterio clásico del marxismo y lo contrapuso con la realidad soviética de ese momento, lo cual podemos sintetizar en dos puntos: a) La dictadura proletaria es un puente entre la sociedad 4 En el caso de Lenin, percibió el problema en sus etapas iniciales y se dispuso a enfrentarlo, pero murió prematuramente en enero de 1924. Por su parte, Trotsky pudo apreciar el desarrollo del estalinismo hasta 1940. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 603 burguesa y el socialismo, en la cual el Estado tenderá a extinguirse con la progresiva supresión de las diferencias de clase (postulado teórico de Marx y Engels). b) En la URSS cristalizó un “Estado burocrático”, el cual no tiene la menor intención de agonizar y, además, persiste la desigualdad social entre las clases sociales, incluso a lo interno del mismo proletariado (experiencia histórica concreta). ¿Cómo explicar, desde el marxismo revolucionario, que se produjera esa situación tan compleja e inesperada para los fundadores del comunismo? Para responder esta pregunta, Trotsky postuló el “doble carácter” del Estado soviético y, retomando los señalamientos de Lenin a inicios de los años veinte, señaló que la URSS era un “Estado burgués sin burguesía”, pues, aunque se expropió a los capitalistas, en su seno prevalecían las normas de reparto burgués -particularmente con las diferencias salariales-, pero, al mismo tiempo, era socialista porque defendía la propiedad colectiva de los medios de producción. Así, concluyó, la fisonomía final de la URSS resultaría de la relación/ tensión dinámica entre las tendencias burguesas y socialistas, lo cual se dirimiría en el terreno de la lucha de clases. Asimismo, para Trotsky ese “doble carácter” de la URSS explicaba la contradicción entre el carácter estatizado de la propiedad que, aunque representaba una medida anticapitalista progresiva y era un punto de apoyo determinante para realizar la transición al socialismo, al mismo tiempo estaba bajo posesión de la burocracia estalinista a partir de su control del Estado: “La propiedad del Estado no es la de ´todo el pueblo` más que en la medida en que desaparecen los privilegios y las distinciones sociales y en que, en consecuencia, el Estado pierde su razón 604 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de ser. Dicho de otra manera: la propiedad del Estado se hace socialista a medida que deja de ser propiedad del Estado. Por el contrario, mientras el Estado soviético se eleva más sobre el pueblo, más duramente se opone, como el guardián de la propiedad, al pueblo dilapidador, y más claramente se declara contra el carácter socialista de la propiedad estatalizada” (TROTSKY, 2001, p. 203). Este señalamiento de Trotsky es de suma importancia, pues deja en claro que no existe una relación mecánica –u objetiva- entre la expropiación capitalista con la transición al socialismo, dado que, entre ambos puntos del camino, median las relaciones políticas dentro de la esfera estatal. En otras palabras, no hay automatismo en la transición, pues, como el mismo Trotsky señaló, cuando se trata de una sociedad no capitalista “el carácter de la economía depende completamente del poder” (TROTSKY, 2001, p. 202). En el caso soviético, este criterio remitía directamente a evaluar el peso de la burocracia y sus repercusiones socio-políticas en una formación social inédita y en desarrollo. Para Trotsky, el estalinismo era algo más que una simple burocracia, pues se transformó en la única capa social privilegiada y dominante en la URSS (es decir, expropió el poder a la clase obrera), a partir de lo cual estableció relaciones enteramente nuevas entre ella y las riquezas estatizadas de la nación. Lo anterior, devino en una forma muy particular de diferenciación social, pues, aunque desde el punto de vista de la propiedad de los medios de producción no existía ninguna diferencia entre “el mariscal y la criada” o “el director del trust y el peón”, en los hechos la minoría privilegiada de la burocracia se apropiaba del trabajo ajeno, lo cual iba en detrimento de las condiciones de vida de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 605 las masas obreras y campesinas soviéticas. Por todo lo anterior, para Trotsky el carácter social de la URSS aún no estaba resuelto por la historia y, antes que brindar una definición cerrada de su estructura social, la caracterizó como una sociedad intermedia entre el capitalismo y el socialismo, la cual estaba atravesada por enormes contradicciones por la gestión burocrática del poder. Esto lo sintetizó bajo la categoría de “Estado obrero degenerado”, con la cual pretendió reflejar el “doble carácter” de la URSS y los peligros que acechaban a la revolución, pues el estalinismo sentaba condiciones para el retorno del capitalismo, ya fuera directamente por una contrarrevolución burguesa –de la mano de la guerra imperialista que se avecinaba-, o por la necesidad de la burocracia de estabilizar sus privilegios sociales con la restauración de las relaciones de propiedad burguesas. Desde nuestra perspectiva, esta categoría fue superada por la experiencia histórica (sobre eso profundizaremos más adelante), pero ilustra la riqueza metodológica de Trotsky por adecuar la teoría marxista a la realidad concreta para fundamentar la acción revolucionaria, lejos de las formas del pensamiento dogmático, tal como lo expuso en la parte final de La Revolución Traicionada: “En nuestro análisis tememos, ante todo, violentar el dinamismo de una formación social sin precedentes y que no tiene analogía. El fin científico y político que perseguimos no es dar una definición acabada de un proceso inacabado, sino observar todas las fases del fenómeno y desprender de ellas las tendencias progresistas y las reaccionarias, revelar su interacción, prever las diversas variantes del desarrollo ulterior y encontrar en esta previsión un punto de apoyo para la acción” (TROTSKY, 2001, p. 215). 606 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ¿Dónde está la burocracia? Dar cuenta de la burocratización fue un primer paso para comprender el fenómeno. Pero explicarlo a fondo –e insistimos, en tiempo real- fue una tarea mucho más compleja, en la cual Trotsky hizo importantes avances, pero también adoleció de puntos débiles, tal como señala Artous. De acuerdo a este autor, el revolucionario ruso tenía claro que la burocracia estructuró su poder desde el control mismo de la producción, pero, contradictoriamente, lo ignoró a la hora de medir sus consecuencias sobre el tipo de Estado que erigió el estalinismo. Por el contrario, situó la burocracia exclusivamente en la esfera de la distribución, asumiéndola como un factor externo a la organización de la producción y del trabajo. Para mayor claridad, veamos esta cita de Trotsky de un artículo de 1937, donde expuso esa caracterización: “Por el contrario, si la burocracia se vuelve más poderosa, autoritaria, privilegiada y conservadora, esto significa que en el estado de los trabajadores las tendencias burguesas crecen a expensas de las socialistas; en otras palabras, esa contradicción interior que hasta cierto punto se alberga en el estado de los trabajadores desde los primeros días de su aparición no disminuye como lo exige la ´norma`, sino que aumenta. Sin embargo, mientras esta contradicción no pase de la esfera de la distribución a la de la producción y no destruya la propiedad nacionalizada y la economía planificada, el estado continúa siendo un estado obrero” (TROTSKY, 1937). Trotsky definió a la burocracia como un “órgano burgués” dentro de la URSS, cuyo objetivo era defender el “derecho burgués” para resguardar los privilegios de una minoría. Esto era consecuencia del bajo desarrollo de la producción soviética, la cual no permitía II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 607 satisfacer las necesidades de consumo de toda la población, pero sí alcanzaba para garantizar la existencia de una burocracia privilegiada. A causa de esto, se produjo una contradicción en la economía soviética, pues el crecimiento de la producción reforzó “los rasgos burgueses y no los socialistas del Estado”, lo cual, a su modo de ver, constituyó el punto de partida de la burocracia estalinista: “La autoridad burocrática tiene como base la pobreza de artículos de consumo y la lucha de todos contra todos que de allí resulta. Cuando hay bastantes mercancías en el almacén, los parroquianos pueden llegar en cualquier momento; cuando hay pocas mercancías, tienen que hacer cola en la puerta. Tan pronto como la cola es demasiado larga se impone la presencia de un agente de policía que mantenga el orden. Tal es el punto de partida de la burocracia soviética. ´Sabe` a quién hay que dar y quién debe esperar” (Trotsky, 2001, p. 118). Entonces, en la visión de Trotsky, la burocracia es un gendarme que surge en el mismo momento que se forman las colas, donde se posiciona como la autoridad del Estado que se encarga de “administrar” la desigualdad en provecho de una minoría; no presenta ningún vínculo directo con el control de los medios de producción y, en consecuencia, es un factor externo a la planificación económica. Aunque en varios pasajes del libro detalla los efectos nocivos de la burocracia dentro del mundo del trabajo, nunca establece una relación directa entre la burocratización y la organización de la producción, limitándose a denunciar las medidas autoritarias en la industria y señalar los límites de la “planificación administrativa” (TROTSKY, 2001, 88). En consecuencia, abordó el fenómeno de la burocratización 608 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) desde los problemas de escasez y penurias materiales de la población; un enfoque muy reducido para explicar los desarrollos de una formación social tan específica como la URSS, donde se expropió al capitalismo y se proyectó una transición al socialismo (bloqueada por el estalinismo). A raíz de esto, otros aspectos quedaron por fuera de su campo de visión, en particular uno muy importante a la hora de caracterizar las contradicciones de la sociedad soviética: la estatización no suprimió automáticamente la separación entre la clase obrera y los medios de producción (ARTOUS, 2018). Según Artous, esto impidió que Trotsky extrajera todas las conclusiones de su análisis; por ejemplo, ignoró la instauración del “despotismo de fábrica” en la URSS. Esta categoría fue planteada por Marx con relación al surgimiento del trabajo colectivo en el capitalismo, que, acompañado de la pérdida de propiedad en el sentido jurídico, devino en la separación entre las tareas de concepción y organización del trabajo con respecto a las de ejecución, dando como resultado una jerarquización del proceso laboral. Algo similar sucedió en la URSS, donde la burocracia se erigió como la “inteligencia universal” de un Estado que controlaba todos los medios de producción y, por consecuencia, de la organización del trabajo, el cual reglamentó bajo formas burguesas de explotación. La estatización no generó automáticamente el control obrero sobre las industrias y, por el contrario, sí reprodujo variantes de poder similares al despotismo de fábrica. Trotsky expuso muchos de esos aspectos en su investigación; denunció que la burocracia aguijoneaba a los obreros en las fábricas, a pesar de lo cual el rendimiento del trabajo era sumamente bajo, por lo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 609 cual reintrodujo el trabajo a destajo (llamado movimiento Stajanov), al cual calificó como un “sistema de superexplotación sin coerción visible” creado por los capitalistas y adoptado por el Kremlin. A pesar de eso, al momento de generalizar la situación de la clase obrera dentro de la URSS, calificó la apropiación del plustrabajo social por parte de la burocracia como una forma de expoliación, es decir, una extracción parasitaria y no sistemática: “Si traducimos, para expresarnos mejor, las relaciones socialistas en términos de Bolsa, los ciudadanos serían los accionistas de una empresa que poseyera las riquezas del país (…) Los ciudadanos, sin embargo, participan en la empresa como accionistas y como productores (…) Los ingresos teóricos de un ciudadano se forman, pues, de dos partes: a + b, el dividendo más el salario (…) Mientras que el peón no recibe más que b, el salario mínimo que recibiría en idénticas condiciones en una empresa capitalista, el estajanovista y el funcionario reciben 2a + b, o 3a + b, y así sucesivamente (…) En otras palabras, la diferencia de los ingresos no sólo está determinada por la simple diferencia del rendimiento individual, sino por la apropiación enmascarada del trabajo de otros. La minoría privilegiada de los accionistas vive a costa de la mayoría expoliada” (Trotsky, 2001, p. 205). ¿Por qué Trotsky designó la “apropiación enmascarada del trabajo de otros” como una forma de expoliación y no de explotación? La respuesta más explícita la encontramos en un texto posterior, donde expuso que, si fuese explotación en el “sentido científico del término”, eso implicaría que la burocracia tendría un “futuro histórico como clase dirigente indispensable de un sistema dado de economía”; por ese motivo, insistió en calificarlo como un “parasitismo merodeador” 610 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) (TROTSKY, 1976, p. 5-6). Opinamos diferente a Trotsky en este aspecto, para lo cual contamos con la ventaja de la distancia histórica, gracias a la cual podemos valorar el desarrollo de la URSS bajo el control del estalinismo hasta finales del siglo XX. En una sociedad en transición al socialismo persiste el “principio de explotación”, pues el trabajo aun es una mercancía que se intercambia por un salario; el desarrollo de las fuerzas productivas no puede garantizar que, a cada persona, se le asigne una porción de la riqueza social según sus necesidades, por lo cual la distribución se rige bajo los criterios del derecho burgués. Pero, a diferencia de lo que acontece bajo el sistema capitalista, la extracción del plusvalor es un tributo colectivo y consciente, el cual está en función del progreso general de la clase obrera y al servicio de consumar la transición, por lo cual se transforma en una autoexplotación o explotación mutua (SÁENZ, 2011, p. 144-146). Ahora bien, esto varió en la URSS tras el ascenso y consolidación del estalinismo, lo cual dio paso a la instauración de una nueva forma de explotación –no orgánica y sumamente inestable- al servicio de la acumulación burocrática, la cual se extendió por más de medio siglo tras el asesinato de Trotsky, indicador de que fue un fenómeno mucho más profundo y sistemático que un “parasitismo merodeador”. III. Estado Obrero Degenerado: una categoría superada por la experiencia histórica Con la definición de Estado obrero degenerado, Trotsky trató de restituir la dinámica particular de la URSS en el plano de la teoría marxista. Retomó la formulación que Lenin planteó en los II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 611 años veinte cuando definió al Estado soviético como obrero, pero con deformaciones burocráticas debido al atraso heredado por el zarismo y el capitalismo ruso. A criterio de Trotsky, esas deformaciones que, en tiempos de Lenin eran una “reliquia” del pasado, entrados los años treinta mutaron a partir de nuevas condiciones históricas desfavorables para la revolución (como la extenuante guerra civil o la derrota de las revoluciones europeas), transformándose en un “tremendo factor histórico” que provocó la degeneración del Estado obrero (TROTSKY, 1937). En razón de lo anterior, actualizó la definición de Lenin con la formulación de Estado obrero degenerado, dando cuenta de la profundización de la burocratización en la URSS. Esto lo hizo sin dejar de lado que era una categoría abierta y dinámica debido a la inestabilidad del régimen estalinista, pues nunca consideró que la burocracia fuese una capa social “portadora de historia” con posibilidad de consolidar un modo de producción, un atributo que relacionaba directamente con una clase social estructurada económicamente y con capacidad de construir hegemonía, como la burguesía o el proletariado (BERGER, 1978, p. 95-97). Aunado a esa concepción teórica, recordemos que, desde mediados de los años treinta, Trotsky pronosticó que se aproximaba una nueva guerra mundial; un evento que desencadenaría una situación mundial de crisis y revoluciones, donde apostaba a la caída del estalinismo producto de una revolución política (o la restauración burguesa por la vía de una contrarrevolución fascista). En este marco, la definición de Estado obrero degenerado cumplía una funcionalidad política determinante en ese momento, pues, a la vez que daba cuenta de la “monstruosa degeneración” 612 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) acaecida bajo el estalinismo, también reconocía la vitalidad de una revolución social colosal y de dimensiones históricas, cuyo Estado –a pesar de la degeneración estalinista- aún era un instrumento de la clase obrera, lo cual preparaba las condiciones para luchar por una “genuina emancipación de los trabajadores” y liquidar a la burocracia y la desigualdad social (TROTSKY, 1935). Por ello, Trotsky fue muy cauteloso a la hora de abordar las implicaciones de la burocratización sobre el carácter del Estado soviético; no podía aventurarse a brindar definiciones cerradas, las cuales enterraran una revolución que aún podía estar viva y, de esta manera, desubicar políticamente a la Oposición de Izquierda (y posteriormente a la IV Internacional). Recalcó que no era fetichista con respecto a la teoría y, por el contrario, sostuvo que debía actualizarse si así lo exigieran los hechos históricos, pero -recordando la “experiencia lamentable de los viejos revisionistas” de la II Internacional- insistió en que era necesario “sopesar en nuestras mentes diez veces más la antigua teoría y los nuevos hechos antes de atrevernos a formular una nueva doctrina” (TROTSKY, 1937).5 Dicho lo anterior, ¿qué balance se puede hacer de la definición de Trotsky de la URSS como un Estado obrero degenerado? Fue correcta en tanto procuró caracterizar la involución del Estado obrero soviético a manos de la burocracia, pero fue rápidamente superada por la experiencia histórica con el salto cualitativo de la contrarrevolución estalinista a finales de los años treinta y durante la segunda guerra mundial, lo cual provocó un cambio en el carácter social de la URSS, 5 Lastimosamente, la mayoría de corrientes trotskistas se tornó fetichista con relación a las definiciones abiertas de Trotsky sobre el carácter social de la URSS, las cuales asumieron de forma dogmática y, por tanto, rehusaron contrastarlas ante los hechos desde la segunda posguerra hasta la actualidad. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 613 la cual se transformó en un Estado burocrático. Si bien desde una perspectiva de larga duración atinó en que el estalinismo no podría garantizar un modo de producción estable, también es cierto que, tras el asesinato de Trotsky en 1940, la burocracia continuó al frente de la URSS por otros cincuenta años. Lo anterior, invita a revisar los análisis y pronósticos de Trotsky en torno al estalinismo, pues no fue un fenómeno tan efímero como lo visualizó en los años treinta; su inviabilidad histórica en la larga duración no anuló su desarrollo político a lo largo del siglo XX.6 La segunda guerra mundial y el fortalecimiento del estalinismo Empecemos señalando un aspecto histórico: la segunda guerra mundial (1939-1945) fue muy diferente a lo previsto por Trotsky, que, seguramente, tenía en mente un conflicto similar a la primera guerra mundial (1914-1918). Ambas guerras estallaron por la pugna entre las potencias imperialistas para redefinir la hegemonía mundial; pero las similitudes llegan hasta ahí, pues la segunda fue en extremo compleja, debido a la confluencia de varios tipos de conflictos a escala nacional o regional. Por eso, al mismo tiempo que fue una contienda inter-imperialista (definición principal), también contuvo guerras de liberación nacional -o movimientos de resistencia- contra la ocupación 6 Al respecto, es útil recordar el debate de Lenin con el izquierdismo sobre la vigencia de la democracia burguesa, en el cual señaló que, si bien desde la perspectiva histórica ésta había sido superada por la experiencia de la democracia obrera en los Soviets, no sucedía lo mismo con respecto al tiempo de la política, pues aún era vigente para la enorme mayoría de la clase obrera mundial y, por tanto, era necesario que las organizaciones revolucionarias no asumieran una posición anti-electoral sectaria e infantil. Esta dualidad o desincronización entre la temporalidad histórica y la política, nos parece útil para comprender la persistencia del estalinismo por siete décadas (si datamos su origen a mediados de los años veinte del siglo XX), un desarrollo contradictorio para un fenómeno sin viabilidad en la larga duración. 614 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) nazi, que, en algunos casos, dieron paso a revoluciones sociales anticapitalistas (como sucedió en Yugoeslavia). Con respecto a la URSS sucedió algo muy particular, pues la Alemania nazi desató una guerra de exterminio a partir de 1941, librando un genocidio contra los pueblos que encontraron en su avance en el Este europeo y el territorio soviético. Esta masacre industrializada, sustentada en la idea nazi de conquistar el Lebensraum -el “espacio vital” del pueblo alemán-, jugó a favor del estalinismo, pues bloqueó la posibilidad de que las tropas nazis concertaran acuerdos con sectores opositores a la burocracia en las repúblicas soviéticas, lo cual restó puntos de apoyo a la guerra anticomunista de Hitler (SÁENZ, 2013, p. 226-238). Producto de lo anterior, el “Ejército Rojo” estalinista se transformó en la única opción de resistencia ante la barbarie nazi y su guerra de exterminio para cientos de millones de personas en el Este europeo y las repúblicas soviéticas, lo cual potenció la contraofensiva militar de la URSS y la victoria en Stalingrado, batalla que marcó el inicio del retroceso militar del ejército nazi y dio paso a un ascenso revolucionario internacional. Fue una conquista histórica para la humanidad, pero, contradictoriamente, librada en clave nacionalista y no socialista por la burocracia soviética que, en adelante, consolidó su poder al frente de la URSS e, incluso, extendió las relaciones de producción burocráticas a los países del Este europeo, donde inicialmente fueron recibidos como libertadores, aunque a la postre expoliaron a los países del Glacis e instauraron regímenes autoritarios a su imagen y semejanza (ARTAVIA, 2021). En suma, Trotsky atinó en su pronóstico del advenimiento de una nueva guerra mundial desde mediados de los años treinta, pero II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 615 la misma presentó una dinámica muy compleja e inesperada, dando como resultado un fortalecimiento del estalinismo como dirección política de la URSS y del “movimiento comunista” internacional. Su asesinato en agosto de 1940, impidió que pudiera actualizar su análisis de la guerra y dar cuenta de las tendencias contradictorias que surgieron durante su desarrollo, las cuales depararon una situación muy diferente a la prevista inicialmente, pues el estalinismo consolidó su poder y conquistó un prestigio enorme entre el movimiento de masas internacional. Ambos factores posibilitaron la persistencia de la burocracia por varias décadas más, aunque fuese sobre la base de un sistema de explotación inestable y no orgánico de la clase obrera. Complejidades en la caracterización social de la URSS En términos generales, los análisis de Trotsky sobre la estructura social de la URSS se caracterizaron por ser dinámicos y profundamente dialécticos. Es el caso de La revolución traicionada, en la cual rehusó dar definiciones cerradas y, por el contrario, remarcó que, el carácter social de la URSS, estaba sujeto a los desarrollos de la lucha de clases a nivel nacional e internacional. Eso dota al libro de una enorme riqueza teórica y metodológica, amén de que contenga algunos puntos débiles, tal como expusimos anteriormente. A pesar de eso, en varios de sus artículos presenta ángulos contradictorios –algo comprensible en una obra en constante desarrollo-, principalmente a la hora de sopesar la compleja relación entre el fundamento económico y la superestructura políticorevolucionaria. Por un lado, Trotsky fue categórico al señalar que no existía ningún automatismo en la transición al socialismo y, con mucha 616 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) agudeza, mantuvo que, para avanzar en esa ruta, era preciso la interrelación de tres elementos: la planificación estatal, el mercado y la democracia soviética (TROTSKY, 1932). Con esta formulación, dejó en claro que, mientras la burocracia estalinista estuviera en el poder, era imposible que la economía de la URSS tuviera una orientación correcta, pues el “subjetivismo burocrático” –es decir, el repudio de las causas objetivas y la imposición de metas voluntaristas en los planes quinquenales- socavaba la relación armónica de esos tres elementos, lo cual generaba desproporciones entre las ramas económicas (TROTSKY, 1933). Es un enfoque donde estructura y superestructura sostienen un vínculo estrecho en la fase de transición. Por otra parte, Trotsky fue muy cauteloso a la hora de precisar los efectos inmediatos de la contrarrevolución estalinista sobre el Estado soviético, pues no quiso aventurar caracterizaciones que dieran por muerta la revolución y, con ello, desubicar a la Oposición de Izquierda (un razonamiento que nos parece sensato y políticamente correcto para el momento). Por tal motivo, hasta el momento de su muerte sostuvo que la URSS era un Estado obrero degenerado, producto de la imposición del régimen burocrático sobre una estructura social fundada en las conquistas anticapitalistas de la revolución, tal como expuso en un artículo de 1935: “En el lapso que se extiende desde la conquista del poder hasta la disolución del estado obrero en la sociedad socialista las formas y métodos del gobierno proletario pueden sufrir marcados cambios, determinados por el curso interno y externo de la lucha de clases (…) es correcto hablar de la dictadura personal de Stalin. Pero esta usurpación pudo realizarse y mantenerse sólo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 617 porque el contenido social de la dictadura de la burocracia está determinado por las relaciones productivas creadas por la revolución proletaria. En este plano podemos decir muy justificadamente que la dictadura del proletariado encontró su expresión distorsionada pero indudable en la dictadura de la burocracia” (TROTSKY, 1935). Esta cita evidencia el “punto débil” en el análisis de Trotsky, que, al considerar a la burocracia como un factor externo a la producción y circunscrita a la esfera de la distribución, no se percató de la transformación radical que experimentaron las “relaciones productivas creadas por la revolución proletaria” bajo el estalinismo. A raíz de eso, por momentos disoció en extremo la base económica del régimen político y, peor aún, estableció una relación distorsionada entre la dictadura de la burocracia y la del proletariado. Eso constituye un error grosero en su análisis, pues ignoró un factor decisivo para un Estado que se reclama obrero: la imposición del absolutismo burocrático se hizo a costa de la expropiación política del proletariado, el cual en los hechos perdió el poder sobre “su” Estado y quedó sometido a los mandatos de una casta que controló el aparato estatal como si fuera su propiedad privada. Más allá de ese error, Trotsky nunca perdió el abordaje dialéctico del fenómeno de la burocratización, lo cual reflejó en la forma dinámica en que asumió sus caracterizaciones. En ese mismo artículo que acabamos de citar dio muestra de eso, pues, a la vez que definió a la URSS como un Estado obrero a pesar del régimen estalinista, fue categórico al señalar que eso configuraba una situación profundamente inestable, ya que era imposible construir el socialismo sin la unidad de la base económica con el poder socialista. Además, insistió que esa contradicción se resolvería en el corto plazo, dado que 618 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) preveía la inminente caída del estalinismo: “El inevitable colapso del bonapartismo stalinista cuestionará inmediatamente el carácter de estado obrero de la URSS. Una economía socialista no se pude construir sin un poder socialista. El destino de la URSS como estado socialista dependerá del régimen político que surja para remplazar al bonapartismo stalinista” (TROTSKY, 1935).7 Con esta formulación Trotsky restableció la unidad entre la economía y el poder político, aunque la proyectó para un futuro cercano, concretamente ante las perspectivas revolucionarias que contraería la nueva guerra mundial (lo cual explicamos en el acápite anterior). Desde esa postura articuló su análisis del estalinismo que, aunque dinámico e innovador, también tuvo contradicciones, siendo que, en unas ocasiones priorizó las relaciones de propiedad para determinar el carácter social de la URSS, pero, al mismo tiempo, señaló que las contradicciones generadas por el régimen burocrático eran incompatibles con el mismo Estado obrero como tal. Este brevísimo recorrido expone la complejidad que representó caracterizar un proceso de tales dimensiones históricas en tiempo real, ante lo cual Trotsky siempre fue muy precavido y adecuó sus caracterizaciones a los cambios en la situación concreta; una tarea compleja por encontrarse en el exilio, la escasez de información veraz 7 Este texto es de 1935, por lo que Trotsky todavía se refiere a la URSS como un Estado obrero; el calificativo “degenerado” lo incorporó en La revolución traicionada en 1937. Tiene una enorme riqueza metodológica, pues su eje es actualizar la caracterización del estalinismo como fenómeno contrarrevolucionario y dar cuenta de un error en la caracterización previa, lo cual Trotsky explica a partir de la constante evolución del proceso de degeneración estalinista, ante lo cual la actitud marxista es estudiar, corroborar hipótesis a la luz de la experiencia y rectificar cuando sea necesario. Desde nuestra corriente asumimos este “consejo” de Trotsky y, por eso, no repetimos doctrinariamente sus caracterizaciones sobre un fenómeno que se extendió por medio siglo luego de su asesinato. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 619 por la manipulación de las estadísticas por parte del estalinismo y, también, por el virtual exterminio de la militancia de Oposición de Izquierda en la URSS. En todo caso, desde nuestro punto de vista hay un elemento que se desprende al estudiar sus textos sin anclarse en ningún dogmatismo: en su análisis la categoría de Estado obrero degenerado es altamente inestable y, por tanto, transitoria, pues nunca previó que pudiera consolidarse como una forma de régimen para una sociedad en transición al socialismo. La pelea contra los anti-defensistas condicionó la discusión sobre la URSS A lo anterior, se sumaron las peleas que Trotsky libró contra sectores anti-defensistas, lo cual condicionó algunos de sus textos sobre la naturaleza social de la URSS, pues, en el marco del debate, jerarquizó excesivamente las relaciones de propiedad como criterio de caracterización. Este énfasis es recurrente en los años treinta, lo cual coincide con el salto en calidad que experimentó el proceso de burocratización y, en consecuencia, cuando se hizo más patente la barbarie que contrajo la contrarrevolución estalinista. Por ejemplo, durante esa década se produjo la hambruna (1932-1933) derivada de la colectivización forzosa en el campo, la cual se cobró la vida millones de personas (las estimaciones varían entre cuatro y seis millones de muertes); también, tuvo lugar el “Gran Terror” (1936-1938), una campaña de purgas donde la burocracia exterminó a toda la “vieja guardia” bolchevique, los sectores de oposición y a un gran número de obreros y campesinos en razón de su nacionalidad o procedencia étnica (SCHÖGEL, 2014, 620 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) p. 120-140 y 725-778).8 A todo eso, se sumaron las traiciones del estalinismo en el extranjero, como sucedió en la guerra civil española (1936-1939), la cual fue precedida por la orientación ultraizquierdista en Alemania que, al bloquear el frente único con la socialdemocracia, dividió a la clase obrera y allanó el camino para el ascenso al poder del nazismo en 1933. En ese contexto, en los años treinta surgieron muchos grupos “comunistas disidentes” en Europa, los cuales rechazaron la tutela de Moscú, pues consideraron que el estalinismo traicionó los ideales de la revolución bolchevique (DURGAN, 2015, p. 16-19). Pero el anti-estalinismo no fue sinónimo de claridad política y estratégica; por lo general, esos grupos disidentes formularon especulaciones desequilibradas y peligrosas. Fue el caso de sectores izquierdistas que, a partir de los exacerbados rasgos autoritarios y sanguinarios del estalinismo, caracterizaron que la URSS mutó hacia una variante de capitalismo de Estado similar al fascismo; en función de ese análisis asumieron una postura anti-defensista, es decir, rechazaron defender a la Unión Soviética en caso de que se produjera una agresión militar por parte del imperialismo, escenario altamente probable ante la inminencia de la segunda guerra mundial.9 8 De acuerdo a este autor, entre 1937 y 1938 murieron dos millones de personas a consecuencia del “Gran terror”: unas 700 mil por fusilamientos y el resto por las pésimas condiciones en los campos de concentración y las prisiones. Porcentualmente, eso significó que, el 1,66% de la población soviética entre los 16 y 69 años fue arrestada, mientras que, un 0,72%, resultó asesinada; una verdadera masacre para un país que no estaba en guerra. 9 El izquierdismo –también denominado ultraizquierdismo- fue una tendencia dentro del movimiento revolucionario europeo –particularmente en Alemania- que tomó fuerza tras el triunfo de la revolución rusa en 1917. Broué la definió como una corriente que pretendía forzar el curso de los acontecimientos, rechazaba cualquier tipo de compromiso, pregonaba un maximalismo simplista y un utopismo impaciente. Lenin y Trotsky confrontaron las tendencias izquierdistas en el seno de la II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 621 Trotsky se opuso rotundamente a los anti-defensistas (una posición totalmente correcta), pero, al calor del debate, tendió en exceso hacia los criterios objetivos para caracterizar la formación social soviética bajo el estalinismo.33 Esto resultó evidente en el proyecto de tesis sobre la cuestión rusa de 1931, donde planteó como un “deber elemental e indiscutible de todo obrero revolucionario” la defensa de la URSS ante eventuales ataques imperialistas y de la contrarrevolución a lo interno del país (una orientación totalmente correcta), a la vez que cerró toda posibilidad para que las tendencias izquierdistas adhirieran a la Oposición de Izquierda Internacional. Además, para rebatir la caracterización de la URSS como una variante de capitalismo de Estado con rasgos fascistas, enfatizó en las relaciones de propiedad para dar cuenta de las especificidades del régimen social soviético: “El carácter social de un régimen social está determinado, sobre todo, por las relaciones de propiedad. La nacionalización de la tierra, de los medios de producción industrial y de intercambio, con el monopolio del comercio exterior en manos del estado, constituyen los fundamentos del orden social de la URSS” (TROTSKY, 1931). Es un enfoque unilateral, con el cual Trotsky soslayó la centralidad del factor político en la transición, es decir, la democracia soviética como mecanismo primordial para garantizar el ejercicio real del poder por parte de la clase obrera. Si bien esta definición no se corresponde con el conjunto de su elaboración teórica -principalmente con sus posiciones más acabadas en La revolución traicionada-, en III Internacional, las cuales impulsaron la estrategia de la ofensiva permanente que condujo a fuertes derrotas a los jóvenes partidos comunistas (BROUÉ, 2020, p. 293313). 622 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ese momento le resultó útil para diferenciarse de los izquierdistas y, de esta forma, darle un fundamento más sólido a su política defensista de la URSS. Junto con eso, para el momento en que Trotsky publicó ese documento (abril de 1931), todavía faltaba recorrido para que la contrarrevolución estalinista modificara el carácter social del Estado soviético, lo cual consideramos cristalizó para finales de esa década. Posteriormente, este debate se replicó en una escala mayor en las filas de la IV Internacional, pues una minoría dentro del Socialist Workers Party (SWP) de los Estados Unidos, se declaró anti-defensista y, aunque su postura partía de una denuncia correcta del carácter contrarrevolucionario de la firma del pacto RibbentropMólotov y la invasión a Polonia, erróneamente concluyeron que no había que defender a la URSS en caso de un eventual enfrentamiento militar con otras potencias imperialistas.10 Junto con esto, los anti-defensistas del SWP caracterizaron que la URSS dejó de ser un Estado obrero y se transformó en una variante de colectivismo burocrático. Esta tesis fue formulada originalmente por Bruno Rizzi, para quien el socialismo resultó un proyecto fallido –una especie de utopía emancipadora- porque la clase obrera fue incapaz de erigirse como clase dirigente y establecer un nuevo orden social, por lo cual el capitalismo sería sucedido por una nueva forma de dominación clasista y no por una sociedad sin explotación. Eso dio 10 El izquierdismo –también denominado ultraizquierdismo- fue una tendencia dentro del movimiento revolucionario europeo –particularmente en Alemania- que tomó fuerza tras el triunfo de la revolución rusa en 1917. Broué la definió como una corriente que pretendía forzar el curso de los acontecimientos, rechazaba cualquier tipo de compromiso, pregonaba un maximalismo simplista y un utopismo impaciente. Lenin y Trotsky confrontaron las tendencias izquierdistas en el seno de la III Internacional, las cuales impulsaron la estrategia de la ofensiva permanente que condujo a fuertes derrotas a los jóvenes partidos comunistas (BROUÉ, 2020, p. 293313). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 623 como resultado una perspectiva histórica profundamente escéptica, en la cual se combinaba la desmoralización ante la contrarrevolución estalinista con un fatalismo histórico donde era imposible y absurdo luchar por construir el socialismo. En el fondo, los anti-defensistas reflejaban la presión de la opinión pública burguesa imperialista en los Estados Unidos contra la revolución rusa, ante la cual capitularon y eso dio paso a una progresiva ruptura con el marxismo revolucionario. Lo anterior, desató un fuerte intercambio de Trotsky con los dirigentes de la fracción anti-defensista (Burham, Abern y Shachtman), a los cuales recriminó que relegaban a un segundo plano un hecho objetivo determinante: la URSS era una formación social no capitalista producto de una revolución social colosal y, aunque para ese entonces eran notables los efectos de la contrarrevolución estalinista, era un proceso en pleno desarrollo que aún no estaba consumado. Esos textos posteriormente se publicaron bajo el título de En defensa del marxismo, con el problema de que, en algunos pasajes de la obra, Trotsky nuevamente abordó el carácter social de la URSS a partir de las relaciones de propiedad y, por ende, desvinculó mucho la economía de la política: ¿Qué significa ´Estado obrero degenerado` en nuestro programa? (…) el sistema de la economía planeada, sobre los fundamentos de la propiedad estatal de los medios de producción, se ha conservado, y continúa siendo una conquista colosal de la humanidad (…) Por eso, basamos nuestra política primero y por encima de todo, sobre nuestro análisis de las formas de propiedad y de las relaciones de clase. Un análisis más detallado y concreto de los factores de la ´super estructura`, sólo es posible para nosotros sobre esa 624 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) base teórica (TROTSKY,1972, p. 104-106).11 Al darle primacía a la nacionalización de los medios de producción para caracterizar socialmente a la URSS, Trotsky dio la impresión de confundir estatización con Estado obrero a contramano de su abordaje en La revolución traicionada y en otros textos de los años treinta, donde reiteró que la expropiación del capitalismo - una medida anticapitalista progresiva y necesaria no daba paso a una transición automática hacia el socialismo. De hecho, en algunos pasajes relegó el análisis crítico de la planificación estalinista, la cual se limitó a calificar como “un sistema de economía planeada” y, más adelante, reiteró que, “en último análisis, a través de los intereses de la burocracia, en una forma retorcida, se reflejan los intereses del Estado obrero” (TROTSKY,1972, p. 110). Diferimos totalmente de esta afirmación, pues soslaya que la planificación de la URSS estuvo al servicio de la acumulación burocrática y, por tanto, se hizo sobre las espaldas de la clase obrera, bloqueando la transición al socialismo (un hecho que contradice el supuesto carácter “obrero” de dicho Estado). Por lo demás, en este punto Trotsky se contradijo con lo que planteó en otros artículos sobre la economía soviética, por ejemplo, cuando señaló que, el elemento central de verificación del plan, se realizaba a partir de los músculos y los nervios de los obreros y el estado de ánimo político de los campesinos (TROTSKY, 1931). Asimismo, en ciertos tramos Trotsky disoció en extremo 11 Los artículos compilados en esta obra fueron escritos entre setiembre de 1939 y agosto de 1940. Aunque el libro tiene elementos valiosos (como el análisis de la expropiación burocrática en Polonia), Trotsky se tornó muy esquemático en lo referente a la teoría del Estado, lo cual, a nuestro modo de ver, se comprende como parte de la fuerte polémica. El libro se publicó en 1942, por lo que Trotsky no pudo editar los textos previamente (recordemos que fue asesinado en agosto de 1940). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 625 la relación entre política y economía en el marco de un Estado obrero en transición al socialismo, relativizando el tipo de régimen correspondiente a la dictadura del proletariado, como si fuera un Estado burgués donde la economía se reproduce de forma automática y, por tanto, las formas del régimen político son más dúctiles. Como apuntamos previamente, en este punto Trotsky tuvo idas y venidas, aunque siempre fue muy balanceado a la hora de utilizar la noción de Estado obrero degenerado como un fenómeno altamente inestable y transitorio; pero, bajo la presión de la polémica con los antidefensistas del SWP, en varias cartas se inclinó excesivamente hacia los factores objetivos para defender el carácter obrero de la URSS, con el inconveniente de que fue asesinado poco después de escribirlas y, por tanto, no tuvo tiempo de corregir algunas extrapolaciones en sus afirmaciones antes de que fueran publicadas. Lastimosamente, los textos de En defensa del marxismo fueron muy difundidos dentro del movimiento trotskista –facilitado por su exposición esquemática y breve-, lo cual marcó mucho la visión del proceso de burocratización y del estalinismo en particular. IV. La contrarrevolución estalinista y el surgimiento del Estado Burocrático La categoría de Estado obrero degenerado fue superada por la experiencia histórica; la contrarrevolución estalinista experimentó un salto en calidad a finales de los años treinta, con lo cual socavó las bases sociales de la URSS y, por ende, las relaciones de propiedad creadas por la revolución fueron vaciadas de su contenido real, pues la clase obrera perdió el poder en el Estado. En contraposición, surgió un 626 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Estado burocrático que, aunque mantuvo formalmente la “propiedad socialista” y se apropió del prestigio de la revolución de Octubre, en realidad bloqueó la transición al socialismo e instauró una forma -altamente inestable y sin viabilidad histórica- de apropiación del plustrabajo social. En esta sección abordaremos los fundamentos teóricos e históricos de nuestra caracterización del estalinismo como una contrarrevolución político-social, para lo cual remitiremos a los brillantes análisis de Rakovsky y finalizaremos con una somera explicación de la instauración de un régimen de explotación del trabajo en la URSS. Es un tema sumamente complejo y con muchas aristas, por lo cual recomendamos el estudio de las diferentes elaboraciones de nuestra corriente al respecto. Rakovsky y la especificidad histórica de las sociedades de transición Por su dinámica transformadora, las fases de transición combinan elementos del viejo mundo en desintegración con la emergencia de una nueva formación social, la cual todavía no cristaliza en un modo de producción estable. En este paréntesis histórico es factible el surgimiento de híbridos político-sociales que, como tales, no calzan en los patrones de categorías homogéneas o acabadas, y, por eso mismo, no se deben abordar desde concepciones teóricas esquemáticas o suprahistóricas (Paredes, 2007, p. 187). En el caso de la transición al socialismo hay una inversión en el orden de los factores que altera el producto; lo político condiciona significativamente lo económico, por lo cual el Estado desempeña un papel protagónico en la configuración de la sociedad en ciernes. Esa fue la vía de análisis que, agudamente, planteó Rakovsky II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 627 para interpretar la burocratización en la URSS, estableciendo que, el factor decisivo para definir el carácter del Estado en la transición, era la clase que efectivamente ejercía el poder; un criterio donde las supuestas bases económico-sociales -es decir, la estatización de los medios de producción- ocupan un lugar subordinado a ese factor político, pues el énfasis se traslada al elemento consciente de la clase obrera en la conducción de los asuntos del Estado y la transición hacia el socialismo (Paredes, 2007, p. 188). En otras palabras: las relaciones formales de propiedad en un Estado obrero se sustancian en el ejercicio efectivo del poder por parte de la clase obrera, pues, de lo contrario, la “propiedad socialista” se transforma en una ficción jurídica, tal como sucedió con el estalinismo. Rakovsky tuvo la “ventaja” de no ser exiliado de la URSS -aunque estuvo en el destierro en pésimas condiciones por muchos años-; por eso mismo, pudo apreciar más de cerca que Trotsky el proceso de burocratización y sus implicaciones sobre el Estado (aunque tuvo menos visión en el tema internacional), formulando lo que denominó los “peligros profesionales del poder”: “No me refiero a las dificultades objetivas que emergen del conjunto de la situación histórica (el cerco capitalista exterior y la presión pequeño burguesa en el interior del país), sino a las que son propias de toda clase dirigente, a consecuencia de la toma y el ejercicio del poder mismo, de la capacidad o incapacidad de usarlo. “Usted comprende que estas dificultades continuarían existiendo, hasta cierto punto, aún si el país se compusiese exclusivamente de masas proletarias, y sólo hubiera Estados Obreros en el exterior. Estas dificultades podrían ser denominadas ´los peligros profesionales` del 628 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) poder. (…) Cuando una clase toma el poder, un sector de ella se convierte en el agente de este poder. Así surge la burocracia. En un Estado socialista, a cuyos miembros del partido dirigente les está prohibida la acumulación capitalista, esta diferenciación comienza por ser funcional y a poco andar se hace social. “(…) La unidad y la cohesión, que antes eran la consecuencia natural de la lucha de clases revolucionaria, no pueden conservarse ahora sino por una serie de medidas destinadas a preservar el equilibrio entre los diferentes grupos de dicha clase y del partido, subordinando esos grupos al fin fundamental” (RAKOVSKI, 1928). Nos disculpamos por la extensión de la cita, pero debido a su riqueza teórica-metodológica nos pareció necesario reproducirla lo más íntegramente posible. Si Trotsky hizo una acotación profunda cuando calificó al estalinismo como “algo más que una simple burocracia”, Rakovsky fue más allá al indagar sobre los peligros del poder en las filas de la clase victoriosa, particularmente en un momento de retroceso de la lucha de clases. Eso configuraba un escenario insólito en la historia; nunca la clase obrera retuvo el poder por tanto tiempo y, debido a eso, no era factible “evaluar en base a hechos los cambios de su estado de espíritu” cuando hay un retroceso de la acción política al mismo tiempo que es la clase dirigente de un Estado. Este enfoque novedoso sobre la sociedad soviética, le facilitó percibir la profunda transformación “en la anatomía y en la fisiología de la clase obrera”; señaló que, un militante de 1917, “habría tenido dificultad para reconocerse en la persona del militante de 1928”. Esto se explicaba en función de algo muy concreto: la diferenciación funcional entre un burócrata y un obrero ordinario, combinado con la ausencia de medidas de control democrático por las amplias masas II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 629 trabajadoras, potencialmente puede cristalizar en “diferenciaciones sociales semejantes a las que separan a las diversas capas de la sociedad”. “Pienso aquí, en la posición social de un comunista que tiene a su disposición un automóvil, un buen departamento, vacaciones regulares y recibe el salario máximo autorizado por el Partido; posición que difiere de la del comunista que trabaja en las minas de carbón y recibe un salario de 50 ó 60 rublos por mes. En lo que concierne a los obreros y a los empleados, usted sabe que ellos están divididos en dieciocho categorías diferentes” (RAKOVSKI, 1928). Para Rakovsky, la burocracia de los Soviets y del Partido constituyeron un nuevo orden y, por tanto, los escándalos de corrupción o excesos de algunos dirigentes no podían asumirse como casos aislados, sino como los rasgos de una nueva categoría social, la cual ameritaba un estudio específico. Asimismo, puntualizó que ninguna clase vino al mundo “en posesión del arte de gobernar”, pues era una destreza que se adquiría únicamente por la experiencia, lo cual representaba un enorme desafío para la clase obrera -sobre todo por su bajo nivel cultural con relación a la burguesía u otras clases que se tornaron dominantes-, pues podía dar paso a un desacople entre el ejercicio real del poder y las relaciones de propiedad instituidas legalmente: “Ninguna constitución soviética, aunque sea ideal, puede asegurar a la clase obrera el ejercicio sin obstáculos de su dictadura y de su control gubernamental, si el proletariado no sabe utilizar los derechos que le acuerda esa Constitución. La falta de armonía entre la capacidad política y la destreza administrativa de determinada clase y 630 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la forma jurídica-constitucional que ella establece para su uso después de conquistado el poder, es un hecho histórico comprobable en la evolución de todas las clases” (RAKOVSKI, 1928). Esas líneas sintetizan un abordaje muy concreto y dialéctico de la URSS; dan cuenta en el plano teórico de una formación social tan particular en el desarrollo histórico universal, la cual no se asemejaba a ninguna otra y, en consecuencia, no calzaba en los patrones clásicos de las sociedades asentadas sobre un modo de producción estable. Rakovsky tuvo una mirada más profunda del proceso de burocratización en la URSS; rápidamente comprendió las implicaciones sociales del giro ultraizquierdista de Stalin a finales de los años veinte, caracterizando que, la colectivización forzosa del campo y la industrialización acelerada, eran medidas que fortalecían el “ejército de burócratas” y no la transición al socialismo. En razón de eso, años más tarde concluyó que la URSS pasó de ser un “Estado proletario con deformaciones burocráticas” –como lo calificó Lenin- a un “Estado burocrático con supervivencias proletarias comunistas”, dentro del cual se formó “una gran clase de gobernantes”, cuyo punto de unión era controlar el Estado como una propiedad privada (KOWALEWSKI, 2020). A la postre, el abordaje planteando por Rakovsky resultó más apropiado para comprender la especificidad de la contrarrevolución estalinista y sus consecuencias sobre la estructura social de la URSS. Su análisis se caracterizó por visualizar la política y la economía como un todo en el marco de un Estado obrero en transición al socialismo. Una contrarrevolución político-social Para Trotsky, la burocracia era una casta socialmente II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 631 privilegiada, la cual asemejó a un “parásito merodeador” en la esfera de la distribución. Al ubicarla como un factor externo a la producción y la planificación económica, restringió su ámbito de acción al plano súper-estructural y, en consecuencia, concluyó que no modificaba las bases sociales de la URSS en tanto Estado obrero, pues, a pesar de las deformaciones introducidas por el estalinismo, persistían las relaciones de propiedad surgidas tras la revolución. De esta forma, disoció la infraestructura económica de la súper-estructura política, por lo cual asumió al estalinismo como un régimen burocrático al frente de un Estado obrero y, a partir de esa definición, planteó que, en la URSS, se requeriría de una revolución política para sacar del poder a la burocracia, pero manteniendo las relaciones de propiedad ya establecidas. Es decir, consideró que el estalinismo encarnó una contrarrevolución política, que, aunque contrajo implicaciones negativas en las condiciones de vida de las masas trabajadoras y campesinas, no modificó la estructura social del Estado. Desde nuestro punto de vista este enfoque es errado, pues asimila una formación social donde se expropió al capitalismo con el funcionamiento de una sociedad capitalista. En la última opera una reproducción automática de la economía y, debido a esto, es factible que el Estado burgués asuma formas políticas muy variadas -monarquía constitucional, democracia burguesa, dictadura militar, fascismo, bonapartismo, etc.- sin perder su carácter de clase, incluso cuando no está al frente del gobierno una facción burguesa. Por el contrario, en una sociedad donde se expropió a la burguesía con el fin de transitar hacia el socialismo, no tiene cabida la independencia relativa entre la base económica y las formas del 632 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Estado -al menos como se expresa en el capitalismo-, pues este último es determinante para estructurar las nuevas relaciones de producción y, a causa de eso, es indispensable que la clase obrera ejerza el poder de forma efectiva para garantizar una planificación al servicio de la transición socialista. Por tanto, la democracia obrera no es una simple variante de régimen dentro de un Estado obrero, sino que, por el contrario, es un pilar fundamental para dotarlo de ese contenido social. En vista de lo anterior, sostenemos que el estalinismo representó una contrarrevolución político-social, cuyo resultado fue la expropiación del poder de la clase obrera en la URSS, de lo cual resultó un Estado burocrático que manejó como su propiedad privada, tal como puntualizó Rakovsky. Eso explica el culto al estatismo por parte de la burocracia soviética, que, a criterio de Robert Tucker –connotado biógrafo de Stalin-, fue uno de sus principales rasgos contrarrevolucionarios, pues daba cuentas de la importancia del aparato represivo para imponer su “revolución desde arriba”. Asimismo, Moshe Lewin –el gran historiador social de la URSS- caracterizó al estatismo estalinista como una ruptura con el leninismo, pues implicó renunciar a la transición hacia el socialismo -y la disolución del Estado- como la comprendían Marx, Engels y Lenin; en adelante, el objetivo fue en sentido contrario: instaurar un Estado dictatorial para preservar las divisiones sociales y privilegios creados durante la fase de industrialización forzosa (KOWALEWSKI, 2020). Basta con revisar algunos datos económicos de la época para constatar eso que señalamos. Por ejemplo, la tasa de acumulación se hizo a expensas de las condiciones de vida de la clase obrera, pues el plusvalor social se obtuvo a partir de la extensión cuantitativa de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 633 la fuerza de trabajo y la reducción abrupta de los salarios reales. Así, mientras en 1925 el salario medio real era de 48,25 rublos, para 1937 apenas era de 28,25 rublos (un 63,6% del salario medio anterior a la Primera Guerra Mundial). En consecuencia, las condiciones de vida de las familias obreras decayeron significativamente, dado que destinaban el grueso de sus ingresos en comida: el gasto en alimentos básicos de una familia de cuatro personas, pasó de representar el 51% del salario en 1929, al 87% en 1937 (KOWALEWSKI, 2020). Lo anterior, también explica el pleno empleo en la URSS –y los países del bloque soviético-, lo cual no fue consecuencia de ningún “principio socialista”; por el contrario, se originó en la necesidad de maximizar el plusvalor social, que, a su vez, estaba bajo control directo de la burocracia y era la fuente de sus privilegios, por lo cual un trabajador o trabajadora desempleada era un desperdicio para los intereses de la burocracia. ¿Cómo se explica eso? La gestión burocrática de la economía se sustentó en la explotación absoluta del trabajo, cuya finalidad fue acumular el excedente del trabajo a partir de métodos coercitivos como el despotismo de fábrica, estajanovismo, aumento de la jornada de trabajo, entre otros. Eso bastó para que la producción colectiva generara un producto superior al total de la masa salarial necesaria para la reproducción de los trabajadores y trabajadoras, pero bloqueó el desarrollo de la innovación técnica para potenciar la explotación relativa elevando la productividad del trabajo, algo imposible de alcanzar en ausencia de un control democrático de la clase obrera sobre la gestión económica (KOWALEWSKI, 2020).12 12 A la postre, eso conllevó al estancamiento económico de la URSS, cuya estructura productiva se tornó conservadora, carente de innovaciones y plagada de irracionalidades. Kowalewski detalla que, el verdadero “talón de Aquiles” de la economía 634 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Aunado a esto, la burocracia soviética “planificó” la economía acorde a sus intereses como capa social privilegiada y, en consecuencia, a costa del nivel de vida de la clase obrera, priorizando de forma exagerada la industria pesada (sector I) en detrimento de la producción de bienes de consumo y la agricultura (sector II), indispensables para elevar las condiciones materiales de existencia de las masas obreras y campesinas. Este fue un rasgo constante, lo cual se verifica con la creciente desproporción entre los sectores I y II a través de los años: en 1928, el sector I representaba el 39,5% de la producción y el II el 60,5%; en 1940, el I, 61,2% y el II, 38,8%; en 1965, el I, 74,1% y el II 25,9%, y en 1973, el I, 73,7% y el II, 26,3% (SÁENZ, 2011). Así, la burocracia estalinista orientó una planificación cuyo eje fue acumular en tanto que Estado, fortaleciendo la industria pesada, los medios de producción y el ejército, pero lo hizo a costa de sacrificar la producción – en cantidad y calidad – de alimentos y bienes de consumo básicos. Por ese motivo, la escasez de productos de consumo básico en la URSS, no fue solamente una consecuencia del bajo desarrollo de las fuerzas productivas; también fue una derivación de la planificación de tipo soviética, fue la incapacidad de garantizar los suministros para el funcionamiento de las empresas en el marco del plan. Eso devino en una “arritmia” del proceso laboral; en algunos meses se producía menos –entre un 15% o 25%-, mientras que en otros se intensificaba el ritmo de trabajo de forma brutal –suprimiendo vacaciones o días libres, extendiendo la jornada de trabajo- con tal de cumplir con las metas establecidas por el gobierno desde arriba y sin conexión con las capacidades reales de producción de las empresas. Por este motivo, gran parte de los productos elaborados en los meses de trabajo intenso eran defectuosos por la falta de control de calidad, algo muy sensible cuando se trataba de herramientas y otros insumos para otras industrias. Ante esta situación, la dirección de cada empresa procuraba tener más trabajadores en su planilla, aunque una gran parte no tuviera tareas asignadas por varios meses, pero que eran útiles cuando tocaba apresurarse para cumplir con las metas, o bien, para destinar a un taller interno para reparar las piezas defectuosas enviadas por otras empresas: para 1977, en Alemania Oriental, el 17% de los trabajadores industriales se dedicaban a las reparaciones de piezas defectuosas. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 635 burocrática de espaldas a los intereses reales de la clase obrera. En suma, el estalinismo no fue una contrarrevolución circunscrita al régimen político, tal como la apreció Trotsky en su momento (aunque insistiera en su carácter regresivo y el peligro que representaba para las conquistas revolucionarias). La “revolución desde arriba” de Stalin fue una contrarrevolución político-social hacia abajo; representó una disminución en las raciones de alimentos y un aumento en la explotación absoluta de la clase obrera, dando como resultado una dramática precarización en sus condiciones de vida. Esto se combinó con otras formas de explotación, como la que experimentó el campesinado en los Koljoses o los prisioneros en los campos de trabajo forzado. Fue un proceso paulatino que, además, se revistió con la formalidad institucional creada por la revolución, haciendo sumamente complejo percibir sus profundas implicaciones en tiempo real; por eso, era imposible que Trotsky arribara a una definición diferente a la de Estado obrero deformado en su momento. La distancia histórica nos permite una mejor panorámica, de lo cual concluimos que, el proceso de burocratización, liquidó el carácter obrero de la URSS y, en su lugar, instauró un Estado en función de la acumulación burocrática, con el consecuente bloqueo de la transición al socialismo proyectada originalmente por los bolcheviques en la revolución. La contrarrevolución estalinista no devino inmediatamente en la restauración capitalista –aunque a la postre allanó el camino para esoy, si bien mantuvo formalmente las relaciones de propiedad surgidas en la revolución, en realidad las vació de contenido al expropiar a la clase obrera del poder efectivo sobre el Estado, con lo cual controló la riqueza nacional como si fuera su propiedad privada. 636 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ¿Se puede calificar al estalinismo como una contrarrevolución político-social si no produjo inmediatamente la restauración del capitalismo? Por supuesto que sí. La esencia de la contrarrevolución es instaurar un orden contrario al surgido con la revolución, lo cual, generalmente, da paso a algo nuevo e inédito. No son procesos simétricos, es decir, una contrarrevolución no es una revolución en sentido contrario (BENSAID, 1997). Por eso, es equivocado restringir la consumación de la contrarrevolución a la restauración burguesa; su punto central consistió en destruir la acción colectiva de la clase obrera soviética y despojarla de sus atributos de poder. Para lograr eso, el estalinismo libró una guerra civil contrarrevolucionaria contra los sectores explotados y oprimidos, por medio de la cual impuso la colectivización forzosa en el campo con un elevadísimo costo en vidas humanas –tanto por la represión directa, así como por la consecuente hambruna que desató esa medida burocrática-, masacró a dos millones de personas en el “Gran Terror” –incluida la vanguardia de la Oposición de Izquierda y la vieja guardia bolchevique-, precarizó las condiciones de vida de la clase obrera con la súper explotación para imponer la industrialización acelerada e instauró un clima de persecución policial en la sociedad soviética (SÁENZ, 2020). Al mismo tiempo, la burocracia soviética se transformó en una “organizadora de derrotas” para la clase obrera a nivel internacional, lo cual facilitó su estabilización como capa dirigente en la URSS, pues profundizó el aislamiento del proletariado soviético. Así, la contrarrevolución burocrática se asentó sobre una doble derrota de la clase obrera: por un lado, atomizó al proletariado soviético por varias vías, como la represión física, su reconfiguración interna II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 637 con la incorporación masiva de campesinos sin tradiciones de lucha colectiva, debilitó su cohesión interna por medio del estajanovismo y el trabajo de choque, etc.; por otro lado, se fortaleció con los fracasos del movimiento obrero internacional, en particular con la derrota histórica del proletariado alemán –el más importante del mundo en ese momento- tras el ascenso de Hitler al poder en 1933, en gran medida por la desastrosa orientación de sabotear el frente único antifascista entre las bases obreras comunistas y socialdemócratas. V. Conclusión A lo largo de La revolución traicionada, Trotsky analizó a la URSS como una formación social sin precedentes y, debido a esto, rehusó hacer definiciones sociológicas cerradas; por el contrario, insistió en que su naturaleza social estaba sujeta a los desarrollos de la lucha de clases. Las conclusiones que presenta son tentativas, algo comprensible tratándose de un fenómeno en extremo complejo como fue la burocratización del primer Estado obrero de la historia, ante lo cual el andamiaje teórico del marxismo revolucionario no contaba con herramientas de interpretación hasta ese momento. Por eso mismo, el principal valor de esta obra reside en su riqueza teórico-metodológica, donde Trotsky expuso lo mejor de su razonamiento dialéctico para interpretar al estalinismo por fuera de todo esquematismo teórico. A pesar de eso, incurrió en un error cuando ubicó a la burocracia únicamente en la esfera de la distribución, asumiéndola como un factor externo a la producción y planificación económica. Esto devino en un “punto ciego” a la hora de sopesar las transformaciones sociales 638 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) en la URSS y, en consecuencia, tendió a priorizar las relaciones de propiedad creadas por la revolución a la hora de caracterizarla como un Estado obrero deformado. Dicho enfoque se profundizó en el debate contra los anti-defensistas, particularmente a lo interno de la IV Internacional, lo cual tensó la pelea aún más y, en ese contexto, Trotsky “dobló el palo” hacia los criterios objetivos. Pero, insistimos, en su caso fue un error relativo, considerando que se trató de una definición abierta y en tiempo real de un fenómeno inédito, por lo cual fue muy precavido para no dar por muerta una revolución social de dimensiones históricas; además, dicha caracterización la supeditó a lo que aconteciera en la segunda guerra mundial y el inevitable colapso del estalinismo. Lastimosamente, su asesinato a manos de un agente estalinista en 1940, impidió que revisara sus pronósticos y análisis sobre el proceso de burocratización y sus repercusiones en la naturaleza social de la URSS. Muy diferente fue el accionar de la mayoría de las corrientes trotskistas que, tras la muerte de Trotsky, replicaron doctrinariamente sus definiciones, caracterizando a la URSS como un “Estado obrero degenerado” hasta que se produjo su desplome en 1991, y, peor aún, extendieron abusivamente esa caracterización a los Estados del Glacis surgidos en la segunda posguerra tras la ocupación estalinista. Así, la formulación dialéctica desarrollada por Trotsky para comprender la especificidad de la URSS, se convirtió en una categoría lógica para etiquetar todos los casos donde se expropió al capitalismo en la segunda mitad del siglo XX, aunque la clase obrera estuviera ausente como sujeto social de esos procesos. A causa de esto, dentro del movimiento trotskista arraigó con fuerza el objetivismo; se dejó de lado la centralidad de la clase obrera II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 639 a la hora de interpretar el carácter social de las revoluciones y, en consecuencia, la estatización de los medios de producción pasó a ser la condición determinante para definir a un Estado como “obrero”, aunque la clase trabajadora careciera por completo del poder efectivo. Desde nuestra corriente nos decantamos en un sentido contrario, y, aunque reivindicamos el legado teórico-político de Trotsky, no por eso renunciamos a pensar el mundo por nuestros propios medios (apoyándonos en la enorme riqueza teórica del marxismo revolucionario). La longevidad y extensión del modelo estalinista a otros países del orbe, evidenció la necesidad de revisar y actualizar los análisis de Trotsky sobre la burocratización de la URSS, en particular su categoría de “Estado obrero degenerado”, la cual fue superada por la experiencia histórica. Producto de esa revisión redescubrimos los brillantes escritos de Rakovsky, el cual esbozó una caracterización más atinada sobre las repercusiones de la burocratización en la estructura socio política de la URSS, pues capturó con precisión la especificidad del período de transición en 1917 tras la expropiación de la burguesía, donde, a diferencia de lo que acontecía en las sociedades capitalistas, el Estado desempeñaba un papel determinante para estructurar las nuevas relaciones de producción. Por este motivo, caracterizamos que el estalinismo expropió a la clase obrera del poder efectivo en la URSS y, en contraposición, erigió un Estado burocrático, el cual se asentó sobre relaciones de producción inestables y sin viabilidad histórica en la larga duración, donde la clase trabajadora fue sometida a nuevas formas de explotación en función de la acumulación burocrática y no en la perspectiva de la transición al socialismo. Finalmente, la URSS colapsó –y con ella los 640 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Estados del Glacis-, dando paso a la restauración capitalista. El balance global del estalinismo no es un ejercicio “académico” o abstracto; por el contrario, es una tarea fundamental para el relanzamiento del socialismo revolucionario en el siglo XXI. Desde una perspectiva estratégica, es necesario en aras de preparar teórica y políticamente a las nuevas generaciones militantes de cara a las revoluciones del futuro, las cuales no estarán exentas de presiones hacia la burocratización (o de los “peligros profesionales del poder” en palabras de Rakovsky). También, es vital para superar las terribles deformaciones que contrajo la práctica estalinista dentro de la izquierda y el movimiento obrero, las cuales no desaparecieron del todo tras la caída del muro de Berlín. Por último, es indispensable para comprender el daño duradero que contrajo la contrarrevolución estalinista en la ex URSS y los países del Este europeo, sin lo cual es difícil ubicarse políticamente en esa región del mundo, una de las más importantes desde el punto de vista geopolítico, pues constituye una zona de encuentro entre Europa y Asia. Referencias bibliográficas ARTAVIA, Víctor. Democracias populares y resistencia obrera: una aproximación histórica a los Estados burocráticos del Glacis (19451956). 2021. Disponible en https://izquierdaweb.com/la-forja-de-lasrevoluciones-antiburocraticas/. Consultado el: 05 de enero de 2022. ___________. A propósito de «Terror y utopía»: Estalinismo, planificación burocrática y terror. Disponible en: https://izquierdaweb. com/a-proposito-de-terror-y-utopia-estalinismo-planificacionburocratica-y-terror/. 2021. Consultado el: 05 de enero de 2022. ARTOUS, Antoine. Trotsky y el análisis de la URSS. 2017. 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Os militantes e líderes da Internacional foram vítimas de atentados e execuções que se contaram em centenas, tanto pelas mãos dos nazistas e imperialistas, quanto das forças de repressão dos stalinistas. Muitos dos seus dirigentes estiveram entre tais vítimas: o francês Marcel Hic e o italiano Pietro Tresso foram presos e assassinados pela Gestapo na França; Leon Lesoil e Abraham Leon tiveram o mesmo fim na Bélgica; o alemão Walter Held foi capturado pela polícia soviética na fronteira russa quando buscava escapar da ocupação nazista da Noruega; o grego Pandelis Pouliopoulos foi morto pelas forças de ocupação italianas em 1943; Tạ Thu Thâu, líder dos trotskistas na Indochina (no atual Vietnã), foi morto durante um enfrentamento entre as forças do Viet Minh e as tropas francesas em 1945. Por fim e não menos importante, Leon Trotski foi assassinado por golpes de uma picareta em seu exílio no México por um agente stalinista que se 1 Historiador, professor e militante do Reagrupamento Revolucionário (RR4i. org). Email para contato: icarorossignoli@gmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 645 infiltrara como simpatizante do movimento, em agosto de 1940. Para tornar a situação mais difícil, várias das previsões de Trotski não se concretizaram. O stalinismo não apenas sobreviveu, como também expandiu seus domínios sem que houvesse uma revolução política dos trabalhadores contra a burocracia. Os partidos stalinistas saíram da guerra com uma influência ampliada, tornando-se, em muitos países, a principal corrente da classe trabalhadora. Trotski também acreditava numa decadência mais ou menos rápida de todos os regimes democrático-burgueses em regimes totalitários. A Quarta Internacional não previra uma reação democrática capitaneada pelos EUA ao fim da guerra, nem a relativa estabilidade das democracias burguesas nos centros imperialistas. Todas essas questões viriam a desorientar o movimento trotskista após a guerra, desprovido de lideranças experientes. A maior seção da Quarta Internacional era o SWP nos EUA, única entre as seções principais que não foi severamente vitimada. O SWP manteve a direção internacional funcionando, chefiada pelo ex-secretário pessoal de Trotski, o francês Jean van Heijenoort, mas sua atividade foi prejudicada pela falta de contato com as demais seções. A Quarta Internacional, na prática, deixou de existir como efetivo organismo internacional durante a Segunda Guerra, havendo uma reconstrução entre os anos 1944 a 1948, com um novo corpo dirigente. Quero aqui falar muito brevemente de 3 debates ocorridos nesse momento de reconstrução e que foram fundamentais para o organismo que se consolidou na primeira década do pós-guerra, e que levou ao rompimento e posterior destruição da Quarta Internacional nos anos 1950. 646 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 1) O debate sobre a ocupação nazista e a Resistência A ocupação nazista de grande parte da Europa causou confusão e divisão entre grupos trotskistas. Um exemplo foi a seção alemã (IKD), emigrados nos EUA, que em 1941 tiraram conclusões que revisavam as posições trotskistas e proclamavam a necessidade de uma nova época de revoluções democrático-burguesas, para libertar os povos europeus do exército alemão, antes de qualquer perspectiva socialista. Essas posições foram combatidas pelos partidos e líderes da Quarta Internacional. Já a seção francesa se dividiu diante da ocupação nazista: o Partido Operário Internacionalista (POI) de Marcel Hic defendia a derrota da ocupação pelas forças da Resistência, por vezes apregoando a necessidade de uma “revolução nacional”, com muitas demandas democráticas em primeiro plano. Alguns grupos romperam com tal perspectiva do POI, especialmente o que viria a formar o Comitê Comunista Internacionalista (CCI), liderado por Rodolphe Prager e Jacques Privas. O CCI priorizou as atividades sindicais no período da ocupação, e criticava a orientação do POI como “traição socialpatriótica”, ao afirmar que ele falhava em se diferenciar da ala da burguesia francesa de De Gaulle, que dirigia a Resistência. Após um encontro clandestino entre o POI e a seção belga em janeiro de 1942, formou-se o Secretariado Europeu Provisório. A crítica de “social-patriotismo” ao POI/Secretariado de Marcel Hic não deve ser absolutizada, apesar de seus desvios. O Secretariado Europeu manteve a defesa da URSS durante a invasão alemã, e tinha uma perspectiva internacionalista de solidariedade com os soldados e trabalhadores alemães. O Secretariado chegou a construir uma célula clandestina II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 647 no exército alemão, e publicou um órgão em alemão, “Trabalhador e Soldado” com a linha de unidade de classe e confraternização revolucionária. Tal operação heroica acabou tragicamente levando à prisão e fuzilamento de 65 membros e simpatizantes da Quarta Internacional em Brest e Paris. O próprio Marcel Hic foi capturado, torturado e morreria num campo de concentração nazista em dezembro de 1944. O militante de origem grega radicado na França, Michel Raptis (Pablo) tornou-se o secretário europeu. Ele articulou a entrada dos outros grupos franceses separados do POI nesse órgão. Isso serviu como trampolim para a efetiva reunificação da seção francesa da Quarta Internacional numa conferência no ano seguinte, 1944. A conferência fez um duro balanço da atuação dos dois grupos franceses, que reconhecia terem sofrido poderosas pressões e dificuldades, mas nem por isso desculpava seus desvios. Criticava o POI de um desvio socialpatriota, e o CCI era criticado por sectarismo com relação à questão da Resistência. Essa autocrítica dupla foi a base da reunificação, ao formarem o Partido Comunista Internacionalista (PCI). Acredito que era imprescindível aos trotskistas terem participado ativamente dos movimentos de Resistência antifascistas, buscando polarizar no seu interior uma ala anticapitalista, antinacionalista e revolucionária. Se o POI e o Secretariado de Marcel Hic tiveram desvios políticos, foi ainda mais problemática a orientação estritamente sindical do CCI. Na França e na Itália, os movimentos de guerrilhas (partisans) foram traídos e desarmados por suas direções stalinistas, que pregavam a confiança nos governos provisórios capitalistas (“democráticos”) vitoriosos. Na Grécia, onde o movimento guerrilheiro apresentou significativa resistência a isso e à formação de 648 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) um governo que incluía antigos colaboradores nazistas, ocorreu uma guerra civil, na qual os guerrilheiros foram inteiramente abandonados pela URSS dirigida por Stálin, sob um silêncio vergonhoso, enquanto eram massacrados pelas Forças Armadas britânicas. A consolidação prévia de uma firme direção proletária marxista (trotskista) no interior desses movimentos poderia ter impedido tais traições quando elas se manifestaram. 2) O debate sobre a situação do capitalismo no pós-guerra A Quarta Internacional, com algumas exceções importantes, apostou na continuidade da crise do capital após a II Guerra. Via uma nova crise capitalista no horizonte, novas guerras imperialistas em curto prazo, e não um período de relativo crescimento econômico e relativa estabilidade nos centros do mundo capitalista. A convenção de 1946 do SWP, por exemplo, aprovou uma resolução chamada “A Iminente Revolução Americana”. Acreditavam que na Europa, o imperialismo americano agiria de forma tão predatória e ditatorial quanto fora a ocupação nazista: não haveria reconstrução. O mundo caminharia de forma inabalada para o fascismo caso isso não fosse impedido pela revolução, em questão de poucos anos, se não de meses. Regimes de aparência democrática só poderiam ter caráter episódico. Isso mostrou da Quarta Internacional certa incapacidade de analisar a nova realidade e se reorientar, sem com isso lançar fora uma perspectiva revolucionária. O SWP tinha medo de abandonar sua ortodoxia. Era preciso preparar-se para um período de força do stalinismo e da socialdemocracia no mundo capitalista desenvolvido. O trotskismo seguia marginal. E isso explica as tendências principais II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 649 que emergiram do trotskismo no período seguinte – ortodoxia/ sectarismo de um lado, negando elementos da realidade; do outro, a tendência a adaptar-se de forma pouco crítica a novos fenômenos da luta de classes. Em 1944, surgiu uma oposição à perspectiva ortodoxa no SWP, liderada por Félix Morrow e Albert Goldman, importantes figuras do Comitê Nacional do partido. Essa tendência fez críticas muito corretas sobre a realidade pós-guerra na Europa, prevendo muito melhor que a maioria da Quarta Internacional a relativa estabilização e a natureza dos regimes democrático-burgueses do pós-guerra, apoiados pela socialdemocracia e o stalinismo. Porém, é bom que se diga, GoldmanMorrow enfatizavam fortemente a adoção de um programa democrático (Assembleia Constituinte, república), embora afirmando que esse programa era “democrático e transitório”. Além disso, convergiram com Max Shachtman sobre a caracterização de que a URSS não era mais um Estado operário, chegando a afirmar maior acordo com aquele do que com o próprio partido. A “tendência Goldman-Morrow” contou com o apoio do secretário da Quarta Internacional, Jean van Heijenoort. Quando a tendência foi expulsa, acusada de colaboração com o Workers’ Party de Shachtman, van Heijenoort abdicou do cargo de secretário. Apesar dos problemas, as posições da Quarta Internacional desse período afirmavam o papel crucial do partido marxista revolucionário para os trotskistas. A imprecisão e a falta de realismo de suas formulações, que exageravam o otimismo, diminuíam o peso do stalinismo e mergulhavam na crença da crise revolucionária iminente não os levavam a nenhum tipo de “substitucionismo” do partido marxista ou do proletariado por outras forças, algo que se tornaria 650 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) depois uma marca da Quarta Internacional a partir dos anos 1950. Cabe destacar a oposição dos delegados da maioria da seção britânica (RCP) de Jock Haston e Ted Grant, a essas conclusões catastrofistas errôneas. Eles alertavam que estava havendo uma recuperação econômica na Europa, financiada pelos EUA e com perspectivas de um crescimento, ainda que isso não resolvesse as crises cíclicas do capital. Afirmavam que a onda revolucionária do fim da guerra havia passado, traída pela socialdemocracia e pelo stalinismo, e que a reconstrução se encaminhava por uma contrarrevolução democrático-burguesa. Nisso, seguiam a mesma noção de GoldmanMorrow, embora não tivessem as mesmas conclusões que estes nem sobre demandas democráticas e nem sobre a URSS. Criticavam também a ideia de iminência de uma III Guerra Mundial, pois afirmavam que o imperialismo ainda estava fragilizado e precisaria se recuperar antes de disparar o primeiro tiro. O RCP inglês apresentou tais posições na conferência de 1946 e no Congresso de 1948, mas elas foram rejeitadas pela maioria. Nessa questão, a orientação do RCP inglês foi a mais acertada, ao combinar uma estimativa mais realista da situação da luta de classes internacional e uma firme intervenção no movimento operário com a manutenção de uma perspectiva revolucionária. Ou seja, apresentou uma compreensão da realidade melhor que a da maioria da Quarta Internacional (o SI de Pablo e o SWP) sem com isso rejeitar o programa transitório, e sem apoiar a aprovação de Constituições democráticas na Europa e um programa com esse foco (como fez a tendência GoldmanMorrow). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 651 3) O debate sobre o Leste Europeu em 1946-48 Uma das grandes questões no pós-guerra foi a dos países ocupados pela URSS no Leste europeu, na chamada buffer zone, que traduzimos como “zona tampão”, constituído por Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia, Romênia, Iugoslávia e Albânia. O principal responsável pelas formulações da Quarta Internacional sobre esse tema foi o belga Ernest Mandel. Essas formulações tinham falta de clareza e muitos vaivéns. Embora Mandel retome o precedente da questão em Trotski -- a ocupação da Polônia, dos países bálticos e parte da Finlândia em 1940 --, o cenário de expropriação da burguesia e transformações sociais conduzidas pelo alto, de forma burocrática, é largamente desprezado. Havia a denúncia do caráter predatório da URSS nesses países. Mas, apesar de serem reconhecidas algumas reformas, a ocupação era caracterizada simplesmente como “reacionária”. Mandel afirmava que a assimilação estrutural à URSS não ocorrera na zona tampão, e que somente assim poderia haver mudança das relações de propriedade. Como isso não ocorrera e tampouco houvera uma autêntica revolução, Mandel afirmava (em 1946-48) o caráter capitalista da economia desses países. A Quarta Internacional não foi capaz de identificar nesse período o que depois reconheceria como novos Estados operários burocraticamente deformados. A confusão dos trotskistas era não perceber que o poder real estava nas mãos das tropas soviéticas e de seus partidos locais de apoio. Prova disso foi que na virada de 1947 para 1948, conforme o clima da guerra fria aumentava, o que restava da burguesia foi expropriado, e os partidos políticos capitalistas retirados 652 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de cena e proibidos. Um marco em tal transformação foi o “golpe de Praga”, em fevereiro de 1948, que removeu o governo de frente-ampla mantido pelos soviéticos, e instalou um novo com oito comissários, todos pertencentes ao PC da Tchecoslováquia. Trotski afirmava que, apesar de desempenhar, em última instância, um papel contrarrevolucionário no cenário mundial, o stalinismo tinha um caráter dual ao também sustentar-se nas bases de uma economia coletivizada, fator que levava às transformações que pudera realizar nos primeiros momentos da guerra na Polônia e nos países bálticos. Trotski tinha previsto uma expropriação da burguesia nesses países sem, contudo, apoiar as práticas dos stalinistas como caminho revolucionário a ser seguido, e mantendo a crítica à sua natureza burocrática. O II Congresso de 1948 da Quarta Internacional, por outro lado, afirmou que o stalinismo só poderia cumprir um papel contrarrevolucionário. Quanto ao Leste Europeu, os países seguiam sendo considerados burgueses e suas economias, capitalistas. Os documentos afirmavam que só uma revolução de massas autêntica poderia mudar isso, negando a possibilidade reconhecida por Trotski, e mesmo por Mandel (ainda que de passagem), de uma via burocrático-militar. Sobre a URSS, mantiveram a posição de que era um Estado operário burocraticamente degenerado, criticando as teses do “coletivismo burocrático” (defendida por Shachtman) e do “capitalismo de Estado” (defendida por Tony Cliff e outros). O Leste europeu, porém, foi tratado de outra forma. Nessa questão esteve outra divergência do RCP inglês. Ao contrário da maioria da Quarta Internacional, os ingleses reconheciam que havia ocorrido ali uma transformação que tornara os países da zona II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 653 tampão equivalentes à URSS. O RCP via que as relações capitalistas haviam sido eliminadas como resultado da dominação russa e da natureza de Estado operário soviético. Consequentemente, as tarefas dos trotskistas para esses países passavam a ser similares às para a URSS, especialmente às nas nacionalidades não russas, que sofriam com uma opressão burocrática e nacional. A maioria do RCP reivindicava, portanto, a defesa desses Estados em caso de guerra contra países capitalistas. Porém, delimitavam claramente que a forma como se dera a transição não era um modelo de derrubada do capitalismo ao qual se deveria esperar repetir, pois fora um fruto da extrema debilidade das burguesias naqueles países após a derrota do nazifascismo. Além disso, incluíam a distinção fundamental da burocratização, pois tais Estados haviam sido gestados à imagem e semelhança da URSS stalinista, de forma que para abrir caminho para o desenvolvimento socialista era necessário lutar pela derrubada revolucionária da burocracia (revolução política); e para isso eram necessários partidos revolucionários trotskistas. Mais uma vez, as emendas da maioria do RCP (Ted Grant, Jock Haston, Bill Hunter) foram rechaçadas. A mudança da posição da direção da Quarta Internacional sobre a questão do Leste europeu só se deu em 1950 e só foi consolidada no III Congresso Mundial de 1951. Mas as condições nas quais ocorreu foram diferentes do contexto de ortodoxia sobre o papel do partido, típica dos anos 1946-48. No início dos anos 1950, a Quarta Internacional aceitou finalmente os vários elementos da realidade circundante. Mas fez isso adotando um impressionismo e um revisionismo sobre as suas tarefas, secundarizando o papel do partido revolucionário em resolver a crise de direção, ao crer que o stalinismo poderia passar a desempenhar 654 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) papel revolucionário. Esse revisionismo (pablismo) teve os primeiros sintomas ainda no ano de 1948, quando a Quarta Internacional teve seu flerte com o regime burocrático de Tito, na Iugoslávia, após o rompimento deste com a União Soviética. Mas esse é outro capítulo da história do trotskismo. Deixo aqui, por fim, algumas indicações de leitura. Referências bibliográficas BORNSTEIN, Sam e RICHARDSON, Al. 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Em defesa do marxismo [compilação]. São Paulo: Editora Sundermann, 2011. Especialmente os textos “A URSS na Guerra” e “Novamente e uma vez mais a defesa da URSS”. 656 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Un pasaje por tres intentos de construir la IV Internacional (CORCI, TCI y CRCI) - una mirada desde Venezuela José Capitán1 1) Esta exposición tiene como motivo realzar la importancia de la organización internacional de los trabajadores, la IV Internacional, fundada hace 85 años y con una vida muy corta, fueron asesinados y destruidos sus miembros principales y organizaciones durante la Segunda Guerra Mundial, luego muchos y muy variados intentos por restituirla, algunos falsos porque abandonaron programáticamente la lucha por la dictadura proletaria, le llaman también proclamatorios, pero lo cierto, todos infructuosos, entre ellos están el CORCI, 1971-2 hasta 78, la TCI desde 1979 y unos pocos años más, y luego la CRCI 20042019 (¿?) No es suficiente reclamar su importancia, sino ser más preciso, la internacional aparte de ser necesaria es algo indispensable, Hoy, no para mañana. Muchos escriben muy bonito en la fecha aniversaria de su fundación, inclusive dicen que la labor más importante de Trotsky fue la creación de la IV I, sustentada en las tesis de la revolución permanente y el programa de transición, pero no pasan de ahí. 2) Hay que ratificar el internacionalismo, lo cual no basta con meras declaraciones y escritos descriptivos sino con una actividad militante y organizativa en aras de concretarla con hechos, para irla construyendo. Por ejemplo, Venezuela en el 1989 tras una rebelión popular logró hacer retroceder la receta del FMI, costó cientos de muertos, 1 Militante de Opción Obrera. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 657 o quizás unos cuantos miles y los perpetradores de estos asesinatos quedaron impunes, inclusive luego de la llegada al gobierno de Chávez. Luego a Venezuela se le enfrentó una entente a través de la OEA, el grupo de Lima y el grupo internacional de Contacto en 2017. Antes, en el 2015 se realizó un decreto emitido por Obama (13692) declarando a Venezuela como una amenaza a la seguridad de los EEUU, el cual sigue vigente y ausente el internacionalismo militante. 3) En 1972 nace el CORCI, tras esa iniciativa, la OCI (Francia) proyecta impulsar una organización en Venezuela y se funda La Chispa, a partir de la iniciativa de tres venezolanos que regresaron al país luego de una mediana estadía en Europa, dos de ellos desde Francia, y uno desde Italia. Mediante la táctica del Entrismo La Chispa se organiza dentro del MIR, que recién se reincorporaba a la actividad legal, luego de la derrota del ultrismo aventurero de los años sesenta, esta táctica fue propuesta por Trotsky en la década de los 30 para ingresar en partidos ya constituidos debido a la premura de intervenir ante la crisis que se expresaba por el avance del fascismo y la guerra, caso principal, el Entrismo en el partido socialista francés. 4) Para poner en el contexto la labor de La Chispa, nos ubicamos en Valencia, ciudad de mayor desarrollo industrial manufacturero del país, ubicada al norte del país, centrada en el ensamblaje automotriz y cercana a una refinería, una petroquímica, el puerto de carga más importante del país y un astillero de reparación de barcos, aquí se inició, en el medio estudiantil universitario y luego en las fábricas, la intervención el activismo militante y la construcción de una organización política, a través del MIR, se avanzó en toda la región central del país, más tarde se extendió a otras ciudades industriales, en 658 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la industria pesada en Guayana y en la industria petrolera de occidente. Se comenzó a distinguir, dentro del conjunto del partido dos MIR, llamados MIR-MIR y el MIR proletario. 5) Esta actividad dirigió una fuerte lucha sin cuartel contra la burocracia sindical de bandas armadas comandada por AD y Copei. Antes, esto tenían un terreno a sus anchas para realizar todo tipo de atropellos a los trabajadores, esta lucha se amplió por todo el país y en nuestra opinión ese impulso y su desarrollo, a pesar del “trotskismo” chavista, que resultó en los primeros años del chavismo, la liquidación de la burocracia sindical tradicional vendida y matona. Caso inédito en toda la América. Hoy, tener el desastre económico con el salario más bajo del mundo, no es debido a eso. Junto a esto, como segundo logro, es analizar la historia de la lucha de clases en el país, a la luz de una visión marxista, sobre todo ir desmontando la historia stalinista siempre conciliadora, sobre todo en los sucesos más significativos, como el apoyo al gobierno en la época de la segunda guerra mundial, luego a otro militar como candidato luego de la caída de la dictadura de Pérez Jiménez en 1958, el aislamiento del ultrismo aventurero de la década del 60 y sus resultados desastrosos, más tarde el apoyo a Caldera (cofundador del pacto de punto fijo y de su reemplazo), luego a Chávez y por último a Maduro, hasta que este los desechó. 6) A la par de las diferencias de las más importantes secciones latinoamericanas con la OCI, en Venezuela también se agudizaban las diferencias debido a las componendas entre la mayor parte de la dirección trosca y el MIR, nos expulsan a un grupo, mientras en el resto del CORCI se vuelven incompatibles entre la mayor parte de los latinoamericanos y los franceses, conduciendo a escisiones que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 659 explotan al CORCI. A la par de la unión fugaz y oportunista, de la OCI, lo que quedaba del CORCI y el morenismo, tras un llamado Comité Paritario que no dura un año, se funda en Lima con el resto de los ex CORCI, la Tendencia Cuartainternacionalista (1979) soportada fundamentalmente en el POR de Bolivia y el PO de Argentina. 7) En Venezuela, cuando explotó la alianza fugaz del Comité Paritario, La Chispa proveniente del CORCI, dio una voltereta olímpica, pasando al morenismo. Un crimen contra la clase obrera venezolana. Mientras, nosotros los expulsados armamos, la organización Política Proletaria, seguimos dentro del MIR y tras el contacto con camaradas argentinos de PO exiliados, luego de unas reuniones fuimos reconocidos tras nuestro balance, e invitados a la fundación de la TCI, en Lima. En la TCI, funcionábamos como organización venezolana con nuestra propia dirección y no subordinados como estábamos a la dirección en la antigua organización, reuniéndonos regularmente en Lima y en La Paz. La TCI no terminó la década de los 80, no tenemos balance, pero el POR boliviano entra en crisis, expulsa antidemocráticamente a unos camaradas, dirigidos por Juan Pablo Bacherer, que no se sometieron a la dirección que condujo a dicha crisis. 8) Luego, a partir de una iniciativa realizada en Génova en 1997, se funda la CRCI en Buenos Aires en 2004 hasta, con altos y bajos, aproximadamente 2019 y no del todo extinguida hasta hoy, para mi, sigue latente expresada por los camaradas del Centro Socialista Internacional “Christian Rakovski” y la página web redmed.org. 660 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Estas 3 tentativas, en un lapso de 51 años, estuvieron delimitadas claramente de las corrientes Mandelistas, las morenistas y de la del Militante. 9) El EEK de Grecia plantea que se debe hacer un balance integral, abarcando desde el asesinato de Trotsky, la guerra, la debacle temprana de la organización internacional, hasta el intento de la CRCI y su ocaso, con la implosión del PO argentino. Tras una 1ra Internacional que cumplió su cometido, con una asociación internacional de trabajadores, la 2da con la creación de sus partidos y sus sindicatos, la 3ra tras dirigir la 1ra revolución proletaria victoriosa y la 4ta, ya con 85 años de fundada y cerrada, pero con una labor inconclusa y vigente, la defensa de continuidad, iniciada de la revolución en 1917 y su culminación mundial, sustentada con las tesis de la Revolución permanente y del programa de transición. En el 2004 se aprobó un programa en la fundación de la CRCI, pero no hubo evaluación permanente, sus avances, inconvenientes, retrocesos, inclusive no hubo coordinación efectiva entre todos los participantes, me atrevo a decir que solo entre los partidos nacionales más importantes y no recurrente sino esporádico y al margen de las demás organizaciones. 10) El problema es el alcance nacional de dichos partidos, la dialéctica materialista no está debidamente presente, los problemas mundiales deben debatirse y concluir con su acción (agitación y propaganda) correspondiente con su consigna de lucha, independiente de no tener organización en el lugar y la situación en cuestión, pero como una bandera o faro de referencia. Por ejemplo, la ausencia de participación o pronunciamiento sobre la rebelión tras el golpe de Perú, debido a los acuerdos de explotación minera o la secuencia de sanciones contra Venezuela y II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 661 la caracterización de ser una amenaza a la seguridad de los EEUU, a partir de un decreto de Obama todavía con ratificación de Trump y luego Biden. El papel de Venezuela en el contexto mundial, luego de la producción de Cacao primero y después el café, es desde hace 100 años proveedor fundamental de petróleo como recurso de energía primaria a los países capitalistas avanzados y con una de las mayores reservas de combustible fósil líquido y gaseoso del mundo, por esto es codiciada, no por tener gobernando a un Chávez o un Maduro, o además de eso. 11) El nacionalismo no es un problema nacional, por lo tanto tampoco debe tener como respuesta partidos nacionales. El nacionalismo tras el chavismo, trasciende sus fronteras, está más allá de sus límites regionales El chavismo, como expresión nacionalista contemporánea, no se puede comparar con hechos pasados como el peronismo, aunque ambos no están superados como nacionalismos, y trasciende al terreno internacional, no solo americano sino más allá, basta saber que tildar a los camaradas de Turquía, de Grecia y del Centro Rakovski de chavistas, no por falso, implica reconocer su trascendencia de lo nacional. 12) La insurgencia popular en 1989 en Venezuela, que obligó a desobedecer al FMI, sigue sin resolver las causas que la originó, y que dio pie al chavismo, muchos llamados trotskistas se beneficiaron plenamente, más tarde cuando el chavismo entró en picada, lo abandonaron y ahora son funcionales a la derecha golpista y proimperialista, nosotros que nunca apoyamos al chavismo, ni en su época de vacas gordas, pero ahora cuando defendemos al gobierno 662 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) contra la agresión imperialista, para muchos que nos ven desde lejos, también nos tildan de chavistas. Venezuela está desarticulada capitalistamente, no hay derechos laborales, el trabajo perdió su valor, y aun cuando todavía no está en recuperación capitalista, es probable que no se pueda hacer sin originar un levantamiento de trabajadores, o popular y hasta de los sectores de los pueblos originarios. Es el petróleo y su clase obrera la que queda latente y… no tanto, sigue en actividad. 13) Colombia además de su tradicional intercambio comercial con EEUU, el siguiente y más directo es con Venezuela. El gas natural es indispensable para ambos países y para el mundo, la guerra en Europa se inició por el suministro de gas, que aquí se quema. Por otra parte, Venezuela le suministra gasolina a Cuba, como pago por su asesoría, ¿Qué planteamos sobre esos intercambios?, ¿Qué deben plantear los camaradas cubanos sobre el suministro, de gasolina? He ahí el debate internacionalista que debemos plantear para toda América Latina. No se puede ver el problema solamente nacional y mucho menos por ejemplo desde Argentina, para el público argentino. 14) El apoyo a Rusia de un gobierno como el de Venezuela, no antiimperialista, en los hechos son objetivamente progresistas, frente a los discursos declamativos de la izquierda y en contra de Rusia y la guerra, que son más dañinos cuando son encubiertos con tantas galimatías que no permiten, a muchos, vislumbrar la posición correcta por la derrota de la OTAN, determinar lo contrario, la derrota de Rusia por parte de la OTAN sería el avance de la contrarrevolución mundial. 15) El papel de Rusia, no puede ir más allá de su destino como semicolonia del imperialismo, a partir de su restauración capitalista, no puede ser de otra manera, inclusive peor aún, como una etapa II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 663 previa a la estrategia de dominar a China. El absurdo de etiquetar de “preimperialistas” a ambos países, de tener todas las ganas de expandirse a través de Inversiones Extranjeras Directas, requeriría de imponerse en el mercado mundial, de derrotar a los imperialistas para situarse ellos como hegemones, ir contra todas las bases militares diseminadas en el mundo, contra todos los organismos con esos fines como el FMI, el Banco Mundial, los acuerdos de comercio, bolsas de valores, sistemas de pago y cientos más. Quien no vea esto, concluye funcional al imperialismo y a su aparato de guerra la OTAN. 16) Expresamos anteriormente, tras la CRCI, 2004 hasta 201819, se sigue prácticamente a la deriva hasta el día de hoy. Sin embargo, recién escribimos sobre la Historia del Trotskismo en Venezuela, y estamos por editar digitalmente un análisis sobre la renta del suelo, del petróleo, crucial en el caso nuestro y otro sobre el desarrollo industrial del país. Ahí dejamos eso y seguimos dispuestos a la lucha por la construcción de una internacional, con el tema de la guerra en Ucrania, tomamos posiciones concretas y no mirando desde lejos sin empaparse. Saludamos al Encuentro Internacional León Trotsky, con la mira al avance por la construcción de la IV Internacional. 664 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Entre revueltas y agrupamientos: aproximación crítica a la historia del trotskismo en relación a la lucha de clases en Colombia Arturo Bravo1 “Los trotskistas: fueron como la estirpe de los Buendía en Cien años de soledad, literalmente borrados de la faz de la tierra.” -Juan Guillermo Gómez en (García, Martha Cecilia, 2008, p.1) La historia de las organizaciones políticas revolucionarias en el mundo también es la historia de la lucha de clases y las condiciones materiales existentes, las cuales han dado lugar tanto a la exacerbación de las contradicciones presentes en las relaciones sociales del capitalismo, como al agrupamiento de sectores revolucionarios. La estructura económica de la sociedad, en relación con la dinámica de la lucha del proletariado, ha sido motivo de discusión y análisis por parte del marxismo revolucionario en la amplia historia de su tradición. Es preciso, cuanto menos hacer mención de los diversos conflictos que han surgido a partir de las dinámicas de acumulación, en relación a aspectos generales de la economía colombiana, para hablar brevemente de la historia del trotskismo en el país, a modo de una aproximación crítica, dando cuenta de la narrativa general que existen entorno al desarrollo de esta corriente y dando cuenta de algunos vacíos que aún hay, los cuales significan un reto para los y las 1 Sociólogo y militante de la Liga Internacional Socialista. Contacto: dbravop@ unal.edu.co II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 665 trotskistas de Colombia, que tienen como tarea recuperar la memoria del socialismo de la cuarta internacional en su expresión criolla. Así pues, se parte de la idea de que América Latina (y por tanto Colombia) no representa una realidad inconmensurable. Pues, así como las ciencias sociales han llegado a la conclusión de que no se puede particularizar exageradamente la realidad de la región, tampoco el marxismo en sus análisis puede tender a separar al sur de las dinámicas que se viven en los demás países del panorama global, en un proceso donde el capitalismo de forma diferenciada se ha instaurado en las distintas latitudes del mundo, eso sí, con algunas expresiones particulares (Puga, Ismael, 2015). En ese sentido, este texto no pretende brindar una mirada extensa y exacta de la temática que pretende abordar, al contrario, resulta ser más bien un acercamiento que puede nutrir, en un minúsculo esfuerzo, la difusión de la historia del trotskismo en nuestros países y servir cómo un pequeño punto de referencia para los y las camaradas que puedan acceder a este. La formación social colombiana y el surgimiento del PSR y las luchas obreras. Es muy común abordar a un viejo militante de la izquierda colombiana y que este en medio de sus anécdotas narre como el debate en torno al modo de producción colombiano reflejaba unas amplias polémicas entre diversos sectores, a lo cual en épocas más recientes, se ha llegado a la conclusión de que sistemáticamente el país ha reunido características mixtas, so peso de que el modo de producción predominante, así como en todo el mundo ha sido el capitalismo, que 666 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) algunos sectores caracterizan como dependiente o periférico. Así pues, pese a que las relaciones sociales en el campo tuviesen algunas formas de trabajo no remunerado, casi que esclavista o feudales, producto de la herencia colonial y la hacienda como centro de la producción agraria hasta finales del siglo XIX, Colombia siempre ha sido parte de la economía mundial y por tanto se ha venido acoplando a la dinámica del capital internacional, como bien lo plantearía Sergio Bagú, llegando a la conclusión de que en toda América Latina ha habido un capitalismo realmente existente (inclusive desde la colonia) con características que en el trotskismo hemos abordado cómo semicoloniales, pero que en la región se ha teorizado de distintas maneras (Bagú, Sergio, 1949). De esa forma, podría decirse sobre estas características, que primeramente la burguesía nacional disputó durante todo el siglo XIX la forma de organizar el naciente Estado y sus embrionarias instituciones del régimen, basado este en los principios programáticos de los dos mitológicos partidos que dominarían el país por casi dos siglos: Liberal y Conservador. Esto llevo a que la clase trabajadora, campesinos pobres y personas miembros de alguno de los distintos grupos étnicos que hay en el país, lucharan en cruentas guerras en las cuales siempre se vio en disputa el “modelo del país” pensado por las clases dominantes. Ya fuera la liberalización de la cultura, el federalismo y la apertura económica, o el sostenimiento del poder eclesiástico, la centralización y el mantenimiento de los valores tradicionales (Mejía, Álvaro Tirado, 1978). Para los años 20’s del siglo XX, mientras aún se daban estas disputas, digámosles “interburguesas”, con el pueblo como carne de cañón, se acentuó en Colombia el desarrollo capitalista, no solo por II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 667 cuenta de la extracción de materias primas por parte de la naciente industria nacional y el inicio de la producción fabril, sino sobre todo por cuenta de los grandes capitales transnacionales que empezaron a tener un papel importante a la hora de usurpar las comodities y bienes de consumo nacionales, con el caso destacado de la “American Oil Company” y la “United Fruit Company”, enclaves capitalistas que al generar cierta proletarización en diversas zonas del país, dieron lugar también a importantes procesos de resistencia por parte de la naciente clase obrera, lo cual, se puede decir que fue parte de los primeros embates en huelgas contra poderes nacionales e internacionales que se fueron configurando en el país, con efectos en la demografía territorial y la cultura política (Vega Cantor, Renan, 2002). Es en este contexto surge en 1926 el Partido Socialista Revolucionario, como el primer punto de referencia para agrupar a la intelectualidad marxista del momento, en un primer ensayo de organización proletaria que también agrupo a los distintos sectores oprimidos por el capital, teniendo una participación mayoritariamente de obreros e intelectuales, entre los cuales destacaron María Cano, Ignacio Torres Giraldo y Tomás Uribe Márquez. Por nombrar algunos de sus más grandes cuadros, recordados por su intervención en los conflictos que sucedieron a la conformación del partido y teniendo presencia en las principales ciudades que se configuraron como parte del proceso de acumulación de capital cómo Cali, Medellín y Bogotá (Guadrón, Cesar, 2023). Podría decirse que, el PSR es el antepasado común del cual se reclaman la mayor parte de organizaciones marxistas existentes en Colombia, tanto estalinistas, maoístas cómo socialistas revolucionarias, puede intuirse inclusive que, en un pasado próximo el naciente 668 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) trotskismo tuvo inspiración en algunos de los aportes que hizo este organismo. Y no es para menos, pues por ejemplo el mismo Ignacio Torres Giraldo escribió “Los inconformes: Historia de la rebeldía de las masas en Colombia” obra que da cuenta de la historia de la lucha de clases en el país narrada hasta ese momento en un primer plano, así como la propia conformación de la clase trabajadora (Giraldo, Ignacio Torres, 2023). Sin embargo, el Partido Socialista Revolucionario como miembro pleno de la tercera internacional, al igual que otras secciones nacionales, sufrió un proceso de estalinización fruto de la propia transformación del komintern, lo cual condujo a que en 1930 diera lugar al Partido Comunista de Colombia, proceso que se asemeja a aquellos que vivieron diversos partidos a lo largo del mundo en los nefastos 30’s como retroceso contrarrevolucionario que ya venía en marcha. Esto llevo a que varios cuadros que, en un primer momento habían conformado el PSR, fueran expulsados e inclusive calumniados por parte de las nuevas direcciones del naciente partido, cosa que resulta irónico cuanto menos, dado que al día de hoy el PCC (Partido Comunista Colombiano actualmente) reivindica la memoria de un partido del cual “liquidaron su pasado”, como bien habría dicho Ignacio Torres Giraldo en un documento homónimo en el cual renegó de sus “antiguas tendencias”, que no eran otra cosa que un auténtico ímpetu revolucionario socavado por la burocracia de Moscú (Meschkat, Klaus; Rojas, María, 2009). Esta primera experiencia, da cuenta de cómo los procesos internacionales en la superestructura (política) tienen un efecto particular en los procesos nacionales, este elemento de influencia externa va a ser muy relevante más adelante en la historia cuando se II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 669 configuren otras fuerzas políticas vinculadas al maoísmo, el camilismo y el trotskismo, este último teniendo una estrecha relación con los debates de la cuarta internacional. Sin embargo, puede decirse que el Partido Comunista de Colombia (Partido Comunista Colombiano a posteriori) tuvo relativa hegemonía con respecto al movimiento de masas, liderando varios sindicatos, asociaciones campesinas, juntas barriales, etc. llegando inclusive a estar vinculado a las guerrillas en la época de la Violencia en 1948 y la conformación de las FARC en 1964 (Medina, Medófilo, 1980). El agrupamiento en “El campo socialista” de los 70’s y la influencia de la IV Internacional. Para los años 70’s con prácticamente medio siglo de historia, Colombia había pasado por diversos procesos que hicieron parte de la dinámica de la lucha de clases, pues a mediados de siglo, después de una época de violencia fratricida y una dictadura militar anticomunista, se dio la creación del frente nacional en 1958, el cual fue un acuerdo entre las burguesías nacionales, representadas en los partidos tradicionales, para manejar el país por la segunda mitad del siglo XX. Del mismo modo, con este acuerdo intentaron apaciguar las contradicciones exacerbadas profundamente hasta ese momento, sin éxito alguno, pues los recuperados sindicatos, el movimiento estudiantil y campesino, mostraron a lo largo de este periodo una incomparable combatividad, dando lugar a numerosas luchas que fueron apoyadas por las organizaciones políticas de carácter partidario que en ese momento ya confluían en los espacios unitarios, desde el maoísmo hasta el camilismo, este último en auge por la participación 670 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) directa de Camilo Torres Restrepo y su táctica del Frente Unido en los 60’s (Archila, Mauricio, 2005). De la misma manera, el movimiento estudiantil se posicionó como un actor más que relevante, dado que en los 60’s dio lugar a importantes procesos de movilización y organización, contexto en el cual fue fundada la Federación Universitaria Nacional (FUN). Este periodo de fortalecimiento y consolidación se terminó de dar en los 70’s, década en la que se dio lugar a una de las mayores huelgas estudiantiles de toda la historia colombiana en 1971, lo cual motivo la aparición de distintas agrupaciones políticas, las cuales se nutrieron de los debates en el ámbito internacional y el contexto político nacional de la época, en la que por otra parte, la guerrilla también estaba empezando a tener cierto reconocimiento con las FARC y el ELN conformadas en el 64, siendo estas las principales organizaciones de este corte en el país (Archila, Mauricio, 2005). Ahora bien, podríamos decir que las primeras organizaciones trotskistas en Colombia surgen tanto por el aire combativo que se respiraba en esa época producto del contexto social, cultural y político nacional e internacional, y la inspiración en la tradición de la cuarta internacional y algunas organizaciones políticas partidarias, como el PSR, que precedieron la conformación de organizaciones de izquierda alternas a las ya existentes. Así pues, hechos internacionales como el mayo del 68, la masacre de Tlatelolco, la resistencia a la guerra de Vietnam, el feminismo y la nueva cultura contestataria, tuvieron un efecto respecto al nacimiento de los primeros núcleos trotskistas en Colombia, en la misma medida, estos también se vieron influenciados por la huelga estudiantil del 71, el fraude electoral del 70, la injerencia del imperialismo en el modelo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 671 educativo del país y las ideas del internacionalismo cosmopolita. Así pues, puede decirse que el antepasado próximo de estas organizaciones fue el Partido de la Revolución Socialista, el cual convocó a grandes intelectuales como Estanislao Zuleta y Mario Arrubla; esta organización se caracterizó por ir en contra de la táctica “etapista” del tradicional partido comunista y plantear una salida directa a las necesidades del proletariado por medio de la revolución social (Acevedo Tarazona, Álvaro; Lagos Cortes, Emilio, 2022). Cabe resaltar, que, para este momento en la cuarta internacional se estaban disputando la dirección dos tendencias, las cuales se verían reflejadas en la construcción orgánica y programática de las nacientes organizaciones. En ese sentido, la tendencia mayoritaria era encarnada por Ernst Mandel, quien se había apropiado de la “Resolución sobre Latinoamérica”, la cual fue aprobada en el IX Congreso de la Cuarta Internacional y consideraba que en el continente se debían construir guerrillas rurales por un largo periodo, cosa con lo cual polemizaba fuertemente cierta tendencia leninista (minoritaria) liderada por Nahuel Moreno (quien después conduciría la fracción bolchevique), el cual consideraba que la construcción partidaria era fundamental por encima de cualquier otra táctica, para estar en contacto con las masas y dirigir un proceso revolucionario, considerando el foco guerrillero pequeñoburgués o elitista, al no encajar en la concepción de la lucha armada presente en Trotsky y Lenin (García, Martha Cecilia, 2008). Es en este momento, que en 1970 nace el grupo Espartaco, como resultado de focos de estudiosos de las tesis de la IV internacional en Cali, Popayán y Bogotá, puede decirse que sobre todo que en Cali siempre hubo una tendencia a esta tradición, pues se documenta que desde antes ya había organizaciones de este corte, así pues, Espartaco 672 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) se apropió de la teoría de la revolución permanente y empezó a publicar Prensa Obrera como órgano propagandístico, alineándose con las posturas de Ernst Mandel. Por otra parte, el Grupo Marxista Internacionalista, se fundó en Bogotá, como una organización más bien vinculada a la tendencia minoritaria de la internacional. Así pues, en 1974 Espartaco fue reconocida como sección oficial de la internacional y el GMI como simpatizante (García, Martha Cecilia, 2008). Del mismo modo, en medio de los fuertes procesos de movilización estudiantil y la álgida dinámica de luchas sociales en el país, se creó en 1972 el Bloque Socialista, celebrando su primer congreso, denominado “Reunión Socialista” el 26 de agosto, en este espacio confluyeron diversas organizaciones de la llamada “nueva izquierda” caracterizada por figurar como alternativa al estalinismo y el maoísmo del momento, haciendo fuertes críticas programáticas a dichas corrientes y proponiendo una política diferenciada vinculada a tendencias propias del campo socialista internacional, pese a que en un principio no se autodenominase propiamente trotskista. En principio el GMI y Espartaco no confluyeron directamente junto a las demás organizaciones que conformaron este proceso, y más bien dieron lugar al periódico “Revolución Socialista” que estaba presente ya desde 1971, este medio después fue adoptado como el órgano partidista del Bloque en 1974 (García, Martha Cecilia, 2008). Por otra parte, meses después de su fundación, del Bloque Socialista se escindió una de las primeras organizaciones resultado de una polémica con los sectores mayoritarios de este, la cual fue la Unión Socialista Revolucionaria, esta manifestó divergencias con el leninismo del bloque, y creo su propio órgano publicado periódicamente, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 673 denominado “El Manifiesto”. Esta organización, pese a alejarse del trotskismo, tuvo ires y venires, en los cuales llegó a simpatizar con las organizaciones trotskistas, pero también a polemizar fuertemente con las mismas, apelando como una de sus principales apuestas, a la construcción de una única central de trabajadores en el país. Puede decirse por otra parte, que mantener la unidad del bloque en ultimas, fue una tarea casi imposible, pues los roces entre las tendencias de la internacional llevaron a fuertes divisiones que se fueron expresando en las transformaciones orgánicas de los agrupamientos que en un momento habían conformado este proceso de unidad (Acevedo Tarazona, Álvaro; Lagos Cortes, Emilio, 2022). Así pues, en 1974 también se dio la creación de la Liga Obrera Comunista como escisión del bloque que en 1977 se unificó con los Comandos Camilistas y el grupo Espartaco en un congreso celebrado en la ciudad de Barranquilla, dando origen a la Liga Comunista Revolucionaria (LCR), la cual fue reconocida como sección oficial de la cuarta internacional y se presentó a elecciones con candidatos propios, pues para este momento, las organizaciones del campo socialista, en su mayoría, ya habían abandonado toda tesis ultraizquierdista para plantearse la participación en la democracia burgués con candidatos de la clase trabajadora. Por otra parte, el Bloque Socialista se había adherido a la tendencia bolchevique de la cuarta internacional, lo cual junto a la influencia de los exiliados del PST argentino en Bogotá, provocó que también en el 77 se fundara el Partido Socialista de los Trabajadores, organización que marcó un hito como el primer gran partido trotskista de Colombia, el cual se mantiene hasta el día de hoy. (Acevedo Tarazona, Álvaro; Lagos Cortes, Emilio, 2022) Pese a estos procesos de continuas escisiones, el PST, la Liga 674 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Comunista Revolucionaria, la Unión Socialista Revolucionaria y el Grupo la Organización Comunista Ruptura, este último siendo un nicho de intelectuales, se presentaron a elecciones bajo una plataforma común llamada “Uníos” en 1978. Esta plataforma se dio después de un fuerte proceso de debate en el campo socialista, lo cual dio lugar a la candidatura de Socorro Ramírez, única para ese momento al ser una mujer joven, sindicalista y socialista quien pertenecía al PST antes de que fuera expulsada por conformar la Tendencia Democracia Proletaria junto a Ricardo Sánchez, uno de los primeros dirigentes del Bloque Socialista. Esto llevó a que inexorablemente el PST se retirara de “Uníos” por diferencias con las demás organizaciones, pese a continuar apoyando la candidatura de Socorro Ramírez; cómo resultado de este proceso, La Liga Comunista Revolucionaria y la Tendencia Democracia Proletaria, esta última ya expulsada del PST, se unificaron en lo que sería el Partido Socialista Revolucionario (PSR) impulsado por el secretariado unificado de la cuarta internacional. (Acevedo Tarazona, Álvaro; Lagos Cortes, Emilio, 2022) En este orden de ideas, podría decirse que la división PSTPSR, fue el punto culmen de las tensiones entre el Mandelismo y el Morenismo, sin embargo, podría afirmarse que lo que verdaderamente condujo a que las tensiones estallaran, fue la cuestión de la revolución nicaragüense, dado que el PST colombiano y el mismísimo Nahuel Moreno, organizaron la brigada Simón Bolívar, la cual, siguiendo fielmente los principios del internacionalismo proletario, fue a luchar en Nicaragua en el 79. Tras la victoria del FSLN, esta brigada fue expulsada de Nicaragua por tener diferencias con la dirección del sandinismo, la cual les denunció como “agitadores trotskistas” y les deportó a Panamá, donde fueron víctimas de tortura. La respuesta del II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 675 mandelismo fue respaldar la decisión del sandinismo, lo cual produjo un rechazo absoluto de la fracción bolchevique y su consecuente escisión del Secretariado Unificado de la Cuarta Internacional, lo cual les conduciría a conformar en 1982 la Liga Internacional de los Trabajadores- Cuarta Internacional (LIT-CI). (García, Martha Cecilia, 2008) Esta historia, difícil de contar para quienes siempre hemos apelado a la unidad de las corrientes trotskistas, no representa únicamente debates programáticos, sectarismos y diferencias entre revolucionarios y revolucionarias, pues tanto el Bloque Socialista, como sus organizaciones participantes y escisiones tuvieron una fuerte participación en la lucha de clases, y lograron que el trotskismo se posicionara como un sector capaz de impactar en la cultura política del país que hasta ese momento solo había conocido el marxismoleninismo en su versión rusa y china. Así pues, el campo socialista en Colombia se decantó por aproximarse a los debates internacionales, agitar consignas clasistas, construir con los distintos sectores oprimidos de la sociedad colombiana, poner sobre su agenda debates vinculados a la participación electoral, la lucha armada, etc. teniendo sobre todo una amplia presencia en las universidades y el magisterio, elevando también reflexiones en torno a el arte, la vida y la intelectualidad de la época. (García, Martha Cecilia, 2008) A pesar de este antecedente, las organizaciones trotskistas volvieron a coincidir en ¡A Luchar!, una plataforma de lucha común (movimiento) en la que coincidían diferentes sectores sindicales, políticos, estudiantiles y campesinos. El PSR tomo la decisión de disolverse en este movimiento, sin embargo, el PST se mantuvo como partido, por su parte la URS se disolvió en la agrupación “Firmes”, 676 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) y del Grupo Comunista Ruptura se desconoce su devenir (Acevedo Tarazona, Álvaro; Lagos Cortes, Emilio, 2022) Por otra parte, al interior del PST hubo una fuerte polémica en torno a lo que se debía hacer respecto a ¡A Luchar! puesto que un sector del partido consideraba que este se debía fundir en la organización para conformar un Frente Único Revolucionario, sin embargo Nahuel Moreno, junto a la dirección de la LIT, consideraban que no se podía tomar tal orientación, pues al interior de este proceso también confluían sectores afines a la guerrilla, con los cuales ya había planteado diferencias fundamentales a partir de su “Tesis del Guerrillerismo”, por otra parte, este planteaba hacer parte de la plataforma común como un frente sindical revolucionario. Fruto de del debate algunos de los cuadros del PST se quedaron en ¡A Luchar! mientras el partido tomo la determinación de abandonar el movimiento, esta polémica se dio entre 1985 y 1986. (Moreno, Nahuel, 1994) Para el año 81, también se sabe que hubo una organización posadista, perteneciente a la internacional de esta misma corriente llamada “Partido Obrero Trotskista” el cual tuvo como órgano de agitación el periódico “Lucha Comunista”, en el cual introdujo las posturas de J. Posadas, aquel enigmático dirigente de la cuarta internacional, conocido por sus posturas entorno a los ovnis y las guerras nucleares. Sin embargo, el periódico intentó posicionar ciertos debates entorno a las candidaturas de izquierda en elecciones, el panorama internacional, las luchas del momento en relación con las centrales obreras, el sentido revolucionario del arte, entre otras cosas. (Lucha Socialista, 1981) En ultimas, sigue vigente la tare de hacer una revisión más precisa a la hora de caracterizar estas corrientes, sus debates, encuentros II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 677 y desencuentros, cómo se menciono al inicio, esta aproximación mas bien pretende brindar los elementos esenciales que puedan servir a que camaradas de otras partes del mundo se hagan a una idea muy general de lo que ha sido el proceso en nuestro país, sin dejar de lado que para la academia, los investigadores, investigadoras y militantes de izquierda, aún quedan algunos periodos inconclusos, con diversos vacíos, que hacen parte de lo que sigue con respecto a esta narrativa. La burguesía colombiana y los métodos de guerra civil, la debacle del 91 y el uribismo El final del siglo XX e inicios del XXI resulta ser un contexto más cercano para generaciones más recientes de militantes, este periodo cuanto menos representa una de las etapas más complejas para el movimiento social y popular colombiano, pues, por un lado, hubo una fuerte profundización de la lucha de clases y una permanencia de importantes procesos de lucha por parte de los distintos sectores que, junto a la clase trabajadora, han combatido al reaccionario Estado colombiano. Y, por otra parte, también se dio una de las épocas en las que hubo una mayor profundización de la represión contra luchadores sociales, no sólo por cuante de los gendarmes y el ejercito oficial, sino también por parte de grupos paramilitares creados como hijos putativos de la ideología del enemigo interno, la cual penetró fuertemente en el régimen y en el tratamiento que por mucho tiempo se le ha venido dando a la protesta social en el país. En la tradición socialista, a la desproporcionada represión contra el movimiento de masas le hemos llamado “métodos de guerra civil” entendiendo que, es en el marco de estos conflictos que los 678 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) ejércitos del mundo han recorrido a las ejecuciones de prisioneros, los asesinatos selectivos, entre otras cosas. En Colombia particularmente, los ejercicios de memoria han resaltado la desaparición forzada como un hecho atroz, producto del recrudecimiento de la guerra entre el Estado y las guerrillas, pero más que eso, ha sido el resultado de la criminalización del Estado contra la juventud y contra la lucha social. En este periodo a inicios del siglo XXI, se puede destacar el ascenso a la presidencia de Álvaro Uribe Vélez, quien pese a presentarse como candidato independiente respecto a los partidos tradicionales, terminó llevando a cabo uno de los gobiernos más reaccionarios y sanguinarios de la historia del país, de la mano de la burguesía lumpen narcotraficante que en años cercanos había tenido una fuerte influencia en las principales esferas del poder. Fue precisamente con su política de “seguridad democrática” que aumentó el gasto militar y profundizó las tácticas anticomunistas para combatir a sangre y fuego a las guerrillas, recuperar el poder del Estado en los territorios del país, facilitar los negocios de los capitalistas irrumpidos por las milicias y llevar adelante una dura represión contra la clase trabajadora y los sectores populares. Esto, mientras aumentaban considerablemente las “ejecuciones extrajudiciales”, es decir, las desapariciones forzadas a manos de agentes del Estado contra jóvenes, trabajadores y campesinos. (Cárdenas, Ernesto; Villa, Edgar, 2013) Así pues, este periodo ha suscitado un fuerte debate entre la izquierda colombiana, dada la caracterización que diversos sectores han realizado sistemáticamente de este gobierno, por su parte el morenismo (sector más visible del trotskismo hasta el momento) coincidió en que se trató pues de un gobierno bonapartista, confrontando directamente la tesis que lo consideraba (y considera) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 679 fascista, dado que si bien usó métodos de guerra civil y tuvo una fuerte fijación en el poder presidencial, este no terminó por aplastar al movimiento obrero y popular y sus organismos democráticos, ni tampoco destruyó las instituciones de la democracia burguesa para instaurar un régimen totalitario. Por tanto, esto llevó a la conclusión de que no había habido una derrota, pese a que este periodo, así como décadas anteriores, se caracterizó por una fuerte persecución a los liderazgos de organizaciones de izquierda, sindicatos, asociaciones campesinas y organizaciones estudiantiles. Puede decirse que entre finales del siglo XX e inicios del XXI hay una gran incógnita ¿Qué pasó con las organizaciones trotskistas? Si bien se puede hacer un pequeño rastreo de algunas, aun falta construir el panorama completo, sin embargo, hay varios elementos que se pueden mencionar. Por un lado, la debacle del 91 jugó un papel desmoralizante en el movimiento obrero a nivel internacional, pues la URSS desapareció como punto de referencia, además, el trotskismo ya había mostrado una dificultad para que sus proyectos se mantuviesen de forma unitaria, lo cual se reflejó una tendencia al fraccionamiento. A pesar de que se sabe que el mandelismo técnicamente se disolvió, la historia del morenismo, quien se mantuvo, estuvo fuertemente marcado por elementos mencionados anteriormente, pues a finales de los 80’s no solo empezó a darse el desmantelamiento del proyecto soviético, sino que además en 1987, se dio la muerte de Nahuel Moreno, quien por muchos años había dirigido la LIT-CI, por lo que las fracciones no se hicieron esperar, pues el vacío que dejó el dirigente argentino representó una enorme dificultad que la internacional no pudo solventar fácilmente, por lo cual después apareció la Unión Internacional de los Trabajadores como fracción de 680 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) la LIT. Esto no solo tuvo una repercusión internacional, sino también hizo que por consecuencia varias secciones nacionales se dividieran, dando lugar, a multiplicidad de partidos como los que hay hoy en Argentina, producto de la división del Movimiento Al Socialismo (MAS), algunos de los cuales hoy confluyen en el FIT-U. (Movimiento Socialista de los Trabajadores, 1997) Eminentemente, el PST colombiano quedó en medio de este revuelo, teniendo fuertes polémicas con la internacional, de lo cual no hay certeza o documento hallado en este momento que de cuenta de una ruptura, aunque si se puede dar atisbar hoy en la realidad colombiana, que hubo diversas rupturas y por ende escisiones de esta organización, las cuales han ocurrido paulatinamente en este reciente periodo, las cuales han dado lugar a agrupaciones cómo Colectivos Unidos, Democracia Directa, Perspectiva Marxista Internacional, Ruptura, y más recientemente al Grupo de Trabajadores Socialistas (GTS). Estos procesos han llevado a que los grupos, en vez de tener amplia influencia en el movimiento de masas, por medio de una estructura partidaria, tengan una minúscula participación en algunos sectores clave de los cuales sus militantes hacen parte, tales cómo el magisterio, el movimiento estudiantil, algunos sindicatos pequeños, entre otros. Podría decirse que, ante tal devenir, la tarea es, parafraseando a Daniel Bensaïd, agrupar aquellas “tribus dispersas” que hoy actúan individualmente en diversos espacios para construir una izquierda revolucionaria acotada a la dinámica actual de la lucha de clases. (Bensaid, Daniel, 2002) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 681 Los estallidos recientes y el papel de las direcciones reformistas En ese contexto, tras la “diáspora socialista” nos aproximamos a los tiempos recientes, en los cuales tras más de una década de uribismo (tendencia reaccionaria expresada en los últimos gobiernos), la clase trabajadora en su conjunto ha demostrado un hartazgo con respecto al neoliberalismo expresado en sus políticas económicas, la precariedad de su política social sin ningún atisbo de garantías de salud y educación y la alta represión expresada en sus prácticas antidemocráticas y militaristas. Esta situación, condujo a que entre el año 2019 y 2021 hubiese estallidos sociales que se dirigieron en contra de las políticas neoliberales (impuestas por los organismos imperialistas) de Iván Duque, presidente perteneciente a esta corriente. Si bien, en estas jornadas, el elemento unificador fue la derrota política del uribismo por medio de la movilización de masas, las organizaciones reformistas y las principales centrales sindicales agrupadas en el Comité Nacional de Paro, decidieron canalizarlo todo por medio de una vía institucional, direccionando al movimiento para convertir sus aspiraciones programáticas en proyectos de ley, cerrar filas y trasladar la disputa al campo electoral, impulsando la candidatura de Gustavo Petro, por medio del Pacto Histórico, coalición de centro izquierda. Este contexto llevó a que nuevamente las organizaciones socialistas, llegásemos a la conclusión de que, cómo bien lo había planteado en algún momento León Trotsky, se trataba de una crisis de dirección revolucionaria, pues el reformismo hizo todo para dirigir el proceso y contener la gran fuerza movilizatoria del pueblo colombiano por medio de una salida electoral concertada con las 682 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) clases dominantes. Sin embargo, esta conclusión también condujo a entender las debilidades que las organizaciones anticapitalistas tienen actuando sin una unidad de acción que les permitiese influir de mejor forma en estos procesos de lucha. Por este motivo, en 2021 hubo un acercamiento entre el recién escindido Grupo de Trabajadores Socialistas e Impulso Socialista, sección colombiana de la Liga Internacional Socialista, organización que curiosamente al igual que las primeras organizaciones trotskistas, surgió como un núcleo de estudiantes y algunos profesores en universidades públicas en el marco del paro estudiantil del 2018. Este acercamiento recién se concretó en 2023, cuando el GTS e IS decidieron unificarse en la Unidad Obrera y Socialista ¡UNIOS!, en la perspectiva de continuar reuniendo esfuerzos para intervenir en la lucha de clases. En búsqueda de una salida por la izquierda Así pues, se puede concluir en que la historia del trotskismo en Colombia esta marcada fuertemente por los debates y el desarrollo de las corrientes en el ámbito internacional, al tiempo que está constantemente influenciada por las condiciones materiales propiamente nacionales y la dinámica de la lucha de clases alrededor de estas. Por este motivo, el campo socialista estuvo permanentemente respondiendo a las luchas de la clase trabajadora, y desarrollándose orgánicamente alrededor de estas, vinculando sus lecturas de la realidad nacional e internacional con sus debates programáticos. Si bien puede decirse que la historia del trotskismo, al igual que la historia del marxismo en general, es una historia de escisiones, lo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 683 que la realidad nos exige es cumplir con la tarea histórica de construir partido revolucionario y dialogar con el movimiento de masas en nuestros países para luchar por sus reivindicaciones, allanando el camino a la revolución socialista mundial. Así, es menester de las nuevas generaciones de socialistas revolucionarios, revolucionarias y revolucionaries, luchar por nuestras consignas históricas sin dejar nunca de dar lugar al debate, la autocrítica y la constante reflexión, por la cual podamos superar los errores del pasado, y tener la posibilidad de disputar la conciencia de nuestra clase contra direcciones pequeñoburguesas y reformistas. La historia del “campo socialista” todavía se está escribiendo, es una corriente que, ante las circunstancias actuales de la humanidad, resulta más vigente que nunca, y, por tanto, es preciso que saquemos las conclusiones políticas correctas para poder nutrirnos de los difíciles tiempos a los cuales debemos hacerle frente, y cómo dijo Martha Cecilia García “El presente es de lucha, el futuro socialista” (García, Martha Cecilia, 2008) Referencias bibliográficas ACEVEDO TARAZONA, Álvaro; LAGOS CORTÉS, Emilio. El trotskismo en Colombia: análisis historiográfico y documental de sus orígenes e impacto intelectual, político y universitario en los años setenta del siglo xx. Revista Colombiana de Sociologia, 2022, vol. 45, no 2. ARCHILA, M. Idas y venidas, vueltas y revueltas 1958–1990. Bogotá DC: Instituto Colombiano de antropología e Historia, Centro de Investigación y Educación Popular, 2005. 684 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) BAGÚ, Sergio. Economía de la sociedad colonial. Ensayo de historia comparada de América Latina, 1949. BENSAÏD, Daniel. Trotskismos. Editorial El Viejo Topo, 2002. CÁRDENAS, Ernesto; VILLA, Edgar. La política de seguridad democrática y las ejecuciones extrajudiciales. Ensayos sobre política económica, 2013, vol. 31, no 71, p. 64-72. GARCÍA, Martha Cecilia. El presente es de lucha, el futuro socialista. Revista Controversia, 2008, no 190, p. 98-145. GIRALDO, Ignacio Torres. Los inconformes: Historia de la rebeldía de las masas en Colombia. Volumen 1. 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Pero 44 años después quien encabezó esa revolución, Daniel Ortega, es un sanguinario dictador repudiado por su pueblo. La revolución fue inmensa. La familia Somoza dominaba Nicaragua desde 1936, con una dictadura totalmente pro yanqui. En 1979 prácticamente todo el pueblo nica se fue levantando, encabezados por el Frente Sandinista de Liberación Nacional (FSLN). Finalmente, el 19 de julio, Managua quedó en manos del pueblo. La dictadura había caído. La Brigada Simón Bolívar fue a Nicaragua a sumarse a la 1 Miguel Sorans es dirigente de Izquierda Socialista, de Argentina, y de la Unidad Internacional de Trabajadoras y Trabajadores – Cuarta Internacional (UIT-CI). Nació el 17 de marzo de 1947, en Buenos Aires. Inició en 1966 su militancia en el PRT, en la corriente trotskista fundada por Nahuel Moreno. Fue integrante de la Comisión Interna (Smata) de la empresa Chrysler y dirigente de la huelga de 1971. Luego fue dirigente del Partido Socialista de los Trabajadores (PST) en la clandestinidad. En 1979, viajó a Nicaragua para integrar la Brigada Simón Bolívar, que combatió junto a los sandinistas contra la dictadura de Somoza. Encabezó la toma de la ciudadpuerto de Bluefields en la Costa Atlántica. En 1980 militó en Brasil. En 1981 militó en el Perú, cuando Hugo Blanco era legislador junto a una bancada de luchadores trotskistas integrada por Enrique Fernández Chacón y Ricardo Napurí. Escribe en El Socialista (www.izquierdasocialista.org.ar) y en Correspondencia Internacional (www.uit-ci.org). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 687 lucha armada popular contra Somoza y los yanquis. Fue impulsada desde Colombia por Nahuel Moreno2 y nuestra corriente trotskista internacional. Retomando así la tradición de las brigadas internacionales de la Guerra Civil española de 1936. Nuestra política era la misma que había aconsejado Trotsky en la revolución española. Unidad de acción militar con los republicanos contra el fascista Franco. Sin dar apoyo político a los republicanos. En el caso de Nicaragua unidad acción para derrotar a Somoza pero sin avalar la política del Frente Sandinista. El FSLN preparaba un futuro gobierno con sectores burgueses. Íbamos a buscar crear un polo revolucionario obrero y campesino alternativo. En Colombia se alistaron más de mil voluntarios3. Se hicieron colectas para el viaje. Tal fue el impacto que el diario burgués El Tiempo, como si fuera en Brasil la Rede O Globo, sacó una editorial apoyando. Se titulaba “Necesitase gente”. La inscripción era abierta no solo para trotskistas. Hasta un torero se alistó. Finalmente entraron en Nicaragua más de 200 combatientes de la Brigada. Los brigadistas eran colombianos, panameños, mexicanos, argentinos, costarricenses, con distintas formaciones políticas. Los trotskistas éramos minoría. Había varias combatientes mujeres. La brigada estuvo en dos frentes de combate. En el Frente Sur y en la Costa Atlántica. En el Frente Sur, que controlaba Daniel Ortega, hubo un 2 Nahuel Moreno (1924-1987) comenzó su militancia en el trotskismo y en el movimiento obrero a comienzos de la década del 40. Desde 1948 se sumó a las actividades de la Cuarta Internacional. En su dilatada experiencia con el objetivo de desarrollar un partido revolucionario obrero e internacionalista incluyó una permanente elaboración política y teórica. 3 Partido Socialista de los Trabajadores (PST) de Colombia, encabezaba y organizaba el reclutamiento de los voluntarios. 688 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) problema. La dirección sandinista reconoció a la Brigada pero no aceptó que combatiera como brigada independiente, como si había sucedió en la Guerra Civil española. Solo aceptó que nos sumáramos como combatientes individuales en sus unidades. Pese a no coincidir se aceptó por la unidad en la lucha. Se integraron en el Frente Sur más de 120 miembros de la brigada. Hubo combates muy duros por la toma de la ciudad de Rivas. La Brigada tuvo tres caídos en combates y decenas de heridos. La brigada entró el 19 de Julio en Managua con las columnas del Frente Sandinista que venían del Frente Sur. El otro lugar de actuación de la Brigada fue la toma de la ciudad-puerto de Bluefields en la Costa Atlántica. Este operativo se hizo con una columna de unos ochenta combatientes internacionalistas. Yo era uno de los coordinadores de esa columna. El objetivo era actuar como brigada independiente en el proceso revolucionario. Salimos de Puerto Limón, de Costa Rica. Donde tomamos un barco pesquero que le pusimos la bandera de la Brigada. El 18 de julio de 1979 se toma Bluefields. La Brigada funda los primeros sindicatos en Bluefields y formamos milicias populares, dábamos cursos básicos de socialismo. Concretamos la expropiación, decretada por el nuevo gobierno, de la pesquera Booths, que pertenecía a la familia Somoza, y en una asamblea obrera, de la cual participé, que nombró a una dirección obrera de la empresa. Mientras tanto en Managua la Brigada se había instalado en una gran casona abandona por sus dueños somocistas, muy cerca de la Plaza de la Revolución y del Palacio Nacional. La brigada fundó en Managua unos ochenta sindicatos. La mayor parte sindicatos II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 689 por empresa (textiles, Coca Cola, Pepsi, la popular cerveza Toña) y apoyaba las milicias populares de 7 u 8 barrios. Desde ese local convocaba a plenario sindicales. La Brigada formó la primera central sindical “sandinista”. Los sindicatos pidieron que se les diera la ciudadanía a los miembros de la Brigada. Pero desde el principio chocaron dos políticas: la de Daniel Ortega y Frente Sandinista y la de la Brigada: 1) Ortega por el desarme popular para hacer una policía y un ejército regular apoyado por el gobierno burgués de Panamá. La brigada defendiendo que se mantuviera el armamento popular y las Milicias Populares. 2) Ortega no entregando las tierras de la burguesía conservadora de los Chamorro, a los campesinos. La Brigada por su reparto. 3) Ortega por no expropiar a la gran burguesía y a las multinacionales y la brigada por expropiar. 4) Ortega por gobernar con la burguesía y no avanzar al Socialismo. La brigada proponiendo un gobierno sandinista sin ministros burgueses y avanzar al socialismo. Gobernar con la burguesía era el consejo de la dirección cubana y de Fidel Castro. El 26 de julio viajan a Cuba, Ortega y el empresario Robelo, miembro del gobierno. Fidel hace un discurso donde les dice “No hagan una nueva Cuba, hagan una nueva Nicaragua”4. Fidel y el PC cubano daban la línea de gobernar con la burguesía y no repetir el ejemplo de Cuba de los tiempos del Che, cuando se expropió a la burguesía y a las multinacionales y se proclamó a Cuba Socialista. A mediados de agosto de 1979 el gobierno encarcela a la Brigada y la expulsa de Nicaragua. 4 Discurso Fidel Castro, reproducido en Juventud Rebelde, La Habana, 29/7/1979 690 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Con el apoyo del gobierno y la policía de Panamá, nos envían en avión y encierran en la cárcel Modelo de la ciudad de Panamá. Finalmente, la Brigada fue liberada luego de una gran campaña internacional impulsada por nuestra corriente trotskista desde Colombia5. La represión a la brigada fue una acción preventiva, del gobierno Ortega-Chamorro, para evitar la posibilidad de que surgiera una alternativa de dirección revolucionaria. Fue el anticipo de la represión que vendría después sobre las luchas y la oposición de izquierda. Se estableció una “economía mixta”. Se siguió pagando la deuda. En 1988 la inflación llegaría al 33.000%. Las masas caen brutalmente en su nivel de vida. Nicaragua va a quedar al nivel de pobreza solo atrás de Haití, cuestión aún vigente. Tal fue la debacle social qué en las elecciones de 1990, Ortega y el Frente Sandinista pierden el gobierno a manos de la proyanqui Violeta Chamorro. En el 2006 Frente sandinista con Daniel Ortega a la cabeza, retomó el gobierno aliado a sectores derechistas. Su vice fue Morales Carazo un ex somocista. Siguió la miseria popular. Luego derogó el derecho al aborto. Esto fue parte de los acuerdos con la Iglesia Católica y el reaccionario cardenal Obando y Bravo, amigo personal de la esposa de Ortega, Rosario Murillo. Quien es una fanática católica, conocida como “La Bruja” por sus prácticas religiosas y esotéricas. Es muy importante sacar las conclusiones de lo sucedido: La revolución de 1979 fue una gran revolución que terminó derrotada por la política nefasta de la dirección del Frente sandinista y del castrismo. 5 Mas sobre la Brigada Simón Bolívar ver en: www.uit-ci.org. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 691 Mantuvieron a Nicaragua en los marcos del capitalismo. Se negaron a avanzar al Socialismo. En 1979 se abrió una enorme oportunidad para avanzar en las expropiaciones a la gran burguesía y el imperialismo, desconocer la deuda externa de la dictadura, comenzar una planificación de la economía para satisfacer las urgentes necesidades del castigado pueblo nica. O sea, iniciar el camino del socialismo. No siguieron el camino de la Cuba revolucionaria de los 60 con el Che Guevara. Otra vez la utopía reformista de que se podría superar la miseria de las masas gobernando con la burguesía y sin expropiar a los capitalistas y a las multinacionales. No es un debate de historia sino de total actualidad. El nuevo fracaso del actual gobierno de Daniel Ortega es parte de los fracasos de los supuestos gobiernos progresistas o de “centroizquierda”. Gobiernos de medias tintas y reformistas, que no tienen nada que ver con el socialismo ni la izquierda. Ejemplos de ello son la falsa teoría del “Socialismo del Siglo XXI” de Chávez y el gobierno de Nicolas Maduro en Venezuela, el del peronismo kirchnerista en Argentina, los de Lula y el PT en Brasil gobernando con Alckmin, del MAS en Bolivia, de Boris en Chile o Petro en Colombia. Gobiernos que siguen siendo capitalistas, pero con un doble discurso seudo popular o de izquierda, mediante el cual pretenden engañar y presentarse como antiimperialistas, con el objetivo de intentar embaucar a sectores importantes de la juventud, de la clase trabajadora y de los pueblos. Como hoy Daniel Ortega que es un gobierno burgués, una dictadura, que aplica las recetas del FMI contra su pueblo. Que utiliza las banderas y símbolos del sandinismo y la revolución de 1979, como un recurso propagandístico para mantenerse en el poder mediante la represión, 692 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) con presos políticos y la realización de elecciones fraudulentas. En abril de 2018 se desató una rebelión popular contra la decisión del gobierno de Ortega de imponer una reforma previsional dictada por el FMI. El pueblo nicaraguense gritaba en las calles “Ortega, Somoza son la misma cosa”. Llegó a encarcelar a cientos, entre ellos a Dora Téllez, una heroína de la revolución acusándola insólitamente de “Traición a la patria”. Al ex comandante Hugo Torres que murió en la cárcel. Finalmente, Dora Téllez, Yader Parajón y otros y otras luchadoras fueron liberadas por la solidaridad internacional. Nadie que se diga de izquierda puede defender ni justificar a esta dictadura asesina y hambreadora. Daniel Ortega ha ensuciado el nombre del socialismo. En Nicaragua no hay otro camino que retomar la lucha las reivindicaciones democráticas y sociales, para terminar con la dictadura de Ortega-Murillo y recuperar las banderas por las cuales se hizo la revolución de 1979 en la perspectiva de una salida obrera, popular y socialista. La experiencia de la Brigada Simón Bolívar ha quedado como testimonio de una lección que debemos estudiar y debatir todas y todos los que luchamos por un cambio de fondo en Nicaragua, Latinoamérica y en el mundo al servicio de la clase trabajadora y los sectores explotados. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) PARTE X HISTÓRIA DO TROTSKISMO NO BRASIL 693 694 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) A Liga Comunista Internacionalista (LCI) e a luta nos sindicatos oficiais (1933-1935) Carlos Prado1 Se até 1930 predominava no Brasil o dogmatismo liberal de que o Estado não poderia intervir, influenciar ou regular as relações entre patrões e empregados, o governo de Getúlio Vargas caminhou em direção oposta. Os contratos de trabalho deixaram de ser objeto de relações pessoais e particulares e foram adquirindo cada vez mais um caráter impessoal. A relação capital-trabalho deixou de ser tratada como uma questão privada e foi incorporada ao âmbito das preocupações do Estado. Assim, logo no primeiro mês de governo, em 26 de novembro de 1930, o Decreto no 19.433, instituiu o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), também conhecido como “Ministério da Revolução”, como foi denominado por seu primeiro ministro, Lindolfo Collor. A regulação das relações de trabalho foi uma das principais preocupações do Estado intervencionista e centralizador que emergiu após outubro de 1930. A criação de um departamento governamental para tratar da “questão social” foi a primeira medida no sentido de institucionalizar as relações de trabalho. O objetivo do novo ministério era não apenas regular, mas também mediar e disciplinar, para contornar e evitar distúrbios e conflitos que pudessem comprometer a 1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF). Professor e pesquisador do curso de História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Desenvolve pesquisa na área de História do marxismo e do movimento socialista e é autor do livro “História do trotskismo no Brasil (1928-1936)”. E-mail: carlosprado1985@hotmail.com II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 695 produção e a ordem social. A absorção da chamada “questão social” pelo Estado aparece como resultado das transformações econômicas e políticas do período pós-guerra, dentre as quais, destaca-se a Revolução Russa. Com efeito, desde o Tratado de Versalhes em 1919, a legislação trabalhista passou a ser discutida e implementada nos países de capitalismo avançado e retardatários. No Brasil, surgiram leis no início da década de 1920, mas foi com Vargas que esse movimento se concretizou. A regulação dos conflitos entre capital e trabalho se apresentava como medida necessária para o desenvolvimento e ampliação das forças produtivas capitalistas. Ao buscar harmonizar as relações de classes, um dos principais alvos do Estado foram as organizações sindicais dos trabalhadores. O objetivo era transformar os sindicatos em órgãos de cooperação. Nesse sentido, em 19 de março de 1931, o decreto no 19.770, revogou a legislação sindical vigente de 1907 e apresentou nova regulamentação sobre as organizações das classes operárias e patronais. Segundo o discurso oficial, os sindicatos deveriam atuar buscando o vínculo de solidariedade e o entendimento entre as classes. O artigo 5º destaca que as organizações sindicais passavam a ter um caráter consultivo e técnico no estudo e solução, pelo Governo Federal, dos problemas que econômico e social: “O sindicato, de acordo com a teoria corporativista, passa a assumir um caráter público, como uma agência do Estado” (MUNAKATA, 1981, p. 84). Destaca-se o interesse explícito em limitar a atuação política dos sindicatos e expurgar uma parcela significativa das suas lideranças. A legislação determinou que os sindicatos não poderiam desenvolver propaganda de ideologias que fossem “sectárias” ou estranhas à 696 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) natureza e finalidade da associação sindical. No mesmo sentido, também proibiram qualquer vínculo com entidades internacionais. Ainda se estabeleceu que o reconhecimento só seria obtido se os sindicatos enviassem ao MTIC a relação dos filiados e a cópia dos estatutos, o que garantia ao Estado controle sobre seus membros e sobre o funcionamento das associações. Além disso, admitia-se a presença de representantes governamentais que poderiam assistir às assembleias gerais e examinar a situação financeira dos sindicatos, comunicando ao Ministério quaisquer irregularidades ou infrações e, se houvesse alguma ilegalidade, a legislação previa diferentes penalidades, desde a imposição de multas, fechamento temporário, destituição da diretoria ou dissolução definitiva. Tal prática impedia que as organizações dos trabalhadores se manifestassem de forma independente. Como observou Bernardo (1982, p. 90): “Deixava praticamente de existir a autonomia sindical. O Estado, através da “Lei de Sindicalização”, procurava não apenas controlar o sindicato, mas retirar do mesmo toda e qualquer possibilidade de desenvolver, junto aos seus associados, uma ação mais coerente com os interesses definidos pelo operariado enquanto classe.” A estrutura corporativista limitava a ação sindical operária, cerceava sua liberdade e incorporava ao âmbito do Estado a defesa dos interesses dos trabalhadores. O enquadramento jurídico era o pressuposto para a submissão e instrumentalização política dos sindicatos, que se transformavam em órgãos consultivos e de cooperação, organizados de acordo com os interesses governamentais. Como aponta Vianna (1978, p. 147), “Desmobilização, despolitização II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 697 e desprivatização, eis o tripé que informava a nova sistemática sindical”. O papel do Estado, enquanto árbitro, se revelou de forma clara por meio da instituição das “Juntas de Conciliação e Julgamento”, criadas pelo decreto no 22.132 de novembro de 1932. Por meio dessas juntas se estabelecia as condições jurídicas para o MTIC atuar nos litígios entre operários e patrões, ou seja, os conflitos trabalhistas passavam a ser controlados, disciplinados e julgados pelas esferas governamentais. Para barrar a autonomia dos trabalhadores, a normatização apontava que apenas operários membros de sindicatos oficiais tinham direito à Junta de Conciliação. A sindicalização não era obrigatória, mas a fim de ampliar a adesão à estrutura corporativista, a partir de 1932, a legislação começou a abranger apenas aqueles trabalhadores que fossem membros de sindicatos reconhecidos. Ao mesmo tempo em que enquadrava as organizações sindicais, o Estado ampliou a legislação trabalhista. Antes mesmo da Constituição de 1934, o governo provisório publicou uma série de decretos que regulamentaram: jornada de trabalho para o comércio e indústria; estabilidade no emprego, pensão e aposentadoria; trabalho da mulher; trabalho do menor e férias para empregados no comércio e na indústria. Não obstante, uma das principais reivindicações dos trabalhadores foi deixada de lado em benefício dos empregadores. Até a década de 1940, não houve qualquer regulação sobre o salário mínimo. Nesse ínterim, o movimento sindical brasileiro passava por um momento de reorganização. Havia quatro tendências principais que divergiam entre si e buscavam orientar e dirigir a luta dos trabalhadores. Os reformistas que colaboravam com a política governamental, 698 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) atuavam nos sindicatos oficiais e dirigiam a União dos Operários em Fábricas de Tecidos (UOFT) e o Sindicato dos Ferroviários do Estado de São Paulo (SFSP). As demais correntes – do campo revolucionário – denunciavam e recusavam atuar nos sindicatos tutelados. Nesse terreno, destacam-se os anarcossindicalista que dirigiam a Federação Operária de São Paulo (FOSP) e outros treze importantes sindicatos. Havia ainda os comunistas que comandavam a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), uma central sindical que não tinha qualquer existência real, contando apenas com a simpatia de seus militantes e de alguns operários isolados. E, por fim, o grupo trotskista, que tinha influência apenas junto aos gráficos de São Paulo. O trotskismo surgiu no Brasil a partir de uma série de conflitos internos no Partido Comunista do Brasil (PCB). As divergências sobre a política de alianças, a luta sindical e a organização partidária deram origem a um grupo de opositores. Tais polêmicas não foram solucionadas e culminaram na expulsão de dezenas de militantes. Esta cisão não foi resultado direto dos debates soviéticos ou da tomada de posição dos militantes brasileiros em favor de Trotsky, mas, como apontaram Marques Neto (1993) e Castro (1993), há sim uma relação direta que aproximaram os dissidentes brasileiros das teses oposicionistas-trotskistas. Dulles (1977) e Marques Neto (1993) destacam que esses militantes, após romperem com o PCB, não formaram uma organização de imediato. Foi apenas a partir da iniciativa de Mario Pedrosa que, em maio de 1930, surgiu, na cidade do Rio de Janeiro, o Grupo Comunista Lenine (GCL). De imediato, a nova organização estabeleceu contato com o Secretariado Provisório da Oposição de Esquerda Internacional (OEI) e se apresentou como “fração externa” do PCB. A atuação II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 699 do GCL foi breve e, em dezembro de 1930, o grupo já encerrava suas atividades. No entanto, em janeiro de 1931, os trotskistas já se reorganizaram em uma nova organização, a Liga Comunista (LC), posteriormente, renomeada de Liga Comunista Internacionalista (LCI). Estas organizações mantiveram, nos anos seguintes, uma importante atuação no movimento operário e sindical. Por conseguinte, o presente artigo aborda a luta sindical dos trotskistas no período entre 1933 e 1935. O objetivo é apresentar, a partir dos documentos de conferências e reuniões da organização e de suas publicações jornalísticas, as discussões internas e a tática sindical diante dos sindicatos oficiais. Evidencia-se a opção por integrar essas organizações tuteladas pelo Estado e como os oposicionistas buscaram mobilizar a classe operária. Por fim, aborda-se, a partir de 1935, o recrudescimento da repressão estatal por meio da Lei de Segurança Nacional e a inviabilidade da lutar no interior dos sindicatos oficiais, bem como a consolidação destes órgãos por meio da força estatal. *** Em maio de 1933, os trotskistas da LC se reuniram para realizar a sua I Conferência Nacional.2 Felizmente, a documentação produzida pela conferência foi preservada e se encontra disponível no Arquivo da Unesp CEDEM, para historiadores e outros pesquisadores que desejam investigar a questão. O corpo documental reúne não apenas o relatório final da conferência, mas também todas as atas das reuniões, 2 A conferência da Oposição brasileira contou com 15 militantes e 1 simpatizante. Os membros presentes foram: Leônidas (Aristides Lobo); Camilo (Lívio Xavier); Miguel (Mário Pedrosa); Francisco (Victor de Azevedo Pinheiro); Sérgio (Salvador Pintaúde); José (João Matheus); Djalma (Gofredo Rosini); John; Max; Luga; Klassenkampf; Paulo; Lopes; Ruivo; Neif. Os oito últimos não conseguimos identificar. (PRIMEIRA..., 1933, p. 1). 700 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) registrando os comentários de todos os militantes, o que nos permite ter uma visão ampla sobre os debates e posicionamentos. A conferência foi chefiada por Aristides Lobo, Secretário Geral da LC e contou com a seguinte ordem do dia: 1) Situação Internacional; 2) Questão Nacional; a) Questão agrária. 3) Oposição e Partido; 4) Questão Sindical; 5) Questão da URSS; 6) Imperialismo; 7) Tarefas práticas: a) jornal; b) campanha eleitoral; 8) Questões de organização: a) Relatório geral da atividade da LC. b) Estatutos; c) Eleição da CE.; d) Escolha do delegado a Conferência Internacional (PRIMEIRA..., 1933, p. 1). A questão sindical foi o quarto ponto da ordem do dia e “Neif” foi o relator da tese. Ele apresentou um breve histórico sobre o trabalho sindical realizado pelos oposicionistas, discutiu as perspectivas e apresentou algumas medidas necessárias para a reorganização do movimento operário. A tese gerou uma ampla discussão, contando com a participação de quase todos os delegados presentes. Este debate revela as diversas táticas e possibilidades que cada militante enxergava no movimento sindical, em especial, a posição diante dos sindicatos oficiais. Iniciando a discussão entre os delegados da LC, “Neif” destacou que as tentativas de unidade sindical não lograram qualquer êxito. O proletariado estava dividido: a FOSP sob direção anacossindicalistas, a FSR com o PCB e, nos sindicatos oficiais os reformistas. Apontou ainda que diversas “manobras” impediram que os oposicionistas retomassem o trabalho junto à Federação Operária e que a política da direção comunista era “aventurista”. O relator também afirmou que o isolamento no qual os oposicionistas se encontravam dificultava até mesmo o trabalho de agitação e propaganda. Uma vez que era bastante II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 701 improvável a formação de uma frente única com os anarcossindicalistas ou com os comunistas, “Neif” afirmou que havia a possibilidade de iniciar um trabalho junto aos sindicatos oficiais: “Nos sindicatos reformistas, a meu ver, é possível desenvolver a propaganda. Ali se encontram muitos elementos não presos a nenhuma influência sectária. Eles estão sindicados ali pelo objetivo de obter melhorias econômicas e a garantia de existência para os sindicatos oficializados faz congregar em torno deles grande número de operários.” (PRIMEIRA..., 1933, p. 18). A tese apontou para a possibilidade de atuação nos sindicatos reconhecidos. Tratava-se de uma virada tática. Os oposicionistas deveriam deixar de criticar e de lutar pela revogação da Lei de Sindicalização e passar a penetrar nas organizações oficiais: “Em teoria e na prática, não precisa destruir esses sindicatos: precisa conquistá-los” (PRIMEIRA..., 1933, p. 19). A proposta era confusa e em alguns aspectos contraditória. “Neif” defendeu a concepção de que os sindicatos legais estariam mais abertos a atuação dos oposicionistas do que os sindicatos livres que estavam sob a direção dos anarcossindicalistas e dos comunistas. A proposta subestimava o controle que os agentes do MTIC e as direções reformistas tinham no interior destas organizações. Dessa forma, concluiu de maneira bastante simplista: “Como conquistá-los? Levando as massas congregadas nesses sindicatos à luta cada vez mais corajosa, e evidenciar qual a ação e quais as intenções que os governos burgueses têm ao sindicalizá-las” (PRIMEIRA..., 1933, p. 19). Após a exposição da tese, “Lopes” foi o primeiro a tomar a palavra. Ele apresentou divergências e ressaltou as barreiras que a sindicalização corporativista apresentava, além da dificuldade em se 702 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) desvencilhar da orientação governamental. Por conseguinte, afirmou que era preciso manter a mesma orientação tática, ou seja, a LC deveria insistir na luta junto aos sindicatos livres e trabalhar pela frente única com os comunistas e anarcossindicalistas: “A tarefa de reorganização é árdua, mas deve ser feita pacientemente, a política a se empregar é a de frente única, tendo como tarefa primordial a sindicalização livre. (...) devemos ir trabalhando (indecifrável), propondo a frente única não só pela base, como faz o Partido, mas de direção a direção, porque, na verdade, a classe ainda não compreende a política de frente única. Proponho que a frase empregada: pelos direitos e etc, seja acrescentada “e pela sindicalização livre.”.” (PRIMEIRA..., 1933, p. 19). Para “Lopes” não era possível desenvolver um trabalho revolucionário nas organizações que estavam cooptadas e controladas pelos agentes do MTIC. Ao reafirmar a tática da frente única nos sindicatos livres, ele estava reforçando que era necessário, buscar mais uma vez, uma aproximação junto aos anarcossindicalistas e comunistas. Para tanto, apontou a necessidade de desenvolver um trabalho sem sectarismo, junto às direções sindicais, tendo como principal objetivo combater o avanço do Estado sob as organizações operárias. Por isso, reforçou que a luta deveria ser pelos sindicatos livres. Gofredo Rosini foi o segundo delegado a se posicionar sobre a questão sindical. Sobre a tática de penetrar nos sindicatos oficiais, ele não recusou a proposta e assinalou que era possível, em determinadas circunstâncias, realizar esse tipo de atuação política, especialmente na capital federal, onde o movimento operário autônomo estava paralisado: “Pode a situação levar-nos ao ponto de, por exemplo, no Rio, deixar nosso sindicato aberto pro forma e entrar no sindicato II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 703 ministerialista, a fim de conquistá-lo por dentro” (PRIMEIRA..., 1933, p. 19). Todavia, afirmou que não era correto abandonar a palavra de ordem pela frente única junto aos sindicatos independentes: “Acho que devemos terminar com a política de isolamento. Os sindicatos livres devem penetrar na Federação Operária para fazer possível a política de frente única, obtendo adesões lá dentro” (PRIMEIRA..., 1933, p. 20). Posteriormente, Lívio Xavier tomou a palavra. Ele combateu a ideia de abandonar os sindicatos livres diante de um insucesso e de tentar avançar em sindicatos corporativistas: “Se o DET organizar um sindicato oficial qualquer um que não consiga ter sucesso num sindicato livre, ou de outra ideologia qualquer, não deve ir para o sindicato oficializado” (PRIMEIRA..., 1933, p. 20). Mas acrescentou que a ação junto aos órgãos oficiais só deveria ser colocada em prática no caso de não haver mais sindicatos autônomos: “Se pelo contrário, os sindicatos paralelos minguarem e morrerem, então, pode-se mantêlos formalmente e ir par os oficiais” (PRIMEIRA..., 1933, p. 20). Mário Pedrosa também apresentou críticas e reflexões importantes. Sobre o problema em torno da atuação nos sindicatos oficiais, destacou que a questão não poderia ser simplificada e a conferência deveria deixar a questão em aberto, para ser avaliada de acordo com as possibilidades reais de organização do movimento sindical, sem traçar uma linha fixa. Mas acrescentou que era preciso ingressar e tentar desenvolver um trabalho de conscientização no interior dos sindicatos legais: “Acho que a luta contra os sindicatos ministerialistas deve ser levada adiante, mas não deve ser exagerada. O que devemos fazer, agora, que tudo está ministerializado, é entrar para os sindicatos oficiais e criar núcleos comunistas que trabalhem ativamente no sentido de mostrar as 704 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) massas o embuste em que caíram preferindo os sindicatos oficializados aos sindicatos livres. Essa é uma tarefa prática no caso de nosso sindicato A, do Rio de Janeiro.” (PRIMEIRA..., 1933, p. 21). Para Pedrosa, no caso dos sindicatos do Rio de Janeiro, a tarefa de atuar no interior de associações oficiais já se colocava como imediata. Não obstante, em São Paulo, afirmou que a tarefa era a de permanecer atuando nos sindicatos livres. Por fim, Aristides Lobo, Secretário Geral da LC, argumentou que a política de atuação nos sindicatos oficiais era de conciliação e não poderia ser aceita: “Creio que a questão não pode ser posta assim, porque isso seria uma capitulação do proletariado diante da burguesia. Nossa política não tem capitulação, é uma política de luta até o fim” (PRIMEIRA..., 1933, p. 21). Para ele, o ingresso nos sindicatos legalizados significava uma rendição à política corporativista. Por conseguinte, pontuou que a Liga deveria recomeçar sua luta nos sindicatos livres, reconquistando suas posições perdidas. Depois de todo o debate, a conferência resolveu que a tese deveria ser aprovada, mas apenas parcialmente. As conclusões foram suprimidas e se nomeou uma comissão com três membros (Lobo, Pedrosa e Lopes) para redigir um substitutivo da parte suprimida, para posteriormente ser reapresentada e posta em votação pelos delegados (PRIMEIRA..., 1933, p. 24). Todavia, não consta nas atas da conferência nenhuma anotação sobre o trabalho dessa comissão. Dessa forma, a I Conferência Nacional da LC se encerrou sem apresentar uma resolução definitiva acerca do trabalho da Oposição nos sindicatos. A discussão voltou a pauta apenas em 18 de fevereiro de 1934, numa reunião ampliada da Comissão Executiva. A ata registra II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 705 a presença de Frederico (João Matheus), Waldo (Fúlvio Abramo), Novela (Lívio Xavier), Gustavo (Aristides Lobo), Abaetê (José Neves), “Red”, “Rumich”, “Serrano” e “Spártaco”. A reunião teve início com a leitura de uma proposta de resolução sobre a questão sindical, elaborada por João Matheus e Mário Pedrosa, que não estava presente. Infelizmente, a proposta não foi registrada em ata. Portanto, não temos acesso ao seu conteúdo integral, apenas à discussão, a partir da qual podemos deduzir a orientação e conhecer o posicionamento de cada um dos membros sobre a problemática em discussão. Ao comentar a resolução, Fúlvio Abramo destacou as suas linhas gerais: “A proposta se baseia em dois pontos: a impossibilidade do Estado burguês criar uma burocracia forte e a possibilidade de com as novas leis sociais se organizar toda a massa operária” (LIGA.., 1934c, p. 1). Essa consideração já esclarece que a resolução via com boas perspectivas a luta no interior dos sindicatos oficias. Destacava a ausência de uma burocracia consolidada e apontava para a ampliação destas organizações, uma vez que apenas os seus filiados teriam acesso à legislação social. No entanto, Abramo levantou suspeitas quanto a ausência de burocratas atuando nos sindicatos tutelados. Afirmou que o governo Vargas poderia avançar para formas mais autoritárias: “Quanto ao 1º ponto, há probabilidade do governo burguês empregar métodos fascistas” (LIGA.., 1934c, p. 1). Abramo (LIGA.., 1934c, p. 1) ainda argumentou que: “Não devemos exagerar as possibilidades organizatórias da massa”. E reafirmou que “os sindicatos livres poderão subsistir, e há tradições de luta que não se deve subestimar”. Por fim, destacou que era preciso manter o trabalho nos sindicatos livres: “Não devemos nos iludir, o proletariado não irá tão em massa assim para a sindicalização oficial”. 706 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) A partir das posições de Abramo, é possível verificar que a resolução previa o ingresso em massa dos operários nos sindicatos tutelados e que a classe operária estaria reunida nestas organizações e, diante da ausência de comunistas e anarcossindicalistas, os oposicionistas poderiam conquistar a direção. “Serrano” também apresentou questionamentos à proposta. Ele argumentou que os sindicatos livres não deveriam ser abandonados antes de uma análise mais minuciosa sobre as condições de luta: “Continuamos a defender a sindicalização livre. É preciso examinar bem as condições da sindicalização oficial e o grau de existência dos sindicatos livres” (LIGA.., 1934c, p. 1). Embora tenha levantado essas precauções, “Serrano” não desconsiderou totalmente o ingresso nos sindicatos oficiais, mas isto só deveria acontecer depois de se confirmar que a luta nos sindicatos autônomos estava perdida: “Queimadas todas as etapas então iremos à oficialização” (LIGA.., 1934c, p. 1). Por sua vez, “Spártaco”, diferente dos demais, apontou que a luta nos sindicatos oficiais era a melhor opção para os oposicionistas: “Acho que a proposta corresponde a necessidade do momento. Não há atualmente possibilidade de se lutar pela sindicalização livre eficazmente”. Para ele, a luta nos sindicatos revolucionários já não era possível, pois estavam se esvaziando, enquanto que os oficiais conquistavam cada vez mais filiados: “os sindicatos livres são simples esqueletos, e não tem crescido. Devemos trabalhar na massa” (LIGA.., 1934c, p. 1). Aristides Lobo reafirmou a concepção que havia defendido durante a I Conferência Nacional. Considerou que por princípio deveriam defender a sindicalização livre, mas reconheceu que esta luta estava cada vez mais difícil de ser sustentada. (LIGA.., 1934c, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 707 p. 1-2). Ele também levantou algumas dúvidas quanto a perspectiva otimista apresentada pela resolução. Afirmou que a burocracia era um risco que não poderia ser subestimado: “Não devemos pensar que não há possibilidades de o governo criar uma burocracia nos sindicatos oficiais. Acho que esta burocracia tem muita probabilidade de se formar” (LIGA.., 1934c, p. 2). A discussão seguiu com a intervenção de José Neves que corroborou com a resolução. Segundo Neves, o objetivo de Vargas era submeter o proletariado por meio de uma burocracia sindical. Mas, ao contrário do que esperava o governo, a direção dos sindicatos oficiais não estava dominada por uma burocracia e sua direção se mostrava combativa: “Os conflitos surgidos nos sindicatos provocaram a formação de uma vanguarda e não de uma burocracia” (LIGA.., 1934c, p. 2). Nesta perspectiva, apontou que o que faltava às direções reformistas era organizar o proletariado para lutar contra o MTIC. Concluiu que os oposicionistas já deveriam ter ocupado este espaço: “Se desde o começo tivéssemos entrado lá dentro, hoje a situação seria outra: haveria movimento e a massa talvez estivesse organizada” (LIGA.., 1934c, p. 2). Encerrando a discussão, Lobo propôs que se aprovasse a proposta, alterando algumas partes da redação acentuando o caráter tático da resolução e fazendo proceder uma afirmação de princípio pela sindicalização livre. Assim, a reunião ampliada da LCI aprovou um giro na tática sindical, orientando seus militantes a atuarem no interior dos sindicatos oficiais, mas, sem abandonar o trabalho nos sindicatos livres, especialmente na União dos Trabalhadores Gráficos (UTG), onde não se faria campanha pela oficialização do sindicato. Dessa forma, a partir dos primeiros meses de 1934, a LCI iniciou um 708 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) trabalho ilegal no interior dos sindicatos controlados pelo MTIC. Em A Luta de Classe, órgão oficial da LCI, publicado em maio de 1934, constam três artigos que abordam a questão sindical. Nesta edição apresentaram análises sobre o avanço da estrutura corporativista sobre as organizações operárias e, confirmando a resolução aprovada em fevereiro, apontaram as perspectivas de luta no interior dos sindicatos oficiais. O artigo intitulado “O movimento sindical no Brasil e suas perspectivas revolucionárias”, buscou traçar um panorama sobre as motivações da Lei de Sindicalização e suas consequências para o movimento operário. De acordo com a publicação, o sindicalismo oficial não passava de uma tentativa de harmonizar e atenuar os conflitos de classe por meio da subordinação das organizações do proletariado ao aparelho burocrático do Estado. Assinalaram ainda que este se colocava como árbitro dos conflitos entre operários e burgueses, descaracterizando e despolitizando os sindicatos, invalidando o seu caráter de defensor dos interesses imediatos dos trabalhadores. Todavia, de acordo com a interpretação da LCI, os sindicatos legais não estavam sendo capazes de cercear e limitar a ação da classe operária, pois a luta persistia e se acentuava: “Os conflitos de classe não se atenuaram, mas ao contrário, tornaram-se mais extensos e mais profundos. A ação “mediadora” do Ministério do Trabalho não tardou a mostrar a uma camada bastante ponderável da classe operária o seu sentido mistificador” (LIGA..., 1934d, p. 4). Os oposicionistas afirmaram que as massas operárias tomavam consciência do caráter negativo que a Lei de Sindicalização apresentava e utilizavam da estrutura sindical corporativista para garantirem sua organização e levarem adiante suas lutas: II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 709 “Sindicatos que nunca haviam existido, sequer antes da lei de sindicalização, em lugar de serem os instrumentos servis da vontade da burguesia dirigente, começaram a voltar-se contra ela. Não foram raros os casos em que, em vários pontos do país, as organizações operárias ministerializadas se insurgiram contra o “seu” Ministério, chegando mesmo, algumas, a devolver-lhes a carta de oficialização. Assim, o tiro saiu pela culatra. A lei de sindicalização foi se tornando aos poucos bem contra a vontade dos seus idealizadores, bem contra os seus planos e seus objetivos finais, em poderoso canalizador de descontentamento de classe.” (LIGA..., 1934d, p. 4). De acordo com a LCI, os sindicatos legalizados não se tornaram instrumentos de submissão dos trabalhadores. Pelo contrário, afirmaram que estes sindicatos estavam se transformando no novo centro da luta operária. Percebiam com demasiado otimismo as possibilidades de luta no interior destes órgãos e subestimavam a força da estrutura corporativista, a ação dos agentes governamentais e das direções colaboracionistas. Ao voltar sua tática sindical para o interior dos sindicatos oficiais, a LCI ainda lançou críticas ao sindicalismo independente, apontando que estes estavam condenados ao desaparecimento: “A sindicalização livre ia ficando cada vez mais, condenada a não passar de um fantasma. Em São Paulo, principal centro industrial do país, só tinham verdadeira consistência os sindicatos formados sob a égide da lei” (LIGA..., 1934d, p. 4). Nesse sentido, combateram comunistas e anarcossindicalistas, afirmando que estes não desempenhavam qualquer papel relevante para o movimento operário. A manutenção destes sindicatos era criticada como uma teimosia das direções que se recusavam em reconhecer o seu fracasso. O giro tático da LCI 710 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) em direção à luta no interior dos sindicatos oficiais estava completo. Todavia, é preciso destacar que eles não apoiavam a estrutura corporativista, apenas afirmavam que a luta contra a tutela sindical teria que ser travada por dentro e não por fora. Já atuando nos sindicatos legalizados, os oposicionistas trabalharam para reorganizar os operários e levar a classe às ruas durante o 1º de maio de 1934. A iniciativa partiu da Frente Única Antifascista, que por meio de uma circular, encaminhada em 6 de abril para todas as organizações sindicais de São Paulo, as convidaram para uma reunião para tratar da organização de um comício em praça pública e de uma marcha pelas ruas da cidade. O objetivo era duplo, promover uma grande manifestação no dia dos trabalhadores e afirmar o repúdio do proletariado ao fascismo, uma vez que os integralistas haviam convocado uma manifestação para a mesma data (LIGA..., 1934b, p. 12). Quase todas as organizações convidadas responderam afirmativamente a circular encaminhada, exceto os sindicatos vinculados à FOSP e a FSR e o Sindicato dos Alfaiates, que não apresentou qualquer justificativa. O Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana que havia confirmado presença não enviou representante à reunião. Segundo os oposicionistas, Armando Laydner, que era presidente do sindicato e deputado de classe na constituinte atuou sabotando a manifestação do 1º de maio.3 Mas esta foi a única deserção e não prejudicou que o trabalho organizativo seguisse normalmente. 3 “O Sindicato dos Ferroviários da Sorocabana não enviou representantes a esta reunião, pois afirmando Laydner, deputado de classe e presidente daquele sindicato, veio imediatamente do Rio, a mando da interventoria de São Paulo, para desviar da manifestação do 1º de maio a massa ferroviária de São Paulo, (...) enfraquecendo assim esta frente única contra burguesia, os anarquistas e os stalinistas” (LIGA..., 1934b, p. 12). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 711 Assim, formou-se um Comitê Central de Organização, eleito nos sindicatos aderentes e da FUA. O comício se realizou no Pátio do Palácio das Indústrias, pois o pedido feito à polícia de São Paulo para a mobilização em praça pública foi rejeitado. Posteriormente, devido à pressão realizada pela imprensa operária, houve a liberação, mas para um local fechado e sem marcha pelas ruas. O ato começou às 14h e, segundo o relato, ocorreu com ampla participação dos trabalhadores. O comício teve início com a fala de representantes de vários sindicatos. Estes destacaram a importância da manifestação, denunciaram a situação de miséria e de exploração dos operários e enfatizaram a luta contra o fascismo. Para os membros da LCI, a manifestação do 1º de maio foi muito significativa. Em A Luta de Classe apontaram que: “A sua importância se encontra, principalmente, no seu caráter, nos resultados positivos obtidos no sentido da unificação do movimento operário, na forma por que foi realizado e na qualidade e no número das organizações aderentes. Considerados em conjunto todos esses elementos, o comício de 1º de maio constitui uma nova etapa no movimento operário de São Paulo e ousamos afirma-lo, de todo o Brasil.” (LIGA..., 1934b, p. 12). A última manifestação operária no dia do trabalhador havia ocorrido em 1930. Após a ascensão de Vargas era a primeira vez que as direções operárias conseguiam mobilizar a classe em um ato comemorativo e reivindicatório. Assim, mesmo diante de alguns limites, o seu significado não poderia ser menosprezado. A LCI argumentou que o proletariado começava a reconhecer que a FUA e a LCI representavam a sua direção consciente. Mas além destas duas organizações políticas, acrescentaram que as organizações 712 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) sindicais surgidas sob a égide do MTIC também compunham a vanguarda proletária: “Parece, à primeira vista, contraditório ou duvidoso considerar como de vanguarda, os elementos dos sindicatos oficializados” (LIGA..., 1934b, p. 12). Mesmo diante da eminente contradição, os oposicionistas destacaram que os sindicatos legalizados responderam ao chamado e apoiaram o ato, contribuindo para a mobilização da classe operária. A LCI aproveitou o sucesso da manifestação do dia do trabalhador para legitimar o ingresso nos sindicatos oficiais. Nesse ínterim, Vargas reformulou a legislação sobre a sindicalização. O Decreto no 24.694, de 12 de julho de 1934, que dispôs “Sobre os sindicatos profissionais” reafirmou a estrutura tutelar que integrava as associações operárias ao aparelho do Estado. Retomando os princípios da Lei de Sindicalização de 1931, para serem reconhecidos, os sindicatos deveriam cumprir uma série os requisitos.4 Permanecia a proibição de conteúdo político em suas reivindicações, o cerceamento de atividade aos estrangeiros, a regulamentação do estatuto e o controle sobre os membros que exerceriam funções 4 De acordo como artigo 5º, os sindicatos deveriam: a) Representar no mínimo um terço dos empregados que exerçam a profissão na respectiva localidade; b) Estabelecer mandato trienal nos cargos de administração, sem reeleição e com a renovação anual do presidente; c) Que apenas brasileiros natos ou naturalizados com mais de 10 anos de residência no Brasil possam exercer cargos de administração. O artigo 8º completava a lista de exigências estabelecendo que o pedido de reconhecimento de qualquer sindicato deveria ser acompanhado de cópia da ata da instalação, do livro de registro de associados e dos respectivos estatutos, autenticados pela mesa que houver presidido a sessão. Apontava que os estatutos só entrariam em vigor depois que fossem aprovados pelo MTIC. Por fim, no capítulo III que versava sobre o funcionamento dos sindicatos, reafirmou-se a proibição de toda e qualquer propaganda de ideologias sectárias e de caráter político ou religiosos, bem como de candidaturas a cargos eletivos estranhos à natureza e aos fins dos sindicatos. (CÂMARA..., 1934b). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 713 administrativas e sobre as finanças dos sindicatos. Ao impedir a atuação política dos sindicatos, o Estado limitava qualquer liberdade de ação sindical. Com a exclusão prévia dos interesses políticos, as associações legalizadas estavam limitadas à luta por reivindicações econômicas. Separados dos interesses políticos, os operários perdiam a liberdade de ação e de contestação. Cada vez mais, os sindicatos deixavam de ser um instrumento de ação política para se transformarem em órgãos de conciliação. A luta de classe dava lugar a uma suposta harmonização entre operários e burguesia, sempre mediada pela legislação corporativa.5 Mesmo diante do aperfeiçoamento da legislação, para os membros da LCI, os sindicatos legalizados ainda poderiam ser conquistados. Eles acreditavam que havia brechas que poderiam e deveriam ser aproveitadas para se politizar estes órgãos e transformá-los em associações combativas. Interpretaram que a atuação de uma vanguarda consciente no interior desses sindicatos poderia superar os limites e avançar sobre todas as barreiras do aparelho corporativo. Esta tática, aprovada em fevereiro de 1934, foi reafirmada durante a III Conferência Nacional da LCI, que ocorreu logo após a promulgação da nova Constituição e do decreto no 24.694. Em julho de 1934, a LCI realizou a sua III Conferência6 e 5 “A “harmonia entre o capital e o trabalho”, tema que será, como veremos exaustivamente utilizado durante o período ditatorial, seria conseguida com a legislação social, cujo verdadeiro sentido era o de organizar e controlar a força de trabalho concentrada nos núcleos urbanos, para que o Estado pudesse promover as demais condições que, relacionadas ao capital, passavam a ser necessárias à implantação da economia industrial capitalista no país.” (BERNARDO, 1982, p. 118). 6 Ao contrário das conferências anteriores, a documentação da III Conferência não foi preservada. Por conseguinte, não temos acesso ao número de participantes, à ordem do dia ou aos debates que foram travados durante a reunião. As informações disponíveis constam em breves artigos que foram publicados em A Luta de Classe, 714 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) o debate sobre a questão sindical esteve, mais uma vez, em pauta. Conforme foi publicado, posteriormente, em A Luta de Classes, durante a reunião foram discutidas e aprovadas novas teses sobre a luta sindical que, de maneira geral, reafirmavam as resoluções anteriores. As teses reconheciam que a Lei de Sindicalização tinha o intuito autoritário de atrelar os sindicatos operários ao Estado centralizador. Apontou ainda que havia inspiração fascista no projeto, pois o modelo italiano era o espelho para se moldar as relações entre capital e trabalho no Brasil. A tese reafirmou que o controle do MTIC sobre as organizações operárias era precário: “Sem possibilidade de formar uma burocracia sindical considerável, por intermédio da qual controlasse todo o movimento e a vida das organizações econômicas da classe operária, porque um aparelho dessa ordem não se improvisa, a “lei de sindicalização” deu na prática um resultado inteiramente oposto ao visado pelos seus elaboradores e aplicadores. Num país em que a organização sindical independente era precária, o decreto governamental favoreceu e incrementou a formação de novos sindicatos, que atingiam corporações importantes e numerosas, até então não organizadas.” (LIGA..., 1934f, p. 6). As teses da LCI reafirmavam que admitiam a sindicalização oficial não como um princípio, mas como um recurso necessário de ligação com as massas. Argumentavam que diante do esvaziamento dos sindicatos livres era importante se dirigir até a classe e buscar orientála. A tarefa que se colocava era de lutar pela unidade sindical, mas no 21, de agosto de 1934. De acordo com o periódico a conferência teve o objetivo de traçar novas tarefas e diretrizes para a organização, reformar os estatutos e eleger nova Comissão Central (LIGA..., 1934e, p. 6). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 715 acrescentavam que se tratava de uma “unidade sindical revolucionária, isto é, por cima da lei, independente do controle oficial” (LIGA..., 1934f, p. 6). A LCI adotou a tática de adentrar nos sindicatos tutelados, mas isso não significava que aceitavam atuar de forma dependente e conciliadora. Além dos oposicionistas, outras tendências reformistas também buscavam se posicionar de forma autônoma e insubmissa. Apesar dos limites institucionais estabelecidos pela legislação, algumas organizações e partidos de base operária que atuavam nos sindicatos legalizados não adotavam postura de subordinação. Mesmo diante das proibições, tentavam encaminhar propostas políticas e promover atos, paralisações e greves: “o enquadramento não traduziu uma postura de derrota e subordinação das correntes independentes do movimento operário” (GOMES, 2005, p. 168). Alguns desses líderes sindicais insubordinados conseguiram ser eleitos como deputados classistas na Assembleia Constituinte. Vasco Toledo, João Vitaca, Waldemar Reicktal e Acir Medeiros foram quatro deputados reformistas que atuaram na defesa dos interesses do proletariado, combatendo a tendência corporativista do Estado. Esta bancada que ficou conhecida como “minoria proletária” defendeu o direito à greve, a unidade e a autonomia sindical.7 Em São Paulo, no segundo semestre de 1934, a luta da LCI no interior dos sindicatos oficiais abriu espaço para que participassem da Coligação dos Sindicatos Proletários (CSP). De acordo com Del Roio 7 “(...) as lideranças independentes de esquerda queriam garantir a liberdade política dos sindicalizados e o princípio da não intervenção governamental na vida interna das associações e o princípio da não intervenção governamental na vida interna das associações. Este era o sentido preciso do termo “autonomia sindical”, que devia coadunar-se com a unidade, sem a qual a organização dos trabalhadores se desagregaria” (GOMES, 2005, p. 168). 716 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) (1990, p. 245-246) a frente foi uma iniciativa do recém-criado Partido Socialista Proletário do Brasil (PSPB) e reuniu, além da LCI, o PSB, o Partido Trabalhista do Brasil (PTB) e o PCB. A LCI foi uma das principais apoiadoras da coligação que aglutinou diversos sindicatos oficiais, entre os quais o dos Contadores, Bancários, Comerciários, Têxteis, Gráficos, Metalúrgicos, Ferroviários, Alfaiates e Barbeiros. Todavia, de acordo com Alzira Campos (1998, p. 248), a frente foi marcada pelas disputas entre trotskistas e stalinistas. Quando o PCB aderiu à coligação, se instaurou um cenário de conflitos. Assim, a frente teve uma vida efêmera e perdurou apenas até as eleições de outubro de 1934. Não obstante, o esfacelamento da Coligação Sindical impulsionou uma frente eleitoral. Intitulada Coligação Proletária, essa aliança surgiu devido a iniciativa da LCI que convidou os socialistas e os comunistas para lançarem candidatos operários às eleições para a Constituinte Paulista de 14 de outubro.8 Em editorial, os trotskistas argumentaram que o objetivo era reunir todos os partidos ou organizações que se definissem como de tendência socialista ou proletária: “O acordo deverá ter um nítido e inequívoco caráter de classe” (COMISSÃO..., 1934, p. 1). A LCI reconhecia que apresentava divergências com os partidos socialistas, mas que mesmo assim, era preciso deixar de lado o sectarismo e buscar juntar as forças e dialogar com essas tendências de base proletária, a fim de se contrapor aos partidos burgueses 8 “A LCI propõe ao Partido Socialista, ao Partido Comunista, ao Partido Socialista Proletário e aos elementos proletários, com programa definido, um acordo técnico-eleitoral no intuito de evitar que os votos em segundo turno se dispersem inutilmente, com proveito para os partidos burgueses. É preciso disciplinar o eleitorado proletário. (...) Devemos canalizar os votos para uma legenda comum, formada pelos candidatos dos partidos proletários ideologicamente afins.” (COMISSÃO..., 1934, p. 1). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 717 (COMISSÃO..., 1934, p. 2). A frente eleitoral elegeu apenas um deputado, mas conseguiu um total de votos superior aos candidatos da Ação Integralista Brasileira (AIB) e do PCB, que não aderiu à Coligação (COGGIOLA, 2003, p. 268). Apesar dos limites impostos pela legislação corporativista, os trotskistas buscaram atuar no interior dos sindicatos oficiais, apresentando reivindicações econômicas e políticas, organizando alianças e mobilizações. Não obstante, a tática de e ação no interior dos sindicatos oficiais foi revista e abandonada pela LCI no início de 1935. O fator determinante para a revisão tática foi a publicação da Lei de Segurança Nacional (LSN), também conhecida como “Lei Monstro”, que entrou em vigor em abril de 1935. Elaborada pelo Ministro da Justiça, Vicente Rao e pelo deputado federal Raul Fernandes, a lei foi aprovada na câmara dos deputados e sancionada por Vargas em 4 de abril. A LSN era uma resposta ao crescimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e um ataque decisivo às liberdades democráticas garantidas pelo Constituição de 1934. A “Lei Monstro” estabeleceu os crimes contra a ordem política e social. A legislação vetou a organização de associações ou partidos políticos que apresentassem caráter subversivo. Impediu a impressão e circulação de livros, panfletos e quaisquer outras publicações que se manifestassem contrárias à ordem. Pelo mesmo motivo, determinou que sindicatos e associações profissionais poderiam ser fechados, estrangeiros naturalizados poderiam ser expulsos e funcionários públicos poderiam ser demitidos. A nova legislação legitimava a ampliação da perseguição e repressão aos militantes de todas as organizações operárias. Diante da repressão, os oposicionistas perceberam que todos os caminhos para atuar no interior dos sindicatos 718 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) legais estavam fechados. Já em abril, em A Luta de Classe, no 20, a LCI observou que com a “Lei Monstro” a independência sindical estava totalmente comprometida: “O governo armou-se para cortar o caminho a qualquer ação do proletariado mesmo legal” (LIGA..., 1935a, p. 3). A publicação afirmou que a LSN era uma Lei de Exceção com o objetivo de barrar qualquer atividade independente da classe operária e resultaria na destruição das suas organizações e na perseguição da vanguarda da classe. A LCI argumentava até então que, apesar das barreiras impostas pelo MTIC, ainda era possível lutar no interior das associações operárias legais, mas a LSN alterou o cenário, ela significava a impossibilidade completa de um trabalho político nesses sindicatos: “No terreno sindical o mesmo perigo pesa sobre a classe operária. Freados em todos os seus movimentos dentro dos sindicatos – freado o próprio sindicato – os militantes revolucionários terão dificuldades enormes em impedir que os agentes da burguesia no movimento operário transformem o sindicato em simples repartições do Estado, de organizações de luta em agências da polícia. Nas atuais condições, para o combate ao amarelismo e ao desvirtuamento dos sindicatos é preciso transportar o eixo da luta para as fábricas oficinas e locais de trabalho; é preciso constituir os comitês de fábricas e oficina; preciso ainda levantar as bases ilegais da ação sindical.” (LIGA..., 1935a, p. 3). Ao sancionar a repressão a todo discurso dissonante, o governo barrava qualquer ação independente e política da vanguarda operária e consolidava os sindicatos como órgãos instrumentalizados para conciliação entre capital e trabalho. Nesse cenário, a LCI abandonou a II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 719 tática de lutar no interior dos sindicatos oficiais e reorientou a militância para realizar um trabalho ilegal no interior das fábricas. Essa mudança tática significou reorganizar o trabalho sindical sob bases ilegais, ou seja, era preciso sair dos sindicatos e retornar à luta clandestina para a organização de comitês operários. Em outro artigo, publicado em A Luta de Classe, no 23, de maio de 1935, os oposicionistas reafirmaram a posição de que a vanguarda da classe estava submetida a mais profunda ilegalidade e que os sindicatos estavam amordaçados: “Ao lado dos métodos de violência e terror, a cargo da polícia, o governo burguês emprega os meios de corrupção e da venalidade, a cargo do Ministério do Trabalho. Uma burocracia trabalhista amarela vai se formando, sob o patrocínio do governo, destinada a substituir na direção das organizações de classe, sindicatos, caixas de aposentadorias, etc, os elementos conscientes da vanguarda operária. O maior resultado de tais “leis sociais” promulgadas pelo governo, tem sido até hoje o de favorecer a criação desta casta infecta de bonzos sindicais traidores.” (LIGA, 1935b, p. 1). O principal argumento da LCI, ao lançarem a tática de penetração nos sindicatos oficiais, era o de que estas organizações reuniam uma ampla massa e não havia uma burocracia estatal capaz de dominar a classe trabalhadora. Aqui, eles já destacaram que esta casta burocrática estava se constituindo. A direção dos sindicatos oficiais ia sendo dominada por agentes “amarelos” controlados, financiados, corrompidos. Nesse sentido, ainda consideravam que a legislação social favorecia e possibilitava a ascensão de direções que se tornavam dóceis instrumentos no controle das associações operárias. A greve dos gráficos em agosto de 1935 ilustra a fragilidade 720 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) e a desorganização do movimento operário após a “Lei Monstro” ser sancionada. Depois que a ANL foi fechada em julho, os comunistas lançaram manifestos pela convocação de uma greve geral e a vanguarda dos trabalhadores gráficos começou a trabalhar pela realização de um movimento paredista em protesto a ação arbitrária. A greve conseguiu aglutinar várias oficinas. Mas logo após o seu início a polícia interveio, perseguiu e prendeu operários e diretores sindicais. Diante da ação policial a paralisação perdeu força e os trabalhadores voltaram ao trabalho. Estes acontecimentos servem para iluminar as condições em que se encontrava o movimento operário brasileiro naquele período. Com sindicatos cooptados, atrelados ao MTIC e com a repressão policial legitimada pela LSN, a mobilização se tornava ainda mais difícil. Em novembro de 1935, após o fracasso dos levantes em Natal, Pernambuco e no Rio de Janeiro, o governo Vargas trilhou caminhos ainda mais autoritários e decretou Estado de sítio e Estado de guerra. A intervenção nos sindicatos foi devastadora. Somente então, por meio de ampla repressão, o número de trabalhadores filiados aos sindicatos oficiais se ampliou e estas organizações se consolidaram. Nesse sentido, não é possível negligenciar e relativiza o autoritarismo com que Vargas exerceu o controle sobre os sindicatos. Ora, a consolidação do sindicalismo corporativista não foi resultado de um “pacto” entre dois sujeitos, resultado de uma escolha consciente da classe trabalhadora. Ao contrário, é preciso destacar que a repressão foi fundamental para a consolidação dos sindicatos oficiais. Referências bibliográficas BERNARDO, Antônio Carlos. 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II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 723 A ruptura Trotsky-Pedrosa e seus reflexos no marxismo no Brasil Flo Menezes1 Lebrun e sua verve crítica Concluído em 9 de novembro de 1939, o texto “A defesa da URSS na guerra atual” (PEDROSA, 2005) constitui um dos mais preciosos documentos do marxismo brasileiro. Seu contexto, internacional, decorre da notável atuação política dentro e fora do Brasil de seu autor: Mário Pedrosa, o primeiro trotskista, ao lado de seu amigo Lívio Xavier, entre nós. O texto, brilhante, aparece sob o pseudônimo de Lebrun em fevereiro de 1940, originalmente em inglês, no Internal Bulletin do SWP, o Socialist Workers Party, partido trotskista dos Estados Unidos, e sua redação como que precede os acontecimentos sombrios da Finlândia, em que o regime bonapartista de Stalin, ao invadir aquele país, evidenciava cada vez mais sua tática expansionista de cunho imperialista, sufocando o movimento autônomo dos trabalhadores nos países invadidos e impondo o “socialismo” já fortemente burocratizado “na ponta das baionetas”. A discussão encampada por Pedrosa decorria de intensa discussão entre os militantes do SWP e da iminente IV Internacional, envolvendo ativamente Trotsky, acerca da natureza do Estado Soviético: em que medida se tratava ainda, sob as botas de Stalin, de um 1 Compositor, defensor do Maximalismo na Música e na Política e Professor Titular da Unesp. Email: flo@flomenezes.mus.br 724 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Estado Operário, ou se já tínhamos uma tal degeneração da Revolução que o caráter operário do Estado Soviético já não mais poderia ser sustentado. Nos poucos meses que antecederam e sucederam o texto do brasileiro, Trotsky empunhava uma série de cartas dirigidas àqueles militantes e redigia importantes textos sobre a questão, depois coletados sob o título de Em defesa do marxismo (TROTSKY, 1984), um dos documentos mais contundentes do marxismo do século XX e, ao lado de A Revolução traída, de 1936, talvez o mais importante escrito do último Trotsky. É ali mesmo que lemos: Certa vez Robespierre disse que o povo não gosta de missionários com baionetas. Com isso, queria dizer que é impossível impor ideias e instituições revolucionárias sobre outros povos mediante a violência militar. Logicamente, esta ideia, correta, não significa que seja inadmissível a intervenção militar em outros países com o objetivo de cooperar com uma revolução. Mas tal intervenção – como parte de uma política internacional revolucionária – deve ser entendida pelo proletariado internacional, deve corresponder aos desejos das massas revolucionárias em cujo território as tropas revolucionárias vão entrar. (TROTSKY, 1984, p. 43) Ao redigir o documento, as ideias de Pedrosa pareciam, portanto, ir ao encontro das de Trotsky, pois acordava-se sobre o problema de fundo: condenar as invasões stalinistas se as intervenções do Exército Vermelho não encontrassem respaldo nos movimentos revolucionários locais, e Pedrosa manifestava o desejo de promover, assim, uma discussão arejada no seio da IV Internacional: “O regime da Internacional, e – assim espero – também de nosso partido norteamericano, é suficientemente sadio para permitir tal discussão” (PEDROSA, 2005, p. 290-291). II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 725 Trazer à tona tal discussão parecia salutar a Pedrosa, e seu desejo de debate encontrava, aparentemente, respaldo no próprio Trotsky que, dois meses antes do texto de Pedrosa (mais precisamente em 24 de setembro de 1939), afirmaria que “seria um monstruoso absurdo romper com os camaradas que possuem uma opinião diferente da nossa sobre o problema da natureza social da URSS, na medida em que se solidarizam conosco no que diz respeito às tarefas políticas” (TROTSKY, 1984, p. 19). Mas em que pareciam divergir Pedrosa e alguns militantes do SWP das ideias basilares de Trotsky, e quais foram as consequências práticas dessa discussão? Quanto ao primeiro aspecto da questão, não resta dúvidas: no fato de que, diante de tais invasões, a tese de uma defesa incondicional da URSS devesse ser questionada. A tese de uma insustentabilidade de uma tal defesa incondicional emergia já em muitos dos aguerridos militantes trotskistas mundo afora, a ponto de, por vezes, ser confundida com a própria defesa da URSS, independentemente desta ser condicionada ou não pelos acontecimentos concretos de cada caso em particular, e encontrava eco inclusive no campo da intelectualidade artística, à qual, como sabemos, se sentiria ligado visceralmente Pedrosa, que viria a ter atuação marcante como crítico de arte e defensor intransigente das vanguardas artísticas. O próprio movimento surrealista, que pelo menos desde 1934 apoiava, diante das atrocidades stalinistas, Trotsky e saía fervorosamente em sua defesa, e que tinha em André Breton seu expoente máximo – o mesmo escritor que, como sabemos, iria ao encontro de Trotsky em Coyoacán em 1938 para a redação, com Trotsky e Diego Rivera, do revolucionário Manifesto da F.I.A.R.I (a Federação Internacional dos Artistas Revolucionários Independentes) –, já havia se pronunciado, 726 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) numa Déclaration intitulada “La vérité sur le Procès de Moscou”, assinada por 12 artistas surrealistas e lida por Breton em 3 de setembro de 1936, com certo ceticismo em relação à tese trotskista, chegando a questionar, como dissemos acima, a própria defesa da URSS após o desmascaramento dos Processos de Moscou: “Fazemos, sob essas condições, todas as reservas sobre a manutenção da palavra de ordem: ‘Defesa da URSS’”, concluindo de modo sintomático sua adesão à liderança de Trotsky sem deixar de pontuar que, mesmo ao lado de suas ideias, elas não lhes pareciam sempre infalíveis: “Saudamos este homem que foi para nós, abstração feita de ocasionais opiniões não infalíveis que foi levado a formular, um guia intelectual e moral de primeira grandeza e cuja vida, na medida em que se vê ameaçada, nos é tão preciosa quanto à nossa” (s.a., 2016, p. 96; grifos originais). Não questionando a defesa da URSS tout court, mas antes sua incondicionalidade, a pena aguda de Lebrun iria no mesmo caminho. A argumentação de Pedrosa Para almejarmos uma visão crítica e atual deste acontecimento histórico, é necessário passarmos nosso olhar sobre as ideias fundamentais elencadas por Pedrosa em seu documento, que ele mesmo organiza em doze pontos: 1. O primeiro aspecto é a premissa de base da qual parte sua argumentação: “Para todos nós a defesa da URSS significa a defesa da nacionalização dos meios de produção e da economia planificada” (PEDROSA, 2005, p. 291). Mesmo admitindo, no decurso da guerra, a possibilidade de uma reintrodução de modos de produção capitalistas por parte da burocracia stalinista – o que, no entanto, viria a se II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 727 concretizar, como profetizado por Trotsky em A Revolução traída, com o retrocesso ao capitalismo na Rússia somente nos anos 1990 –, não se trata, portanto, de abdicar da defesa propriamente dita da URSS, mas antes de sua incondicionalidade. Em tal formulação – frise-se –, admite-se a caracterização da URSS como Estado Operário Degenerado: “A URSS é ou não é um Estado operário degenerado? Ao ultimatismo poderíamos responder: Sim, mas é precisamente sua profunda degenerescência que torna a sua defesa condicional” (idem, p. 292). 2. Diante dos recentes acontecimentos que antecipariam o fato finlandês – mais precisamente, a invasão por Stalin da Polônia em 17 de setembro de 1939 –, Pedrosa esclarecia que se opunham, no seio do trotskismo, duas visões antagônicas: uma defensivista; outra derrotista. Assim as resumia, tomando partido, mesmo que aqui ainda não explicitamente, pelo derrotismo revolucionário: Quando da invasão da Polônia pelo Exército Vermelho, em aliança com as tropas nazistas, a vanguarda revolucionária de todo o mundo, e principalmente nossos companheiros poloneses, encontram-se em face de uma situação nova, não prevista pela fórmula defensivista: que atitude tomar ante o Exército Vermelho invasor? Defendêlo, combater a seu lado contra o exército burguês, ser os melhores soldados da Rússia Soviética, ou assumir uma atitude derrotista e apelar para os soldados dos dois campos para se revoltarem contra seus patrões, confraternizando-se com o povo por uma revolução soviética na Polônia burguesa derrotada? (Idem, p. 293; grifos originais) Pedrosa antevia, pois, que, em tais situações concretas, enfileirar-se ao lado do Exército Vermelho, que em tais circunstâncias procuraria – como comprovado pelos fatos históricos – abafar o 728 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) movimento revolucionário dos trabalhadores nos países invadidos, representaria um salvo conduto ao fortalecimento da burocracia stalinista, na contramão da revolução internacional. O revolucionário deveria, assim, procurar tirar vantagem da instabilidade instaurada pelas invasões stalinistas, que logicamente enfraqueceriam as burguesias locais, para organizar as forças revolucionárias quer seja contra a burguesia do país invadido, quer seja contra as baionetas da própria burocracia stalinista. 3. A aliança Hitler-Stalin recolocava a questão da incondicionalidade de uma defesa da URSS, pois se esta se calcava no risco de destruição do Estado Soviético em decorrência de seu isolamento e das pressões que sofria pelas potências imperialistas, as atuais conjunturas internacionais escancaravam as estratégias stalinistas de colaborações francamente contrarrevolucionárias, mesmo que temporárias, e que visavam tão somente o fortalecimento da burocracia stalinista. Tornava-se patente o fato de que se Stalin defendia o Estado Soviético, o fazia não pelo que nele havia de revolucionário, e muito menos de internacionalista, mas exclusivamente como meio de preservação de sua casta bonapartista e de seu próprio poder: Até esse momento sempre consideramos a tarefa da defesa como sendo independente da conjuntura política internacional. Ainda que denunciando a política reacionária de Stalin, sempre diferenciamos a política externa soviética da política das potências imperialistas. Sempre reconhecemos ao governo soviético o direito de manobrar entre os blocos imperialistas, pois essa necessidade de manobras era ditada não para um objetivo de conquistas, mas pela necessidade de defesa do Estado operário isolado num círculo hostil. (Idem, p. 294) II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 729 É nesse sentido que Pedrosa afirma que “para manter o bloco ‘antifascista’ Stalin cometeu contra o proletariado mundial todos os crimes imagináveis” (idem, p. 295), resumindo de modo perspicaz a questão: “Toda a política de IV Internacional em relação à defesa da URSS stalinizada fundava-se no papel progressista e no caráter forçadamente defensivo da guerra do Estado soviético. [...] Tratavase de defender seu sistema social de propriedade ameaçado pelos imperialismos” (idem, ibidem), mas as invasões stalinistas apontavam para um novo contexto, e Pedrosa tira daí aguda conclusão: “A pequena guerra levada por Stalin até agora, na Polônia e nos países bálticos, é de um caráter completamente novo. O papel da URSS está inteiramente modificado. Esta guerra não estava prevista em nosso esquema anterior” (idem, p. 296; grifos originais). 4. Ainda que a estratégia de Stalin, ao compactuar-se com Hitler, movia apenas um lance de uma peça em meio a um intrincado jogo de xadrez, visando ganhar tempo e almejando uma vitória da Rússia soviética (e de sua burocracia) na guerra – o que acabou por se dar e o que fez com que milhares de militantes comunistas, incluindo os brasileiros enfileirados no PCB e PCdoB, defendessem Stalin como um “grande estrategista” –, era evidente o caráter novo (e o grifo é do próprio Pedrosa – cf. idem, p. 296) da guerra levada por Stalin. Era necessário desmascarar, portanto, a estratégia stalinista, o que levaria a um questionamento da incondicionalidade da defesa da URSS. A postura pedrosiana não poderia, pois, omitir a perspectiva internacionalista da Revolução, em visão tão premonitória quanto visionária, condizente com o cérebro e o entendimento do próprio Trotsky: “Sentindo a ponta da baioneta de Hitler se aproximar cada vez mais do coração da Rússia, Stalin acabou por capitular, desviando-a 730 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para outra direção. [...] Qual foi o preço de uma reviravolta tão brusca? Quem pagará o custo dos entendimentos?” (idem, p. 297). Subtendiase que a conta seria paga pelo movimento revolucionário internacional. 5. “As mais grandiosas perspectivas históricas podem transformar-se nas mais sombrias conseqüências históricas” (idem, p. 298-299). Com esta frase lapidar, consubstancia-se o quinto argumento de Pedrosa, decorrente da argumentação anterior. A defesa da URSS não poderia, assim, significar a defesa de suas invasões: Toda guerra staliniana ao lado de Hitler, sob a bandeira da luta contra o imperialismo anglofrancês, será apenas uma empresa sinistra destinada a paralisar a revolta das massas e a esmagar a revolução no nascedouro. [...] Apoiar a Rússia nessa empresa, sob o pretexto de defender a economia soviética contra os canhões ingleses e franceses, será sacrificar os interesses da revolução colonial aos interesses das camadas superiores da burocracia, aliadas aos magnatas do 3o Reich. (Idem, p. 299) O argumento de Pedrosa é de uma lucidez inconteste, ainda que, na formulação que mais agudamente expõe seu pensamento, tenha omitido a “incondicionalidade” na defesa da URSS, algo que, no entanto, está claramente subentendido quando assevera: Ante a necessidade de escolher a defesa da URSS e sustentar e aprofundar a revolta dos povos coloniais, nós optamos sem hesitação por esta, porque a vitória da revolução colonial tornará nulos os efeitos de uma derrota militar eventual numa frente qualquer do Exército Vermelho, mesmo nas fronteiras ou no próprio território da URSS. (Idem, ibidem; grifos nossos) Por “defesa da URSS” na afirmação acima, leia-se, obviamente, “defesa incondicional da URSS”, defesa de suas invasões sob o jugo II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 731 de Stalin, pontuando que o sucesso de uma revolução local anularia as consequências contrarrevolucionárias que poderiam advir com uma derrota do Exército Vermelho em uma de suas frentes, e até mesmo dentro do próprio Estado Soviético (Degenerado). Há de se convir que a suposição de Pedrosa, quanto a este aspecto, tendia a sobrevalorizar os efeitos advindos de uma eventual revolução colonial, como se qualquer revolução tivesse por consequência necessariamente uma avalanche da revolução mundial... A formulação, utópica, não oculta, entretanto, sua estratégia revolucionária de fundo: a da luta pelo apoio às revoltas populares coloniais, opondo-se à sua opressão quer seja pelas burguesias locais, que seja pelo seu potencial esmagamento por parte do Exército stalinista invasor. 6. O sexto argumento versa sobre as invasões stalinistas da Polônia e da Finlândia e sua caracterização – o que faz supor que, para sua publicação já em 1940, o texto fora submetido a uma atualização, levando em conta a invasão finlandesa ao final de 1939. Sobre a Finlândia, escreve: “Que nome se daria a essa guerra? Ninguém, acredito, ousará afirmar que Stalin está prestes a libertar a Finlândia ou está indo lá para apoiar a montante revolução proletária” (idem, p. 300). Já sobre a Polônia, lemos a afirmação categórica de que “Stalin esmagou na casca do ovo uma situação revolucionária clássica cujas possibilidades de vitória não eram negligenciáveis” (idem, p. 301). E a conclusão é taxativa, denunciando o papel do Exército Vermelho na Polônia como francamente contrarrevolucionário: O Exército Vermelho chegou tão-somente para canalizar a expropriação, a revolução, nos modelos burocráticos, retomando-a das mãos do povo, expulsando-o, fuzilando seus representantes mais corajosos e independentes. Aqueles que na Polônia haviam depositado suas esperanças na Rússia 732 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de Stalin tiveram de pagar um preço muito alto. (Idem, ibidem) 7. A sétima argumentação é das mais complexas. A questão que se colocava era, pois, condicionada pela guerra em curso, a Segunda Grande Guerra Mundial, que acabava de eclodir, e a maneira como esta era conduzida pelo Estado Soviético. Sua defesa não podia equivaler-se à defesa de todas as suas ações, em especial – é o que se desprende das colocações de Pedrosa – àquelas que diziam respeito ao comportamento militar das frentes stalinistas fora das fronteiras da própria Rússia. Pois haveria de se admitir que, mesmo ainda sendo um Estado “Operário”, na URSS o proletariado já não exercia poder algum e a casta stalinista já se colocava quase que como uma “classe” à parte em sua estrutura social: De sua definição como “estado operário” não se pode deduzir a necessidade absoluta de sua defesa, seja qual for a condição em que a guerra foi conduzida. [...] Apesar de teoricamente ser classe dominante, [a classe operária] não exerce nenhum controle nem assume qualquer responsabilidade pela política de seu Estado. (Idem, p. 302) Naquelas circunstâncias históricas, o Estado Operário, Degenerado, caracterizava-se sobretudo por certo dualismo: ainda que a estrutura distributiva da economia já apresentasse nítidos traços burgueses, uma vez que era regulado e ditado por uma casta burocrática, os meios de produção ainda não estavam nas mãos de corporações (neo) capitalistas, de modo a se preservar o caráter propriamente “operário” do Estado Soviético, mas era preciso diagnosticar a tendência que, com todas as evidências, parecia irreversível no caso da manutenção da casta stalinista no poder, qual seja, a de o caráter burguês prevalecer sobre o caráter operário e a degeneração do Estado Soviético acabar II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 733 desembocando – como previsto pelo próprio Trotsky em 1936 – na reinstauração do sistema capitalista. É nesse sentido que Pedrosa evoca o próprio Trotsky em meio às suas colocações: Segundo Trotsky, o traço dominante desse estado é seu caráter dual: ele insiste sobre o fato de que essa dualidade em lugar de tender ao desaparecimento, cresce dia a dia. A lei burguesa do Estado que, no começo, só dominava no campo da distribuição, tende a invadir cada vez mais o campo decisivo da produção. (Idem, ibidem) Assim é que, “nas condições atuais da Rússia”, afirma Pedrosa, “ninguém pode afirmar que a saída mais fácil seja a da manutenção integral da propriedade coletiva e da economia estatizada” (idem, p. 303), pois se a burguesia fora de fato suprimida, não necessariamente ela havia desaparecido – o que, num certo sentido, aproxima a caracterização da casta stalinista como uma espécie particular de “burguesia”..., tese reforçada pelo retrocesso histórico que a casta stalinista empreendeu rumo à restauração capitalista na Rússia e nos Estados anexados ao ex-Estado Soviético –, algo que entrevemos com a sintética asserção pedrosiana: “A supressão das classes não é o mesmo que o seu desaparecimento” (idem, ibidem). A consequência de tal estado de coisas era a atomização do próprio proletariado: O proletariado vitorioso organizou seu estado para derrotar o inimigo hereditário, a burguesia. Uma vez exterminada esta, o proletariado, entretanto, não gozou dos frutos de sua vitória. Seu Estado voltou-se contra ele, expropriando-o, por sua vez, dos benefícios da vitória contra a burguesia. Perdeu seus meios específicos de defesa (os sindicatos), perdeu os meios de expressão consciente (o partido). Tornou-se atomizado como as outras classes, camponesas e burguesas. (Idem, ibidem) 734 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) E será, segundo Pedrosa, diante desta atomização que se justificará então a postura por um derrotismo a partir do proletariado de dentro da própria URSS, como meio de derrocar a burocracia. Aqui, a posição de Pedrosa se evidencia com todas as letras: A via do proletariado, sendo a única progressista, pode ser, ainda neste caso, a mais difícil e radical. [...] A via da restauração política do proletariado não é a frio; é revolucionária. [...] A guerra, sem revolução vitoriosa, será fatal ao proletariado russo, mesmo com a vitória militar da clique bonapartista dirigente. O canal mais importante da contra-revolução é a própria burocracia. Por que então esse proletariado, ainda que considerado classe dominante, não pode ser derrotista em seu Estado? [...] Pode-se conceber uma sólida coesão nacional em uma sociedade atomizada, totalitária? (Idem, p. 303-304; grifos nossos) 8. Este ponto desdobra-se no oitavo argumento, pontuando que a incondicionalidade de uma defesa da URSS poderia desacelerar ainda mais os processos revolucionários, na medida em que fortaleceria, de alguma forma, a casta burocrática dirigente: Qual é a melhor tática, nas atuais condições, a defensivista ou a derrotista? [...] Na URSS o perigo emana do fato de que o processo da contrarevolução pode vencer, em velocidade, o da revolução. A política da defesa incondicional pode desacelerar ainda mais este, que já está atrasado. [...] A vanguarda revolucionária não deve amarrar as próprias mãos antecipadamente, a priori, por uma tática defensivista, isto é, de lealdade para com a burocracia. (Idem, p. 304) O derrotismo consistiria, assim, essencialmente em ação dirigida do proletariado revolucionário contra a burocracia stalinista, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 735 pois aliar-se a ela, mesmo em situação de guerra contra a burguesia, seria o mesmo que assinar sua própria sentença de morte. A luta contra a burguesia encontraria seu pendant na luta contra o stalinismo na forma do derrotismo revolucionário, e se o que se defende é o caráter operário do Estado Soviético, esta sua defesa estaria condicionada pelas condições concretas dadas pelas ações empreendidas pela burocracia stalinista. O proletariado revolucionário não deve, pois, ficar a reboque da burocracia stalinista, mas necessita antes de sua autonomia de classe diante da casta bonapartista, analisando e assumindo sua postura estratégica diante de cada situação concreta: Se, pois, para conferir à propriedade estatizada todas as possibilidades de um desenvolvimento socialista, o proletariado deve defendê-la contra a burocracia, arrancá-la de suas mãos, não se pode excluir, por uma afirmação de princípio (a saber: a Rússia é um estado operário degenerado), a necessidade, em certos casos concretos, segundo o caráter ou o papel histórico da guerra, para a qual a burocracia deseja arrastar todo o país, de uma tática derrotista da parte da classe operária. (Idem, p. 305) 9. Se a incondicionalidade de uma defesa do Estado Operário passa por sua própria definição, Pedrosa coloca-a em xeque e é nela que se concentra o nono argumento, no qual evoca Engels, Marx, Lênin e o próprio Trotsky. Ao fazê-lo, enaltece a necessidade de se ater à dinâmica dos acontecimentos quanto à própria definição do Estado Soviético. À noção de Estado Operário, Pedrosa abre espaço para a de um Estado livre burocratizado, definição já presente em Engels: Nenhuma análise teórica esgota a questão da natureza do Estado soviético. A análise de ontem não é mais suficiente para a situação tal como ela se apresenta hoje. Engels falou de “um Estado livre frente a seus 736 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) concidadãos”; Marx, a propósito da burocracia de Luís Bonaparte, falou de uma ”classe artificial”; Lenin, a propósito do próprio Estado soviético criticou a expressão “Estado operário” como inexata, porque, em sua opinião, o Estado russo era “operário... e camponês”, ou, antes, detalhava, um Estado burocrático dominado pelo proletariado. E, finalmente, Trotsky, ao caracterizar a burocracia staliniana, reconheceu que ela era “algo mais que uma simples burocracia”. E, ainda recentemente, afirmava [em “Les défaitistes totalitaires”, La Quatrième Internationale, Paris, n. 14/15, novembro/dezembro de 1938]: “A burocracia soviética reuniu em torno de si, presentemente, em certo sentido, os traços de todas as classes derrubadas, mas sem possuir as suas raízes sociais nem suas tradições”. (Idem, p. 307) 10. Com grande perspicácia, Pedrosa procura então distinguir o que se deve e não se deve defender com relação ao Estado Soviético, independentemente de sua exata definição enquanto Estado, pois é naquilo que ele possui de socialista que sua defesa poderia ser sustentada. As ações de cunho imperialista empreendidas pela casta stalinista nada tem que ver, porém, com a defesa do aspecto progressista e mesmo socialista que adquire aquele Estado cujo poder é usurpado por essa mesma burocracia: “A política externa da URSS não decorre necessariamente do que nos resta para ser defendido na Rússia: a propriedade estatizada e a economia planificada. É mesmo tudo ao contrário” (idem, p. 308). A estratégia stalinista é, portanto, coerente com seu potencial despótico e usurpador, tanto em sentido, digamos, “centrífugo”, para fora do Estado Soviético (na forma de suas ações militares e invasivas), quanto em sentido “centrípeto”, no que diz respeito ao próprio Estado Soviético internamente, dentro de suas fronteiras. Tanto lá quanto cá as intenções são claras: fortalecer II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 737 a hegemonia da casta dominante, que se vale, ainda, da economia planificada e centralizada para perpetuar seu poder, mas que, pouco a pouco, antepõe-se a esta mesma estrutura coletivista da economia. Ora, se no interior do próprio Estado Soviético há ainda, do ponto de vista revolucionário, o que se defender – ou seja, o caráter coletivo de sua estrutura econômica –, o mesmo não pode ser dito com relação às ações empreendidas pelo Exército Vermelho, agora nas mãos de Stalin, em sua política externa: ali, não há o que se defender. Assim é que lemos em Pedrosa: Do mesmo modo como a política externa toma um caráter cada vez mais conscientemente hostil aos interesses da revolução mundial, a política interna da fração burocrática no poder toma o caráter cada vez mais antagônico com a estrutura econômica coletivizada. (Idem, ibidem) Em tais ações do militarismo stalinista, Pedrosa vê um caráter inquestionavelmente imperialista e, nesse contexto, evoca o próprio Trotsky: “Foi o camarada Crux [pseudônimo utilizado por Trotsky] em pessoa o primeiro a crer a burocracia capaz ‘de todos os crimes imagináveis’, incluindo o de ‘empreender uma política imperialista’” (idem, p. 310). Nesse mesmo contexto, Pedrosa chega a tecer comentários sobre o processo que, com razão, via em curso de uma nova acumulação primitiva ou capitalista por parte da casta stalinista: [A burocracia stalinista,] ao assegurar o desenvolvimento das forças produtivas da economia soviética, salvou, durante algum tempo, as bases econômicas da Revolução de Outubro. Mas nós estamos agora diante de um novo ciclo de reprodução. As notas promissórias da primeira industrialização acabam de vencer. Todo o capital então acumulado precisa ser renovado. No fundo, trata-se de achar as bases de uma nova acumulação. 738 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) [...] Ela conseguiu, na ocasião, “salvar” os fundamentos econômicos do Estado operário, mas ao preço de destronar definitivamente o proletariado. Com a planificação econômica, ela fez dos meios de produção e da renda nacional seu monopólio exclusivo. Desde então, ela mantém, no conjunto do processo econômico, a mesma posição que os grandes magnatas imperialistas nos grandes setores monopolizados do capitalismo [...]. (Idem, p. 311) Este último aspecto, vale dizer, não contraria, mas antes vai ao encontro das profecias de Trotsky em A Revolução traída, mas, no presente contexto, procura consubstanciar o porquê de uma defesa condicional à própria constituição do Estado Soviético no que preservava, ainda, de eminentemente “operário”, distando-se de uma sua defesa tout court, sob qualquer condição. Em meio ao processo de tal acumulação capitalista, paralela a seu próprio fortalecimento, a burocracia stalinista oscila como numa gangorra, valendo-se do que melhor lhe parecia, se guerra, ou se paz, decorrendo daí tanto momentos de agressão quanto de pacto diante das potências imperialistas: “Para superar a crise e consolidar suas posições de modo definitivo a burocracia hesita entre dois métodos, o da paz e o da guerra” (idem, p. 312). Tais oscilações, cuidadosamente articuladas por Stalin, mas que, utilizando-se das direções dos Partidos Comunistas mundo afora como seus fantoches, tinham e tiveram historicamente por consequência hesitações comprometedoras nas políticas internas e externas desses partidos, faziam que as ações militares stalinistas adquirissem um aspecto deliberadamente aventureiro, aparentemente contraditório com sua elaboração franca e meticulosamente contrarrevolucionária: “[A burocracia stalinista] quer encontrar uma base econômica e social própria, estável, sobre a qual possa desabrochar à vontade e assegurar- II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 739 se, na história, um lugar permanente como uma verdadeira classe social: é exatamente o que ela procura na sua política de aventura no exterior” (idem, p. 313). O aspecto “aventureiro” transparece quando, em um momento, compactua com o imperialismo, mas, em outro, o agride, bem conforme sua conveniência, e a grande vitória de Stalin sobre Hitler, após ter com este selado pacto inescrupuloso – vitória esta que iludiu a tantos militantes comunistas –, serviu à preservação não do Estado Operário em si, mas deste Estado já assumidamente Degenerado, a ponto de termos vivenciado seu crasso retrocesso ao capitalismo, tão bem previsto – salientemos mais uma vez – por Trotsky. 11. Daí resulta um dos pronunciamentos mais lúcidos de Mário Pedrosa em seu documento histórico: a de ter se posicionado radicalmente contra as guerras imperialistas, algo que ecoava – frisemos – a posição irretocável de Rosa Luxemburgo já diante da Primeira Grande Guerra Mundial. Nisso consiste sua penúltima argumentação: A continuidade de Stalin, na guerra ou na paz, é a colonização e o desmembramento da URSS ou o fascismo. Sua vitória na guerra é o fascismo na Rússia como no mundo. A bandeira da suástica também é “vermelha”. A vitória de Stalin aliado a Hitler transformaria a burocracia em uma nova classe depois de um processo de nacionalização de que a própria burocracia seria o objeto. (Idem, p. 314; grifos originais) Segue-se imediatamente a esta asserção uma outra, taxativa, que muito serviria ao contexto atual da Guerra na Ucrânia, promovida pelo governo imperialista e neo-tzarista de Putin contra a política igualmente imperialista da OTAN, infiltrada no governo-fantoche 740 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de direita da Ucrânia, guerra à qual todo e qualquer revolucionário deveria se opor e na qual os trabalhadores só têm a perder, mas cuja posição, revolucionária, é tendenciosamente confundida como sendo a de um oco “pacifismo”: Nós não temos motivo algum para ajudar direta ou indiretamente a vitória de um campo imperialista qualquer. A vitória de qualquer um dos bandidos seria o triunfo da contrarrevolução fascista, se pudermos imaginar que esta guerra terminasse sem a intervenção revolucionária das massas. (Idem, ibidem; grifos nossos) 12. Na argumentação derradeira, Pedrosa conclui fazendo uma síntese das anteriores, em claríssima formulação: Em vista de tudo o que precede, acreditamos ser a fórmula da “defesa incondicional da URSS contra um ataque imperialista” insuficiente, pois ela pode arrastar a Internacional a um impasse (Polônia!). Numa guerra isolada entre a URSS e uma potência imperialista qualquer, nós defenderemos a primeira, do mesmo modo como defendemos a China contra o Japão ou Porto Rico ou El Salvador contra os Estados Unidos. Seria também o caso para defesa na eventualidade de um ataque de Hitler contra as novas fronteiras da URSS, pois se trataria, então, de uma guerra de caráter diferente daquele da guerra atual. (Idem, p. 315) E, emendando, evoca a necessidade de uma análise de cada situação concreta, algo tão presente na conduta leninista: No caso de uma guerra mista, a tática defensivista deve depender do caráter da guerra, de seu papel histórico, das perspectivas de revolução que dela decorrem, ou do grau de ameaça que pesa contra a estrutura econômica da URSS. É preciso, pois, evitar traçar adiantadamente a tática a seguir de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 741 uma vez por todas: é preferível fazê-la em cada caso concreto. (Idem, p. 315) Pedrosa não fecha, pois, a questão. Ao contrário do que poderia se supor, não assume qualquer posição intransigente, e seu texto estimula e incita o... debate! “Não há, pois, nada de extravagante, nem teórica nem politicamente, em sustentar, por analogia, que no decurso da mesma guerra nos é permitido retornar de uma tática derrotista para uma tática defensivista” (idem, p. 317). Ao que ele se opõe, isto sim, é ao dogma! É nesse sentido que enuncia uma frase poética, ao mesmo tempo que sintomática de sua postura crítica e aberta, prenunciando, contudo, certa resistência ou reserva, por parte do grande líder, diante de suas colocações: “A vida é por demais rica em surpresas para ser encapsulada em quaisquer hipóteses elaboradas pelo espírito” (idem, ibidem). A frase conclusiva deste documento de gênio, se por um lado evoca Lênin em sua defesa em prol de uma análise que sempre se paute por situações concretas, não deixa de nos fazer pensar em Bertolt Brecht – um dos muitos criadores que paradoxalmente aderiram, com uma ilusão que contradiz a clarividência e a inovação de suas ideias, ao stalinismo... Escreve Pedrosa, cerrando sua redação: “Em cada dia sua própria tarefa” (idem, p. 318), frase que nos remete à genial frase brechtiana em Aquele que diz não (Der Neinsager): “In jeder neuen Lage neu nachzudenken” (BRECHT, 1987, p. 254) – que prefiro transcriar assim: “A cada nova situação, pensar nova_mente”. As diferenças são assim tão... diferentes? Em face das ideias de Pedrosa, faz-se necessário o exame das concepções de Trotsky que seriam, em princípio, a elas opostas. Para 742 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) tanto, apoiamo-nos naquela publicação que, especificamente, trata da polêmica em questão: o já mencionado livro Em defesa do marxismo (TROTSKY, 1984), que traz textos e cartas concebidos entre 1939 e 1940, ou seja, até pouco antes do assassinato de Trotsky. E o que de cara nos surpreende é o porquê do tom polêmico em torno da questão da incondicionalidade da defesa da URSS, pois, a partir das colocações de Pedrosa, o que lemos em Trotsky não é absolutamente divergente, mas antes em grande parte convergente com o texto pedrosiano. Deste ponto de vista, tudo leva a crer que o grupo em torno do qual as ideias aparentemente divergentes se aglutinavam pudesse, no bojo de uma discussão que tinha por motivo de fundo a natureza do Estado Soviético sob o jugo de Stalin, aspirar a instituir certa divisão de poder no seio da emergente IV Internacional e, de certo modo, relativizar o papel de liderança de Trotsky, o que teria motivado o grande líder a manter-se precavido diante dessas iniciativas e, em um segundo momento, promover o enfraquecimento deste grupo, destituindo seus membros do Comitê Executivo Internacional (C.E.I.) do qual faziam parte. Mencionamos essa conjuntura, que aqui deliberadamente não detalhamos e que meramente supomos, sobretudo para pontuar que, para além das ideias propriamente ditas, provavelmente pairava certa desconfiança por parte de Trotsky. Pedrosa, pelo teor elaborado de seus textos, e ainda que se visse envolvido e solidário com aqueles que, de dentro do SWP, alimentavam a crítica à incondicionalidade da defesa da URSS, evidentemente travava a discussão no plano das ideias, sem qualquer pretensão em “destronar” a liderança de Trotsky, mas a reação deste último, em relação ao documento pedrosiano, leva-nos a conjecturar que Trotsky dirigiu sua atenção menos ao que o documento II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 743 teoricamente expunha do que com relação à disputa política interna que eventualmente visasse minimizar seu papel de liderança na nova organização. Em um primeiro momento, contudo, Trotsky não se furtou ao debate e ao esclarecimento de suas ideais. No texto fundamental intitulado “A URSS na guerra”, constante do livro mencionado e concluído em 25 de setembro de 1939, Trotsky afirma: O que defendemos na URSS? Não são aquelas coisas nas quais a URSS se parece com os países capitalistas, mas precisamente aquilo em que ela se diferencia destes. [...] Na URSS a derrota da burocracia é indispensável para a preservação da propriedade estatal. Estamos pela defesa da URSS somente neste sentido. (Idem, p. 30; grifos nossos) A razão principal da polêmica dizia respeito, contudo, às ações militares externas à URSS levadas a cabo pela burocracia stalinista, e aí Trotsky discute um antagonismo presente nessas ações e diante do qual deve se posicionar o revolucionário, tendo por consequência, constatemos, a compreensão em si mesma ambígua do caráter incondicional da defesa do Estado Soviético nas fileiras da IV Internacional. O antagonismo – aquele aspecto dual a que, citando Trotsky, se referia Pedrosa – se dava pelo fato de que a burocracia stalinista, formada a partir da própria estruturação socialista da sociedade como sua excrecência degenerativa, tinha por necessidade a manutenção de parte do programa socialista para que continuasse existindo, de modo que, nos países por ela invadidos, o stalinismo procuraria, com certa probabilidade, instituir modos de produção socialistas para, ao mesmo tempo que se antepondo às burguesias locais, manter-se no poder. É nesse sentido que lemos em Trotsky: É mais provável que nos territórios que forem 744 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) incorporados à URSS, o governo de Moscou atue expropriando os grandes proprietários e estatizando os meios de produção. Esta variante é a mais provável, não porque a burocracia continue sendo fiel ao programa socialista, mas porque não deseja e nem é capaz de tomar o poder e os privilégios que comparte com a velha classe dirigente nos territórios ocupados. [...] À medida que a ditadura bonapartista de Stalin se baseia na propriedade estatal, e não na privada, a invasão da Polônia pelo Exército Vermelho levará, por si só, à abolição da propriedade privada capitalista para que o regime dos territórios ocupados esteja de acordo com o regime da URSS. (Idem, p. 33) Por si só, tais medidas em si progressistas – Trotsky reconhece: “[...] Nossa análise geral sobre o Kremlin e a Comintern não modifica o fato particular de que a estatização da propriedade nos territórios ocupados é, em si mesmo, uma medida progressiva. Reconhecemos isso abertamente” (idem, p. 33-34; grifos originais) – bastariam para justificar a “incondicionalidade” do apoio à URSS, mesmo porque, para além do critério “meramente” econômico, sobrepõe-se um critério eminentemente político, sem o qual a alavanca revolucionária não pode ser acionada e aquele caráter progressista tenderá – como de fato tendeu – a seu retrocesso a formas capitalistas de produção. É por isso que Trotsky afirmará que o critério político prioritário não é, para nós, a transformação das relações de propriedade neste ou naquele território, por mais importantes que sejam por si só, mas sim a mudança na consciência e organização do proletariado mundial, a elevação de sua capacidade de defender as conquistas obtidas e conquistar outras novas. A partir deste único e decisivo ponto de vista, a política de Moscou, tomada em seu conjunto, conserva completamente II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 745 o seu caráter reacionário e é o principal obstáculo no caminho da revolução mundial. (Idem, p. 33; grifos nossos) Nesse ponto reside, entretanto, o matiz discordante que motivara a polêmica, pois, como entrevemos nas colocações de Trotsky, defender incondicionalmente a URSS estaria ligado ao fato de que a burocracia stalinista provavelmente se veria obrigada a “expropriar” a burguesia e implementar um modelo socialista e estatizante, mesmo que para defender seus próprios privilégios. Mas o questionamento advindo da argumentação de Pedrosa dizia respeito justamente a este ponto: seria isso suficiente ou mesmo verdadeiro? Esta implantação “na ponta das baionetas”, a burocracia já não o fazia alijando o proletariado de qualquer poder e subjugando-o de modo exploratório, como já era o caso no interior da própria URSS? Por certo que a argumentação de Pedrosa e outros que contrariavam a tese da “incondicionalidade” amparava-se neste fato e procurava demonstrar (ao menos no que dizia respeito especificamente a Mário Pedrosa) sua oposição irreconciliável à burocracia stalinista. Mas Trotsky, em seu texto “Novamente, e uma vez mais, sobre a natureza da URSS”, de 18 de outubro de 1939, insistia e não pestanejava ao precisar: “O que significa dizer defesa ‘incondicional’ da URSS? Quer dizer que não impomos nenhuma condição à burocracia. Quer dizer que, independentemente do motivo e das causas da guerra, defendemos as bases sociais da URSS se esta for ameaçada pelo imperialismo” (idem, p. 44). E completa, de modo cabal: Jamais prometemos apoiar todas as ações do Exército Vermelho, que é um instrumento nas mãos da burocracia bonapartista. Prometemos unicamente defender a URSS como Estado operário e somente aquilo que nela exista de Estado operário. [...] A 746 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) derrota de um movimento revolucionário na Índia, com a cooperação do Exército Vermelho, significa um perigo incomparavelmente maior para as bases socialistas da URSS do que uma derrota episódica dos destacamentos contrarrevolucionários do Exército Vermelho na Índia. Em cada caso, a Quarta Internacional saberá distinguir onde e como o Exército Vermelho está atuando exclusivamente como instrumento da reação bonapartista e onde defende as bases sociais da URSS. (Idem, p. 45; grifo original) Ou seja, desta distinção quanto ao verdadeiro caráter da invasão de cunho imperialista da burocracia stalinista dependeria o posicionamento concreto, em cada caso, da nova Internacional. E, em resposta a Max Shachtman (um dos adeptos da posição de Pedrosa, ao lado de Burnham, Eastman e Abern), em carta de 6 de novembro de 1939, ainda formula com precisão: [...] Separamos decisivamente nossa defesa da URSS como Estado operário da defesa burocrática da URSS. [...] Defesa incondicional da URSS significa, literalmente, que nossa política não está determinada pela ação, manobras ou crimes da burocracia do Kremlin, mas somente pela nossa concepção dos interesses do Estado soviético e da revolução mundial. (Idem, p. 45; grifo original) Ora, a “incondicionalidade” não significaria, evidentemente, deixar de reconhecer o caráter contrarrevolucionário da burocracia stalinista, mas antes defender a constituição social do Estado Soviético independentemente das ações levadas a cabo pela casta burocrática stalinista, levando em conta os matizes e antagonismos das ações militarescas da trupe de Stalin. Entretanto, em meio à polêmica, como dissemos acima, constituía-se um grupo – do qual fazia parte Mário Pedrosa – que, II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 747 promovendo o debate em torno da pertinência ou não de se posicionar por uma incondicionalidade da defesa da URSS, acabou por se configurar como oposição no interior do SWP à tese basilar do grande líder, o que certamente não deixou de provocar certa instabilidade no seio daquele partido que constituía, em meio ao exílio mexicano de Trotsky, as bases mais sólidas para o próprio lançamento e fundação da IV Internacional. Tal fato, se não provocara propriamente a ira em Trotsky, ao menos o perturbou consideravelmente, e o fator psicológico não deve ser aqui menosprezado. A posição de Trotsky era claramente debilitada. Após anos de tentativas frustradas, foi, como se sabe, somente no México que conseguira salvaguarda governamental, depois de muitas recusas às suas solicitações de asilo político por partes de vários países. Procurando preservar, em ato de quase desespero, as bases da fundação da nova Internacional, Trotsky chega a reconhecer que “a proposta do camarada [James] Cannon, de manter a discussão livre de toda ameaça de separação, expulsões etc., era adequada e absolutamente correta” (idem, p. 82), ansiando por uma coesão e uma unidade no seio do SWP, mas no título deste mesmo texto de 15 de dezembro de 1939, foi o próprio Trotsky quem não poupava o grupo “opositor” e, em tom nada conciliador, intitulava-o: “Uma oposição pequeno-burguesa no Socialist Workers Party”. É neste texto que, ainda mais numa vez, precisa sua visão acerca do problema: A oposição descobriu que nossa fórmula de “defesa incondicional da URSS”, a fórmula de nosso programa, é “vaga, abstrata e fora de moda (?!)”. [...] A oposição tenta apresentar as coisas como se até agora tivéssemos defendido “incondicionalmente” a política internacional do governo do Kremlin com seu Exército Vermelho 748 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) e sua GPU. Tudo colocado ao contrário! Na verdade, há muito tempo não defendemos a política internacional do Kremlin, mesmo de forma condicional, e particularmente desde o dia em que proclamamos abertamente a necessidade de aniquilar, abertamente, a oligarquia do Kremlin mediante uma insurreição. (Idem, p. 75; grifo original) Com relação à burocracia stalinista, evidentemente não havia, pois, qualquer sombra de ato defensivista: nem condicional, nem incondicional. Mas pontuar este fato não lhe foi suficiente. Em 24 janeiro de 1940, em seu importantíssimo texto “De um arranhão, ao perigo de gangrena” (parte do mesmo Em defesa do marxismo), Trotsky relança suas farpas, com sua verve felina: “Os oportunistas, como é bem sabido, tendem ao maior radicalismo quanto mais longe estão dos acontecimentos” (idem, p. 131). Se a crítica aguda, em relação a alguns dos militantes desta “oposição”, podia fazer sentido – fato sobre o qual aqui não nos deteremos –, teria tido razão Trotsky ao dirigi-la contra... Lebrun? Ainda que muito longe de ser ele mesmo um oportunista, não estaria Trotsky, com toda a sua inquestionável integridade, moral e intelectual, igualmente “longe dos acontecimentos”, em meio ao isolamento de seu exílio em Coyoacán? Lebrun, um “tipo curioso”... Naquele mesmo texto que leva em seu título a agressão ao grupo opositor, tachando-o de “pequeno-burguês”, Trotsky elabora uma de suas passagens mais magníficas, verdadeira definição da dialética marxista: II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 749 O axioma “A” é igual a “A” é, por um lado, ponto de partida de todos os nossos conhecimentos e, por outro, é também o ponto de partida de todos os erros do nosso conhecimento. [...] Para os conceitos, também existe uma “tolerância” que não está fixada pela lógica formal baseada no axioma “A” é igual a “A”, mas pela lógica dialética baseada no axioma de que tudo se modifica constantemente. (Idem, p. 70) Essas palavras, em meio ao trecho do texto citado que leva como designação “O ABC da dialética materialista”, ecoa uma frase como que perdida em meio ao paradigmático A Revolução traída, verdadeiro substrato de sua teoria da revolução permanente: “Tudo é relativo nesse mundo onde nada mais que a mudança existe de permanente” (TROTSKY, 1980, p. 75). Entre o reconhecimento de uma permanente mutabilidade e, mesmo que após franca e intensa discussão, a resistência a qualquer mudança ou, no mínimo, a aceitação da diferença, há, porém, um oceano, e de tolerância é que não era mesmo o caso... Não que Trotsky não tivesse suas razões – e a própria razão em meio à polêmica aqui descrita, diante dos argumentos que aqui abordamos –, mas categorizar como “pequeno-burguês” a dissensão certamente contribuiu para que a pretendida unidade se frustrasse e para que certo vício tomasse conta das vertentes trotskistas logo após sua inesperada morte, que passaram a chamar de “pequeno-burguês” tudo o que não cabia nos dogmas estipulados por aquilo que, apesar de Trotsky, designou-se a partir de então por “trotskista”. Por mais que as revoluções tenham que absorver as experiências anteriores no que foram bem-sucedidas e também no que fracassaram, e por mais que, em meio a esse processo, delineia-se uma ética revolucionária, histórica, pela qual as condutas devam se nortear sem nunca deixar de avaliar 750 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) as condições específicas de cada caso concreto, as revoluções também precisam ser inventadas. E como diria o próprio Pedrosa – repetimolo –, “a vida é por demais rica em surpresas para ser encapsulada em quaisquer hipóteses elaboradas pelo espírito”. E mesmo assim, em que pesem todas as críticas a posturas mais que questionáveis – inclusive e sobretudo do ponto de vista eminentemente trotskista – que podem e devem ser tecidas a líderes revolucionários como um Fidel ou um Mao, a Revolução Cubana teria sido, para a maioria dos trotskistas pós-Trotsky, “pequeno-burguesa”, assim como teria sido “pequenoburguesa” a Revolução Chinesa... Assim foram tachadas porque não seguiram a cartilha dos militantes trotskistas, e nem mesmo o modelo de centralismo democrático que tanto caracterizou o bolchevismo. Esses militantes passaram então a adotar para si próprios – sem, porém, nem a autoridade do mestre, nem sua envergadura intelectual – a mesma intransigência que, reconheçamos, governava o espírito de Trotsky. Mas classificações desse tipo – admitamos – certamente em NADA contribuem para a Revolução mundial! Ainda que não tenha se furtado, em esforço quase sobrehumano, a contra-argumentar a favor de suas teses, opondo-se ao que julgava – e com razão! – como uma incompreensão por parte de alguns militantes, em especial daqueles que compunham o Comitê Executivo Internacional da nova organização, Trotsky, diante dessas divergências, acabaria por destituir tais membros desse comitê, fato que levou Pedrosa (sob o mesmo pseudônimo de Lebrun) a dirigir-lhe uma contundente carta, datada de 23 de março de 1940 (PEDROSA em MARQUES NETO, 2001, p. 119-125), na qual classifica a medida tomada por Trotsky como um “pequeno golpe de Estado” (PEDROSA, idem, p. 125), expressão corajosa e até petulante para se endereçar II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 751 ao grande líder, que, obviamente, sequer respondeu à missiva! Afinal, como admitir ter cometido um golpe de Estado sobre um “Estado” que julga ser seu, a sua própria IV Internacional? No dia 4 de abril seguinte, Trotsky escreve não a Pedrosa, mas a F. Dobbs, referindo-se ao brasileiro em termos nada amigáveis: Recebi uma carta de Lebrun sobre o C.E.I. Um tipo curioso! Essa gente crê que hoje, na época da agonia do capitalismo, nas condições da guerra e da clandestinidade que se aproxima, seria preciso abandonar o centralismo bolchevique em benefício de uma democracia ilimitada. [...] Esses “democratas” agiram inteiramente como boêmios franco-atiradores. (TROTSKY apud MARQUES NETO, idem, p. 126-127) E conclui, no mesmo lugar: “Se tivéssemos a possibilidade de convocar um congresso internacional, eles certamente seriam expulsos com a mais severa das censuras.” Todos esses preciosos documentos, bem como os meandros de toda a grave dissensão que levou a malnascida IV Internacional já a uma primeira e profunda cisão, praticamente levando-a ao aborto, encontram-se no extraordinário texto “Mario Pedrosa e a IV Internacional (1938-1940)”, do grande historiador Dainis Karepovs (KAREPOVS, 2001), e não será mesmo o caso, aqui, de esmiuçar a questão. O leitor deve se reportar ao indispensável texto de Dainis para inteirar-se das particularidades da grave desavença. Mas, à guisa de conclusão, as suas consequências, bastante significativas, devem ser aqui abordadas. 752 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) O rompimento e suas consequências Ao que Pedrosa almejava era um arejamento das ideias em meio à efervescência da criação da IV Internacional, para a qual lhe havia sido destinado o papel de único delegado de toda a América Latina em seu Congresso de fundação, em 3 de setembro de 1938 em Périgny, na França (cf. KAREPOVS, 2017, p. 29), além de ter assumido coresponsabilidade organizativa, ao lado do grego Georges Vitsoris, como Secretário Administrativo do Movimento pela IV Internacional, em substituição ao alemão Rudolf Klement, ex-secretário de Trotsky que havia sido sequestrado, assassinado e esquartejado por agentes stalinistas em 12 de julho de 1938 (cf. KAREPOVS, 2001, p. 106107). Sua posição e seu papel eram, pois, de suma relevância, e suas referências pessoais, as mais enaltecidas, tal como se pode atestar pelas linhas a seu respeito que Pierre Naville dirige a um dos secretários de Trotsky, Jean van Heijenoort, dando conhecimento ao líder russoucraniano, em 12 de fevereiro de 1938, da chegada de Pedrosa às fileiras da IV Internacional (cf. KAREPOVS, idem, p. 105). Mais que isso, como único representante das dez seções latinoamericanas presentes no congresso fundador da IV Internacional, e estando, pois, à frente de países como a Argentina, Bolívia, Chile, Cuba, o próprio México (país hospedeiro do próprio Trotsky), Porto Rico, São Domingos, Uruguai e Venezuela, além do Brasil, esse nosso país de dimensões continentais, Mário significava o elo mais vivo do trotskismo com toda a América Latina. Desconsiderar esse fato para simplesmente classificá-lo como “tipo curioso” e, junto com os demais “opositores”, como um “boêmio franco-atirador”, e, ainda pior, merecedor de expulsão e censura – algo que nos remete II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 753 à expulsão do grande líder comunista luxemburguista Paul Levi das fileiras da Internacional em 1921... –, nada mais fez que contribuir para o enfraquecimento do movimento trotskista no Brasil e no cone Sul do planeta, incutindo naqueles que sobraram em suas fileiras um tipo de comportamento sectário – Pedrosa diria, de um “sectarismo esterilizante” (PEDROSA apud KAREPOVS, 2017, p. 92) – que teve por consequência mais direta não uma revolução permanente, mas antes uma permanente divisão em tendências minúsculas do que deveria constituir uma grande unidade em prol de uma IV Internacional – ou quiçá, como já desejara um Maiakovski em seu poema inacabado, de uma Quinta Internacional (cf. JAKOBSON, 1977, p. 26, 27 e 35), dado o eterno nascimento de uma IV que nunca de fato viu a luz do dia! Facções de três ou quatro membros já fundam uma tendência, e por vezes as dissensões beiram o absurdo, como por exemplo quando eu, jovem, militava no movimento estudantil como membro, ainda que por muito pouco tempo, da emergente Causa Operária (que viria a se tornar o PCO do presente, já então liderado pelo bravo militante Rui Costa Pimenta), e, chegando na ECA/USP, me deparei com uma nova cisão entre duas das tendências que formavam a corrente estudantil da Libelu (ligada à IV Internacional), e, indagando a um dos membros de uma delas, meu amigo, ouvi, com a maior naturalidade, a seguinte explicação: “Rachamos por causa de nossa divergência quanto à questão da Geórgia em 1923”. Ora, rachar um agrupamento que já era pequeno em dois, em mais ou menos 1980, por causa de uma diferença de opinião com relação a uma questão da... Geórgia de 1923??? De fato, era como se qualquer realidade ou mínimo de pragmatismo político passassem a anos-luz da consciência daqueles militantes... Por certo que questões históricas como a que envolveu 754 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) a autonomia das “pequenas nações russas”, como a Geórgia ou a Ucrânia, ou, nas palavras mais precisas de Isaac Deutscher, a “forma pela qual Moscou controlava as repúblicas não-russas e as províncias da Federação Soviética” (DEUTSCHER, 1968, p. 60), problema que na verdade surge já no verão europeu de 1922 e que se alastra durante todo o início do ano seguinte, são das mais pertinentes de serem estudadas e discutidas. Particularmente quanto à questão da Geórgia, tinha-se ali o embrião da ferrenha oposição entre Stalin, então Comissário das Nacionalidades, e Trotsky, naquele episódio travestida de diferença irreconciliável quanto aos chamados “divisionistas” georgianos: contra estes, Stalin tenderia a esmagar qualquer ameaça de autonomia, antepondo-se ao princípio da autodeterminação das nações e, já com poderes consideráveis no Partido Bolchevique, “preparando uma nova Constituição que seria muito mais centralista do que sua antecessora de 1918 e reduziria e revogaria os direitos das nacionalidades nãorussas, transformando a Federação Soviética de Repúblicas na União Soviética” (DEUTSCHER, idem, p. 61), contra a qual protestariam georgianos, ucranianos e outros, enquanto que Trotsky e o próprio Lênin – em princípio solidário à posição de Stalin por atribuir a oposição de Trotsky mais à sua “animosidade pessoal” ou a seu “individualismo”, porém logo depois crítico das ações autoritárias e excessivamente centralizadores de Stalin (cf. DEUTSCHER, idem, p. 62 e 80-81) – sairiam em defesa dos “divisionistas”. Mas a própria questão poderia ser vista de um ângulo oposto, pelo qual – em sintonia com a visão radicalmente internacionalista e revolucionária de Rosa Luxemburgo – o próprio princípio de autodeterminação dos povos poderia ser questionado, uma vez que, nele, subjaz um sentimento nacionalista de cunho profundamente conservador, condizente com o II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 755 espírito burguês tão assentado na glorificação dos valores “nacionais”. Portanto, posições antagônicas como as de Rosa Luxemburgo e de Stalin, em si mesmas irreconciliáveis, podem ser entoadas e partir, como verdadeiros oposicantos, de ângulos completamente opostos, de um mesmo pressuposto para atingirem finalidades absolutamente distintas: a primeira – de uma Rosa –, visando uma democracia expandida e assegurada mesmo pelo internacionalismo revolucionário; a segunda – de um Stalin –, visando o autoritarismo que se vale do centralismo excessivo para perpetuar-se; e, em meio às duas posturas antagônicas, ainda uma terceira – de Lênin e Trotsky –, obviamente mais propensa à primeira que à segunda na medida em que, defendendo, naquele episódio, a dignidade das nacionalidades não-russas contra a mão opressiva e o “excesso perigoso” do centralismo partidário nas mãos de Stalin (cf. DEUTSCHER, idem, p. 62), tinha por meta a mesma revolução internacional almejada por Rosa. Tudo isso é bem conhecido, e não à toa o próprio Deutscher, nesta sua trilogia sobre Trotsky, que é um verdadeiro monumento sobre a história política do século XX, reconhece: “Do ‘centralismo democrático’, princípio básico da organização bolchevique, só sobreviveu o centralismo” (DEUTSCHER, idem, p. 27). Destarte, os fatos históricos obviamente precisam ser discutidos, refletidos, polemizados, da Geórgia à pedra no sapato de Trotsky – o levante de Kronstadt de 1921 (vejo agora quantos militantes rasgando meu texto após esta provocação...– e o faço em homenagem póstuma a um dos grande amigos que meu pai tinha: o grande anarquista Maurício Tragtenberg...) –, mas daí a cindir agrupamentos por causa de nuances completamente distantes de nossa realidade...? Não falta apenas arejamento, falta maturidade à esquerda marxista... 756 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) As diferenças, teóricas e práticas, devem pautar a construção de uma unidade quando bem se sabe de que lado estamos! E enquanto isso, a direita integralista, bastante unida, retoma seu ímpeto e toma as ruas que deveriam estar nas mãos e sob os pés dos militantes revolucionários. Nos dias de hoje, até as torcidas organizadas (n)os superam. Seria preciso, isto sim, revigorar aquela união que trouxe para uma mesma causa trotskistas, socialistas e anarquistas, como uma nova Frente Única Anti-Fascista, pondo para correr as novas-velhas galinhas verdes como no outubro de 1934, acontecimento histórico, este sim, relevante e liderado por ninguém menos que... nosso Mário Pedrosa! Como não reconhecer a qualidade do documento pedrosiano a ponto de caracterizá-lo como um curioso tipo digno de expulsão das fileiras da Internacional? Havia de fato motivos para uma cisão no interior do SWP a partir de uma desavença sobre o caráter condicional ou incondicional de uma defesa do Estado Soviético? Em que medida um posicionamento dos militantes trotskistas e do próprio Trotsky, na conjuntura de fim dos anos 1930, teria qualquer influência nos acontecimentos que transcorriam com a eclosão da II Guerra Mundial, a ponto de ocasionar uma tal cisão? As origens desse tipo de absurdo, de alienação mesmo, tal como posso definir a tendência fragmentária dos movimentos trotskistas, deitam raízes na postura desesperada, mas sobretudo intransigente do próprio Trotsky, em fim de vida e vendo sua IV Internacional nascer já quase moribunda, e é necessário que se reconheça esse fato, se se almeja qualquer amadurecimento político e se quer, em respeito às ideias de Trotsky, perseguir pelas vias da Revolução. Mas há mesmo males que vêm para bem. Em decorrência de toda II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 757 aquela situação, Pedrosa relata: “Foi nesse momento que abandonei a ortodoxia trotskista e quando voltei pro Brasil estava querendo experimentar uma série de ideias novas” (PEDROSA, 1979, p. 14). Desse triste acontecimento o Brasil veria florescer as ideias de Rosa Luxemburgo, à qual Pedrosa, a partir de então, passa, decepcionado com a postura de Trotsky, a dirigir uma atenção especial. Pedrosa – como grande intelectual que foi, de imensa integridade de caráter –, e sem perder o grande respeito por Trotsky e por suas concepções, passa então a divulgar as ideias de Rosa, ainda hoje tão atuais quanto as do próprio Trotsky. Afinal, um revolucionário sabe verter em coisa positiva mesmo uma situação adversa e extremamente negativa, e nisso residem a Utopia e o otimismo que governam seu espírito. Referências bibliográficas BRECHT, Bertolt. Die Stücke von Bertolt Brecht in einem Band. Frankfurt am Main: Suhkamp Verlag, 1987. DEUTSCHER, Isaac. Trotski – O profeta desarmado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. JAKOBSON, Roman. El caso Maiakovski. Barcelona: Icaria, 1977. KAREPOVS, Dainis. “Mario Pedrosa e a IV Internacional”. In.: MARQUES NETO, José Castilho (Org.). Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 99-130. __________________. Pas de politique Mariô! – Mario Pedrosa e a política. São Paulo: Ateliê Editorial & Fundação Perseu Abramo, 2017. MARQUES NETO, José Castilho. Solidão revolucionária – Mário 758 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1993. MARQUES NETO, José Castilho (Org.). Mário Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. MENEZES, Flo (org.). Trotskismos em Cuba – Retrato de um encontro. São Paulo: Nojosa Edições, 2021. PEDROSA, Mário. “Mário Pedrosa & a vitória dos seus fracassos” (Grandes Entrevistas Políticas II). Pasquim, Rio de Janeiro – número 469, 1979, p. 12-18. _________________. “A defesa da URSS na guerra atual”. Cadernos AEL (Arquivo Edgard Leuenroth – Centro de Pesquisa e Documentação Social/IFCH/UNICAMP, v.12, n.22/23, 2005, p. 287-320. TROTSKY, Leon. A Revolução traída (1936). São Paulo: Global Editora, 1980. ______________. Em defesa do marxismo (1939-1940). São Paulo: Proposta Editorial, 1984. Sem autor (s.a.). “Dossier André Breton – Surréalisme et politique”. Les Cahiers du Musée National d’Art Moderne. Paris: Centre Pompidou, 2016. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 759 A Convergência Socialista em Fortaleza Andreyson Silva Mariano1 Introdução A Convergência Socialista teve seu embrião de existência a partir de um grupo de militantes Ponto de Partida, que fugiram do Chile, na ditadura de Augusto Pinochet. A partir do grupo Ponto de Partida, surge a Liga Operária que atua até o ano de 1978, com seus militantes sofrendo forte repressão da ditadura civil-militar brasileira. Ainda em 1978, é fundado o PST (Partido Socialista dos Trabalhadores), que publica o jornal Versus. Foi com o jornal Versus que se fez o chamado a construção de um partido socialista com a ideia do Movimento Convergência Socialista. Foi desse processo que surgiu a Convergência Socialista no ano de 1978. Os militantes da Convergência atuaram também no combate à ditadura civil-militar, estando presentes e combativos em várias cidades brasileiras, incluindo Fortaleza. Realizamos quatro entrevistas com ex-integrantes da Convergência Socialista em Fortaleza: 1) Jânio Vidal, entrevistado na Faculdade de Educação da UFC (FACED), no dia 14 de março de 2019; 2) Fábio José Queiroz, entrevistado na sede do grupo político Resistência-CE (Av. Imperador, 1443), no dia 17 de maio de 2019; 3) Nericilda Rocha, entrevistada na Faculdade de Educação da UFC (FACED), no dia 23 de setembro de 2019; e 4) Euclides de Agrela, 1 Andreyson Silva Mariano, militante da Resistência PSOL/Ceará, Doutor em Sociologia (UFC), Professor da Rede Básica de Ensino do Ceará, andreyson_sm@ hotmail.com. 760 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) na Faculdade de Educação da UFC (FACED), no dia 02 de outubro de 2019. Também utilizamos informações de Monteiro (2010). As origens da C.S. em Fortaleza Na pesquisa de Monteiro (2010), encontramos um dado inicial importante sobre o surgimento da Convergência Socialista no Ceará. O ex-militante Percival Palmeira, citado por Monteiro (2010, p. 57), destaca que “A C.S. era um grupo de quatro pessoas, na verdade, dois que vinham de São Paulo e que não tinham nenhuma inserção em movimentos e dois que vinham daqui. Então, nosso primeiro passo para a construção da C.S. aqui no Ceará foi através do movimento estudantil. Localizados em dois núcleos, um na UNIFOR e outro na UECE. Posteriormente, veio a resolução que o trabalho prioritário deveria se dar sobre o movimento secundarista, através do Alicerce da Juventude. Ou seja, era completamente inexistente o trabalho no movimento operário e sindical.” O agrupamento da C.S. surge no seio do movimento estudantil universitário de Fortaleza, que recebe a orientação de trabalhar através do Jornal Alicerce da Juventude Socialista, que representa “um braço” da C.S. junto ao movimento estudantil. Como uma tática de construção partidária, com o objetivo de ganhar para suas ideias novos militantes entre os jovens estudantes, tinha como centro o jornal, divulgador das ideias como aproximador de sua política. Organizaramse politicamente na juventude da C.S., como podemos compreender, apostaram no movimento secundarista. Talvez, por perceber nesse setor a possibilidade de proletarização. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 761 Tínhamos como hipótese que o surgimento da C.S. havia se dado com a vinda do PT para Fortaleza. Conforme vimos acima, essa hipótese não se comprovou. Foi a formação autônoma em relação ao PT que se comprovou. Porém, dificilmente, a C.S. teria crescido e se consolidado sem realizar o entrismo no PT. Sempre marcado por uma profunda tensão. Cabe ressaltar também que a C.S. era mais coesa e maior e número de militantes na região do Juazeiro do Norte do que em Fortaleza. Ao menos no início dos anos de 1980. Segundo Fábio José Queiroz (2019), “Em 1983, eu era mais inorgânico do que orgânico. Eu ficava oscilando entre o mundo da resistência cultural e a resistência política mais aberta. Nós, em Juazeiro, tínhamos um grupo que fazia teatro, pintura, literatura. E eu consegui a façanha de dividir o grupo. Eu fiz uma proposta que o grupo assumisse uma faceta marxista. E olha que eu não conhecia quase nada do marxismo. Era uma coisa quase intuitiva do que científica, vamos dizer assim! E o grupo rachou. Sendo que uma parte do grupo tinha feito a campanha do PT em 1982.” Apesar da tensão do racha, a outra parte citada por Fábio José Queiroz passou a compor a C.S. Os dois mundos em que vivia o depoente, na verdade, eram a expressão de duas ações políticas presentes como opção nesse grupo. Segundo Fábio José Queiroz (2019), “E uma parte desse pessoal vai se somar comigo, já no final de 1983 e 1984, para organizar a Convergência Socialista no Juazeiro do Norte. Em 1984, nós montamos a primeira sede da Convergência Socialista que depois foi investigada, pela arapongagem do CENIMAR (Centro de Inteligência da Marinha).” 762 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) Assim, a C.S. tem dois centros de atuação em Juazeiro do Norte e Fortaleza em que se deslocam militantes tanto do interior para a capital quanto no movimento contrário. Esse movimento ocorre de acordo com a dinâmica da luta de classes e também de acordo com o grau de inserção da C.S. no movimento operário e sindical. Porém, o que chama a atenção é a espionagem do Regime militar sobre a C.S. no Juazeiro do Norte. Fábio José Queiroz (2019) relata a respeito disso: “Engraçado que nós não sabíamos absolutamente de nada do que estava acontecendo. Muitos anos depois nós vamos ter acesso a uma documentação e estava lá! A nossa sede, tudo minunciosamente detalhado sobre nossa sede e tudo. Que era numa rua estreita, ao lado da Igreja Matriz, que era uma garagem. Aparentemente, não despertava nenhuma desconfiança, suspeita. E, de repente, aquilo tudo estava vigiado. E olha que isso era no começo de 1984. E aí, é no final de 1983, começo de 1984, que a campanha das Diretas Já! vai acontecer.” Mas ao que parece, nos anos de 1980, a C.S. já é uma seção, agrupamento ou corrente interna do PT, sendo nossa hipótese realimentada. A origem, ou o surgimento do PT está intimamente ligado ao surgimento da C.S. em Juazeiro do Norte. Lembrando que anteriormente mostramos que a C.S. surge antes do PT no Sudeste do país e que a C.S. é o primeiro agrupamento a chamar pela construção do PT. Ou seja, em Juazeiro, a origem da C.S. está colada ao PT. Segundo Fábio José Queiroz (2019), “Eu comecei a simpatizar mais um pouco com as ideias da esquerda aos 15 anos, quando houve uma greve no ABC, em 1978. E, depois, fui conhecendo de uma maneira meio atravessada rudimentos do marxismo. Mas tudo era solto. Até que, em 1980-81, comecei a olhar um pouco o que estava acontecendo à minha volta. O surgimento II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 763 do PT, o processo de recomposição dos PC’s. Até que [...] eu estava um pouco hesitante. Em 1982, eu tive dúvidas de qual a melhor tática para a eleição. Havia um discurso muito forte dos partidos comunistas de apoiar candidatos da oposição que tinham chance de ganhar, que era no caso o PMDB. Já era PMDB, já tinha passado a reforma partidária. Até que eu conheci um jornal do Alicerce da Juventude Socialista, que na capa tinha: “Nosso voto útil é esse!”, com Lula na capa. E explicando o porquê o trabalhador tinha que votar no Partido dos Trabalhadores. Isso causou um impacto muito grande. Eu decidi que iria me engajar na campanha dos candidatos do PT, com essa orientação da Convergência Socialista e do jornal Alicerce da Juventude Socialista. E, logo depois, aconteceu aquele massacre de Sabra e Chatila contra os palestinos. E isso causou um impacto muito grande. Foi aí, que eu juntei o que estava acontecendo no Brasil e no mundo e disse: “É por aí que eu vou!”.” O papel do jornal Alicerce da Juventude Socialista, bem como a atuação política da C.S. na campanha classista e a aposta em Lula, reconhecido desde as greves do ABC, demonstraram a complexa relação da C.S. com o PT, com a captação de quadros, conforme relata Fábio José Queiroz. Outra característica marcante da C.S. no Brasil, e mesmo em Fortaleza, é o seu internacionalismo e o debate político sobre questões internacionais. Pauta do nosso próximo tópico: Internacionalismo. O Internacionalismo Ao longo dos anos, a C.S. foi desenvolvendo sua atuação 764 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) em alguns setores sociais de Fortaleza. Segundo os depoimentos, no movimento estudantil secundarista e da UECE, com boa coluna de quadros, também nos bancários com Percival Palmeira e, nos anos 1990, com a inserção de militantes rompidos com o PLP (Partido da Libertação Proletária) que dirigiam o sindicato da Construção Civil. Dessa forma, a C.S. concretizava um de seus objetivos, estar inserida nos setores proletarizados da classe trabalhadora, sendo realizado, inclusive, um giro, ou a vinda, de quadros nacionais para Fortaleza, como o caso de Romildo Raposo, experiente militante da C.S. em São Paulo e sua esposa Eliane. No entanto, a captação de quadros da C.S. em Fortaleza passava pelo debate político internacional e a forma como a C.S. interpretava tais acontecimentos. Essa característica marcante do trotiskismo e da C.S. se expressava na forma como a C.S. se organizava e, consequentemente, no seu internacionalismo. A C.S. passou no ano de 1982 a ser uma seção brasileira de um partido mundial, ou pelo menos do embrião, que era a LIT (Liga Internacional dos Trabalhadores). Anteriormente, a fundação da LIT, a C.S. era “um partido irmão” do agrupamento de Nahuel Moreno, que dirigia a FBT (Fração Bolchevique Trotiskista). Com a fundação da LIT, sob a direção de Nahuel Moreno, a C.S. passa a ser a seção brasileira da LIT. No entanto, além de ter expresso as posições da LIT no Brasil, através dos seus jornais Convergência Socialista e Alicerce da Juventude Socialista, as ideias da LIT se expressavam, também em Fortaleza, através da revista Correio Internacional – LIT. Esse perfil internacionalista marcou os militantes da C.S. em Fortaleza, no Juazeiro do Norte, bem como no Brasil. Fazia parte de um processo educativo e de formação política. Expressava-se numa II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 765 visão mais ampla das lutas políticas, não se restringindo apenas às lutas locais ou nacionais. Talvez, esteja presente nesse aspecto uma contribuição importante deixada pela C.S. como um legado para a esquerda marxista brasileira. Segundo Nericilda Rocha (2019), “Eu penso que a grande contribuição e importância da C.S. era o internacionalismo. Então, ainda que fosse uma corrente minoritária no PT, era uma corrente com vínculos a uma Internacional, com o internacionalismo como algo muito forte no processo educativo da militância. O dirigente tentar captar uma militante com uma revista como o Correio Internacional, que discutia o Leste Europeu, naquela época, que era tudo muito complexo, onde havia todo um debate, era o colapso da modernização do Robert Kurz. Era toda uma crise na esquerda, a partir de tudo que havia acontecido. E a Convergência tinha um processo muito firme de procurar debater, politizar a sua militância no internacionalismo. Então, o internacionalismo era algo muito forte na Convergência.” O convencimento para se organizar politicamente na C.S. passava por todo um debate em torno de questões locais, nacionais e internacionais principalmente. Havia muitas dúvidas sobre os acontecimentos do Leste Europeu. Daí também uma curiosidade sobre o tema. Mas desde a entrada dos militantes na C.S. já se pode observar o destaque que era dado a queda dos “regimes stalinistas no Leste Europeu”. Euclides de Agrela (2019) afirma que sua vinda para a C.S. gira em torno de lutas locais e do internacionalismo: “Eu entrei na Convergência Socialista ainda no Ensino Médio. Eu era estudante do Colégio Rui Barbosa, escola particular, no Centro de Fortaleza, que ficava na Avenida do Imperador. 766 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) E, às vésperas do Congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas de 1988. Há trinta e um anos atrás. Eu conhecia a Convergência Socialista por intermédio de um outro estudante secundarista que já era militante da Convergência. Fábio Tavares, do Juazeiro do Norte. E, na época, ele estava morando em Fortaleza. E ele me apresentou as teses da C.S. para o Congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. E o que mais me chamou a atenção nessa discussão era o balanço que a Convergência Socialista fazia das experiências socialistas do Leste Europeu, União Soviética, China e Cuba, porque fazia todo um balanço do que representava o stalinismo, a burocratização dos Estados Operários, a negação do internacionalismo e da perspectiva da revolução mundial, a negação da democracia operária, a falta de liberdades políticas e sindicais dos trabalhadores desses Estados Operários burocratizados.” Nericilda Rocha descreve a atmosfera do movimento estudantil na época, de como conheceu Euclides de Agrela, como representante da Convergência Socialista e de como o internacionalismo estava presente na C.S. “Na UECE, quando eu ingressei, o Centro de Humanidades, que tinha o curso de Filosofia, era um centro de efervescência política, de debates e discussões. Eu não era de nenhum movimento. Sequer havia sido do Centro Acadêmico. Mas no curso de Ciências Sociais, logo eu comecei a participar de algumas atividades que tinham no intervalo. E juntava estudantes de Filosofia, Ciências Sociais e Letras também da época. E eram debates sempre muito acalorados. Eu lembro de um debate que tinha um estudante de Filosofia que me chamou muito a atenção, pela forma como ele falava e discursava sobre a situação do país, que os estudantes tinham que se organizar para II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 767 participar da mobilização. E esse estudante de Filosofia era o Euclides de Agrela, ele era dirigente da Convergência Socialista. Eu me aproximei e ele ficou de me trazer um material para estudar e discutir. Esse material era uma revista, eu era uma menina e estava ingressando nas leituras sobre o marxismo. A revista de capa amarela com a cabeça de Lênin sendo decapitada. E era sobre as mobilizações no Leste Europeu e sobre a Queda do Muro de Berlim, que era tudo muito recente, 1989-1992, que era o ano que nós estávamos. E eu ingressei na organização com o debate sobre o Leste Europeu. Me aproximei pelo movimento estudantil, mas o debate era mais geral. E isso me despertou a curiosidade.” A C.S. chegou a promover um curso de formação sobre os processos de derrocada dos Estados Operários burocratizados, apresentando aspectos desse processo. Segundo Euclides de Agrela (2019), “Na época, havia toda uma discussão sobre a queda das burocracias no Leste Europeu, o fim da União Soviética, a Queda do Muro de Berlim. Todo o processo de crise das burocracias stalinistas e o problema da restauração capitalista no Leste Europeu. Havia na verdade um curso, um grande curso que foi preparado na época que tinha o objetivo de entender esses processos. Mas foi um curso muito problemático, porque valorizou muito os aspectos positivos de luta contra a burocracia, da revolta dos trabalhadores, das massas, contra a ditadura stalinista, mas não dava a devida importância ao tema da restauração capitalista. Obviamente, a restauração vem como uma política da própria burocracia. A Convergência, já desde 1986, ainda com Nahuel Moreno vivo, irá fazer uma crítica a Perestróika e a Glasnost 768 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) do Gorbachov. Nahuel Moreno morre em 1987, quando se inicia os processos de massas. Já em 1988-89, havia um processo bastante avançado de restauração capitalista, na China e URSS, que essas grandes manifestações de massas e a derrubada das burocracias stalinistas não conseguem interromper. E os governos que sucederam levaram adiante a restauração capitalista. Na época, essa foi uma grande debilidade da discussão.” Isso mostra que haviam divergências internas sobre o Leste Europeu, tema na época elaborado no calor dos acontecimentos e sem a presença do principal dirigente e teórico da LIT, Nahuel Moreno. É um pouco do que revela Euclides de Agrela (2019): “Houve uma crise na LIT por conta desse debate que exatamente a queda da burocracia stalinista não mudou imediatamente o triunfo da perspectiva do socialismo ou da democracia operária. Apesar da força das mobilizações das massas. Teve muitas discussões ideológicas, muitas ilusões no capitalismo. Exatamente por isso, os setores da burocracia stalinista conseguiram permanecer no poder.” Esse processo de restauração capitalista no Leste Europeu, significou a abertura de novos mercados e consumidores, amortecendo as crises de superprodução capitalista, mas não evitando-as. Significou também a perda de um referencial socialista ou comunista, ainda que como Estados Operários burocratizados, desestabilizou os PCs e conferiu uma ofensiva ideológica de supremacia e vitória do capitalismo através das teses dos Secretário de defesa americano Francis Fukuyama, bem como as teorias conhecidas como pósmodernas que negam abordagens sistêmicas, revoluções na macro estrutura e principalmente a luta de classes e o socialismo. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 769 A posição de análise da C.S. apesar dos equívocos apontados mantém toda tradição de afirmação do marxismo revolucionário. Para Fábio José Queiroz (2019), “A radicalidade socialista, a obsessão pela democracia operária, a obsessão pelo trabalho junto à classe operária são patrimônios que precisam ser mais que estudados, mas continuadas e enriquecidas, nesses anos difíceis nos quais estamos vivendo. A questão do internacionalismo, como nós erámos internacionalistas! Eu lembro que falava de El Salvador, da Revolução na Nicarágua como se estivesse falando de coisas do Brasil. Veja como as coisas mudaram! Como a consciência internacionalista retrocedeu. Eu penso que o stalinismo contribuiu para isso. Mas a derrubada dos Estados Operários contribuiu para o retrocesso no internacionalismo.” A C.S. não conseguiu à sua época mensurar o impacto na consciência das massas do efeito da restauração capitalista. Não foi a hora e a vez do trotiskismo. Mesmo com seu esforço de análise política, a própria C.S. passou a sofrer com o retrocesso na consciência das massas e ao vendaval oportunista do capitalismo com a quase dissolução da LIT (Liga Internacional dos Trabalhadores) em anos posteriores. No entanto, é muito importante mencionar a radicalidade socialista, a defesa da democracia operária, o internacionalismo proletário e o trabalho sobre a classe operária como um legado da C.S. às esquerdas brasileiras. A forma organizativa A Convergência Socialista tinha como forma organizativa 770 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) o modelo do partido Bolchevique, ou o modelo Leninista. Com as seguintes características: os militantes pertenciam a células, ou núcleos com 9 ou 10 integrantes atuando num setor: bancários, estudantes ou construção civil. Esses núcleos se reuniam semanalmente. As reuniões tinham uma pauta e eram organizadas por um dirigente político. As pautas poderiam ter temas internacionais, nacionais, locais ou setoriais. As células ou núcleos são espaços de discussão política para a ação. O regime organizativo da C.S. era o centralismo democrático, onde se discutia, votava-se a ação e se centralizava as ações dos militantes. O jornal da C.S. ajudava a propagandear as ideias e o apoio às lutas sociais e políticas. Cada militante também cotizava ou contribuía financeiramente com a organização. Isso auxiliava na independência política e financeira. Mas precisamos destacar que, como uma corrente interna do PT, a C.S. mantinha jornal próprio, sede própria, financiamento e política independentes do PT. O que estava de acordo com a tática de entrada no PT e tensionamento de seus erros para ganhar a militância e forçar a sua saída (tática do entrismo). Isso custou a acusação de que a C.S. era um partido dentro de outro partido. Segundo Jânio Vidal, “O PT já questionava a C.S. ter jornal e sede própria”. Continua: “A minha entrada na C.S. já é no processo de expulsão do PT, pela direção majoritária. Já vinha uma discussão que a C.S. atrapalhava o projeto político do PT”. A entrada da C.S. no PT e sua atuação no PT sempre esteve marcada por um forte tensionamento, mesmo nas grandes campanhas. Mas o fato revelador é o de que a própria decisão de entrada no PT não era uma unanimidade na C.S. Conforme Fábio José Queiroz (2019), “Na época, eu conversava com umas pessoas que entraram antes que eu na C.S. E elas diziam que II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 771 a entrada no PT não foi um processo tranquilo. Existem duas versões, interpretações. Havia um grupo que era o da Zezé, que tinha resistência para entrar no PT. E o grupo do qual Valério Arcary era parte, que defendia que se somasse a construção de um partido dos trabalhadores. Moreno cumpriu um papel importante. Ele reuniu os dois grupos na Colômbia, salvo engano, e disse que seria importante a construção e experiência desse partido. Bom, foi aí que coesionou o grupo para entrar no PT. Mas isso não se deu sem rupturas, não! Um setor, até onde eu sei, rompeu com a C.S. Há uma ruptura muito grande na C.S. Acho que em 1980, por aí. Em 78-80, ruptura de centenas de pessoas. Mas tem outra versão que até o Nahuel Moreno era contra a entrada no PT. E que, depois, é que ele se convence que essa tática era correta. É uma versão menos conhecida. Mas essas são as duas interpretações mais conhecidas.” Isso demonstra que dentro da C.S. havia um rico debate sobre as táticas e essa característica pode dar uma dinâmica viva para a organização. As organizações trotiskistas não se caracterizam apenas por rupturas, que ocorrem no calor de ricos e efervescentes debates, mas pelo binômio ruptura e fusão. Ou seja, ocorrem rupturas, mas também fusões, aglutinação com outros agrupamentos, como no caso da C.S. e o PLP em Fortaleza, no setor do Sindicato da Construção Civil. De acordo com Jânio Vidal (2019), “A C.S. aproximou os membros do C.G.B. num comitê de enlace. Não era um mero comitê, mas, segundo Valério Arcary, era para uma entrada num polo aglutinador do partido. A entrada na C.S. com um grupo de 7 ou 8 dirigentes do Sindicato da Construção Civil que também entraram. Passamos a nos reunir com a pauta de construção do partido: a frente revolucionária como tática de aglutinação 772 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) para a fundação do partido. E, assim, a C.S., que era marginal no Ceará, passou a dirigir o maior sindicato operário do Estado.” Algumas questões políticas foram decisivas para essa aglutinação dos membros do PLP e Coletivo Gregório Bezerra (C.G.B.) e a C.S. A caracterização sobre o PT, a questão do Leste Europeu e a própria crise do prestismo. De acordo com Jânio Vidal (2019), “Eu venho do rompimento com Prestes. Eu venho de um grupo que ficou conhecido como os prestistas. A leitura do Prestes era de que o P.T. não era um partido socialista. Daí fundou o PLP (Partido da Libertação Operária). Rompemos com os prestistas. Aglutinamos no Coletivo Gregório Bezerra (C.G.B.), que deságua na construção do PLP, contra Prestes. Em janeiro de 1989. E, depois, a questão do “Muro” pegou boa parte da esquerda. Nós já tínhamos uma leitura muita crítica da URSS. A queda do Muro também afetou o PLP. Daí nós atuarmos na construção civil com o PLP. E, em 1992, passamos a discutir com a C.S., devido a nossa crise e a crise do PT. A C.S. já fazia uma crítica consistente e tinha uma militância aguerrida. Que ía pra cima! Na construção civil, nós já tínhamos uma parceria. Eu sou de uma tradição de muita discussão, de muito quebra-pau, com grandes quadros. E o mais “besta” era eu, que dirigia a construção civil (risos).” A atuação em conjunto e a convergência de ideias, bem como o olhar sobre o PT, tanto do PLP como da C.S., permitiram essa aglutinação de um importante agrupamento do PLP de Fortaleza à C.S. Nas lembranças de Jânio Vidal (2019), “Um militante histórico da C.S. foi deslocado para construir esse trabalho na construção civil. Foi Romildo Raposo86. Um dos primeiros vereadores II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 773 da década de 80. Romildo cumpria uma pena em regime aberto. Ele veio em 1992 e ficou até 1996. Veio junto com a esposa Eliane, que foi contratada pelo sindicato. Nesse tempo, entraram junto comigo Valdir, Aguiar, Manoel Farias. Depois do Romildo, veio o companheiro Altemir.” Jânio Vidal narra sobre os elementos que solidificaram a aglutinação entre os membros do PLP e da C.S. em Fortaleza. Mas percebia que nessa aglutinação a C.S. agregava teoricamente e politicamente novos elementos. De acordo com ele, “É inegável que a C.S. nos reorganiza nessa trajetória petista. Por exemplo, Moreno ajustou a caracterização do PT, como um partido burocrático e não como um partido anticapitalista. Com o instrumental de Moreno, nós afinamos na análise, caracterização e política. E ainda a C.S. teve uma leitura correta da restauração dos processos de burocratização e fim da União Soviética. Essa leitura era de Moreno, como algo progressivo. Enquanto, toda esquerda de base stalinista, dos PCs foi um baque medonho! Rapaz, o mundo se acabou. Acho que isso tem a ver com a fundação do PT sem querer falar de socialismo.” A incorporação dos membros do PLP que atuavam no Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil trouxe quadros experientes, deu uma identidade operária a C.S. e a colocou sob a direção de um dos sindicatos mais combativos sob a direção do PLP aglutinado à C.S. Essa característica de classismo e inserção no operariado é uma marca e princípio do marxismo. Foi um salto qualitativo, descrito assim por Euclides de Agrela (2019), “Muito marcante na minha trajetória, na minha juventude, nos primeiros anos da minha militância, foi a vinda dos operários da construção civil para a 774 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) C.S. A partir daí a C.S. deixa de ser uma organização marginal, pequena, sem influência como direção de uma categoria. Quando ganhamos os operários da construção civil, passamos a ter influência num dos setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora. E com os operários do PLP que dirigiam os sindicatos.” Em suas lembranças, Nericilda Rocha (2019) fornece informações sobre como a C.S. se estruturava para manter sua independência política em relação ao PT e também sobre a forma organizativa: “A C.S. tinha uma sede, apesar de ser uma corrente interna do PT. Eu não recordo de ter ido à sede do PT., entre 92 e 93. A sede da C.S. era uma casinha pequenina na Jacarecanga, perto do cemitério, mas bem antes. Nós entrávamos e tinha três cômodos. E toda semana tinha reunião da C.S. E as discussões sobre a contribuição, cotização financeira de cada um por mês. A depender das possibilidades de cada um. Os núcleos eram de mais ou menos nove ou onze pessoas, de cursos variados. Eu lembro do Euclides, Reinald da História, Franzé e Cleide da Pedagogia, que eram pessoas com expressão política em seus cursos.” Ainda sobre o tema da questão organizativa da C.S. e sua relação com o PT, Euclides de Agrela (2019) traz a seguinte opinião: “Para a época, para o que era a militância do PT, e a própria estrutura das categorias da classe trabalhadora, organizada também na CUT, que era muito forte na época, as estruturas do PT e da CUT eram duas grandes estruturas da classe trabalhadora no país. Tinham um peso grande no movimento popular, bairros da periferia. Então, essa organização tradicional de núcleos por categoria de trabalhadores que a C.S. tinha, setores II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 775 sociais, movimento estudantil.” Para uma organização que atuava na CUT e no PT, a C.S. buscou a melhor forma de não acabar se diluindo nesses espaços, buscando se organizar com autonomia e crítica ao PT e à CUT. Inseriu-se nos setores de bancários, construção civil e no movimento estudantil de Fortaleza. Aqueles que faziam parte de suas fileiras reuniam semanalmente em seus núcleos, com centralismo democrático, cotizando com a C.S. e propagandeando seu jornal. Suas reuniões eram em sede própria, que garantia mais independência em relação ao PT. Para Euclides de Agrela, falando sobre a composição dos núcleos da C.S. e os setores, “Nós chegamos a ter um trabalho importante nos têxteis de Maracanaú. Tivemos dois ou três militantes de lá. Mas os dois setores principais eram bancários e o setor estudantil, que tinham núcleos mais dinâmicos, que tinham intervenção nos seus setores. Em particular na UECE, com um pequeno trabalho em secundaristas. Tivemos um companheiro na Escola Técnica, em secundaristas dois, às vezes três militantes.” Evidentemente, com a chegada dos militantes do PLP e da construção civil o núcleo mais dinâmico e prioritário passa a ser este. A forma organizativa da C.S. e seus setores sociais foram o resultado da tentativa de manter vivo o modelo bolchevique de organização, adaptado à realidade brasileira e as especificidades alencarinas. As Memoráveis Campanhas da C.S. em Fortaleza e em Juazeiro do Norte Os anos de 1980 foram anos de muita combatividade para a esquerda no Ceará. Para a C.S. também. Esteve ativamente envolvida 776 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) nas lutas, porém não abdicou de participar de importantes campanhas democráticas e eleitorais, vendo isso como uma tática de construção e propaganda, mas também como um espaço de tensionamento ao PT. Segundo Jânio Vidal (2019), “A década de 80 foi interessantíssima para militar. Nós fazíamos greve geral, fundou-se a CUT-Ceará em 1986, e teve muito ascenso do movimento. O PLP apoiou a candidatura do Lula em 1989. E, no Ceará, tem a história do grupo CGB, que entra na C.S. e já tinha a intenção de romper com o PT, já fazendo as críticas a um partido de base operária, mas que não tinha estratégia socialista. Eu tinha uma expectativa: estou entrando na C.S. para romper com o PT. E nesse contexto que entramos na C.S.” Mesmo atuando no PT e apoiando criticamente as candidaturas, como a de Lula, não deixava de existir o tensionamento da C.S. Mas a atuação da C.S. em campanhas eleitorais não esteve restrita à Fortaleza. De acordo com Fábio José Queiroz (2019), “Me engajei na campanha de candidatos do PT no Ceará. Teve uma votação ínfima em Juazeiro. Eu militava em Juazeiro, em 1982. Chegamos a fazer campanha, pichações, panfletagens, pelos candidatos do PT. Ali, foi meu batismo de sangue. Segundo semestre de 1982.” A campanha das Diretas Já! também entrou na tática da C.S. Depois de 1984, a C.S. propõe o chamado a uma Assembleia Constituinte no ano de 1986. Defendia-se a construção de um governo operário, apostando na crise do governo Sarney e a possibilidade de um governo operário como alternativa. Mas voltando ao tema da campanha das Diretas Já!, Fabio José Queiroz (2019) lembra: “Acho que foi a principal campanha que a II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 777 Convergência naquele momento abrigou e na qual eu me envolvi de uma maneira mais direta. Ali, eu diria que é o meu segundo “batismo de sangue”. A campanha das Diretas Já! Participei dos comitês que organizavam atos, várias vezes deixei de ir trabalhar para ir aos atos. Eu me incorporei na campanha de uma maneira mais protagonista e comecei a estar no meio daquela juventude toda que estava nas ruas, as pessoas que estavam comigo no fortalecimento da C.S. e os que não estavam na C.S. no Juazeiro do Norte.” O jornal Alicerce da Juventude Socialista fez uma campanha emblemática em torno das Diretas Já! Houve um Congresso em 1983 da C.S. O marco desse Congresso Nacional foi a unificação com o grupo estudantil Alicerce da Juventude Socialista. Essa organização, junto com a C.S., tinha um expressivo trabalho na juventude estudantil, setor dinâmico nessa conjuntura e de muita importância nessa campanha. Mas o fato revelador sobre isso é apontado por Fábio José Queiroz (2019): “Não havia acordo sequer sobre a tática do Alicerce. Não é que todos tinham acordo com essa tática. Até recentemente eu conversei com alguns militantes da época, e eles ainda tem um balanço crítico dessa tática, dizendo que a tática do Alicerce atrasou a entrada da organização na classe operária.” Ao nosso ver, a tática do Alicerce introduziu a C.S. ou a relocalizou num setor social (a juventude estudantil secundarista) que tinha uma dinâmica expressiva. Quanto ao atraso na classe operária, nos parece que a C.S. em sua existência não deixou de ter inserção. Talvez, a questão girasse em torno de se ter apenas trabalho na classe operária? Ou ter a possibilidade de manter esse trabalho e se inserir em 778 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) outro setor dinâmico? Para Nericilda Rocha (2019), “A vanguarda no Brasil, nos anos 1980, ela tem o classismo muito forte, ela tem o internacionalismo presente, mas não é que fosse um processo impulsionado pela direção de todas as correntes no interior do PT. Eu penso que a C.S. tem esse legado. Outra importância da C.S. é a de que ela foi uma das poucas organizações no interior do PT que conseguiu sair de um giro do movimento estudantil no final dos anos 1970 para um giro sindical, localizado em algumas categorias importantes do proletariado nacional, que faz com que a C.S. tenha uma corrente sindical no interior da CUT, que era expressiva. Ou seja, o pé no movimento operário. O que tinha a ver com a concepção da C.S. sobre organização revolucionária. O pé na classe estava relacionado com ter um partido inserido na classe trabalhadora, porque a concepção era de revolução socialista. A classe que dirigiaria o processo.” Mesmo nos momentos de grandes campanhas, como as Diretas Já!, que tiveram um protagonismo bem acentuado da juventude, a C.S. não perdia de vista sua concepção e estratégia, ainda que com divergências, ela não deixa de estar presente nessa campanha. Vai se inserindo na juventude por meio do Alicerce, mas tendo seu objetivo estratégico delineado. Durante o ano de 1989, teve espaço a candidatura de Lula para a Presidência da República. A C.S. participou dessa campanha apresentando um programa de suspensão do pagamento das dívidas, com auditoria da mesma, tributação, ou taxação da burguesia, e prefeituras eleitas pelo PT à serviço dos trabalhadores. Euclides de Agrela (2019) lembra sobre a campanha de 1989: “Outra experiência marcante foi a própria campanha de 1989. Por que essa campanha do II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 779 Lula foi muito marcante? Ela foi classista, foi uma campanha com problemas no programa reformistas, mas tinha elementos anticapitalistas, onde havia um espaço à esquerda para as posições da C.S. dentro da candidatura e da campanha. Se fazia críticas ao PT como parte da campanha. E eu, um menino de 17 anos, estava à frente de um comitê pró- Lula, que reunia centenas de pessoas. Foi uma experiência esse comitê, que era no José Walter. Nós na campanha fazíamos exigências e denúncias. Fazíamos campanha na hora do almoço, nas escolas, nos bairros. Era uma discussão política-programática com medidas anticapitalistas. Inimaginável para os dias de hoje. A C.S. se destaca na campanha do Lula como uma corrente dinâmica da esquerda do PT e depois todo esse processo de enfrentamento.” A relação de tensão entre a C.S e o PT parecia aflorar e se acalorar ainda mais nos momentos de grandes mobilizações ou campanhas eleitorais. No setor do movimento estudantil, a polêmica também girava em torno das táticas prioritárias. Como lembra Nericilda Rocha (2019), “Havia um debate que reverberava no interior do M.E. que era sobre o PT. Qual era a antiga discussão ou ainda atual discussão: sobre o que deveria ser priorizado, se seria a mobilização, a ação direta das lutas ou se seria a aposta nos processos eleitorais. Em 1992, eram eleições municipais; em 1994, era eleição nacional. Desde a derrota do Lula, o PT já se preparava para feliz 1994. Então, em 1992, você já tinha adesivos: Feliz 94! E essa discussão reverberava no M.E. em Fortaleza.” O abandono da estratégia socialista permaneceu nos marcos da C.S. utilizando para tal fim tanto a tática eleitoral quanto a aposta nas mobilizações. Para a C.S., as eleições não constituíam um fim 780 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) em si mesmo, mas uma tática para construção política, para propagar suas ideias e buscar mobilizar a classe trabalhadora em torno de um programa classista e socialista. O conflito e tensão com o PT se dá pelo choque dessa estratégia socialista e o projeto do PT de ter as eleições como estratégia, levando a uma gradativa adaptação ao regime democrático burguês e a acordos e concessões à burguesia. A crítica a esse processo é descrita nos seguintes termos por Euclides de Agrela (2019): “Eu me filiei ao PT, pois a C.S. era uma corrente interna do PT. Em 1988, nós ainda estávamos vivendo o início de um processo. A dimensão estratégica do PT pela adaptação completa a nascente democracia, sem perfil de independência de classe. Mas o PT já caminhava a passos largos, com o objetivo de ganhar as eleições, fazendo grandes concessões ao capital financeiro e a burguesia para chegar à Presidência da República.” Para a C.S., essa primeira candidatura de Lula tinha elementos progressistas. No ano de 1989, os elementos eram o classismo e o anticapitalismo. Em Fortaleza, segundo as memórias de Euclides de Agrela (2019), a C.S., “[...] em 1989, entra nessa campanha. Nós fizemos um grande comitê no José Walter, que reuniu dezenas de pessoas. Uma campanha grande, com bastante agitação. Na universidade também! E a C.S. cumpriu um papel bastante importante em nível nacional. Obviamente, com bastante independência, fazendo crítica as limitações do programa. Mas reconhecendo que a candidatura de Lula, apesar de uma série de concessões, ainda representava uma candidatura classista. E o Lula, por exemplo, vai para a TV falar contra as privatizações, defende ocupações de terras. Tinha um forte caráter, um conteúdo classista. E II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 781 até mesmo anticapitalista, com muitas limitações e que não propunha nenhuma revolução socialista no país. Mas essa campanha de 89 é completamente diferente da de 2002.” Apesar de pequena numericamente, a C.S. se engajou nas grandes campanhas do PT, mantendo sua estratégia, como uma fração pública, como uma corrente interna que tensionava o PT. No Brasil, a C.S. elegeu ou apoiou candidaturas eleitas nos seguintes locais: Belém, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São José dos Campos, Contagem, Diadema e Timóteo, neste último com Geraldo Nascimento, expulso da C.S por reprimir uma manifestação dos trabalhadores. Em 1989, assumiu como suplente a deputado federal Ernesto Gradella da C.S. No ano de 1990, a C.S. conseguiu eleger Ernesto Gradella como deputado estadual em São Paulo e, em Belém, no Pará, elegeu Babá, como deputado estadual. Em Fortaleza, a C.S. não conseguiu eleger parlamentares, mas sempre esteve apresentando candidaturas que defendiam o classismo e a revolução socialista. Deixamos para falar da campanha Fora Collor no tópico seguinte, por ser o elemento central para a expulsão da C.S. do PT. O balanço e a importância da C.S. pelos depoimentos dos militantes de Fortaleza Conforme mencionamos, os principais setores de atuação da C.S. em Fortaleza foram: bancários, movimento estudantil, principalmente, na UECE, e, nos anos de 1990, com o ingresso dos ex-militantes do PLP, no Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil. Segundo Euclides Agrela (2019), “A C.S. aqui na época era uma organização muito 782 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) pequena. No auge da C.S. aqui, nós chegamos a reunir, chegamos a organizar de 89 até 92, não mais do que 30 militantes. Entre esses tínhamos: estudantes, dois funcionários públicos, um núcleo pequeno de professores, um eletricitário, um ferroviário. E depois os membros da construção civil.” Mas é importante lembrar que um grupo pequeno e coeso de militantes, centralizados e bem localizados num setor social pode chegar a se tornar um partido de massas. Não foi esse o caso da Convergência Socialista, que teve como mérito em Fortaleza, se enraizar junto ao sindicato da construção civil. Porém, seguindo um raciocínio comparativo e histórico da C.S. em relação as outras correntes trotiskistas do PT, poderemos ter um balanço mais equilibrado. É o que aponta Euclides de Agrela (2019): “Na história do trotiskismo brasileiro nessa última etapa, do fim da ditadura militar, passando pela redemocratização do país, nós tivemos três grandes correntes: O Trabalho, a Democracia Socialista e a Convergência Socialista. Dessas três grandes correntes, a única corrente que conseguiu ter um projeto alternativo e que se afirmou em relação ao PT, que teve uma boa localização política como uma corrente trotiskista, fazendo oposição à direção majoritária do PT até a sua expulsão, e mesmo depois de sua expulsão construir um partido legal e independente do PT e que sobreviveu a isso foi a Convergência Socialista. As outras correntes que ficaram no interior do PT se dissolveram no seu interior. A corrente O Trabalho depois de sucessivas crises e rupturas é praticamente nada em relação ao que foi. A D.S. também se dissolveu no interior do PT. Não tem uma postura independente. A C.S. passou pela prova dos fatos, conseguiu fazer um entrismo vitorioso, perigoso e difícil de II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 783 12 anos no interior do PT. Mas você viver como uma organização independente, trotiskista, de tipo leninista no interior do PT por 12 anos, não é uma tarefa fácil e sair desse processo sendo expulsa e ter condições de juntar mais de mil militantes e conseguir legalizar um partido socialista no Brasil. E conseguiu legalizar esse partido de esquerda antes mesmo do PSOL. Foi um processo bastante vitorioso. Dentre essas três correntes trotiskistas no Brasil, a mais vitoriosa e que passou pela prova dos fatos foi a C.S.” Apesar do entrismo da C.S. ter durado 12 anos, que é um tempo longo. Leon Trotsky, ao destacar a forma do entrismo que deveria ser em organizações operárias, por curto espaço de tempo e com independência política e financeira. No entanto, para Nericilda Rocha (2019), a importância da C.S. reside nos seguintes aspectos: “E isso é um marco, pois a C.S. mantém uma coluna de quadros para além do PT. Então, você está numa organização que vai para além das fronteiras do PT. Então se discutia o que se passava no Leste, em Angola, na Nicarágua. A C.S. era uma corrente interna de um partido político que ía para além das fronteiras e limites desse partido político, pelo projeto que tinha: construção de uma organização revolucionária no Brasil.” A manutenção desse projeto de construir essa organização revolucionária no Brasil talvez seja um dos elementos que expliquem o prosseguimento desse objetivo nos 12 anos de entrismo no PT e depois com a expulsão. Nas lembranças de Fábio José Queiroz (2019), ele afirma o papel da imprensa operária e socialista, firmada no internacionalismo e classismo. “Eu talvez seja a pessoa mais suspeita para falar. Se não fosse o jornal operário, socialista, eu não teria 784 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) entrado na C.S. Foram dois jornais do Alicerce da Juventude Socialista que me ganharam para o projeto. Um trazia o princípio da independência de classe com o slogan: trabalhador vota em trabalhador! Isso me comoveu profundamente! Para você ver: um jornal que expressa concretamente um princípio como o da independência de classe, condensado naquela palavra de ordem tão simples: trabalhador vota em trabalhador! Dizia que nós não podemos ficar votando nos candidatos dos patrões, por mais simpáticos que eles se apresentem. E um outro jornal que me ensinou um outro princípio, do internacionalismo. A solidariedade com outros povos, com pessoas que eu nunca vi na minha vida, que eu talvez nunca verei na minha vida. Eram pessoas que estavam sofrendo uma repressão brutal de um Estado. O Estado de Israel.” Muitos anos depois, Fábio José Queiroz será processado pela burguesia de apoio sionista do Brasil, por escrever um artigo denunciando outro caso de massacre do povo palestino pelo Estado de Israel. O princípio do internacionalismo que se encontrava no jornal contagiou o militante para futuramente se manter na defesa do mesmo princípio. Mesmo sob ameaças. Para Fábio José Queiroz (2019), “O jornal teve muito peso e importância para mim. Até porque eu acho que as novas mídias e as antigas se completam”. Em tempos de avanço do conservadorismo e de notícias falsas, qual impacto teria uma imprensa classista, internacionalista e socialista para os setores explorados? É uma pergunta difícil de responder. Mas seria mais um instrumento de disputa ideológica para nós hoje. Eis mais uma contribuição da C.S. para as esquerdas hoje. Para Fábio José Queiroz (2019), essa experiência e história da C.S. precisa ser contada, pois II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 785 “A experiência da Liga Operária, o jornal Versus, o Movimento Convergência Socialista (MCS), o jornal Convergência Socialista, Alicerce da Juventude Socialista, o giro para o movimento operário, a questão das opressões. Tudo isso é um debate muito único que a C.S. nos permitiu. Essa história precisa ser contada ainda. Eu tive dois alunos que depois foram participar de um grupo de pesquisa que eu tenho na universidade que estuda marxismo e pesquisa marxismo. E eles escreveram alguma coisa sobre a C.S. e a campanha das Diretas! E no transcorrer da pesquisa, eu percebi que ainda tem muita coisa, tem muito material para ser estudado, para ser examinado, para ser reconstruído.” Esperamos ter contribuído para que uma parte dessa lacuna de estudo sobre a C.S., em meio a tamanhas dificuldades e análise de diversas fontes de pesquisa, reconstruímos parte da história e trajetória de uma esquerda radical e outsider que foi reconhecida pelo Estado brasileiro como um grupo perseguido pela ditadura civil- militar. E que tem seu reconhecimento e importância nesse trabalho. Um último balanço importante sobre a entrada e saída da C.S. do PT foi apontado por Hernandez (1994, p.42), “O artigo sobre os doze anos de militância da C.S. no PT diz que essa organização cresceu numericamente, passando de menos de 400 militantes, em 1980, a mais de mil, com influência sobre milhares de ativistas no momento de sua expulsão. [...] os militantes e dirigentes da C.S. participaram de 94 sindicatos, 39 eram dirigentes de grêmios estudantis e secundários e 41 de centros universitários. A C.S. publicava um periódico semanal da esquerda brasileira. Na última conferência Nacional da C.S., em outubro de 93, a Comissão de Credenciais comprovou a existência 786 II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) de cerca de 1400 membros, entre militantes e aspirantes.” Segundo o mesmo autor, podemos ver não apenas o aumento numérico, mas de referência que os militantes da C.S. passaram a ser. Além de dirigirem importantes setores, do acúmulo de experiência nas lutas. A C.S. em Fortaleza, no movimento estudantil secundarista e da UECE, defendeu a política de proporcionalidade nas eleições de direções de DCEs e CAs, seguindo a democracia operária como princípio. Segundo Euclides de Agrela (2019), essa discussão e defesa da proporcionalidade no movimento secundarista o ajudou a entrar na C.S. “E, por outro lado, a C.S. numa discussão interna do movimento secundarista da época, defendia a proporcionalidade para a diretoria da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Essa proposta democratizava a diretoria da entidade (UBES) e permitia que as chapas minoritárias pudessem compor as direções.” Segundo Nericilda Rocha (2019), sobre a defesa da proporcionalidade pela C.S. no movimento estudantil da UECE, a questão ocorreu da seguinte forma: “Teve um Congresso Estudantil da UECE e me chamou a atenção o debate sobre a questão da proporcionalidade que era muito forte na época. A C.S. defendia essa proposta, que era mais representativa”. A proporcionalidade expressa o princípio da democracia operária no movimento estudantil por garantir que não apenas os grupos vitoriosos nas eleições majoritárias expressem sua política, mas democratiza os espaços para que amplas posições possam se expressar nas entidades. II ENCONTRO INTERNACIONAL LEÓN TRÓTSKI (2023) 787 Considerações Finais A Convergência Socialista, apesar de ser um pequeno grupo militante, teve uma importante atuação em Fortaleza, mobilizando setores operários e estudantis no combate ao regime militar e politizando o debate local ao nível do internacionalismo. Manteve a tradição trotiskista viva, atuante e ao lado da classe trabalhadora, apontando o horizonte da Revolução Socialista como alternativa essencial de combate ao capital e suas formas de exploração e de opressão sobre a classe trabalhadora. Referências bibliográficas HERNANDEZ, Martín. “Convergência Socialista: 12 anos de militância do PT.” 1994. In: A política dos revolucionários frente à reorganização da esquerda. Seminário Teórico (MAIS – Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista), 2017. KAREPOVS; Daenis; LEAL, Murilo. “Os trotiskismos no Brasil (1966-2000)”. In.: RIDENTI, M.; AARÃO, D. História do Marxismo no Brasil. Vol. 6. Campinas, Editora da Unicamp, 2007. MONTEIRO, Luis Eduardo Braga. A participação da Convergência Socialista na Construção do PT (1978-1992). Graduação – Curso de História – Universidade Estadual do Ceará (UECE). Fortaleza, 2010. REVISTA CONVERGÊNCIA SOCIALISTA – 51 anos da Ditadura Militar. Uma história a ser contada. São Paulo: Gráfica Forma Certa, 2015.