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COLEÇÃO ENCONTROS EM PSICOLOGIA SOCIAL (Orgs.) José Fernando Andrade Costa Samir Pérez Mortada Suzana Santos Libardi Tathina Lúcio Braga Netto COLEÇÃO ENCONTROS EM PSICOLOGIA SOCIAL (Orgs.) José Fernando Andrade Costa Samir Pérez Mortada Suzana Santos Libardi Tathina Lúcio Braga Netto Bauru - SP 2022 Apoio técnico: Rosângela Jacinto Cabral Elaine Maria Silva Moura Martha Barbosa Pereira Joana Carla de Jesus Assis Financiamento: ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social Editor-chefe: Lucas Almeida Dias Projeto gráfico: Bruno Eustáquio Diagramação Bruno Eustáquio Revisão: Gradus Editora Comitê ad hoc composto para a obra: Dr. Bruno Cerqueira Gama - UFS/SE Dra. Jullyane Chagas Barboza Brasilino - UPE/PE Ma. Allyne Evellyn Freitas Gomes Faculdade Alpha Recife/PE Ma. Moema Alves Macêdo Centro Universitário Dr. Leão Sampaio/CE Dr. Dímitre Sampaio Moita Universidade Cruzeiro do Sul/SP Dra. Juliana Vieira Sampaio - UFC/CE Ma. Alina Mira Maria Coriolano - UFES/ES Ma. Iara Fernandes Teixeira Centro Universitário Uninassau/CE Dr. Edson Silva - UFPE/PE Dr. Marcos Ribeiro Mesquita - UFAL/AL Ma. Anna Júlia Giurizatto Medeiros - IFAL/AL Ma. Tathina Lúcio Braga Netto - UFAL/AL Dr. Fabio José Cardias-Gomes - UFMA/MA Dr. Ricardo Dias de Castro Faculdade Estácio BH/MG Me. Mailson Santos Pereira - UFBA/BA Dr. João Paulo Sales Macedo - UFDPar/PI Dr. Ricardo José de Souza Castro - UFPE/PE Ma. Maria Cláudia Mota dos Santos Barreto UFBA/BA A Editora GRADUS adota a licença da Creative Commons CC BY: Atribuição-Não Comercial-Sem Derivados - CC BY-NC-ND: Esta licença é a mais restritiva das seis licenças principais, permitindo que os outros façam o download de suas obras e compartilhem-nas desde que deem crédito a você, não as alterem ou façam uso comercial delas. Acesse as licenças: http://creativecommons.org/licenses/ Conteúdo revisado por pares Desperto um dia em um mundo onde as coisas machucam; um mundo onde exigem que eu lute; um mundo onde sempre estão em jogo o aniquilamento ou a vitória. Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade. Ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! Frantz Fanon SUMÁRIO APRESENTAÇÃO.....................................................................................11 José Fernando Andrade Costa Samir Pérez Mortada Suzana Santos Libardi Tathina Lúcio Braga Netto FEMINISTAS NEGRAS BRASILEIRAS E A INTERSECCIONALIDADE.....................................................................19 Bruna Gabriella Santiago Silva CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL A PARTIR DO OLHAR XUCURU-KARIRI......................................... 29 Koram Xucuru-Kariri (Maria Eliete Alves de Souza) AFIANDO NOSSAS ARMAS DA CRÍTICA SOBRE O COLONIALISMO ACADÊMICO E A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA ......................................................................................... 35 João Paulo Macedo “PERIGO NEGRO”: IDEIAS PSICOLÓGICAS E CRIMINALIZADORAS SOBRE O/A NEGRO/A NO PÓS ABOLIÇÃO (FEIRA DE SANTANA 1890-1910)................................ 45 Sirlene Pereira Bispo NECROPOLÍTICA E DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES SOBRE UMA PSICOLOGIA ANTIRACISTA NO BRASIL............................... 53 Veridiana Silva Machado RACISMO E SAÚDE MENTAL: POR UMA DESCOLONIZAÇÃO DAS PRÁTICAS NO CAMPO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL........ 59 Luís Fernando de Souza Benicio João Paulo Pereira Barros TRANS-FORMANDO A REALIDADE: UMA LUTA POR DIREITOS DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS EM ALAGOAS............................ 67 Natasha Wonderfull ANCESTRALIDADE E RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE NAS PINTURAS RUPESTRES E NAS CANOAS DO SERTÃO DO SERIDÓ.................................................................................................... 73 João Batista da Silva Dantas Fernanda Fernandes Gurgel ÎANDÊ IRA YBY SUÍ PYNDORAMA: MANÓ PARANÃ OBAYTÎ YBAKA..................................................................................................... 85 Casé Angatu (Carlos José F. Santos) SER INDÍGENA E LGBT: RESISTÊNCIA E AFIRMAÇÃO NO TERRITÓRIO PANKARARU................................................................ 97 Bia Pankararu IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DE MÃES-SOLO À LUZ DO SOFRIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL............................................................................... 103 Valentina Cabral Lopes dos Santos Claudia Aline Soares Monteiro SOBRE AUTORAS/ES..........................................................................115 APRESENTAÇÃO José Fernando Andrade Costa Samir Pérez Mortada Suzana Santos Libardi Tathina Lúcio Braga Netto A ABRAPSO NA LUTA ANTIRRACISTA Desde sua fundação, em 1980, a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) tem sido uma instituição científica e profissional voltada para a crítica dos processos de dominação e opressão social, por meio da produção crítica de conhecimento em Psicologia Social e do engajamento e fortalecimento de diversas formas de luta popular no Brasil. Essa característica faz da ABRAPSO uma entidade da Psicologia brasileira que opera simultaneamente em duas frentes: como espaço de reunião acadêmico-científica, por meio de uma Revista, uma Editora, dos núcleos e regionais da própria Associação, da realização de seus Encontros; mas também como uma difusora das lutas de movimentos sociais progressistas. No entanto, para cumprir com esse objetivo de potencializar as lutas sociais, é necessário que a ABRAPSO esteja sempre aberta ao debate e à reflexão crítica. Isso permite que, por exemplo, em um momento de fortalecimento da auto-organização e do protagonismo de militantes negras(es/os) na Psicologia brasileira de modo geral – como temos visto com o exemplo da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es), a ANPSINEP –, o campo da Psicologia Social também seja mobilizado em relação aos seus conhecimentos e princípios ético-políticos, ampliando a compreensão da crítica social anticapitalista em direção a uma efetiva práxis antirracista e interseccional. Cada vez mais, o campo da Psicologia Social vem sendo protagonista no debate sobre racismo e branquitude no Brasil; e a própria ABRAPSO, nesse caminho, procura refletir sobre o seu funcionamento institucional e a dinâmica de seus eventos. Uma vez convocada a se posicionar e ciente de seu compromisso histórico, a ABRAPSO pode contribuir e desenvolver estratégias de rompimento com a reprodução de privilégios e pactos narcísicos de branquitude, tanto em sua estrutura institucional quanto em seus encontros político-acadêmicos. Para além da gestão da Revista e da Editora, a associação é organizativamente composta por uma Diretoria Nacional, Vice-Presidências Regionais e Núcleos locais. Esse modelo possibilita uma participação horizontal entre o conjunto de associadas(es/os) e as instâncias de gestão, principalmente nos Núcleos e Regionais, que possuem autonomia para desenvolver suas próprias ações. No caso da Regional Nordeste, no biênio 2020-2021, os diversos Núcleos vinham se reorganizando após dois momentos de intenso intercâmbio acadêmico-político: o VI Encontro Regional Nordeste, realizado em Aracaju, em 2019, e o XX Encontro Nacional da ABRAPSO, ocorrido na PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 11 cidade de São Paulo, no mesmo ano. Nesses dois eventos, sobretudo no Encontro Nacional, foi possível levantar o debate sobre a atuação da ABRAPSO no âmbito da luta antirracista, impulsionado naquele momento principalmente pela ANPSINEP. A partir da pressão do Movimento Social Negro, a Psicologia brasileira de modo geral, e a ABRAPSO em particular, têm assimilado, cada vez mais, o debate sobre a dimensão fundante das relações étnico-raciais na sociedade, juntamente com os marcadores de gênero e classe. Se pesquisarmos “Psicologia” AND “racismo” no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES, veremos que das 253 produções disponíveis entre 2012 e 2021, 182 foram publicadas nos últimos cinco anos e 101 delas nos últimos três anos (Figura 1). Nos Encontros Nacionais da ABRAPSO podemos ilustrar esse movimento por meio do número de Grupos de Trabalho (GTs) aprovados que trazem no título “raça” ou “racismo”: nos encontros de 2013 e 2015, em Florianópolis (SC) e Fortaleza (CE), houve apenas um GT específico; no encontro de 2017, em Uberlândia (MG) foram quatro GTs; em 2019, em São Paulo (SP), dois GTs; e, no encontro de 2021, realizado no formato online, cinco GTs. Figura 1. Busca por “Psicologia” AND “Racismo” no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES (2012-2021) Fonte: https://catalogodeteses.capes.gov.br/. O racismo pode ser entendido como “uma ideologia de abrangência ampla, complexa, sistêmica, violenta, que penetra e participa da cultura, da política, da economia, da ética... enfim, da vida subjetiva, vincular, social e institucional das pessoas” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2017, p.10). A força ideológica do racismo deriva, por um lado, da capacidade de “naturalizar” relações de dominação, isto é, de transformar diferenças em desigualdades e de ocultar as razões históricas de privilégios ou violências associadas à cor da pele ou a determinadas concepções de raça/ etnia; por outro lado, o racismo opera na sociedade brasileira como um sofisticado mecanismo de agudização das desigualdades sociais e de gênero, por meio de formas de violência sistemática, explícita ou velada, causando impactos sociais, políticos e psicológicos tanto sobre a população negra que é vitimada, quanto sobre a população branca que recebe os privilégios materiais e simbólicos do racismo. Considerando os efeitos de sofrimento psíquicos causados pelo racismo e seus impactos sociais, o Conselho Federal de Psicologia, zelando pelos princípios do Código de Ética Profissional, publicou a Resolução n° 18/2002 que estabelece normas de atuação para psicólogas(ues/os) em rela12 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE ção ao preconceito e à discriminação racial. Cabe à Psicologia contribuir para melhor compreensão, enfrentamento e superação do sofrimento produzido pelo racismo, além de colocar toda sua teoria e técnica a serviço da potencialização de novas formas de sociabilidade e individuação capazes de promover a igualdade racial por meio de uma postura antirracista. Nesse sentido, o enfrentamento ao racismo não se resume a um interesse acadêmico, mas implica em uma postura política. Como observou Cida Bento (2002), é fundamental implicar os sujeitos brancos no debate sobre os efeitos do racismo, desacomodando os lugares de privilégio da brancura e da branquitude . Ao questionar as desigualdades raciais, assim como as de gênero e classe social, podemos desnaturalizar e enfrentar processos de hierarquização cotidiana que se expressam por meio de representações simbólicas, como determinados padrões de beleza, de competência intelectual ou de correção moral que geralmente privilegiam homens cis, brancos e ricos. Devemos, inclusive, realizar a autocrítica e questionar a branquitude e o racismo institucional presentes na própria ABRAPSO, assim como nas universidades brasileiras. A partir de um adequado diagnóstico crítico, a ABRAPSO pode ser, cada vez mais, uma instituição protagonista no fortalecimento da luta antirracista, oportunizando mais visibilidade para o protagonismo exercido por lideranças negras e indígenas nos espaços-chave da discussão sobre a conjuntura social. A luta antirracista é, fundamentalmente, uma luta anticapitalista, pois enfrenta o cerne de um sistema de dominação e opressão estrutural; é também uma luta anti-patriarcal, pois não pode haver antirracismo enquanto houver opressão da mulher negra; também é uma luta pela efetivação da democracia enquanto forma de vida plena. A ABRAPSO assume, desde sua fundação, há mais de quatro décadas, um compromisso ético-político radical com a transformação da sociedade. Nesse sentido, nada mais coerente do que os Núcleos que compõem a Regional Nordeste proporem como tema do seu VII Encontro, a relação entre “Psicologia Social e Luta Antirracista: reflexões e estratégias ético-políticas a partir da interseccionalidade”. O VII ENCONTRO REGIONAL NORDESTE DA ABRAPSO - 2021 A construção do VII Encontro Regional Nordeste começou, em 2019, com a definição do Núcleo Bahia (BA) como responsável para sediar o evento. Naquele momento, o Núcleo BA estava em processo de consolidação e, por isso, a realização do Encontro na cidade de Salvador seria importante para o fortalecimento da ABRAPSO no estado. O clima de preparação estava bastante aquecido no Núcleo quando, no início de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estado de pandemia por COVID-19. As reuniões presenciais entre seus membros foram substituídas por reuniões online e o clima era de grande incerteza. Foi então que, em meio a tanto sofrimento causado pela pandemia e pela gestão genocida do governo federal, conseguimos estabelecer um diálogo maior entre os Núcleos da Regional, por meio das reuniões remotas. Ao longo de 2020, definimos nas reuniões regionais o formato remoto e a data de realização para o Encontro em 2021. Conseguimos, enquanto Núcleos da Regional, elaborar um evento preparatório, denominado “Circuito de Lives”, transmitido pelo canal da ABRAPSO Nacional1. Nesse processo de trabalho remoto em formato colegiado, a construção do Encontro deixou de ser pro1 Disponível em: https://youtu.be/b80y6Tka4S8. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 13 tagonizada pelo Núcleo BA e passou a ser uma construção coletiva entre diversos Núcleos nordestinos. Em retrospecto, podemos avaliar como um saldo positivo – em meio a um cenário de adversidade – a maior aproximação entre os Núcleos da Regional. O VII Encontro seria à época o segundo Encontro desde que houve na ABRAPSO a divisão da Regional Norte-Nordeste em duas Regionais distintas. Esse processo deixou uma marca positiva na forma como a Regional vem se organizando desde então. Assim, o Encontro de 2021, ainda que com as diversas limitações de um evento remoto, foi muito positivo ao refletir um formato descentralizado de organização do evento - bem como propiciou debates de alto nível, com a participação de pesquisadoras(es), militantes, profissionais e estudantes de Psicologia de vinte e um estados diferentes. O Encontro foi organizado em torno de cinco eixos: 1. Movimentos sociais, desigualdades e ações políticas antifascistas, antirracistas e anticapitalistas; 2. Formação em psicologia social e epistemologias: colonialidades e interseccionalidade; 3. Estado e políticas públicas: necropolítica e a defesa dos direitos humanos; 4. Territorialidades, meio-ambiente e comunidades tradicionais; 5. Feminismos, estudos sobre masculinidades e estudos queer. A Conferência de Abertura e as Rodas Gigantes2, com lançamento de livros, contaram com excelentes contribuições de palestrantes tanto da academia quanto de movimentos sociais, que estimularam os debates sobre os trabalhos socializados nas Rodas de Conversa. Por fim, na Assembleia Geral encerrou o Encontro indicando a continuidade do modelo de parceria entre os Núcleos da Regional e conduzindo o Núcleo Alagoas para a sede do evento seguinte. SOBRE ESTA COLETÂNEA Esta coletânea foi organizada por integrantes da Regional e dos Núcleos Bahia e Alagoas (biênio 2020-2021), com colaboração e apoio técnico de outros Núcleos e pessoas que integraram também a organização do VII Encontro Regional Nordeste. Para registrar parte da riqueza desse encontro, a presente coletânea de textos foi organizada visando possibilitar o desenvolvimento, no formato textual, das contribuições oferecidas por palestrantes durante as falas no evento. Mas, para não limitar essa publicação às pesquisadoras(es) mais experientes, abrimos um edital de submissão de propostas de capítulos para estudantes de graduação que apresentaram trabalhos durante o evento. Assim, recebemos contribuições estendidas das comunicações orais que foram avaliadas às cegas por pares, visando aprovar os textos para publicação. Também enviamos as contribuições dos capítulos de palestrantes e conferencistas para uma leitura por pares, com o intuito de qualificar ainda mais as contribuições. No caso de palestrantes lideranças de movimentos sociais, procedemos à transcrição das falas, com revisão técnica pela organização, e aprovação pelas autoras. Acredita- 2 14 Disponíveis em: https://www.abrapsonordeste.org/vii-encontro-2021/confer%C3%AAncia-rodas-gigantes. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE mos que com esses procedimentos e curadoria, o resultado é uma obra de ainda maior qualidade e impacto. O objetivo da organização do livro foi refletir nessa publicação parte dos debates travados no VII Encontro, e agora, promover um registro escrito dos discursos que problematizaram a temática da luta antirracista no contexto brasileiro3. As vozes que estão registradas nesta publicação refletem a diversidade étnico-racial da nossa região, apresentando o tema central do evento a partir de diferentes olhares interseccionais e diferentes territórios. Avaliamos que cumpre-se aqui nosso papel enquanto organização de uma publicação sobre o tema: a) facilitar visibilidade formal para ecoar as vozes historicamente marginalizadas pela academia; b) provocar criticamente o campo da Psicologia Social para repensar-se a partir dessas vozes. No que segue, a leitora ou leitor tem à disposição um material de enorme riqueza, que convém apresentar brevemente, sem pretensões de síntese. O primeiro capítulo, da historiadora Bruna Santiago, decorre da Conferência Magna do encontro e abre a discussão sobre perspectivas para a psicologia social na luta antirracista ao tematizar a literatura sobre feministas negras brasileiras e interseccionalidade. Passando por feministas brasileiras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Carla Akotirene, em diálogo com autoras estadunidenses, como Kimberlé Crenshaw e Patricia Hill Collins, Bruna Santiago oferece um rico panorama sobre a articulação de gênero, raça e classe social como importantes marcadores teórico-metodológicos para a adequada compreensão e transformação da realidade. O segundo capítulo traz a fala da liderança indígena Koram Xucuru-Kariri, com uma contribuição para a formação em Psicologia, especialmente de estudantes de graduação, a partir da perspectiva dos povos indígenas. A autora nos convoca a ir ao território e imergir em vivências concretas para além dos muros e livros da universidade, de modo a aprender com a resistência histórica dos povos indígenas. No terceiro capítulo, o professor João Paulo Macedo remonta a sua fala durante o Encontro e nos convida a afiar as armas da crítica do colonialismo acadêmico, problematizando os avanços já conquistados e os desafios ainda porvir no enfrentamento da colonialidade do poder, do saber e do ser, especialmente no que tange ao papel da psicologia nesse processo. O exercício da crítica é, simultaneamente, um convite à construção prática de uma relação orgânica com os povos subalternizados em direção à transformação radical do ethos colonial que nos constitui. Sirlene Pereira Bispo, no capítulo seguinte, traz uma instigante análise sobre o papel das ideias psicológicas na criminalização do negro no período pós-abolição, a partir da leitura de matérias jornalísticas de Feira de Santana, Bahia, publicadas entre 1890 e 1910. Na intersecção entre Psicologia e Historiografia, a autora problematiza os usos e disputas em torno da memória social, sobretudo de narrativas históricas funcionais à reprodução do racismo ou de seu enfrentamento. No quinto capítulo, a professora Veridiana Machado desenvolve a crítica dos efeitos do racismo e sua funcionalidade à necropolítica cotidiana que incide sobre os corpos negros, como uma continuidade da violência direta que não cessou no 14 de maio de 1888, dia seguinte à abolição formal e tardia da escravidão no Brasil. A autora problematiza as políticas públicas e o papel do Estado na construção de saídas antirracistas e convoca a categoria profissional da psicologia a se posicionar. Em seguida, Luis Fernando Benício e João Paulo Pereira Barros oferecem uma reflexão sobre racismo e saúde mental, provocando sobre como enfrentar a lógica colonial e racista ainda presente nos dispositivos do Sistema Único de Saúde. 3 Infelizmente, nem todas(es/os) as(es/os) convidadas(es/os) participantes do evento têm um capítulo neste e-book. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 15 No sétimo capítulo, dando continuidade às contribuições de Benício e Barros, a militante e liderança da luta pelos direitos das pessoas trans em Alagoas, Natasha Wonderfull, nos brinda com uma reflexão sobre os desafios da garantia do reconhecimento e efetivação dos direitos humanos básicos da população LGBTQIA+ no Brasil. A partir de sua experiência como profissional da área da saúde e ativista do campo da cultura, nos convida a conhecer as histórias e lutas cotidianas de mulheres trans de Alagoas. O oitavo capítulo, de João Batista Dantas e Fernanda Gurgel, consiste em um relato de pesquisa sobre ancestralidade e relação pessoa-ambiente, a partir das pinturas rupestres do Seridó e as canoas do Açude Gargalheiras, no Rio Grande do Norte. Focando na importância de preservar as práticas e saberes comunitários locais, as inscrições analisadas são tomadas como verdadeiros patrimônios, capazes de evocar sentimentos de resgate ancestral e de pertencimento ao lugar. No capítulo seguinte, o professor Casé Angatu abre seu ensaio em língua Tupy, como fez durante sua fala no Encontro, chamando a atenção para as lutas e (re)existências dos povos indígenas desde um olhar decolonial sobre territorialidades, Ambiente e como as pessoas do povo no geral (incluindo as comunidades tradicionais) ensinam caminhos de enfrentamento ao genocídio e destruição operados pelos dos do poder a serviço do capital. Casé escreve seu texto, com grande sensibilidade, após as inundações que atingiram a região sul da Bahia e norte de Minas Gerais, no final de 2021, denunciando o racismo ambiental e a necropolítica perpetrada por um governo negacionistas do conhecimento e que sistematicamente persegue as populações ancestrais. Por isso, a saída passa pela construção coletiva e participativa de outros caminhos, há muito ensinados pelas comunidades tradicionais, como os potyrom, motyrõ – mutirões populares, a exemplo do que ocorre no Território Tupinambá de Olivença (Ilhéus/BA). No décimo capítulo, a liderança Bia Pankararu parte de um relato de sua experiência e luta como mulher indígena e LGBT para contribuir com o debate político mais amplo – de interesse da psicologia social – sobre os processos de resistência e afirmação da população indígena no Brasil. Por fim, Valentina Cabral dos Santos e Claudia Soares Monteiro apresentam um relato de pesquisa sobre as implicações psicossociais de mães-solo em uma perspectiva interseccional apoiada na categoria de sofrimento ético-político. A pesquisa empírica qualitativa realizada com cinco mulheres aponta para as vivências da maternidade-solo e os aspectos de sobrecarga, rede de apoio, fonte de sustento e fome. Após esse breve panorama dos capítulos contidos nesta coletânea, convidamos a leitora ou leitor a mergulhar nessa experiência enriquecedora que são os Encontros Regionais Nordeste da ABRAPSO, do qual temos aqui um pequeno, mas valioso recorte. Mais do que um aprofundamento de estudos, esperamos que a leitura dessa obra instigue à participação e construção das lutas antirracista, anti-patriarcal e anticapitalista. Esperamos que a ABRAPSO e a Psicologia brasileira como um todo sigam se fortalecendo na tarefa histórica de propor espaços de reflexão e ação, reunindo diversas vozes de resistência contra a dominação e de luta pela transformação da sociedade. Boa leitura! 16 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE REFERÊNCIAS BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In: CARONE, I; BENTO, M. A. S. (orgs). Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relações Raciais: Referências Técnicas para atuação de psicólogas(os). Brasília: CFP, 2017. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 17 FEMINISTAS NEGRAS BRASILEIRAS E A INTERSECCIONALIDADE4 Bruna Gabriella Santiago Silva A base de construção desse texto é originalmente um tópico da minha dissertação “Erguer a voz: a representação das mulheres negras na literatura de cordel de Jarid Arraes”, 2022, PROHIS-UFS. 4 INTRODUÇÃO Nesse ensaio aqui presente, buscamos desenvolver uma revisão bibliográfica em torno da ideia de interseccionalidade e sua aplicabilidade pelas feministas negras no Brasil que surgem antes da própria terminologia. Buscamos percorrer as contribuições para o debate de pensadoras brasileiras, como Sueli Carneiro, Carla Akotirene, Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento. Intelectuais que buscam analisar como as opressões de raça, classe e gênero perpassam e colocam em situação de vulnerabilidade as mulheres negras no país. Assim, buscamos pensar a interseccionalidade como ferramenta analítica, que entendemos como uma contribuição relevante para a psicologia social. O uso da interseccionalidade enquanto ferramenta analítica nos diversos campos de produções de saberes, demonstra a importância de se pensar em suas aplicabilidades dentro dos nossos campos de conhecimento, mas também, pensar nas bases epistemológicas que fertilizam o chão até o surgimento do conceito. Em uma sociedade permeada pelas desigualdades de raça, classe, gênero e sexualidade é importante analisar as sujeitas negras que se encontram nessas avenidas identitárias onde essas categorias se intercruzam e atingem um mesmo corpo. Embora o conceito não tenha sido nomeado no Brasil, traremos algumas intelectuais negras brasileiras que foram pioneiras no debate em nosso território, a saber Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. Aqui nos deteremos a reflexão da interseccionalidade enquanto ferramenta de análise sobre o lugar da mulher negra na sociedade brasileira e como essas são estigmatizadas. Mas, antes desse intercurso dentro da nossa realidade, é necessário trazermos, ainda que de forma breve, as principais definições do que é interseccionalidade. Como conceito da teoria crítica racial ele surge através da intelectual estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002) que buscava, no campo do direito, demonstrar que para lidar com os problemas de justiça social era relevante pensar a relação frequente entre racismo e sexismo, criando, assim, múltiplos níveis de injustiça social. Sua análise inicial se derivou do caso que ela teve acesso através de um parecer legal sobre Emma DeGraffenreid, em resumo, uma mulher negra que denunciou sofrer discriminação de raça e gênero por uma empresa automobilística. A alegação de Emma foi negada, tendo em vista que o parecer do juiz alegou que a empresa contratava mulheres brancas e homens negros, não podendo, assim, ser acusada nem de machismo nem de racismo. No entanto, algo que será enfatizado é que as mulheres brancas contratadas eram para trabalhos como secretariado, recepcionista, funções que não admitiam negros, e os negros contratados ocupavam vagas da manutenção que não aceitavam mulheres nessa função, sendo mulher e negra, Emma não se enquadrava em nenhuma das ofertas. O caso despertou em Crenshaw o sentimento de urgência para compreender e atuar em casos como esse que traziam os intercruzamentos de ser trabalhadora, negra e mulher. A partir dele reflete que Emma foi atingida pelo que ela chamou de uma discriminação organizada tendo sido aplicada tanto pela fábrica e pela justiça: Eu me senti atingida por esse caso. Ele me pareceu uma injustiça organizada. Primeiro, mulheres negras não podiam trabalhar na fábrica. Segundo, o tribunal duplicou a exclusão ao torna-la juridicamente inconsequente. E, para piorar, o problema nem sequer tinha um nome. E todos sabemos que, quando os problemas não têm um nome, não os enxergamos, e, quando não os enxergamos não podemos revolve-los5. A urgência da Interseccionalidade. Palestra disponível em https://www.ted.com/talks/kimberle_crenshaw_the_urgency_of_intersectionality?language=pt-br#t-407955. 5 20 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Crenshaw (2016) aponta esse caso como o fator embrionário do desenvolvimento do conceito, trazendo que a partir de algumas reflexões percebeu que estava diante de um problema de enquadramento. O enquadramento, em uma superinclusão, seja na categoria mulher ou população negra, não dava conta do lugar específico de uma mulher negra. A interseccionalidade surge então como uma busca por essa explicação da particularidade que envolve um mesmo sujeito. A interseccionalidade se destacar por negar “uma perspectiva voltada para a superinclusão, o que podemos compreender como uma categoria única, priorizando a necessidade de olhar como as diversas opressões perpassam um indivíduo” (SANTIAGO, 2021, p. 56). No campo dos direitos humanos a autora vem constatando que “tais elementos diferenciais podem criar problemas e vulnerabilidades exclusivos de subgrupos específicos de mulheres, ou que afetem desproporcionalmente algumas mulheres” (CRENSHAW, 2012, p. 174). Assim, a mulher, negra, trabalhadora, está em uma situação específica dentro da nossa sociedade tanto no acesso à educação, quanto no mercado de trabalho e nas relações afetivas. A exemplo, são as mulheres negras que consistem nas principais vítimas das violências domésticas e feminicídio no Brasil. Em linhas gerais, a interseccionalidade nos é apresentada como um instrumento teórico para compreender essa realidade: A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição do gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais (AKOTIRENE, 2018, p. 19). Assim, a interseccionalidade se torna esse instrumento que permite analisar essas avenidas identitárias nos mais diversos fenômenos sociais. Um conceito que tem tanto aplicabilidade na teoria quanto na prática, como exemplo, o caso de Emma utilizado por Crenshaw que a definiu para utilização no campo do direito em busca por justiça social, ou, diversas políticas públicas que surgem para pensar a condição específica das mulheres negras e a necessidade de um olhar que interconecta esse transitar de violências sobre um mesmo grupo. Ainda é importante acentuar, junto a Collins e Bilge (2021), que a adoção da interseccionalidade como ferramenta analítica apresenta dois pontos que são importantes para reflexão: (Um) 1. Uma abordagem para entender a vida e o comportamento humano enraizados nas experiências e lutas de pessoas privadas de direitos; e 2) uma ferramenta importante que liga a teoria à prática e pode auxiliar no empoderamento de comunidades e indivíduos (COLLINS; BILGE, 2021, p. 56). O primeiro ponto compreende que a interseccionalidade proporciona um grande avanço nas análises da sociedade quando se tem uma ampla gama de debates que apresentam, através da interseccionalidade, novas interpretações sobre trabalho, família, reprodução (COLLINS; BILGE, 2021). É usar as experiências e lutas de uma população que teve durante muito tempo negadas sua participação no fazer acadêmico, essa inserção enriquece, de maneira considerável, o âmbito de produção. Collins e Bilge são enfáticas ao afirmar que “os projetos de conhecimento interseccional fomentaram novas questões e áreas de investigação nas disciplinas acadêmicas já existentes, em especial nos campos que tratam da interconectividade da academia com algum aspecto do público em geral” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 57). O segundo elemento é de grande valia pois centraliza a interseccionalidade como uma ferramenta capaz de unir teoria e prática que pode servir de catalisador para auxiliar no empoderamento de comunidades e indivíduos. (COLLINS; BILGE, 2021). Nesse aspecto, a interseccionalidade é também, uma práxis de luta que antecede a produção acadêmica do termo. Patrícia Hill Collins e PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 21 Sirma Bilge (2021) defendem é a existência de uma práxis interseccional, antes mesmo da existência terminológica, para elas quando a interseccionalidade é usada como uma forma de práxis crítica “refere-se às maneiras pelas quais pessoas, como indivíduos ou parte de um grupo, produzem, recorrem ou aplicam estruturas interseccionais na vida cotidiana” (COLLINS; BILGE, 2021, p. 51). Para as autoras a interseccionalidade é prática que pode ser desenvolvida dentro e fora do mundo acadêmico e que, teoricamente e nos movimentos de luta por libertação negra, já eram aplicadas e teorizadas6. Assim, é possível afirmar que as demandas pela reflexão sobre a concatenação de diversas opressões, sobre um grupo perpassado por diversos marcadores, já eram pautadas antes do que veio a ser conhecido como estudos interseccionais. Essas reflexões feitas pelas autoras demonstram que, o que viria a ser nomeado interseccionalidade, já era debate recorrente entre mulheres que visavam refletir sobre a especificidade de ser uma mulher negra em uma sociedade marcada pela exploração de classe e as opressões de raça e gênero. É dentro dessa perspectiva que situamos as reflexões das feministas brasileiras. RAÇA, CLASSE E GÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Intelectuais feministas negras como Beatriz Nascimento (2018), Lélia Gonzalez (2018), Sueli Carneiro (2020), se voltaram, a partir da década de 1970, para analisar como o racismo, atrelado ao sexismo e exploração de classe, atingiram as mulheres negras. Na obra “Pensamento Feminista Brasileiro: formação e contexto” (2020), Heloísa Buarque de Holanda situa essas intelectuais como pioneiras no feminismo brasileiro no que tange a interseccionalidade. E é trazendo algumas reflexões dessas intelectuais que buscamos refletir sobre o lugar que ocupa a mulher negra na sociedade brasileira e como o feminismo negro brasileiro constribuiu para uma sofisticada análise da situação dessas sujeitas. É importante frisar que o termo interseccionalidade ainda não havia sido cunhado até o final da década de 1970 e início de 1980 quando feministas negras brasileiras estavam problematizando intensamente o lugar da mulher negra na sociedade brasileira. Em 1976 Beatriz Nascimento escreveu, para o Jornal Última Hora do Rio de Janeiro, o artigo “A mulher negra no mercado de trabalho” em que faz um panorama sobre as diferenças raciais dentro do gênero e como mulheres negras e brancas partem de lugares diferentes estruturadas pela ótica racista. Ela afirma que para a criação de uma mulher do tipo ideal – boa esposa, mãe que dedica toda sua vida a família e que carrega marcas da ociosidade, delicadeza, fragilidade, essa imagem só poderia ocorrer a partir de uma antítese, que é justamente a mulher negra. Ela apresenta no artigo a categoria do trabalho e seus significados a partir da racialidade das mulheres. Revelando que o ócio é algo reforçado na imagem da mulher branca advinda do período colonial. Essa mulher que não se ocupa dos afazeres domésticos quando assim lhe é possível financeiramente, pois, esse serviço será relegado às mulheres escravizadas. É nesse ponto a diferenciação que Beatriz estabelece, se há uma construção de fragilidade longe dos trabalhos fora e até dentro de casa, há quem ocupa esses espaços de exploração; se a mulher branca pode ser vista dentro desse Uma reflexão relevante é que neste trabalho optamos por intelectuais brasileiras que acreditamos ter exercido uma produção intelectual que se enquadram nas definições das autoras enquanto uma práxis interseccional, no entanto, na obra Interseccionalidade elas trazem nomes importantes da tradição socialista que antecederam o debate acadêmico após a década de 1990 quando surge o termo, entre elas intelectuais como Cláudia Jones, Audre Lorde, Bárbara Smith, Angela Davis que estavam diretamente preocupadas com o lugar da mulher negra na sociedade de classes e apresentaram obras fundamentais que contribuíram definitivamente com o que seria posto como estudos interseccionais. 6 22 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE aspecto de ociosidade, ao contrário, a mulher negra é em tempo integral uma produtora (NASCIMENTO, 2019). Contrariamente a mulher branca, sua correspondente no outro polo, a mulher negra, pode ser considerada como uma mulher essencialmente produtora, com um papel semelhante ao do seu homem, isto é, como tendo um papel ativo. Antes de mais nada, como escrava, ela é uma trabalhadora, não só nos afazeres da casa grande (atividade que não se limita somente a satisfazer os mimos dos senhores, senhoras e seus filhos, mas como produtora de alimentos para escravaria) como também, no campo, nas atividades subsidiárias do corte do engenho. Por outro lado, além da sua capacidade produtiva, pela sua condição de mulher, e, portanto, mãe em potencial de novos escravos, dava-lhe a função de reprodutora de nova mercadoria, para o mercado de mão de obra interno (NASCIMENTO, 2019, p. 81). É notado assim, que a mulher negra é uma trabalhadora em tempo integral, sua experiência de vida perpassada pelo trabalho forçado. Nascimento (2018) reforça um aspecto importante, nas relações de trabalho advinda do período colonial não se tem distinção de gênero na exploração do trabalho escravizado, as mulheres negras, ocuparam os mesmos postos na reprodução do trabalho ativo. Neste sentido, mais de uma década depois, Angela Davis (2016) irá trazer a mesma afirmativa de que as mulheres negras vão ter todos os aspectos da sua vida ocupados pelo trabalho. Beatriz Nascimento escreveu, em 1976, que havia na sociedade brasileira daquela época uma herança escravocrata que perpassa esse ser mulher e negra a qual continuará ocupando os lugares e papéis que foram atribuídos desde o processo da escravização. Davis, em 1981, estará fazendo a mesma afirmativa analisando que o espaço de tempo que o trabalho ocupa na vida da mulher negra apresenta o mesmo padrão da escravização, essa mulher do século XX ainda sofre as violências coloniais que se modernizaram e continuam explorando-as, mesmo libertas. Nesse mesmo período no Brasil, Lélia Gonzalez escrevia, entre seus vários artigos, três que merecem devidas menção sobre o tema, “Mulher Negra: um retrato” (1979) “A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem política e econômica” (1981) e “E a trabalhadora negra, cumê que fica?” (1982). O final da década de 1970 foi marcada pelas efervescências dos debates sobre as questões de raça, classe, gênero e sexualidade no país (período que compreende a ditadura civil militar no Brasil). Nesse cenário os movimentos sociais ganham um novo fôlego e um novo rearranjo político. Lélia Gonzalez (2018), nos artigos anteriormente citados, nos proporciona um panorama da atuação das mulheres negras tanto na década em questão quanto na participação das mesmas em todo o processo histórico de luta e resistência. A autora enfatiza que a atuação das mulheres negras antecede as organizações dos Movimentos de Mulheres no país e que suas experiências advindas do acumulo de atuação dentro da luta negra (entre algumas entidades temos por exemplo, a Frente Negra Brasileira e o Movimento Negro Unificado), que eram ativas nas lutas pelo fim da discriminação racial por um lado, e por outro, denunciavam o machismo fora e dentro das organizações negras (GONZALEZ, 2018, p. 275). Para a autora é no ceio do movimento negro que se fortalece a luta das mulheres negras e com o acúmulo de experiências adquiridos junto ao movimento negro que surge naquele momento o embrionário movimento de mulheres negras. Outro ponto importante abordado pela intelectual é o fato que, se por um lado existiam os embates dentro das organizações negras no que tange ao machismo, é dentro dessas organizações que surgem os primeiros coletivos de mulheres negras que se voltariam a pensar a especificidade da tríade de opressão e exploração que as perpassam. Ela cita a exemplo os coletivos Aqualtune (1979), PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 23 Luíza Mahin (1980), Grupo de mulheres negras do Rio de Janeiro (1982), que nascem das construções e acúmulo de experiência do Movimento Negro Unificado (1978) e que essa autonomia do movimento de mulheres negras não significou um rompimento, ao contrário, a atuações políticas destas buscavam engajar dentro do Movimento Negro os debates de gênero e sexualidade que foram sendo absorvidos, embora, lentamente pelo movimento. Nesse contexto ela situa a força da presença de mulheres dentro dos movimentos negros e que, apesar dos problemas explicitados, as experiências de homens e mulheres negras partem de uma experiência histórico-cultural comum, o que permite, assim, a construção de uma base igualitária e o espaço que foi conquistado pelas mulheres na luta negra. E vale notar que, em termos de MNU, por exemplo, não apenas nós, mulheres, como nossos companheiros homossexuais, conquistamos o direito de discutir, em congresso, as nossas especificidades. E isto, num momento em que as esquerdas titubeavam sobre “tais questões”, receosas de que viessem a “dividir a luta do operariado” (GONZALEZ, 2018, p. 276-277). Ao traçar alguns elementos da trajetória das mulheres negras e a busca por uma análise que frisasse as violências da raça, classe e gênero, Lélia aponta para elementos importantes. Primeiro é romper com a ideia de que o feminismo negro é apenas uma bifurcação do feminismo branco, uma réplica sem diferenças substanciais, ao contrário, ela destaca que a experiência racial é central no movimento de mulheres negras e por isso estão engajadas na luta conjunta com os homens negros devido a experiência comum do racismo. Rompe, também, com uma ideia falaciosa de sororidade inata a partir do gênero, destoando disso, ela apresenta as contradições entre mulheres brancas e negras e como o Movimento Feminista, ao universalizar as mulheres fugiam, da sua responsabilidade na manutenção do racismo. É ainda com Lélia que vemos que os movimentos feministas brasileiros contribuíram consideravelmente para a propagação dos estereótipos de “agressivas” e o rótulo de “não-feministas”. As negras que se posicionavam de forma enfática e eram assertivas em relação às desigualdades de raça e classe dentro do gênero sofriam com esses estigmas. Um exemplo relevante é “quando, por exemplo, denunciávamos a opressão da exploração das empregadas domésticas por suas patroas, causavamos grande mal-estar” (GONZALEZ, 2018, p. 278), dizer que havia diferenças substanciais dentro do debate gênero e trabalho era algo que tensionam os debates, como aponta Lélia enfatizar que o trabalho doméstico exercido por mulheres negras feito à base de exploração foi um dos elementos centrais para a libertação das mulheres brancas era algo que gerava um incômodo geral. Importante também, é o fato de quando as mulheres negras centralizavam o debate da violência policial contra homens negros havia uma resistência para pensar esse tema, já que para alguns setores do movimento feminista buscavam nivelar as relações a partir apenas do gênero. Nesse sentido o movimento de mulheres negras não abria mão de uma análise mais cuidadosa das relações de trabalho, raça e gênero tendo em vista que o fator racial permeia essas relações. Não é nosso intuito afirmar que não houve relações construtivas entre os Movimento de Mulheres e o Movimento de Mulheres Negras, ao contrário, a relação de tensão gera espaços importantes de diálogos entre os movimentos feministas e suas vertentes, a própria Lélia enfatiza que alguns setores mais avançados conseguiram manter esses laços de construção com uma base que era colaborativa nas construções de pautas (GONZALEZ, 2018). No entanto, é necessária devidas menções para entendermos que, pensar a especificidade da mulher negra sempre foi um embate árduo dentro dos próprios setores progressistas que buscavam se desresponsabilizar pela exclusão para as margens das mulheres negras. 24 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Para refletir sobre esse lugar de marginalidade a autora analisou, assim como Beatriz, sobre o mercado de trabalho. Em sua produção, ela constata que na década de 1980, o cenário de exclusão da mulher negra não é alterado, elas permanecem sendo as que mais trabalham e menos recebem. Constatando os dados da época apresentavam que as trabalhadoras negras ocupavam 87% dos trabalhos manuais em setores e subsetores de menor prestígio e pior remuneração, chegando a 60% das mulheres sem carteira assinada (GONZALEZ, 2018). Ela relaciona diretamente o lugar da mulher negra no mercado de trabalho com o padrão de trabalho no período da escravização: Nossa situação atual não é muito diferente daquela vivida por nossas antepassadas: afinal, a trabalhadora rural de hoje não difere muito da “escrava do eito” de ontem; a empregada doméstica não é diferente da “mucama” de ontem; o mesmo poderia dizer da vendedora ambulante, da “joaninha”, da servente ou da trocadora de ônibus de hoje e “escrava de ganho” de ontem (GONZALEZ, 2018, p. 128). Assim, ela aponta que há uma construção da mulher negra inapta ao trabalho livre e que, no mercado de trabalho nos pós-abolição as categorias empregatícias seguiram o mesmo padrão de exclusão. Neste mesmo sentido Sueli Carneiro (2020), no artigo Mulher Negra (1985) ao analisar as desigualdades entre mulheres em São Paulo, constata que nesse período, conhecido como a década da mulher, poucas mudanças ocorreram de fato com relação às mulheres negras. Em termos educacionais analisa que 90% das mulheres negras tinham apenas até 4 anos de instrução, comparando-se com mulheres brancas 69,8% e amarelas 51% (CARNEIRO, 2020, p. 26). O padrão de desigualdade na educação se mantém no mercado de trabalho e as mulheres pretas e pardas estão concentradas na prestação de serviços e agropecuária. Já em ocupações administrativas, técnico/científicas e artísticas as mulheres negras em relação a São Paulo chega apenas em 10,6%, em nível nacional, 8,8% em uma relação desproporcional as mulheres brancas que, em ambos, ficam na faixa de 36% e amarelas, também em ambos, sobrepõe 50% (CARNEIRO, 2020). Um parêntese importante, mas, que demonstra que há uma permanência das desigualdades raciais e de gênero no mercado de trabalho, trata-se de pesquisa realizada no ano de 20207 que aponta que as mulheres negras ainda ocupam os piores lugares no mercado de trabalho e sofrem uma sub-representação. Os dados demonstram que na cidade de São Paulo apenas 6,6% ocupam cargos de liderança (gerência, CEO, supervisora ou coordenadora), sendo que pelos dados do IBGE as mulheres negras representam em média 28% da população brasileira. É importante acentuar que os homens negros ocupam apenas 9% dos cargos de liderança, em relação as mulheres brancas que ocupam 31% e homens brancos que lideram de forma preponderante com 39%. Em relação ao salário, a pesquisa ainda demonstra que uma mulher negra recebe em média 44% do salário de um homem branco, ou seja, menos da metade. Se a mulher negra tem sua existência preenchida pela exaustão do trabalho, o retorno financeiro não é o mesmo. Essa observação é o cunho de reflexão da atualidade das análises onde as pesquisadoras brasileiras identificaram um padrão de marginalidade e exploração advindo do processo colonial. Retomando Sueli Carneiro (2020) ela afirma que a cor relacionada ao gênero funciona como “fator não somente de expulsão da população feminina do mercado de trabalho, como também determina os mais baixos rendimentos” (CARNEIRO, 2020, P. 36). Aponta ainda que apesar de passados mais de cem anos da Abolição, as mulheres negras ainda estão em grande maioria nas prestações de serviços, com menores rendimentos dentro da sociedade brasileira. De modo geral vemos que há uma preocupação dentro das reflexões das feministas negras ao pensar a mulher negra em todas as dimensões identitárias e econômicas que a perpassam, e 7 Dados disponíveis em https://blogdoibre.fgv.br/posts/mulher-negra-no-mercado-de-trabalho. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 25 como isto não pode ser dissociado. Apesar de não termos ainda o conceito de interseccionalidade, temos nessas autoras a colheita de reflexões fundamentais para pensar a interseccionalidade enquanto aplicabilidade para análise dentro da sociedade brasileira. Sem pormenorizar, é possível compreender como o uso das intersecções de classe, raça e gênero foi uma constante no pensamento feminista negro brasileiro. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse pequeno transitar é possível refletir sobre a importância teórico-metodológico dos estudos interseccionais para compreensão de nossa realidade enquanto sociedade brasileira. Percebemos que, as questões de raça, classe e gênero aparecem interconectados nas produções das intelectuais negras brasileiras desde 1970, justamente por entenderem que a condição da mulher negra precisava ser pensada em um plano maior de exploração, que identidades fragmentadas não responderam as questões em torno desse lugar social. Este breve ensaio propôs uma reflexão sobre o surgimento da interseccionalidade enquanto conceito, bem como, centralizou sua análise nas dificuldades enfrentadas pelas pensadoras negras no contexto em que desenvolveram uma teoria feminista que abordassem as demandas de raça, classe e gênero. Desse modo, a práxis interseccional já estava presente nessa forma de ver e analisar o mundo e como essa categoria pode ser aplicada nos estudos da área da psicologia social. 26 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE REFERÊNCIAS AKOTIRENE, CARLA. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2018. COLLINS, Patricia; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020. CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, v. 10, n. 1, 2002. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011. GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidade nos dias de destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2019. SANTIAGO, Bruna. O pensamento de Angela Davis: perspectivas de liberdade e resistência. Belo Horizonte: Letramento, 2021. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 27 CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL A PARTIR DO OLHAR XUCURU-KARIRI8 Koram Xucuru-Kariri (Maria Eliete Alves de Souza) Texto advindo de nossa participação, em 2021, no VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social - como convidada na Roda Gigante 2, cujo tema foi ‘Formação em psicologia social e epistemologias: colonialidades e interseccionalidade’, que contou também com participação de João Paulo Macedo (Piauí) e José Maria Nogueira Neto (Ceará). Disponível em https://youtu.be/lwifg1-PE0Q, acesso 27 de junho de 2022. 8 INTRODUÇÃO Este texto apresenta uma contribuição para a formação em psicologia social, ou seja, para estudantes de psicologia, a partir da perspectiva que nós, povo Xucuru-Kariri, temos sobre saúde, cuidados em saúde etc. Quando eu fui convidada pela Regional Nordeste da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social - para contribuir com reflexões sobre este tema, eu me perguntei: o que eu estaria falando com “o pessoal” da psicologia? Penso que nossa contribuição para o debate advém da nossa experiência enquanto promotora de saúde em nossa comunidade e do nosso lugar de integrante do povo indígena Xucuru-Kariri, localizado no município de Palmeira dos Índios Alagoas. A partir daí, identificamos a atuação na promoção e cuidado em saúde como problemática bastante ampla sobre a qual, nós povos indígenas, temos muito a trocar com a psicologia. Primeiramente, a partir de nossa cosmovisão, entendemos que a psicologia não poderia ficar fechada “entre os muros” de universidade, ou seja, ela não pode oferecer uma formação que seja restrita apenas ao espaço universitário, pois este espaço é limitante, haja visto frequentemente apresentar apenas a perspectiva não-indígena de saúde, bem-estar, doença etc. Isso empobrece a formação dos estudantes de psicologia, que vão trabalhar fora destas limitações, na maior parte das vezes, nas políticas públicas executadas fora do espaço da universidade. Assim, a formação precisa ir para o território, precisa dialogar com o território, precisa conhecer o outro que está lá, visto que é justamente esse conhecimento do território que vai diferenciar a formação do profissional. Além disso, entendo que os profissionais de psicologia abordam os sujeitos a partir da consideração também do seu contexto sociocultural diverso, desconstruindo também estereótipos e invisibilidades quanto, por exemplo às comunidades indígenas, quilombolas, LGBT, povo de terreiro - populações muitas vezes adoecidas por falta de diálogo - então reconhecemos uma “abertura” da psicologia social para dialogar com os saberes ancestrais. Então, a partir da minha realidade, nós vemos o cuidado com as práticas que devemos sempre estar fazendo para nossa integridade e também para o fortalecimento da medicina tradicional indígena. Esta medicina entende o cuidado como um ato de cuidar do povo como um todo, não como causas separadas. Nossa medicina entende o cuidado também como o cuidado do povo todo. Ela é oriunda da nossa história e representa nossa base. Em nossa perspectiva, quem tem raiz, tem história, e ela é central para a integridade do seu ser como pessoa e como membro de um povo. Ter uma história faz de nós um ser humano estruturado. Afinal, entendemos que somos quem somos porque também somos a história do nosso povo. Consequentemente, identificamos que um problema muito presente na vida da população mundial (não-indígena) é o fato de não saberem de onde vêm, quem são, o que estão fazendo e qual o seu propósito de viver. Essas questões parecem sem respostas a quem não tem raiz. No contexto da pandemia do novo coronavírus, a sensação de realmente não saber o que fazer foi agravada. Muitas pessoas se sentiram mais desconectadas de si e dos outros, tantas outras ficaram mais “agoniadas”. No contexto da pandemia, principalmente no início quando o distanciamento social estava imposto pelo governo estadual e as barreiras sanitárias pelos municípios, nós nos fortalecemos ainda mais com a nossa medicina, com nossos rituais, com nossos remédios naturais. Foi, então, esse conhecimento do território que novamente fortaleceu o nosso povo. O nosso conhecimento do território foi uma forma de nos prover nossa segurança, naquele período. Dentro do clã indígena, nós vemos que a sociedade de modo geral nos tira a liberdade de falar, de participar; gerando em nós um ser excluído. Já a sociedade, é ela que é um ser excludente, como faz com a maioria das comunidades. Diante disso, nossa visão é de que precisamos estar inse30 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE ridos em uma sociedade, mas precisamos ter a nossa base própria, independente ao máximo. Quando se tem base, raiz, nós conseguimos nos expandir, crescer sem adoecer. Eu, como mezinheira, comecei a utilizar essa linguagem através das ervas, através da alimentação e mostrei aos parentes que é possível nós termos uma qualidade de vida a partir do nosso território, e trazer o bem viver e a cura para dentro das comunidades indígenas. O QUE ESPERAMOS DA PSICOLOGIA? Desde que a colonização iniciou-se aqui, ela trouxe consigo suas práticas, trouxe sua verdade, negou a nossa fala, o nosso cuidar, inserindo outras práticas, outros cuidados, outras verdades sobre a saúde, a doença e o bem-estar dos seres humanos daqui. Avaliamos que, na forma como a psicologia social vem se apresentando para nós, seja pelas ações universitárias, ou pela atuação da psicologia nas políticas públicas, no contexto alagoano, ela vem se colocando mais aberta que o colonizador: não repetindo seu modelo, mas sim escutando também nossa visão e valorizando a reconstrução desse “chão” que nos foi tirado. Acreditamos que a psicologia tem a capacidade de fazer com que nós, seres humanos, voltemos a olhar para nossas raízes, para qual é o propósito de estar aqui e responder uma pergunta muito séria e muito importante que é: que sociedade estamos construindo? Para nós, a resposta reflete que a sociedade atual é adoecida devido ao individualismo. Ele adoeceu o nosso povo. Quando eu falo em “nosso povo”, eu não me refiro só aos povos indígenas, mas eu falo do povo brasileiro, eu falo da nação mundial. Eu falo dessa maneira porque tive muito contato com várias outras etnias indígenas e, além dessas, eu me permiti também estar dentro de uma sociedade não-indígena. A partir daí, vejo que nós, indígenas ou não, reunidos neste planeta, adoecemos cada povo da sua forma; mas todos somos de algum modo afetados por esse individualismo. Ao longo da minha caminhada de cinquenta e quatro anos de vida, tenho mais de trinta e cinco anos nessa missão de cuidar um do outro. Cuidar, ouvir, nos permitir, abrir portas para as pessoas que estavam completamente na comunidade com seus saberes, porém estavam de olhos fechados, com medo de se abrir para um mundo novo e mostrar seu conhecimento de promover saúde. Na minha região, eu participei dessa construção. Esse foi um processo de voltar a conhecer elementos e procedimentos, compartilhados pelos parentes, que estavam sobrevivendo nas práticas domésticas, sem o devido reconhecimento do povo. Dentro desse processo de participação, havia vários profissionais também (psicólogos, odontólogo, historiador), mas a psicologia, na minha opinião, dialogava melhor com os povos. Ela tinha esse diferencial porque teve um olhar diferenciado como um todo, ou seja, um respeito ao espaço com o qual estava atuando. É preciso respeitar esse espaço. Quando eu, como profissional, chego num território outro, eu tenho de respeitá-lo. Por isso, defendo mais uma vez que os acadêmicos têm que quebrar muros, sair da academia e conhecer o território, pois é no território que você vai empoderar as pessoas para elas terem uma visão mais ampla do contexto em que vivem e, assim, criarem ações libertadoras. Muitos de nossos parentes são oprimidos, e sabemos que muitas doenças vêm do não poder falar, do estar em uma sociedade tão excludente. A relação entre profissionais, incluindo profissionais de psicologia, deve construir elo e promover uma cura, que para nós é o bem viver. Eu entendo que, enquanto profissional de saúde, consigo dentro dessa troca horizontal empoderar pessoas. Na minha opinião, a psicologia faz uma conversação com as comunidades que provê uma liberdade de expansão, de se entender melhor, e avalio que essa é uma postura que podemos desenvolver também junto a outros profissionais da saúde. Após a pandemia, sabemos que as pessoas adoecidas irão transformar seus comportamentos e no pós pandemia a psicologia vai ser muito PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 31 demanda, especialmente a psicologia clínica, que será demanda a cuidar dessa nação que, de certa forma, ficou adoecida. Então, é importante que se conheça o território, essa multiculturalidade que, na construção da nossa nação brasileira, produziu uma grande colcha de retalhos. Essa colcha de retalhos são histórias, são vidas, são pessoas, são comunidades, etnias que constroem esse mundo. Para acolher adequadamente essa diversidade, é preciso que os profissionais da academia comecem a trabalhar essa história mais “da base”, vindo para a base, conhecendo a sua história. O que é que eu, enquanto profissional, posso estar inserido para construir qualidade de vida junto a esse povo, mas tendo a humildade de falar com o saber tradicional? Então a academia não pode estar fora desse saber tradicional, ela precisa ter conversação, diálogo. O saber científico e o popular precisam conversar. Então nós já poderíamos, por exemplo, ter avançado muito mais nas práticas integrativas, as chamadas Práticas Integrativas e Complementares no âmbito do Sistema Único de Saúde. Mas, nós não conseguimos, porque enfrentar o adoecimento/a morte requer respeito à cada cultura. Nós, povos indígenas, temos uma forma de olhar para o adoecimento, uma forma de olhar para a morte. Os cuidados de se respeitar o adoecimento e a cura de cada povo fazem com que o profissional seja diferente, e tenha êxito no seu trabalho. É muito importante que essa nova geração que está se formando na academia tenha essa consciência política da sua postura ética perante os povos. Uma amiga minha me disse que ela “se deformou” na academia, porque o conhecimento ali adquirido desconstruiu o que ela tinha aprendido no dia-a-dia, com seus pais e na comunidade. Depois, ela teve que voltar para reconstruir tudo isso de novo. Na minha visão, nós não precisamos “deformar” o nosso saber original se nós reconstruímos a cada olhar, a cada teoria, a cada livro que você estuda, se você consegue fazer esse link de aprendizagem com a sua base popular. Para isso, é preciso vir para a base. Não satisfaz mais uma formação produzida só entre muros e livros, sem ter vivência. O profissional só vai ser um bom profissional se ele tiver a vivência do dia-a-dia no território com o qual se vai trabalhar. Então, são nesses territórios que nós iremos começar a caminhar, para você se tornar um bom profissional, ouvindo pessoas, conversando com pessoas, interagindo, colocando o pé no chão. É com a comunidade que é possível ir trabalhando na desconstrução de conteúdos que foram impregnados em nós desde que fomos invadidos e questionar a visão que nos foi deixada pelo europeu, o colonizador que nos oprimiu, que nos obrigou a viver uma história de vida que não era nossa. É preciso desconstruir dentro da academia conceitos que tiraram a visibilidade da fala de verdadeiros povos indígenas, como também dos povos negros. Para sobreviver, nós fomos obrigados a avançar realmente, a reaprender a viver, sem perder nossas raízes, nossas identidades, nossos costumes, nossas tradições. Esse processo de retomada de si pelo próprio povo nos fortaleceu cada vez mais. Pensando agora a respeito da auto organização, sabemos que ela é libertadora, haja visto que se nós não tivéssemos conseguido nos organizar, como população indígena, como população negra, como população quilombola, nós já teríamos sido completamente exterminados. A nossa própria organização foi a responsável por poder nos libertar, ter uma voz própria, ter fala, ter espaço, e isso nos empodera e traz cura. As pessoas pensam que a cura é física, mas a cura em nossa perspectiva é a promoção do bem estar como um todo, ou seja, um reabastecimento de todas as nossas necessidades enquanto povo. A nossa necessidade está nesse diálogo, então é esperado que o profissional que está na academia, tenha uma capacidade para dialogar, para reconstruir, ou seja, para produzir cura. 32 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Isso só é possível se os profissionais tiverem um olhar libertador. Muitos psicólogos, porém, já se colocam determinados a tratar o paciente focado na doença, enquanto nós povos indígenas trabalhamos os casos de adoecimentos a partir da espiritualidade, que para nós é dimensão muito forte da vida. Então, a espiritualidade não pode estar desconsiderada pelo profissional. Nós somos seres espirituais, vivendo aqui na terra a experiência de seres humanos. É com esse olhar que é preciso se ver o outro, respeitando a sua espiritualidade. O nosso corpo é apenas uma casa, a qual dá muitos sinais para nós, para que nós consigamos cuidar dela antes que ela fique com a casa cheia de enfermidade. Para nós, os psicólogos não são apenas profissionais, mas sim seres humanos na terra que têm a missão espiritual de cuidar e conectar os seres humanos com suas verdades. Esse ser espiritual, que está dentro de você, é ele que vai ter a sensibilidade de cuidar do outro; para além da formação fornecida pela universidade. Então, nós temos várias ferramentas, a nossa terra, a nossa alimentação, temos o amor, o respeito um pelo outro e a humildade. Quando o profissional tem a possibilidade de aprender com quem não está na academia, ele se torna um profissional muito mais competente do que simplesmente o que lhe permite o diploma. E A PANDEMIA? O contexto da pandemia atacou fortemente os povos indígenas do Brasil, mas é importante lembrar que não é a primeira pandemia que nós povos indígenas atravessamos, desde que o Brasil foi invadido. Ao longo da história, enfrentamos diversas doenças no nosso povo que não tínhamos costume. Quando a pandemia do novo coronavírus chegou dentro das comunidades indígenas, principalmente para o povo Xucuru-Kariri, nós não tínhamos nada com o que se proteger. Além disso, a recomendação do isolamento social foi quase completamente inviável no nosso contexto, pois como nos isolar quando nós temos quatro ou cinco famílias morando na mesma casa, tendo cada casa no máximo dois ou três ambientes? É importante os não-indígenas saberem que, antes da pandemia chegar aqui, nós já sabíamos que chegaria um vento forte. Quando esse vento forte chegasse na comunidade, nós já queríamos estar preparados. Esse vento forte é a pandemia, que ainda não foi finalizada, nem vai ser finalizada para nós, no seu sentido amplo, a partir da vacina. Considerando, então, que nós povos indígenas trabalhamos com a questão da espiritualidade como nossa base e nossa proteção, começamos a fazer nossos trabalhos espirituais. Então, nós fortalecemos mais ainda os nossos rituais com nossas ervas medicinais. Antes da vacina, nós tínhamos o nosso preparo e eu comecei a desenvolver um composto natural para fortalecimento da imunidade do nosso povo. Então, demos esses nossos remédios e fomos observando cada pessoa. Porém, eu vi que não era o suficiente, então desenvolvemos um sopão comunitário. O sopão era à base de ervas, raízes, sementes, ou seja, com tudo que tínhamos de mais vitaminas dentro da comunidade para que fosse fortalecida a imunidade do organismo. Foram quatro panelões de sopa para cobrir todo mundo três vezes por semana. Fizemos também um detergente à base de citronela e álcool e outras coisas; era o que eu dava para o pessoal limpar as mãos. Nós conseguimos segurar esse esquema antes da vacina. Ninguém foi hospitalizado, ninguém precisou ser internado e ninguém morreu. Quando álcool e máscara chegaram para nós, na verdade já estávamos avançados na rotina de cuidado coletivo, pois entre os povos indígenas o que promoveu mais cuidado foi a certeza de que eu preciso cuidar do outro. E nesse precisar cuidar do outro, eu preciso ver o outro como seme- PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 33 lhante, como meu irmão. O que é que eu tenho que eu posso estar ajudando o outro? Independente de raça, cor, status social, não existe o muito que eu não precise de nada, nem o existe o nada que eu não tenha para oferecer ao outro. Então, não se tratou de se fechar em uma redoma de vidro, dentro de um apartamento, e proteger a mim e à minha família, sendo que o resto da comunidade fica exposta. Esses quinhentos e vinte anos que estamos aqui, lutando pela sobrevivência, não seriam desmontados pela pandemia. Ao fim, ela de alguma forma nos fortaleceu durante o período de restrição de circulação. Então, nosso lema aqui foi “ninguém solta a mão de ninguém”. Recebemos também doações, depois cestas de higienização e limpeza. Criamos barreiras sanitárias em outros lugares que não tinham. Isso nós fomos dando mão um ao outro, com o pouco que tínhamos. Esse pouco se torna muito quando somos unidos, quando damos as mãos. A sociedade tem que se amar mais e mostrar que somos mais fortes do que esse desgoverno. O Brasil tem muito mais força de enfrentar qualquer dificuldade, porque somos povos de raízes, somos povos de tradições. Então as dificuldades que venha é para nos fortalecer, é para mostrar que é possível fazermos diferente e construirmos um mundo novo. Um mundo onde há espaço para todos, sem olhar raça, cor, credo, religião, seja lá o que for, somos seres humanos. Somos seres espirituais vivendo em um mundo onde o ser humano quer governar, mas quem governa mais é a espiritualidade, é a força do grande mestre do universo. 34 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE AFIANDO NOSSAS ARMAS DA CRÍTICA SOBRE O COLONIALISMO ACADÊMICO E A FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA João Paulo Macedo INTRODUÇÃO Esse texto é uma versão modificada da apresentação realizada no VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO, em 2021, em uma edição ocorrida virtualmente em função do rescaldo da “segunda onda” da Pandemia de Covid-19 no Brasil. O convite foi realizado pela Profa. Suzana Santos Libardi, a quem gentilmente agradeço o espaço, para participar da “roda gigante”, acompanhado da presença da querida Koran Xucuru-Kariri (Alagoas) e José Maria Nogueira Neto (Ceará), cujo debate proposto tratou sobre a “Formação em Psicologia Social e Epistemologias: Colonialidades e Interseccionalidade”. Foi uma tarde muitíssimo proveitosa e agradável, com intervenções muito instigantes, apresentadas pelos(as) participantes que estiveram conosco na sala, com muitos questionamentos sobre o distanciamento dos currículos dos cursos de Psicologia e da própria profissão acerca da formação social brasileira e sobre as questões de classe, étnico-raciais e de gênero, interseccionadas com a saúde mental e com a violência que atinge as minorias sociais, sexuais e de gênero no país. Na oportunidade, a palavra circulou entre os(as) debatedores(as), após as reflexões e problematizações iniciais apresentadas pelos(as) participantes da sala a partir das questões geradoras suscitadas pela mediação realizada por Suzana Libardi. As ideias, provocações e experiências apresentadas à roda evidenciaram a importância dos saberes, dos modos de vida e do cenário de luta e resistência dos povos tradicionais e a realidade vivida pelas populações tradicionais e periféricas no Brasil e na América Latina, como também sobre o silenciamento da formação em Psicologia em relação a este tema. Nesse sentido, o debate voltou-se em grande medida para ampliar a crítica quanto a ideia do antropoceno moderno, fundante de uma concepção ocidentalizada e dominadora do mundo, e que alicerça a própria Universidade, a Ciência e a Psicologia, enquanto vetores de reprodução da dominação, da exploração e das colonialidades que habitam nossos corpos e nossas mentes. A seguir apresentarei algumas ponderações com as quais subsidiaram minha intervenção na roda, com a preocupação de manter o formato de um texto mais livre para ajudar a afiar as nossas armas da crítica a partir do cenário que se apresenta a Universidade brasileira e a formação em Psicologia. RÁPIDOS LAMPEJOS ENTRE A TESE DO “COLONIALISMO EDUCACIONAL” DE FLORESTAN FERNANDES E O DEBATE SOBRE A COLONIALIDADE DO PODER, DO SABER E DO SER PARA CALIBRAR NOSSAS ARMAS DA CRÍTICA. Para abrir minha fala no VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO, retomei rapidamente a tese de Florestan Fernandes sobre o Colonialismo Educacional que marca a Universidade brasileira, enquanto consequência do imperialismo e de um capitalismo dependente que se impôs no país a partir da reprodução ou da “transplantação” do conhecimento e do modelo europeu e norte-americano de universidade (FERNANDES, 1975). Segundo o autor, a Universidade brasileira expressa muitíssimo bem a relação de tutela e dependência do país, com um projeto de dominação em todos os níveis da ordem social, tendo a educação como lugar estratégico para a formação da força de trabalho. Nesse projeto se impôs o investimento em uma formação instrumental para a sustentação das relações produtivas sob a égide do capitalismo monopolista, tendo como consequência, de um lado, o papel da Universidade como consolidação do projeto da burguesia brasileira e como instrumento de ascenso de setores da classe média, e do outro, com a reprodução das relações de dominação para a exploração das classes populares. Assim, por diferentes vias arregimentava-se 36 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE a partir dos instrumentos ideológicos da época para que diferentes estratos da população fossem conformados a partir dos valores hegemônicos de manutenção e reprodução das relações de classe instaurados no país (FERNANDES, 1975). A análise proposta por Florestan Fernandes não só ainda é atual, como conforma elementos importantes para pensar inclusive acerca do avanço da mercantilização da educação superior nas duas últimas décadas. Mercantilização essa que foi turbinada com a mira dos grandes grupos econômicos do setor da educação, inclusive transnacionais, sob os fundos públicos. Além do mais, a tentativa de impor formas de privatização à educação pública também se fazem presentes a partir da forte pressão de frações da burguesia nacional e internacional com o descortinamento da Universidade pública como oportunidade de negócio. Para Viviane Queiroz (2022), tais elementos, na esteira do pensamento de Florestan Fernandes, apontam para uma nova face do privativismo que atravessa e constitui o colonialismo educacional no Brasil e avança inclusive para transformar as universidades públicas em mercadorias comercializadas, acompanhado da disputa do fundo público por meio da diversificação das fontes de financiamento. Acompanhado disso, a autora ainda alerta para o fortalecimento da pedagogia do capital cada vez mais presente nas salas de aula da educação básica e do ensino superior, enquanto campo ideológico para o silenciamento das lutas populares na guerra ideocultural contra o pensamento crítico. Lembremos que a Universidade brasileira ocupou historicamente o lugar estratégico de exclusão e de silenciamento das vozes e dos corpos dos chamados “Condenados da Terra”, nas palavras de Frantz Fanon. O objetivo sempre foi impedir corpos pobres, racializados e indígenas de acessar os bancos universitários; ou, se caso tais corpos viessem a conseguir furar a bolha para ingressar na universidade, que fossem integrados à lógica hegemônica de reprodução das relações de classe, a partir de processos de aculturação e por imperativos ideológicos e culturais de dominação tanto do ponto de vista epistemológico quanto ontológico presentes nas áreas de conhecimento, campos teóricos e racionalidades técnico-instrumentais que orientam as profissões no país. Para desdobrar mesmo que rapidamente esse debate sobre as formas de dominação e aculturação indicados anteriormente, chamo para nossa roda de conversa as contribuições de autores(as) do chamado Giro Decolonial, a partir do entendimento da colonialidade do poder, do saber e do ser, muito embora reconheça as diferenças epistemológicas com o debate anterior, a partir da tese de Florestan Fernandes. Por colonialidade do poder, tomamos a dimensão que sustenta o padrão mundial econômico-político da ordem capitalista, que se objetiva a partir da exploração e da organização do trabalho e do tipo de sociabilidade que daí deriva, com base na hierarquização étnico-racial, e que submete a classe trabalhadora, em sua diversidade, à ordem do mercado global, cada vez mais espoliadora, violenta e mortificante. Para Quijano (2009), a colonialidade do poder é uma estrutura de dominação que se configura a partir da mundialização e a centralização do poder econômico-político capitalista, orientada pela classificação e hierarquização de classe e, sobretudo, étnico-racial, na relação de poder entre o mundo moderno/colonizador e o mundo colonizado, ou entre frações da burguesia dominante e o contingente da classe trabalhadora, dominada e explorada, de um país. Já a colonialidade do saber refere ao caráter ideológico que dá sustentação a colonialidade do poder a partir da superioridade com que se coloca o saber ocidental, sobretudo o europeu e o norte-americano, ao postular um tipo de conhecimento e padrões de linguagem e da própria cultura dominante enquanto lugar de verdade e de norma. Assim, classifica e hierarquiza a relação entre os centros de produção do conhecimento, eurocêntricos e norte-americanos, e as periferias, consideradas dependentes de conhecimento e tecnologias (SANTOS, 2009). A colonialidade do poder e do saber engendram a própria colonialidade do ser, já que conhecimento e saberes não estão separados da produção do sujeito e suas expressões. Neste caso, são colonialidades que configuram e condicioPSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 37 nam a experiência do sujeito colonizado no mundo e incidem em suas constituições ontológicas a partir dos modos do sentir, do perceber e do agir (MIGNOLO, 2003). Por isso a importância de, mesmo entendendo as diferenças entre os(as) autores(as) aqui mencionados, de um lado de base na crítica marxiana, do outro, também orientados pelo pensamento crítico, mas com interfaces entre as teorias culturalistas e pós-estruturalistas, pensar sobre os aspectos macro e micropolíticos envolvidos nas formas de dominação e reprodução social a partir do colonialismo educacional e da colonialidade do poder, do saber e do ser presente na educação brasileira. Além disso, alerto que, apesar dessa arquitetura de dominação, exploração e aculturação impostos pelo capitalismo dependente e pelo colonialismo educacional que se instaurou no país, o surgimento de fissuras e fraturas nos muros da Universidade brasileira não deixaram de acalentar nossos corações! Nesse sentido, gostaria de ressaltar a presença de um elemento relativamente “novo”, como ponta de lança, na luta pela transformação da Universidade brasileira: trata-se da presença de discentes, docentes e pessoal técnico-administrativo negros e negras, por pessoas trans, indígenas, quilombolas, ciganos, e demais pessoas oriundas de comunidades rurais e tradicionais na Universidade brasileira. Esse ponto de inflexão que resultou, em alguma medida, na transformação de certos nichos da educação superior pública do país com a mudança no perfil do estudante universitário brasileiro, só foi possível em função das políticas de ação afirmativa a partir do sistema de cotas e programas de assistência estudantil. A presença desses “malditos(as)” na Universidade tem alargado as fissuras e fraturas dos seus muros, inclusive dos muros dos seus feudos internos, bem como ajudado a calibrar as armas da crítica na luta para o rompimento do colonialismo educacional e as expressões das colonialidades do poder, do saber e do ser que circulam na educação e na sociedade brasileira. PARA A TRANSFORMAÇÃO DA UNIVERSIDADE BRASILEIRA NÃO BASTA APENAS RESERVAR VAGAS! A experiência do sistema de cotas no Brasil foi tardia, se comparado a outras realidades. Iniciou, efetivamente, em 2003, com a implantação do sistema de cotas nos processos de ingresso à Universidade, após aprovação de leis no Estado do Rio de Janeiro, com a UERJ saindo na frente com a reserva de vagas para estudantes de escolas públicas fluminenses, pretos(as) e pardos(as). Em seguida, em 2004, a UnB avançou com a implantação de sistema semelhante, depois de muita polêmica e discussão. O acúmulo do debate e das experiências inaugurais do sistema de cotas resultaram na adoção da medida por outras Instituições Públicas de Ensino Superior no país, sendo consolida com a aprovação da Lei n.º 12.711 em 2012, que instituiu a obrigatoriedade do sistema de cotas em todo o ensino superior federal do país, com a reserva de vagas para estudantes oriundos(as) de escolas públicas, de baixa renda, pretos(as), pardos(as), indígenas e deficientes. Ademais, ainda em 2007, foi instituído o Programa Nacional de Assistência Estudantil pela Portaria Normativa n.º 39, de 12 de dezembro de 2007, para garantia da permanência de estudantes nos cursos de graduação. Tais conquistas foram fruto de longa luta, que remonta a agenda de lutas dos movimentos sociais negros e indígenas desde as décadas de 1970 e 1980. Chamo atenção que o pouco tempo de implementação de tais ações afirmativas nas primeiras décadas do Séc. XXI trouxe reflexos imediatos no combate ao racismo institucional e uma maior porosidade da Universidade à diferença, sobretudo, no âmbito dos cursos de graduação, e mais recentemente na pós-graduação. Por outro lado, o impacto dessas medidas na docência do ensino superior ainda vai levar um maior tempo para colhermos os frutos. 38 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE A maior presença de estudantes advindos das escolas públicas, portanto, de classes populares, sobretudo racializados, periféricos, deficientes e de minorias sexuais e de gênero na Universidade brasileira, abriu espaço para reivindicações com as quais as velhas estratégias de integração e aculturação de estudantes à lógica hegemônica não tiveram o mesmo êxito de épocas anteriores. A luta, mesmo em meio aos ataques à autonomia universitária e à educação superior pública e gratuita, aponta que tem seguido firme para a manutenção de uma maior presença de discentes historicamente interditados ao espaço universitário, com condições de permanência para a finalização de seus cursos no âmbito da graduação e da pós-graduação. Além disso, a mudança dos currículos, dos percursos formativos e de estrutura da própria Universidade, de modo a reconhecer e ter em seus espaços a presença de docentes com origem e pertencimento nas classes populares e junto a população negra e indígena, e o fato de poder contar com a presença de mestres e mestras da cultura popular e oriundos dos chamados povos tradicionais, é outra trincheira fundamental para romper com o conservadorismo epistêmico, inclusive para redirecionar a Universidade aos problemas com que vive a maioria da população brasileira. Assim sendo, não se trata apenas de furar a bolha elitista e conservadora que conforma o ensino superior no Brasil com a presença da diversidade de classe, sexual e de gênero, étnico-racial e de origem de lugar e geracionalidade. É urgente avançar na alteração da estrutura conservadora da Universidade brasileira de modo a instaurar outro modo de convívio e de conformação epistêmica para que tenhamos tanto a formação superior quanto a produção de conhecimento orientadas para os problemas do país. Para tanto, alerto que não basta lutar apenas na direção de uma “ampliação epistêmica”, como se bastasse acomodar pensamentos subalternizados e historicamente desqualificados pela estrutura euro-norte-americano-centrada e colonizadora da Universidade brasileira. Muito menos garantir uma ou outra disciplina ou um outro curso na estrutura existente, ou seja, à margem da ordem instituída. Pelo contrário, faz-se necessário radicalizar em direção ao exercício de atitudes descolonizadoras no interior da estrutura da Universidade. Neste caso, alerto para o fato de que as novas gerações, muito sintonizadas com as lutas mais imediatas a partir das chamadas “pautas identitárias”, precisam articular tais lutas, absolutamente legítimas, com lutas mais amplas e estruturais que apontem para outro projeto societário que não seja o projeto burguês. Para isso é preciso ter bastante clareza de que o movimento que tem emergido na última década no universo literário e editorial, e que tem ganhado maior espaço no meio acadêmico, sobretudo nas ciências humanas e sociais, acompanhado do fortalecimento dos movimentos sociais de minorias sociais urbanas e do campo, como coletivos feministas e de mulheres, movimento negro, indígenas, campesino e das periferias urbanas, dentre outros, não se trata de um modismo acadêmico. Tais lutas não começaram ontem! Há uma longa tradição de luta, insurgência, insubordinação, movimentos de contestação e de libertação nacional enquanto resposta dos povos oprimidos e subalternizados pelas relações dominação, exploração e expropriação impostas pela corrida colonial e neocolonial realizadas pelo ocidente e que foram perpetuadas no cotidiano das instituições, dos sistemas políticos e da cultura, por diferentes máquinas de opressão e operação das colonialidades do poder, do saber e do ser. Portanto, a força dos movimentos sociais e de setores organizados da classe trabalhadora e periférica têm, mesmo em períodos de descenso da luta de classes, resistido não apenas em reação as ofensivas impostas pelo capitalismo financeiro e neoliberalizante, mas também avançado com experiências e proposições de modo a fortalecer as lutas que teremos pela frente. A inspiração tem sido nos movimentos de descolonização e de ação contra colonizadora que têm suas bases no anticolonialismo revolucionário, no pensamento marxista e no próprio pensamento social crítico proposto pelo grupo sul-asiático dos estudos descoloniais e pelo grupo latino-americano dos estudos decoloniais, acompanhado ainda do diálogo e aprendizado em meio a diferentes cosmovisões PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 39 reunidas nas matrizes africanas, indígenas e diaspóricas. Essas diferentes leituras da realidade e experiências, entranhadas por anseios e disposição para alianças entre diferentes movimentos, é o que têm mantido a chama acesa das utopias por transformação do nosso mundo e orientado as lutas e insurgências que emergem no cotidiano de diferentes grupos, coletivos e organizações para romper com os pactos coloniais que nos constitui sujeito. Como exemplo mais concreto, trago os inúmeros coletivos que têm surgido por estudantes e docentes cotistas e racializados(as), com reivindicações que põem em diálogo a vida na universidade e a vida nas cidades e no campo, tornando os muros da Universidade brasileira mais porosos diante dos problemas do país que são os problemas que enfrenta a classe trabalhadora e por quem que vive nas periferias urbanas e rurais em condições subumanas. Além disso, é importante citar a experiência de algumas Universidades que têm tentado se desvincular do mandato epistêmico hegemônico com o qual temos nos subjetivado e constituído sujeitos. A UnB, com o projeto “Encontro de Saberes”, tem proposto um profícuo diálogo entre as epistemologias ocidentais e as epistemologias do Sul, com ênfase nos saberes populares e tradicionais, com a presença de mestres e mestras da cultura popular como docentes visitantes. Essa mesma experiência tem se expandido para outras instituições de ensino superior (CARVALHO, 2019). Outra experiência interessante é a da Universidade Federal da Fronteira do Sul com a proposta de criação de um campus indígena, acompanhado de editais de contratação de docentes exclusivo para povos indígenas (BENINCÁ, 2015). Essas e outras ações envolvendo projetos de extensão universitária que não serão possíveis detalhar aqui são deslocamentos importantes para promover atitudes descolonizadoras de despedaçamento e ruptura das colonialidades do poder, do saber e do ser que habitam a estrutura da Universidade brasileira (SIMAS; RUFINO, 2019). Há mais de 500 anos repetimos o padrão epistêmico ocidental como única referência de conhecimento, espécie de eurocentrismo compulsório, camisa de força das lentes que orientam nosso pensamento e dos nossos corpos diante da vida (CARVALHO, 2019). Na universidade não é diferente! Mas além da tarefa de despedaçamento, é preciso que avancemos a partir do refazimento, por meio de suturas a serem costuradas constituindo assim um assentamento e um aquilombamento na academia de modo que possamos refundar o próprio currículo e a universidade que temos. Esta certamente é uma tarefa árdua a qual teremos pela frente! COMO A CRÍTICA DO COLONIALISMO ACADÊMICO E DA COLONIALIDADE DO PODER, DO SABER E DO SER ALCANÇAM A PSICOLOGIA? Pretendo, nesse último momento, dialogar com a Psicologia, entendendo-a como resultante do saber moderno instituído para lidar com os efeitos que a própria modernidade instaurou. Nesses termos é preciso reconhecer o quanto nossa ciência e profissão serviu historicamente como instrumento de colonização, controle, opressão e dominação dos povos (LACERDA JR., 2013). Não podemos esquecer que, enquanto ciência e tecnologia de controle, a Psicologia tem em suas bases ontológicas, epistemológicas, teóricas e metodológicas, a ideologia da branquitude, do racismo, do individualismo, da competitividade, do machismo, do autoritarismo, do sexismo, e do binarismo sexual e do gênero, etc. (ROSE, 2011; PARKER, 2014). Aquilo que está fora dessas matrizes orientativas do modelo de sujeito que permeia nossa ciência e profissão é considerado como inferior, selvagem, desviante (NOGUEIRA, 2020). Nesse sentido é urgente avançarmos no exercício de romper com os colonialismos mentais e psicossociais que nossa ciência produz (NOGUEIRA, 2020), operada a partir da colonialidade do poder, do saber e do ser, as quais teimamos, insistimos, e nos acomodamos em reproduzir. Penso que este é o pano de fundo e o horizonte ético-político orientativo da 40 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE estratégia de fortalecermos o pensamento crítico na Psicologia, aliado com as matrizes dos saberes e experiências dos povos oprimidos e subalternizados, para rompermos com a colonialidade do ser amalgamada pela colonialidade do poder e do saber, que nos constitui sujeito. É verdade que houve avanços em nossa ciência e profissão, especialmente a partir da Psicologia Social Crítica e da Psicologia Social Comunitária Latino Americana, que trouxeram profícuos diálogos com outras áreas do conhecimento e do pensamento crítico, acompanhado das experiências junto aos movimentos sociais, e uma maior aproximação da profissão junto as camadas populares, periféricas e subalternizadas. Porém, penso que já temos acúmulo suficiente para avançarmos na crítica de que é preciso nos deslocar do solo epistemológico fundado nas bases ontológicas do antropoceno moderno ainda presente até mesmo nas bases mais críticas da Psicologia referidas à pouco. Nesses termos, é preciso perceber a contradição de propalarmos na Psicologia discursos que se apresentam em apoio as lutas populares e periféricas, amalgamados pelo lema do compromisso social ou ético-político, se ainda trabalhamos, mesmo na Psicologia Social, com categorias analíticas que continuam intactas. Refiro-me, depois de anos de experiências de pesquisas com as classes populares, comunidades periféricas, rurais e tradicionais, que avançamos pouco no despedaçamento e no refazimento de categorias analíticas como: comunidade, grupo, identidade, linguagem, pensamento, memória, relações de poder, subjetividade, etc. É preciso pensar essas categorias ou a própria Psicologia sobre outras bases e orientada por certa ideia de uma indigenização e africanização das ciências psicológicas, como reporta alguns estudos mais recentes na Psicologia (NOGUEIRA, 2020). Por isso que a presença de um maior contingente de discentes e docentes historicamente interditados à Universidade, bem como ações de ensino, pesquisa e extensão para fora dos muros acadêmicos junto às classes populares e comunidades periféricas, não orientadas pelo extrativismo acadêmico, mas pautadas pelos problemas que cruzam as vidas desses povos, é de suma importância para evidenciar e escancarar tais contradições, inclusive nos nichos do conhecimento que se colocam como críticos. São exatamente com esses corpos, que hoje habitam a Universidade brasileira e que não têm se calado frente aos saberes e práticas racistas e colonizadores aliados ao patriarcado, ao sexismo, ao epistemicídio, ao etnocídio e ao próprio capitalismo e sua estrutura de dominação e exploração, com quem devemos aprender com seus saberes, cultura e sociabilidade, inclusive reinventando metodologias e experiências em pesquisa na produção do conhecimento em conjunto com esses corpos. Portanto, o trabalho de descolonização deve estar voltado tanto contra o campo das epistemes hegemônicas, quanto, sobretudo, contra o ethos colonial que habita a Universidade, e em particular a Psicologia. E são as alianças com as experiências locais, bem como com o conhecimento produzido na América Latina e nos continentes Africano e Asiático, que alimentarão o encontro com os saberes, ancestralidades e os modos de vida periféricos e tradicionais para que possamos estranhar, repensar e romper com as heranças culturais das metrópoles ainda presentes na Psicologia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como reflexão final, é fundamental avançar nessas disputas apresentadas na Universidade e na própria Psicologia, para que a formação reconheça a diversidade epistemológica e ontológica do mundo, que é histórica e geopoliticamente situada, e que se expressa em variadas concepções de ser e estar no mundo. Reconhecemos o quanto o pensamento crítico a partir de diferentes entradas epistemológicas e experiências de luta por transformação social têm se feito presente na UniverPSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 41 sidade brasileira e, em particular, na Psicologia. Sendo que, no caso da nossa ciência e profissão, o avanço do debate da Psicologia Social Crítica, a partir da Psicologia Social Latino Americana, da Psicologia Social Comunitária e da Psicologia Política, como também em articulação com os estudos de gênero, estudos feministas, do pensamento negro e pelos estudos interseccionais e decoloniais, têm contribuído sobremaneira para a necessidade de romper com o universalismo e etnocentrismo presente nas principais teorias psicológicas, como também reconhecer e nos aproximar de problemáticas e das populações invisibilizadas pela própria Psicologia. Porém, é preciso reconhecer a crítica, mais do que certeira, proposta por Pedro Nogueira (2015), ao apontar que mesmo com os avanços teóricos e metodológicos, por parte da ciência psicológica na última década, considerando o conjunto de debates críticos citados anteriormente e o quanto esse material tem sido lido, comentado e elogiado pela produção bibliográfica brasileira na área da Psicologia, para o autor parece que as críticas não ganharam o devido espaço no campo das práticas psicológicas. E complementa, ao dizer que: pelo fato de as críticas não serem praticadas acabam “permitindo que perdurem os efeitos perniciosos do colonialismo interno, herança da estrutura do poder implementada pelo imperialismo ocidental” (NOGUEIRA, 2015, p. 112). Portanto, um passo à frente é urgente nessa disputa para que possamos construir uma relação mais orgânica entre o exercício da crítica e da ação: aprofundar as alianças com os povos subalternizados, para que nos falem, falem muito... nos interpelem... e auxiliem a nós mesmos e a ciência psicológica nesse exercício de despedaçamento do ethos colonial que nos constitui! 42 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE REFERÊNCIAS BENINCÁ, D. Universidade popular e os povos indígenas. Educação em Perspectiva, v. 6, n. 1, p. 79-98, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/educacaoemperspectiva/article/download/6716/2757 CARVALHO, J. J. Encontro de saberes e descolonização: para uma refundação étnica, racial e epistêmica das universidades brasileiras. In: Bernardino-Costa, J.; Maldonado-Torres, N.; Grosfoguel, R. (org). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019. FERNANDES, F. 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Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 43 “PERIGO NEGRO”: IDEIAS PSICOLÓGICAS E CRIMINALIZADORAS SOBRE O/A NEGRO/A NO PÓS ABOLIÇÃO (FEIRA DE SANTANA 1890-1910). Sirlene Pereira Bispo INTRODUÇÃO Os estudos das relações raciais pela Psicologia no Brasil sofreram um importante deslocamento nos últimos anos, que retirou o negro do lugar de objeto da ciência para sujeito político. Tal deslocamento é significativo pois nos convida a repensar e revisitar práticas, discursos e representações desde uma perspectiva antirracista, além de representar os esforços desses sujeitos políticos em se fazerem ouvidos a partir das suas visões de mundo. Neste sentido, a presente pesquisa constitui mais uma produção em Psicologia Social preocupada com a análise crítica da representação do/a negro/a pela Psicologia. Questionar a história da Psicologia passa pela necessidade de revisitar a “psicologia da história”, no sentido de descrever e analisar criticamente determinados discursos e seus efeitos para a manutenção do racismo em um período histórico e contexto regional específico. Ao utilizarmos a noção de racismo nessa pesquisa, nos referenciamos em Moore (2007) em sua obra “Racismo e Sociedade” em que se refere ao racismo como uma irredutível forma de consciência determinada pela história que implica uma vontade e intenção de extermínio do Outro Total. O racismo é, portanto, um problema histórico e estrutural no Brasil. Por isso, ecoamos aqui a voz de Iray Carone (2002, p.17) ao perguntar “Como é que um problema explícito das elites brancas passou a ser interpretado ideologicamente como um problema dos negros?” Podemos acrescentar de forma mais específica: como a dominação associada ao “desejo de branquear” foi cotidianamente reposta nos jornais da imprensa feirense do entre séculos como um processo de apagamento da possibilidade de construção de uma autoimagem positiva para os negros e como as ideias psicológicas relacionadas à noção de raça naquele período se relacionam com tais representações ideológicas? Para tanto, trabalharemos ainda com duas noções desenvolvidas por Lélia González (1984), que são as de “consciência” enquanto encobrimento, que compreende, inclusive, estruturações do saber e “memória” enquanto um lugar de emergência da verdade e restituição de uma história. Utilizamos os jornais como documentos históricos que mobilizam a memória, e que nos ajudam a compreender a estruturação de discursos raciais que produzem uma consciência sobre a questão do “elemento negro” como “um problema da nossa sociedade” (MARTINS, 2009, p. 28), que demarcava um lugar social de estranhamento. Assim, o objetivo da pesquisa é compreender o racismo no pós-abolição na cidade de Feira de Santana – BA (1890 – 1910), promovendo um diálogo interdisciplinar entre Psicologia Social e História. Trata-se de uma pesquisa documental, que tem como objeto os jornais que circulavam em Feira de Santana-BA no pós-abolição, entre 1890 e 1910, disponíveis no acervo da Biblioteca Monsenhor Galvão, no Museu Casa do Sertão. Foi utilizada a metodologia de Análise de Conteúdo (A.C). Os procedimentos adotados foram: pré-análise, exploração sistemática do material, tratamento dos resultados obtidos (categorização) e interpretação (BARDIN, 2016). As divisões em categorias de representação percebidas nos jornais foram definidas a posteriori da leitura dos mesmos. Essa pesquisa é parte de um estudo maior que compreende um Trabalho de Conclusão de Curso, nesse recorte optamos por trabalhar apenas uma das categorias encontradas, qual seja, a “estereotipização/criminalização do negro” devido ao expressivo número de ocorrência. No campo dos estudos sobre a historiografia da Psicologia no Brasil, costuma-se referir ao período do pós-abolição, no final do século XIX, como período pré-institucional das ciências psicológicas, já que não existiam ainda instituições voltadas para o ensino da Psicologia (ANTUNES, 1998). Massimi, difere a História da Psicologia científica da História dos Saberes Psicológicos, e conceitua a última como aquela que: “ocupa-se então daqueles aspectos específicos da visão do mundo de uma determinada cultura, relacionados a conceitos e práticas que na atualidade podem 46 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE ser genericamente entendidas como psicológico” (2010, p. 103). Nesse caso, como relata a autora, a noção do que é “psicológico” permanece ainda muito vaga e cada pesquisa deve demarcá-la dentro de um campo próprio do universo sociocultural investigado, nesse caso, o universo sociocultural investigado foi o de Feira de Santana – BA, entre 1890 e 1910. “O NEGRO É A COR DO TERRÍVEL” - ESTEREÓTIPO RACIAL NO BRASIL ENTRE FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX. Dentre o universo de 98 notícias encontradas nos jornais, 46 são pertencentes à categoria “estereotipização/criminalização do negro”, portanto, um aspecto evidenciado pelos resultados obtidos é a destinação de um lugar de outridade ao negro, uma visão estereotipada que o configura como fora do centro branco, portador de características negativizadas (KILOMBA, 2019). Alessandro Santos discute que a construção do estereótipo funciona como uma defesa psicológica para lidar com um outro visto enquanto diferente e colocado na condição de inferior (SANTOS, 2017). Coadunando com a perspectiva de Muniz Sodré (2002), é possível pensar a construção da figura do negro no lugar da diferença como um empreendimento da metafísica moderna ocidental, pois essa, ao adquirir sentido universal, cria também a noção do que é humano, que nesse contexto pode ser entendido como o homem branco ocidental, e o inumano, categoria à qual são relegadas às pessoas negras. É fundamental delimitar que apesar dos estereótipos estarem presentes durante todo processo da história humana, desde seus primeiros agrupamentos, o seu estudo sistemático é datado da segunda década do século XX, a partir da sua definição por Walter Lippman em 1922 (PEREIRA; LIMA, 2004). Cabe frisar, portanto, que “até a década de 20 do século XX, os preconceitos eram vistos como atitudes normais frente a grupos sociais ‘inferiores’.”. Ressaltamos, mais uma vez, que os estudos de ideias psicológicas compreendem fenômenos que muitas vezes ainda não tinham sido conceituados pela Psicologia Científica. No entanto, tais ideias, não deixaram de ocorrer e serem examináveis, nesse caso, a partir do estudo sobre o lugar da diferença atentado por Sodré (2002). Pelo título atribuído às notícias, muitas vezes, já é possível ter noção dessa relação do negro com aspectos negativos e depreciativos. Oliveira (2000) nos informa que, no conflito pela posse da memória, a construção de campos de significados nos quais a herança negra era tratada de maneira negativa foi constante. Os títulos, geralmente, remetiam à algum tipo de crime, ou sentimentos negativos, como “Bárbaro Espancamento” (BÁRBARO... 1910), “Crime Bárbaro” (CRIME... 1910), “Tentativa de Estupro” (TENTATIVA...1910), e “O Invejoso” (1907). A utilização da linguagem como meio de disseminar os estereótipos sobre um grupo subjugado é um mecanismo estratégico recorrente das classes dominantes, isso porque “no processo de estereotipia, os padrões correntes interceptam as informações rumo à consciência” (BOSI, 1992, p. 113). Percebe-se que, em Feira de Santana, e no Brasil, a consciência da população tem sido forjada sobre os falseamentos produzidos pelo racismo. Em 1907, é possível identificar o processo de estereotipia em um artigo intitulado “O invejoso” (1907) em que a redação afirma que “mais negra que o carvão é a alma afetada pela doença moral da inveja”. Silva e Oliveira (2020, p. 429) ao relatar sobre a história das relações raciais no Brasil, situa-a enquanto “atravessado pelo mapear dos jogos de disputa semântica materializados nas percepções sociais”. A maneira de utilização da linguagem tem a capacidade de naturalizar processos culturais de opressão como o racismo. Lélia Gonzalez (1984, p. 225) ao discutir a naturalização do racismo mostra que é difundida a ideia que “negro tem mais é que viver na miséria” e segue explicando que isso é justificado “porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal”. Realiza-se uma “colheita perceptiPSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 47 va” (BOSI, 1992), em que, os aspectos do real são recortados e confeccionados pela cultura, e então são colhidos e generalizados, transformando o que é social ideológico em fato biológico. Temos elementos suficientes para afirmar que a estereotipização e a criminalização do negro andam lado a lado nesse processo, sendo a última uma forma de estereótipo que transforma características físicas da pessoa negra na imagem do criminoso. Essa estratégia, segundo Bento (2002), é fruto dos esforços de uma medicina e antropologia criminalista, representada principalmente pelo italiano Cesare Lombroso, que atribuía o biotipo do criminoso nato ao biotipo do negro. É possível perceber a comunhão das elites feirenses com essas teorias criminais através dos discursos presentes nos jornais. Em 1909, quando da morte do italiano, o jornal Folha do Norte decide fazer uma homenagem ao mesmo, relatando que “sucumbiu, repentinamente, na Itália, o grande publicista psicólogo, fundador da humanitária escola antropológica do direito criminal...” (CEZARE... 1909). O discurso lamentoso e a grandeza relacionada a Lombroso nos informa sobre qual lado os articulistas do jornal se colocam na história. Em relação à Feira de Santana, Silva e Oliveira (2020) apontam o racismo como organizador da vida urbana que apaga suas marcas pela criminalização das práticas de sujeitos negros. Essa criminalização alcança todo o segmento dessa população, até mesmo as crianças, como é possível verificar em notícia veiculada em 22 de maio de 1909 pelo periódico “O Município”, onde o redator afirma que verifica “que são conduzidas pela praça três crianças... de 8, 9 e 10 anos, no máximo, todos pardos e um escuro... eram três iniciantes no crime...” (OS... 1909). É importante perceber a relação natural, fatalista e insuperável com o crime dada às crianças negras, isso é perceptível pelo título da notícia “OS TRÊS INICIANTES”. Além disso, as notícias sobre pessoas negras costumam colocá-las como sendo todas iguais, portadoras das mesmas características, e, por vezes, eram alocadas como um grupo comum. Em notícia veiculada pelo jornal “O Progresso” em 1901, é informado que “foram presos em a noite de 16 para 17 do corrente, Victorino Araújo da Silva, ali residente, Pedro Alves de Almeida e mais vinte e tantas pessoas [...]. O motivo da prisão consta-nos ter sido dança de candomblé e feitiçarias” (PRISÕES... 1901). O título da notícia demonstra a importância dada àquelas pessoas, “PRISÕES EM PENCA”, tratando as “vinte e tantas pessoas” pelo termo “penca” e não procurando saber maiores detalhes sobre elas, basta saber que todas praticavam “dança de candomblé e feitiçaria”, prática que Cunha (2013) nos mostrou ser perseguida duramente na cidade. Bosi chama atenção para os esforços da Psicologia Social em estudar essa tendência de “formar noções simplificada que recobrem os elementos contraditórios do real, ignoram exceções e permanecem rigidamente imunes à experiência” (BOSI, 1992, p. 114). No mesmo sentido, Santos (2017) nos informa que esse processo serve à dominação, a manutenção de uma hegemonia e age impedindo a identificação. De modo geral, o que estava em jogo era a construção de uma consciência para a população nos moldes de civilidade e modernização de base europeia e a disputa pela memória, nesse empreendimento, os jornais silenciavam o que lhes convinha e veiculava o que era de interesse para o alcance de tal objetivo. Em consonância com Antunes (1998) percebemos as ideias psicológicas em temas como moral, política, persuasão e diferenças raciais. CONSIDERAÇÕES FINAIS As relações raciais no pós abolição, no Brasil, e particularmente, em Feira de Santana, são perpassadas por diversos conflitos que são reveladores de uma intensão de poder por parte da elite (CUNHA, 2013), que busca atingi-la através de práticas racistas, tanto discursivas, quanto no campo das ações. Nesse contexto, essa pesquisa buscou, além de uma contribuição aos estudos críticos sobre racismo, convidar para o pensamento acerca das raízes da Psicologia, entendendo esse exercí48 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE cio enquanto fundamental para o desenvolvimento da área, como a temos hoje. Procurou também contribuir tanto para o campo da História da Psicologia quanto da Psicologia da História, sem se reduzir a nenhum dos polos. Ademais, cabe salientar que apenas o desenvolvimento tecnológico e educacional não é suficiente para diminuir ou acabar com o racismo, já que esse não é um fenômeno estático, possui uma plasticidade e resiste diante das mudanças (MOORE, 2007). Por isso é importante cada pessoa gozar do direito de ter acesso a toda informação que possa ser produzida, de modo que venha a se colocar de maneira mais crítica e combativa no mundo. Importante salientar, por fim, que esse estudo não buscou ser uma resposta acabada para todas as questões que permeiam a presença de ideias psicológicas relacionadas à noção de raça no pós abolição, convidando, portanto, para que novos estudos possam ser desenvolvidos investigando, por exemplo, outros locais e implicando a questão de gênero. Desse modo, a investigação sobre a presença de ideias psicológicas na representação de mulheres negras no pós abolição, pode ser aprofundada, para que assim, tenhamos um panorama mais completo acerca de tais fenômenos e de suas pertinências no desenvolvimento da história da Psicologia no Brasil. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 49 REFERÊNCIAS ANTUNES, Mitsuko Aparecida Makino. A psicologia no Brasil – leitura histórica sobre sua constituição. São Paulo: Unimarco Editora/EDUC, 1998. BÁRBARO Espancamento. Folha do Norte. Feira de Santana, p. 2. 9 jan. 1910. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Edição revista e ampliada. São Paulo: Edições 70, 2016. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e Branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 25-57. BOSI, Ecléa. 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PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 51 NECROPOLÍTICA E DIREITOS HUMANOS: REFLEXÕES SOBRE UMA PSICOLOGIA ANTIRACISTA NO BRASIL9 Veridiana Silva Machado Texto advindo da participação, em 2021, no VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social - como convidada na Roda, eixo 3, cujo tema foi ‘Estado e políticas públicas: necropolítica e a defesa dos direitos humanos que contou também com participação Natasha Wonderfull (AL), Luís Benício (CE). Facilitadora: Tathina Braga. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=fur55moMQ9k, acesso 29 junho de 2022. 9 INTRODUÇÃO Este texto é uma síntese da minha contribuição na roda de discussão intitulada “Estado e políticas públicas: necropolítica e a defesa dos direitos humanos”. Naquela ocasião, comecei minha fala agradecendo o convite em nome da organização que integro e que estava representando: a Articulação Nacional de Psicólogas(os/es) e Pesquisadoras(es) Negras(os/es) – ANPSINEP. Minha presença e contribuição não se restringiram a uma posição individual, expuseram proposições implicadas a um coletivo. Na semana que antecedeu o evento, o cantor baiano Lazzo Matumbi lançou o clipe da canção 14 de maio, uma composição sua em parceria com Jorge Portugal. Trouxe a letra dessa música, porque ela condensa uma das questões formuladas para o evento, que estão relacionadas ao modo como as estratégias coloniais e eurocêntricas colocam em curso uma necropolítica ou uma política de morte reforçada pela desigualdade social. A música diz o seguinte: No dia 14 de maio, eu saí por aí. Não tinha trabalho, nem casa, nem para onde ir. Levando a senzala na alma, eu subi a favela. Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci. Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia. Um dia com fome, no outro sem o que comer. Sem nome, sem identidade, sem fotografia. O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver. No dia 14 de maio, ninguém me deu bola. Eu tive que ser bom de bola para sobreviver. Nenhuma lição, não havia lugar na escola. Pensaram que poderiam me fazer perder. Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta. Eu sei o que é bom e o que é bom também deve ser meu. A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa. Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu. Será que deu para entender a mensagem? Se ligue no Ilê Aiyê. Se ligue no Ilê Aiyê. Agora que você me vê. Repare como é belo, é nosso povo lindo. Repare que é o maior prazer. Bom para mim, bom para você. Estou de olho aberto. Olha moço, fique esperto que eu não sou menino (Lazzo Matumbi, Jorge Portugal) Essa música remonta e retoma todo um cenário de pós-abolição, cantado em primeira pessoa que remete a uma expressão partilhada pelos membros baianos do Movimento Negro que diz que “pior que o dia 13 de maio, foi o dia 14”. A letra da canção e a expressão dos militantes colocam em evidência as diferentes temporalidades e posições relacionadas dentro dos processos de luta perante aos marcos e datas oficiais. A promulgação de uma lei é uma das faces do Estado, nesse caso, um Estado Imperial até então escravagista. A lei não basta por si para reconhecer e garantir acesso à direitos, ao contrário, durante muito tempo as leis no Brasil violaram direitos e privilegiaram a branquitude. Ou seja, as condições de subalternização e exploração mantidas durante os séculos precedentes perduraram e só foram sendo transformadas por um árduo caminho de luta e resistência. A ALMA RESISTE, O CORPO É DE LUTA A escravidão é um marco que moldou a sociedade brasileira em termos que vão muito além de um sistema econômico localizado históricamente. Ela é uma das primeiras experiências biopolíticas (MBEMBE, 2017, p. 117), instituindo tecnologias de poder e modulando dinâmicas relacionais. Essas dinâmicas colocam explicitamente uma divisão entre vida e morte, separando a população através do racismo. A separação forjada pelo racismo, nas palavras de Foucault (2010, p. 215) justifica a função assassina do Estado e cria a aceitabilidade da morte de determinadas populações, colocada em termos de erradicação de perigo biológico. Então, a escravidão é enraizada aqui e estabelece normas de assunção da vida para gestão da cisão de valor dos que merecem viver e dos que são deixados para morrer. 54 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE O sujeito escravizado era colocado numa condição que implicava em uma perda tripla: a pessoa perdia ao mesmo tempo seu lar, os direitos sobre o próprio corpo e o estatuto político de sujeito humano. As desigualdades que vivemos atualmente ainda repercutem, de um jeito ou de outro, essas expropriações. A falta de acesso à educação pública de qualidade, a precariedade do sistema público de saúde, a desigualdade de acesso e direito à moradia, a insegurança alimentar, a violência policial justificada pela “guerra às drogas”, a gentrificação de centros urbanos, a falta de representatividade política em espaços institucionalizados de poder são exemplos de atualizações das condições que perpetuam a subalternização e colocam em questão a abolição promulgada em 13 de maio de 1888. Sendo assim, no processo de colonização, o racismo não é apenas o que alicerça um sistema produtivo. Ele é parte constitutiva do Estado brasileiro desde a sua fundação. O Brasil é fundado como projeto genocida de Estado. Este projeto está em curso, em plena execução e podemos pensar diversos espelhamentos que dão suporte para sua manutenção até hoje. Em Políticas da Inimizade, Achille Mbembe (2017, p. 117-122) afirma a centralidade da categoria raça e da função constituinte do racismo para os Estados modernos. Para o autor, o racismo funciona como tecnologia orientada para o exercício do biopoder para regular a distribuição da morte e viabilizar o poder de morte do Estado, garantindo o direito soberano de matar. No imaginário eurocêntrico, o Estado é concebido como um princípio único de organização racional, um modelo hegemônico de unidade política, de materialização de ideia universal e um símbolo moral. As colônias, porém, não faziam parte dessa organização. A ocupação colonial concebia os territórios colonizados não como unidades políticas, mas como locais habitados por “selvagens”, os modos de vidas originários eram equiparados pelos conquistadores em suas limitadas compreensões à vida animal, o que justificava a promoção do terror, fazendo desses lugares zonas de guerra e desordem em nome da imposição da “civilização”. As definições filosóficas modernas de política e soberania são marcadas pela associação do uso da razão como verdade do sujeito autônomo e da ação desse sujeito entendida como dominação das contingências da necessidade, da natureza e da morte. Em contraposição ao uso da razão está a violência do estado de guerra que suspende excepcionalmente a racionalização das condutas determinadas pelas leis. Nas colônias, no entanto, essa definição adquiriu outros significados, pois seus habitantes originários não eram considerados sujeitos soberanos. Por isso que no pensamento filosófico, no imaginário e na experiência política moderna ocidental, os países colonizados foram (e ainda são) sede de experiências radicais do encontro entre a mortandade justificada e a racionalidade ocidental. Este encontro resulta na soberania em exercício de um poder à margem da lei. Em outras palavras, aqui a soberania é a capacidade de dizer quem importa e quem é descartável,o direito soberano de matar está livre de qualquer regulação, numa conjunção entre exceção e norma, onde a paz tende a assumir o rosto de uma guerra sem fim (MBEMBE: 2018, pg. 33). São muitos os exemplos práticos dessas tecnologias políticas, desde a criminalização de condutas como a vadiagem, a capoeira, as religiosidades, a criminalização do uso de certas substâncias psicotrópicas, mas também o fomento da imigração europeia, enquanto política de branqueamento, a construção desse espaço de poder e as narrativas que engendraram o mito da democracia racial. A patologização da população negra e indígena, o encarceramento em massa e a segregação dos espaços destinados a elas, a recusa de legitimação de territórios tradicionais são outros exemplos dessa conjunção entre norma e exceção. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 55 NECROPOLÍTICAS Para Mbembe, a forma contemporânea de ocupação colonial atua através da combinação de tecnologias de poder disciplinares (no controle sobre corpos e condutas), biopolíticas (no controle e regulação da vida) e necropolíticas (na execução do poder de morte). Em sua versão necropolítica, o terror delimita territórios de ocupação e exclusão de acordo com estratégias de divisão de fronteiras internas, delimitando zonas reclusas e fragmentadas destinadas às populações subalternizadas, fomentando a proliferação de espaços de violência e facilitando o controle e manejo de recursos infraestruturais. O exercício do direito de matar não é mais monopólio dos Estados, a gestão da vida pela proliferação e produção de morte mantém com os Estados e seu arsenal militar relações complexas e ambíguas. De certo modo, aqui Mbembe vai um pouco além de Foucault, porque ele nos mostra que esse biopoder, em algum momento se torna insuficiente para compreender essas relações, que ele vai chamar de inimizade, no sentido de que o Estado, principalmente aqui no Brasil, sempre soube muito bem quem são seus inimigos - a população negra, os povos originários, a população LGBTQIA+, as comunidades das favelas, das periferias, as mulheres negras - a necropolítica torna nítida a institucionalização desses inimigos, enquanto alvo dessas perseguições contemporâneas. A necropolítica produz mundos de morte, mundos que forjam estratégias de morte, assim como se produz uma cultura, uma política e políticas públicas voltadas para a gestão da mortandade. A inoperância e a ineficácia são institucionalizadas quando são operacionalizadas pelo Estado funcionando como políticas públicas. E é tudo isso que temos visto e vivido no Brasil que se escancara ou se esgarça no contexto da pandemia. A pandemia não justifica tudo que têm acontecido, mas ela coloca as cartas na mesa e mostra o quanto o nosso Estado é necropolítico e o quanto o neoliberalismo é o necroliberalismo, quando esses corpos se tornam descartes desse capitalismo em uma crise justificada como mais uma crise do capitalismo, mas que na realidade é apenas uma oportunidade para descartá-los ou para criar estratégias de fazer esses corpos morrerem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Temos presenciado políticas de morte exercidas de diferentes maneiras, vemos diariamente um poder político que se apropria da gestão de morte. Em termos de políticas institucionalizadas, a gestão de morte é também uma forma de fazer a gestão da vida, quando medidas e decisões são tomadas para apontar como essas populações irão viver e sobretudo como essas populações irão morrer. Essa forma de atuar e fazer a gestão da vida e da morte configura-se com outras formas de gestão no modo como essas pessoas são administradas territorialmente, como essas populações estão socio-espacializadas. Diante de um Estado cada vez mais explícitamente necropolítico, que nos faz testemunhar assassinatos de militantes de direitos humanos por milicianos, assassinatos de militantes de direitos dos povos indígenas por traficantes internacionais e fazendeiros, mortes de indígenas por garimpeiros e milhares de mortes evitáveis decorrentes do descaso da gestão (pública e privada) de recursos na ocasião de uma pandemia mundial, qual a importância da afirmação de Direitos Humanos como o decreto nº 1904, que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), outorgado e instituído no dia 13 de maio de 1996? A data escolhida para a outorga deste decreto nos faz refletir e retomar as consequências desse pós-abolição para a população negra e o que significa essa necropolítica em curso aqui no Brasil. 56 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Como discutimos, existe uma configuração muito bem engendrada para que determinados grupos se tornem mais vulneráveis a essa necropolítica. Quando não há garantia de direitos, é porque o próprio Estado está construindo essa condição de precariedade de vida, que vai tornar esses diversos corpos e diversas lideranças políticas mais vulneráveis a essas políticas de morte para o controle dessa população. No sentido que é através dos aparatos institucionais que o Estado marca sua atuação movendo essas políticas de morte, através do racismo, misoginia, homofobia, transfobia, do encarceramento em massa e do feminicídio. Deste modo, como profissionais do campo da psicologia podem se posicionar? Uma primeira reflexão, penso que deve ser sobre a história da ciência psicológica. É importante admitirmos que a psicologia foi de grande importância para garantir o projeto de modernidade, por meio da criação do sujeito psicológico - autônomo, livre, emancipado- atendendo assim ao imperativo moderno de controlar e adequar as pessoas. Muito se contribuiu então com a perspectiva eugenista, uma vez que desde a colonização se utiliza de elementos psicológicos para docilizar os povos originários, disciplinar comportamentos muito bem alinhados ao racialismo, de modo que a psicologia também precisa se responsabilizar pelo projeto colonialista, genocida perpetrado nas Américas e no continente africano. Numa proposta de descolonização da psicologia no Brasil, criticamente deve-se atentar para a formação, produção e atuação que ainda compreende a subjetividade de modo individualizante, desconectando o sujeito do tecido social alinhando-se hoje ao neoliberalismo. Quando olhamos para as periferias e observamos o funcionamento do saneamento básico, dos postos de saúde, das escolas e da educação e como a polícia alveja esses corpos desses lugares, conseguimos entender o que significa dizer que há uma necropolítica em curso. Conseguimos enxergar quais são essas estratégias. Ao pensarmos também na questão da alimentação, na crescente insegurança alimentar de determinadas populações, na falta de políticas para se pensar na questão do alimento, no consumo de alimentos de qualidade e o quanto isso desencadeia diversas outras doenças, que associadas à falta de acesso a serviços médicos produz aumento de mortalidade e sofrimento psíquico. Como pesquisadores e psicólogos podem acessar as várias instâncias de implicação do racismo nas relações interpessoais, nas estruturas políticas e o que fazer com isso? É preciso que levemos a sério um projeto ético-estético-político que mobilize a realização de uma releitura crítica de nossas bases teórico - epistemológicas. Mas que, sobretudo, compreenda as diversas experiências de subjetivação e produção de saberes, se realmente quisermos enfrentar e superar os dispositivos que desde a colonização produzem segregação, morte e sofrimento psíquico no Brasil. Deste modo, a produção de uma psicologia comprometida com a realidade social, com a garantia dos Direitos, com um projeto anti-racista e contra-colonial poderá avançar na medida em que descolonizarmos nossas práticas. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 57 REFERÊNCIAS: FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976) São Paulo: ed. Martins Fontes, 2010; MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: ed. Antigona, 2017; MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018; SILVA, Ariane do Carmo. Abolição inacabada - 14 de maio, o dia que não acabou in https://www. oabsp.org.br/comissoes2010/gestoes2/2019-2021/verdade-escravidao-negra/artigos/abolicao-inacabada-14-de-maio-o-dia-que-nao-acabou acessado em 27 de junho de 2022. 58 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE RACISMO E SAÚDE MENTAL: POR UMA DESCOLONIZAÇÃO DAS PRÁTICAS NO CAMPO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL Luís Fernando de Souza Benicio João Paulo Pereira Barros “Se acontecer afinal De entrar em nosso quintal A palavra tirania Pegue o tambor e o ganzá Vamos pra rua gritar A palavra utopia” (Samba da utopia, 2018) INTRODUÇÃO É uma alegria partilhar com vocês essa roda, esse tempo-espaço, nosso encontro. Apesar da dureza dos tempos, é preciso ousar, celebrar a relevância de espaços como esse para a psicologia, para o campo psicologia social e, consequentemente, para nossa sociedade. Ao pensar o desafio de tematizar Estado, Políticas Públicas, analisando a necropolítica e a defesa dos direitos humanos, fizemos a opção de tomar a saúde mental da população negra como sinalizador das “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte” (MBEMBE, 2016, p. 146). Nesse sentido, a noção de necropolítica, construída por Achile Mbembe, permite reconhecer, nos processos de adoecimento de negros e negras da sociedade brasileira, uma face seletiva de produção de morte constitutiva da modernidade. São problematizações que consideramos por demais pertinentes à Psicologia e, por isso, temos investido nesses debates desde 2016 no Grupo de Pesquisas . O racismo estrutural, que se expressa nos âmbitos socioeconômicos, político-culturais e da produção de subjetividades, tem sido um dos principais fatores de sofrimento psíquico das populações negras no Brasil (ALMEIDA, 2019). Questões que englobam desde a distribuição desigual de recursos, iniquidades na garantia de direitos e no reconhecimento da condição de cidadania, até o genocídio e o encarceramento em massa de jovens negros, pobres e periféricos, têm expressado a problemática do racismo, da discriminação e suas intersecções com outros marcadores sociais, como classe e gênero, produzindo, por sua vez, efeitos psicossociais no campo da saúde mental que demandam um maior debate por parte da psicologia e por áreas afins. Pesquisas como as de Cuevas et al., 2013; Pieterse et al., 2011; Faro, Pereira, 2011; Jones; Neblett, 2016 sinalizam a necessidade de problematizar os efeitos do racismo na saúde mental das populações negras. Por isso, algumas questões merecem maior análise no campo da atenção psicossocial, como: a associação entre racismo percebido/discriminação e sofrimento psicossocial (Tavares, 2019), considerando a necessidade histórica de acesso equânime a políticas e serviços e suas tecnologias de cuidado. No que concerne aos estudos raciais brasileiros, Nogueira (2007) aponta para uma tendência à negação do preconceito racial, apagamento das situações de racismo e abrandamento das tensões que envolvem a manutenção do privilégio branco, o que caracteriza o mito da democracia racial brasileiro (NASCIMENTO, 2017). Dessa forma, depreende-se que as dimensões socioeconômicas, político-culturais e subjetivas que sustentam o racismo estrutural tendem a sofrer amenizações, de modo que os sofrimentos em decorrência dessas situações de opressão podem ser resumidos ao âmbito individual no processo de trabalho do Sistema Único de Saúde (SUS), desconsiderando o racismo como determinante social do processo de saúde-doença-cuidado. Diante desse debate, e do processo histórico que foi o reconhecimento da nossa profissão como ciência, compreendemos que tal saber/fazer desconsiderou e ainda desconsidera a dimensão racial/colonial do sofrimento psíquico, sobretudo ao colocar a experiência do homem branco de classe média enquanto parâmetro universal em suas práticas. Tendo em vista, inclusive, a utilização de manuais e instrumentos de tipificação e descrição das patologias de forma internacional, mais uma vez, permitindo a perpetuação de uma estrutura colonial de construção de saberes. Portanto, tais discussões nos posicionam criticamente diante da formação em Psicologia, em prol de um exercício de produção de saúde mental que não ignore as marcas coloniais e racistas perpetuadas no presente. Como debatido por Lucas Veiga (2019), o sucesso da colonização e da sua atualização não opera somente na capacidade de colonizar territórios geográficos, mas, sobretudo, na colonização de territórios existenciais. Nesse sentido, o autor compreende que o racismo, o machismo e a LGB- 60 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE TQIA+fobia são produtos de uma máquina colonial de produção de subjetividade. Entendendo essa prática, nós, do Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES-UFC) da Universidade Federal do Ceará, temos produzido pesquisas e extensões como dispositivos de problematização de relações raciais, enfrentamento ao racismo e construção de uma psicologia Antirracista, capaz de fomentar composições coletivas com segmentos historicamente silenciados e subalternizados (COSTA ET AL, 2021). Como possibilidade analítica e inte(r)inventiva, pensaremos a relação racismo e saúde mental a partir do diálogo com autores/as negros/as que foram esquecidos/as e silenciado/as pela maioria dos cursos de Psicologia do nosso país – por meio do epistemicídio – (Carneiro, 2005)10. Assim, nessa fala, a compreensão de saúde mental dialoga com trabalhos de autoras/es negras/os que denunciam os efeitos do colonialismo, da colonialidade e do racismo nos processos de saúde-doença-cuidado. DESENVOLVIMENTO Ao racializarmos o processo histórico da relação raça e saúde mental, dialogando com Damasceno e Zanello (2018), percebemos que práticas psiquiátricas no século XIX produziram associações entre características étnico-raciais e tipos de caráter, relacionando certas formas de doença mental como típicas de determinadas etnias-raças (Santos et al., 2012). Tais concepções eugenistas, inspiradas pela obra de Cesare Lombroso, como aponta Góes (2015), não consideravam a existência de sofrimento de negras e negros, pois tais populações seguiam seu destino determinado por sua genética. Essas práticas materializam os usos da raça para controle, desqualificação, segregação, coisificação e mortificação de corpos negros como debatido por Mbembe (2017). Ainda, segundo o autor, a noção de raça precisa ser pautada dentro de um projeto político-econômico-europeu que desumanizou determinados povos, operando e perpetuando violências e exploração. Tal racionalidade contribuiu para que o “sofrimento de minorias raciais e étnicas permanecesse alheio à construção do conhecimento, às ciências humanas, por tempo demasiado longo” (Damasceno & Zanello, 2018, p. 452), naturalizando, assim, processos de precarização e silenciando/invisibilizando sofrimentos psíquicos vivenciados por negras e negros. Por isso, afirmamos a relevância de epistemologias anticoloniais e antirracistas para deslocamentos das formações e das práticas em psicologia e no campo interdisciplinar da saúde mental, em contraponto à formulação do mundo moderno estruturado a partir da colonialidade do saber, do ser, do poder e do gênero, com nítidas marcas em fazeres e saberes psi e no campo da atenção psicossocial, ainda muito caracterizados por serem embranquecidos. Pois mundos, sujeitos, conceitos e técnicas e diagnósticos foram concebidos tendo como padrão o homem europeu, branco e burguês. Pensar sobre as ideias de Franz Fanon e sua atualização é deparar-se como uma sistematização enegrecida e articulada com nossas vivências. Ou seja, somos convidados/as a marcar nosso corpo, nossa voz e nosso compromisso no/com o final desse mundo de mortificação das vidas negras. As discussões sobre a psicopatologização do/a preto/a, utilizada como ferramenta de desumanização e coisificação, que são trazidas no livro “Pele negra, máscaras brancas (2008)”, apontam-nos, em um exercício crítico e radicalmente humanista, o questionamento dos referenciais que utilizamos para pensar: o negro/a negra, a clínica, as nosologias, as noções de cuidado e o lugar da branquitude na prática e no conhecimento psi. Trata-se da construção de um novo lugar epistemológico, na medida em que o autor experimenta (e nos faz experimentar) uma ruptura com saberes Para Carneiro (2005), trata-se do apagamento de referenciais não eurocêntricos da produção de saberes, de conhecimentos, de ideias, de projetos de vida. 10 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 61 tradicionais concentrados no etnocentrismo, mostrando-nos uma nova prática analítica (eu diria clínica) que se dirige da periferia para o centro, questionando tanto a alienação social quanto a sujeição psíquica operadas pelo colonialismo. Nesse sentido, o negro/a negra precisam ser entendidos/as como resultado de uma produção complexa e articulada com diversas forças, não podendo ser reduzido/a a um complexo da sexualidade, como feito pela psicanálise da época, como crítica Fanon. Para materializar, o autor faz um escrutínio sobre a Psicanálise tradicional, debatendo que ela não “aplica” à população negra, uma vez que o modo de relação familiar e o drama burguês do complexo de Édipo, bases dessa teoria, não se efetivam no contexto da cultura negra e, como desdobramento, a psicanálise consegue no máximo uma patologização dessa população (KAWAHALA; SOLER, 2010). A condição do/da negro/a, nesse debate, é ressaltado como singular, pois ele foi e é produzido (sócio-culturamente) como inferior pelo colonizador branco. A colonização passa a ocupar os referenncias de sociabilidade, de pertencimento cultural e de “individualidade”, impactando diretamente nos processos de saúde e doença de negros e negras, pois esses são formulados, pensados e administrados por uma branquitude acritica. Para ilustrar tal reflexão, Fanon (2008), em um dos seus diálogos antropológicos, mostra-nos que a colonização e o racismo não operam somente na psicopatologia, mas, também, no cuidado biológico , invisibilizando, por sua vez, quadros clínicos específicos de negros e negras. Ainda para a composição desse debate, em 2018, segundo Damasceno e Zanello, é quase inexistente a pesquisa em relações étnico-raciais e saúde mental no nosso país; as teorias raciais, a eugenia e o racismo científico ainda têm forte rastro sobre a Psicologia e a psiquiatria brasileiras, refletidas no desempenho de funções sociais e políticas; os profissionais da saúde parecem ter pouca percepção das relações étnico-raciais deletérias no Brasil; quando situados os efeitos nocivos do racismo brasileiro na saúde psíquica dos afrodescendentes podem ser obstruídos; e, por fim, faz-se necessário um esforço de releitura, sob um olhar crítico negro, das teorias euro-centradas presentes na formação em saúde, quando não a adoção de teorias afro-centradas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para o enfrentamento da lógica colonial e racista atuante no Sistema Único de Saúde, especialmente na saúde mental, faz-se necessário questionar: Que referenciais teóricos/epistemológicos/ éticos/técnicos temos para pensar a/o negra/a e suas condições de saúde/adoecimento? Que cor tem nossa prática de cuidado? Se branca, consegue se perceber e entender seu papel no enfrentamento das desigualdades raciais? Protocolos, nosologias, noções de cuidado e lugar da branquitude são questionados na sua form(ação) em suas composições e em seus efeitos? Isso porque os estudos que temos acesso na formação “psi”, ao colocarem em debate os desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, não conseguem racializar devidamente o campo, as práticas, as/os trabalhadoras/es e especialmente as/os usuárias/os. Para pensar a constituição do campo, dialogamos com Miñoso (2020), que ao interpelar o feminismo e seus efeitos práticos, inspira-nos a pensar genealogicamente a constituição da saúde mental. Partimos da ideia de que esse campo é atravessado pela modernidade/colonialidade, marcado por práticas racistas, eurocêntricas, capitalistas e coloniais. Assim como questionado por Faustino (2020), perguntamo-nos: Como criar uma contra-memória que nos permita evidenciar os jogos de poder, as relações hierárquicas e o racismo que atravessou/atravessa a saúde mental e atenção psicossocial no Brasil? 62 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Subverter a racionalidade da colonização nas políticas públicas de saúde mental seria abrir espaços para as (res)ignificações da instituição quilombo, onde, segundo Beatriz Nascimento (1985), trata-se da construção de um tempo-espaço sinônimo dos povos negros com a valorização da sua cultura, da sua identidade, das suas práticas de autocuidado e da reexistência desses corpos que até hoje ameaça a branquitude e sua supremacia (NASCIMENTO, 1985, p. 124). Os desafios sugerem uma nova perspectiva analítica/clínica, em um exercício psicossocial, que situa um tipo de cuidado que enfrente as desigualdades raciais atuantes na formação e atuação. Como pensado por Fanon (2008), não se trata de criar uma ciência específica para negros/negras, mas de incluí-los/as como “diferença.” A Psicologia, como aquela que pensa e atua em tais espaços, pode ser uma importante aliada no enfrentamento de políticas de mortes que se camuflam em tais territórios, além de possibilitar a produção de outros territórios existenciais e epistemológicos. O trabalho de Regina Oliveira (2020) aponta-nos alguns caminhos para a superação de um epistemicídio em curso, marcando assim a importância de autoras como Neusa Santos Souza e Virginia Bicudo (ambas, no caso, psicanalistas, negras e essenciais na luta antirracista no campo psi). Tal exercício nos lança a estudar, também, outros nomes, como: Isildinha Baptista, Maria Aparecida Bento, Grada Kilomba, Deivison Faustino, Fátima Lima, Jeane Tavares, Luiz Rufino, Carla Akotirene, dentre outras/os. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 63 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019. COSTA, A. F. da et al. Dispositivo de Segurança e Racionalidade Necrobiopolítica: Narrativas de Jovens Negros de Fortaleza. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 40, 2021. CUEVAS et al. Mediators of Discrimination and Self-rated Health among African Americans. Am J Health Behav. V. 37, p. 6, p.745-754, 2013. DAMASCENO, M.G.; ZANELLO, V.M.L. Saúde Mental e Racismo Contra Negros: Produção Bibliográfica Brasileira dos Últimos Quinze Anos. Psicol. cienc. prof. vol.38 no.3 Brasília July/Sept. 2018. FARO, A.; PEREIRA, M. E. 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PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 65 TRANS-FORMANDO A REALIDADE: UMA LUTA POR DIREITOS DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS EM ALAGOAS11 Natasha Wonderfull Texto advindo de nossa participação, em 2021, no VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social - como convidada na Roda Gigante 3, cujo tema foi ‘Estado e políticas públicas: necropolítica e a defesa dos direitos humanos, que contou também com participação de Veridiana Machado (Bahia) e Luís Benício (Ceará). Disponível em < https://youtu.be/fur55moMQ9k >. Acesso 02 de julho de 2022. 11 INTRODUÇÃO Neste relato vou apresentar um pouco da minha experiência como mulher negra e militante na luta pelos direitos das pessoas LGBTTQIA+, principalmente das mulheres trans, no estado de Alagoas. Quando falamos de pessoas trans no nosso estado, acredito que talvez estejamos falando do estado que tem mais meninas trans em pobreza extrema. A maioria delas não estudou ou tem um nível de escolaridade muito baixo. Muitas delas não sabem ler. Quando faço palestras sobre essa situação, às vezes as pessoas pensam: “ah, mas vocês só vão falar de pobreza”, como se não tivesse outro assunto. Mas, infelizmente, essa é uma realidade e nós temos que transformá-la com políticas públicas, principalmente de educação, porque sem educação não se tem nada. No estado de Alagoas ainda se observa muita vulnerabilidade da população de travestis e transexuais, principalmente das mulheres negras. Na minha experiência nós estamos tentando mudar essa realidade. É disso que quero tratar nessa comunicação. VISIBILIDADE POR MEIO DA AÇÃO CULTURAL Fiz parte da fundação da primeira Associação Cultural alagoana voltada para a comunidade trans, a ACTTRANS (Associação Cultural de Travesti e Transexuais de Alagoas). O que foi que nós fizemos? Paula Prada, Dinah Ferreira (que é a nossa diretora de cultura) e eu nos juntamos e criamos um grupo chamado Transhow. Está disponível na internet pelo Canal Wonderfull12. Se vocês procurarem vão encontrar diversas notícias sobre as peças que já realizamos. Vocês vão ver que nós pegamos algumas meninas trans das ruas e colocamos no palco do teatro, para dar visibilidade através da arte transformista e de atrações culturais. Estamos agora criando textos de outras peças para transmitir no nosso Canal Wonderfull. Essas meninas vêm para o canal como uma maneira de ter visibilidade, porque a gente que é travesti só era vista aqui em Maceió como “da rua”. As pessoas só conheciam travesti puta, mas não conheciam a travesti artista, a travesti pessoa que vota, que paga seus impostos, que come, que utiliza o SUS, como qualquer outra pessoa. Então o teatro abriu essas portas para desconstruir preconceitos. Mas, para sobreviver de arte no nosso estado é muito difícil. Às vezes não tem como trabalhar só enquanto artista. Aliás, no Brasil está muito difícil para quem é artista. Então as nossas meninas estão se prostituindo, fazendo programa porque ainda não têm como sobreviver somente da arte. Criamos a ACTTRANS em 2015. Fizemos o estatuto, mas no primeiro momento não fizemos o CNPJ. Estamos agora registrando o CNPJ para que a gente possa fazer mais projetos quando aparecer oportunidades, para a gente botar essas meninas dentro do mercado de trabalho através de projeto e incentivar a educação. Às vezes até conseguimos uma cesta, um alimento, que é necessário em uma situação de extrema vulnerabilidade, mas não é isso o que nós precisamos para transformar essa realidade. Eu sempre falo para as meninas: “Nós, mulheres travestis, precisamos nos empoderar e voltar às escolas”. Como no meu caso que agora aos 50 anos estou voltando a estudar – terminei o curso técnico e agora estou fazendo um curso de graduação em jornalismo. Falo para elas que precisamos ir melhorando e servir de exemplo para as outras meninas e ajudá-las a melhorar também. Não é fácil. Ser mulher trans nesse país não é fácil. Ser mulher em si não é fácil. E quando eu falo mulher, falo mulher em geral. Falo de todas as mulheres no nosso país, principalmente a mulher negra. As pessoas falam: “Além de ser preta, é viado”, as pessoas transfóbicas têm YouTube, Canal Wonderfull. Disponível em: < https://www.youtube.com/c/CanalWonderfull >. Acesso em 02 de julho de 2022. 12 68 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE essa fala pesada para o nosso público. Então temos que nos ajudar para transformar essa realidade e enfrentar o preconceito. Já comecei a quebrar essa temática com as meninas e com o Projeto Transhow, colocando as meninas para subirem no palco, as travestis. Quando começamos o projeto, ninguém assistia ao espetáculo da gente porque era de travesti. De certa forma tem isso até hoje. Mas foi por isso mesmo que criei um canal para dar visibilidade a nossa população aqui de Alagoas, para gente poder mostrar as travestis nesse canal no Youtube, no Canal Wonderfull. Agora vamos fazer um novo programa para transmitir nesse canal, que será chamado “A Casa da Cafetina”. Vai ser uma peça teatral. Essa cafetina serei eu e teremos as filhas para mostrar um pouco do mundo da exploração, mas dentro da comédia. Por meio da arte vamos mostrando a realidade, trazendo o positivo e o negativo. Estamos trabalhando para fazer essa peça, porque vocês sabem, precisa ter apoio de Câmara, isso e aquilo. E também tem o custo para pagar as meninas, as atrizes. E essas atrizes que vão trabalhar são as meninas que estão nas ruas e nas avenidas. Queremos botar elas na cena, a minha meta é essa. Transformar o canal, porque o nosso canal tem só as entrevistas. Muita gente não valoriza. Por exemplo, um evento desses que você me convidou, muita gente não entra porque não valoriza, uma coisa tão boa, que ensina. Você vê um seminário, uma coisa tão boa, mas muitas vezes as pessoas não valorizam. Principalmente quando se fala de uma temática LGBTQI+. O preconceito ainda é predominante. LUTA POR POLÍTICAS HUMANIZADAS Já estou há dez anos trabalhando na área da Saúde, no Consultório na Rua. Trabalhamos com uma população em vulnerabilidade, com a população mais vulnerável. Antigamente era chamado Programa “Fique de Boa”, porque era vinculado à saúde mental, depois mudou. Para nós, mulheres travestis, o mercado de emprego ainda está fechado. As portas ainda não se abriram. Eu estou no Consultório na Rua por conta de mulheres mais politizadas e humanizadas, mulheres militantes, então eu consegui entrar no Consultório na Rua. Algumas meninas trans estão agora tendo acesso à escola, mas não é fácil. Tem muita dificuldade. O nosso estado mudou, melhorou muitas coisas, mas outras não. Eu como mulher trans me sinto mais acolhida nas comunidades, quando eu estou dentro da comunidade. Lá tem um carinho, me tratam pelo gênero feminino, me chamam de tia e tem aquele carinho maravilhoso, que é muito maior do que quando estou dentro da sociedade, onde sou tratada por homem. Por exemplo, há pouco tempo fui ao cartório para fazer o estatuto da ACTTRANS. Cheguei lá, dei minha identidade, com o nome feminino no documento e tudo, e as pessoas ainda assim continuaram me chamando de homem. Não sei se fazem por provocação (eu sei que eu tenho uma voz um pouco grossa, mas eu falo da aparência), porque eles olham e veem uma mulher. Tem tantas mulheres que falam grosso, mas quando elas percebem alguma coisa elas gostam de provocar. Tem pessoas que são assim. E a minha luta aqui com as meninas é para enfrentar esse preconceito. Porque eles querem ver você dando escândalo, dando baile, para continuar provocando. Essas pessoas gostam de ver você descer o seu nível, para você perder os seus direitos, para eles dizerem que fizeram aquilo porque não prestamos porque somos travestis. E a gente diz: “não, eu trabalho com diálogo”. Eu vou lá, dou uma palestra: “Olha mulheres travestis têm ser tratadas no feminino; não é ‘os travestis’, mas ‘as travestis’”. Nas palestras em sempre digo: “Vocês trabalham com o público, não é? Então tem que saber disso!”. E faço também um trabalho cotidiano, que é o trabalho na unidade de saúde, nos hospitais, quando me chamam. Por vezes ligam para mim e falam: “Olha Natasha, uma travesti chegou doente no hospital”. O povo da área saúde muitas vezes ainda fala “um travesti”. Então tem assistente social falando assim em pleno Século 21. Aí eu vou lá pergunto: “Tem um PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 69 travesti ou uma travesti? Não é uma mulher trans?” e me respondem: “Não sei”. Eu tenho que ir lá e fazer esse trabalho de explicar: “Olha é uma pessoa trans, uma mulher trans”. Eu falo assim: “Você que já estudou, esteve numa faculdade, tem que saber isso. Pode até ser que na sua época talvez não tivesse aula sobre gênero, mas hoje tudo mudou. Pare um pouquinho e vá dar uma olhada, pois não adianta falar tão bonito e não saber o básico. Você é profissional da saúde e portanto uma pessoa que trabalha com o público, então você tem que conhecer. Você é uma assistente social, tem que conhecer, tem que saber lidar com esse público”. Mas tem pessoas que pegam a religião e levam para o trabalho. Nesses casos eu digo: “a sua religião tem que andar com você, mas ali na atuação profissional, você tem que saber separar a sua crença e o seu trabalho. No trabalho você atua com o público”. Eu como mulher trans sou bem acolhida dentro da unidade de saúde, as pessoas me adoram, o meu público também. Quando eu chego na comunidade é uma festa: Natasha pra lá, Natasha para cá. Isso é muito bom, ver esse carisma com o público e nós mulheres trans. Isso pra mim é quebrar barreiras. O mercado de trabalho era para ser aberto para o público ter essa vivência com travestis. Se você andar aqui em Alagoas durante o dia, você não vê travestis. Você só vê a noite. Continuamos nos anos 80, 90. Elas passam o dia escondidas e saem à noite para trabalhar. Eu fui dar uma palestra em sala de aula uma vez, numa universidade. Quando chegou na minha hora de falar, só ficaram 10 pessoas. Tinha 40 pessoas. Porque na hora não interessa, mas quando chegar no futuro, vão precisar. Vão pensar: “Poxa, eu não podia ter assistido aquela fala daquela menina?” Ou “daquele travesti”, né? Porque essas pessoas não nos tratam no gênero feminino, tratam pelo gênero masculino. Eles não aproveitam uma coisa que é muito atual, por isso acontecem os erros, por isso um profissional se forma e vai para o mercado de trabalho e não sabe lidar com a pessoa trans, não sabe lidar com a pessoa trans não-binária. Por quê? Por conta disso. Porque perdeu essa fala. Essas falas são muito importantes para a formação. Um evento maravilhoso desses que é o VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO. E o bom é que vai ficar ali no Youtube. Vou ficar repassando para as meninas assistirem. Por exemplo, veja essa aula do Luis Fernando Benício que veio antes da minha fala. E o bom é que é a brega e o chique. Porque o Luis deu essa aula maravilhosa da academia, dentro da universidade, com os termos técnicos. E aí em seguida venho eu, toda nordestina, toda brega. Mas isso é que é bom. No canal eu também recebo muitas críticas e muitos elogios. Falam “Natasha, você tem que falar melhor”. Mas essa sou eu. Essa nordestina que é retada, travesti e louca mesmo. Se não fossem os loucos, a vida não tinha graça, como diz a música do Ney Matogrosso. E lembrando para vocês que sou artista, artista transformista, faço Elza Soares, Tina Turner. Vocês vão achar muitas coisas no nosso canal. Quando formos atuar, ao vivo, vou estar no personagem. E eu sou um pouco de tudo: sou técnica de enfermagem, sou artista, já fui puta... só não faço roubar porque não aguento cacete. Nunca tive dom para roubar. Nem para cafetina eu presto. Prefiro trabalhar um mês todinho por um salário mínimo. DESAFIOS ATUAIS Hoje nós já temos uma conquista que não é apenas local, mas nacional: o nome social. Mas ainda é um grande desafio, pois em Alagoas, ou melhor, no Brasil como um todo, no papel é tudo muito bonito, mas quando vamos para a prática, costuma ser totalmente diferente. Por exemplo: tínhamos atendimento no ambulatório trans, mas aí veio a pandemia e parou tudo. Agora estão começando a reabrir. A nossa discussão é para que tenha esse ambulatório, mas para que tenha também a medicação das meninas, porque elas não têm recursos para comprar. Elas não têm nem 70 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE a passagem para ir para o hospital, imagine o dinheiro para comprar a medicação. Nossas travestis continuam tomando hormônio por conta própria, comprando remédio na farmácia por conta própria, se suicidando por conta própria por causa dessas políticas que são bonitas no papel, mas que na vida real ainda não estão acontecendo. As meninas continuam morrendo. Ainda tem travestis no mundo das drogas e agora, com a pandemia, isso piorou. Por isso que estou na luta com a ACTTRANS, para conseguir nosso CNPJ, para saírem os editais e para a gente se inscrever e conseguir promover trans-formação. Para conseguirmos ver essas meninas estudarem! Eu sempre falo com as meninas o seguinte: “quando tivermos o projeto, a gente consegue transformar a realidade de umas quatro ou cinco e assim já estamos incentivando as outras”. Sempre falo com as meninas que não adianta ir ali buscar só um alimento. O alimento é bom, porque ninguém sobrevive sem comer, mas vamos tentar ir para a escola estudar. Porque se a gente não estuda, a gente não é ninguém. Eu luto para que elas estudem para conhecer os próprios direitos, para conhecer o que é seu. Eu falo: “gente, O SUS não é favor. Nós pagamos nossos impostos e cada profissional que está trabalhando somos nós que estamos pagando.” Estamos ali não é de graça. Não estamos ali de favor. Quando eu estou fazendo um curativo ou administrando uma medicação, eu não estou fazendo caridade, mas porque é o meu trabalho. Sou paga pelo povo para estar ali exercendo uma função pública. Tenho que fazer um trabalho de humanização, um trabalho com amor, principalmente como mulher trans. Tenho que mostrar até mais, porque qualquer falha que eu tiver, vão querer me condenar porque aos olhos da sociedade é como se eu já não presto. Porque queira ou não queira, já somos vistas apenas como putas. Claro que a puta é uma profissão, sofre muito preconceito, mas o povo gosta. Quem não gosta de puta? Se não fosse assim, o cabaré não estaria cheio de homens. Mas a visão da sociedade é que a travesti só pode ser cabeleireira ou puta. Estamos mudando isso, a travesti pode ser psicóloga, a travesti pode ser médica. É como os negros, se nós estudássemos e fizéssemos nossa própria faculdade nós estaríamos com mais avanços. Acontece que assim nós vamos para o espaço do outro. Pegamos o exemplo de um homem branco, que não tem vivência com uma pessoa negra, e constrói uma empresa só de pessoas brancas e depois coloca três, quatro homens negros para trabalhar para ele. Eles vão sofrer preconceito porque inicialmente foi uma construção feita por aquela pessoa branca que não teve o conhecimento de como trabalhar com um público diverso. Agora, se você tem mais conhecimento e convive com essa população, você luta com essa população, você se iguala e esse público. Você já conhece aquele público, você não vai falar: “Ah eu sou branca e fulano é preto”. Não, você vai se achar igual, porque você está na luta e sofre do mesmo jeito. Quem levanta a bandeira para a população trans e LGBTTQIA+ sofre preconceito também. Eu tenho amigas, mulheres casadas, mas quando as pessoas nos veem juntas dizem: “Olha, é sapatão. Só vive no meio de viado”. Isso não é fácil. Lutar por política pública e respeito nesse país não é fácil. Mas não podemos desistir. É ter essa consciência que nos dá mais força para lutar. Por exemplo, para eu conseguir alguma coisa tive que me prostituir, tive inclusive que ir para outro país, porque o meu Brasil é só sofrimento, só morte. Chegou um momento em minha vida que me deu vontade de entregar até minha pátria e ir embora para a Itália, para tentar a vida por lá. Paguei a cafetina e ela me levou embora. Ela até já faleceu, mas ainda agradeço porque se não fosse ela eu não tinha nenhum canto para morar. Mas não foi fácil. Paguei muito caro para ir. Tive que tentar, porque se fosse depender do meu país me conceder oportunidade, eu estava morando debaixo da ponte ou já tinha morrido nas ruas. E olhe que eu fui uma travesti que nunca bebi, nunca fumei. Quem me conhece sabe. Terminei o segundo grau no maior sacrifício. Eu ia para a escola e quando terminava de estudar eu ia para a avenida fazer programa. Não é fácil. Nos meus documentos diz que eu sou da década de 70, mas na verdade sou de 80. Comecei muito nova, com 11 anos eu já estava me prostiPSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 71 tuindo. Não é fácil você enfrentar a noite. Vi muitas amigas minhas morrerem de tiro quando morei em São Paulo. Sempre luto para que minhas amigas e a nova geração não passem por isso. Meu trabalho com as meninas é de aconselhar, dizer assim: “Vocês são tão novinhas, vocês precisam ir para a escola!”. Se elas não tiverem como se manter e precisarem do programa para sobreviver, então eu digo para investirem esse dinheiro do programa na sua educação, no próprio futuro. Eu digo para elas: “a prostituição não está mais como antigamente, está pior. Hoje tem aí as redes abertas e as pessoas estão muito alienadas. Para te derrubar é um instante, para te levantar demora. Então, pense no estudo”. Porque a prostituição funciona enquanto você é jovem. Com a idade tudo muda e vem a fome. Quantas travestis idosas a gente vê? É raro a gente ver uma travesti idosa, pois são muito poucas, já que a maioria de nós morre com menos de 40 anos, às vezes até por causa de um silicone industrial. Na peça que vamos construir e mostrar no nosso canal vamos falar do silicone industrial, que é a bombadilha da cafetina. A boa e a má. Vamos fazer uma comédia, mas mostrando essas três realidades. As pessoas vão se divertir, mas elas também vão ter uma aula de política dentro da comédia. Porque hoje temos que fazer uma comédia diferente, não é como antigamente, temos que fazer uma comédia que mostra uma realidade. Que as pessoas riam, mas pensem: “Poxa, isso é verdade?”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar, eu convido vocês a assistirem o filme Wonderfull: Meu eu em mim, que foi premiado como melhor filme na VII Mostra Sururu de Cinema Alagoano, aqui em Maceió. Está disponível no Canal Wonderfull. Vejam, vocês vão adorar. O filme mostra o meu trabalho, mostra eu atendendo na comunidade. Sou eu mostrando a realidade de uma travesti no mercado de trabalho. Nós temos que mostrar, chega de tanto sofrimento, de mostrar as travestis só na rua, só no plantão da polícia. Quem quiser conhecer o consultório na rua, vá lá no canal. E não é para me ajudar, é para ajudar o público trans. E quando terminarmos de montar essa peça maravilhosa, vocês vão assistir. Vamos botar isso pra frente. Chega de travesti na rua. Só vai pra rua quem gosta de ser puta, quem não gosta, vamos colocar para trabalhar. 72 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE ANCESTRALIDADE E RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE NAS PINTURAS RUPESTRES E NAS CANOAS DO SERTÃO DO SERIDÓ13 João Batista da Silva Dantas Fernanda Fernandes Gurgel 13 Agradecimento e apoio: ao amigo Ivan Russo e à comunidade do Povoado Gargalheiras. INTRODUÇÃO A existência humana se dá a partir de um espaço e um lugar. No espaço que existimos em materialidade, e à medida que o dotamos de valor por meio das nossas interações, ele transforma-se em lugar. Ele é o território no qual moramos, trabalhamos, socializamos e deixamos nossas marcas (CAVALCANTE; NÓBREGA, 2011; SANTOS, 2002). O lugar é referência, pois é o espaço com o qual nos identificamos (TUAN, 1983). Como exemplos de expressões de relação dos povos com seus ambientes, podemos citar a canoa primitiva e a arte rupestre. A embarcação foi o primeiro meio de transporte da humanidade que se tem registro. Esta tecnologia, que iniciou com pequenas jangadas de madeira e canoas monóxilas, permitiu à humanidade transcender os limites do seu corpo e alcançar novos territórios (LIMA; SOUSA, 2021). Já a arte rupestre, surgiu como uma das primeiras expressões artísticas da humanidade. Ela denota o intuito de seus autores em transmitir valores simbólicos no contexto de atividades lúdicas e ritualísticas (JUSTAMAND; MARTINELLI; OLIVEIRA; SILVA, 2017). Ao navegar pelas águas e deixarem suas marcas nas pedras, os povos antigos criaram novas formas de experienciar o ambiente e de se colocar no mundo. Utilizando conceitos da Psicologia Ambiental, pertencente aos estudos das Relações Pessoa-Ambiente, como Apego ao Lugar e Apropriação, o presente trabalho tem como objetivo apresentar as pinturas rupestres do Seridó e as canoas do Açude Gargalheiras como expressões da relação das pessoas com os ambientes. Desta maneira, pretende-se contribuir para a valorização dos saberes e práticas tradicionais e comunitárias do Gargalheiras, assim como fazer um chamado ao resgate e preservação da ancestralidade indígena na região do Seridó. AS CANOAS DO GARGALHEIRAS E A ARTE RUPESTRE DO SERIDÓ Considerada por muitos como a cidade mais limpa do Brasil, Acari é a segunda cidade mais antiga da mesorregião do Seridó Potiguar, interior do estado do Rio Grande do Norte (CORREIA, 2021). Este território era originalmente ocupado por indígenas de diversos grupos denominados tapuias tarairiús até serem expulsos, exterminados e absolvidos a nova sociedade que se instalava na região entre os séculos XVI e XVII (CAVIGNAC; ALVEAL, 2019). A sua rede fluvial de caráter temporário tem como principal afluente o Rio Acauã, que abastece o açude público Marechal Dutra, mais conhecido por Gargalheiras. Sua construção foi iniciada no início do século XX, mas só foi concluída em 1959. A construção da barragem mobilizou a migração de vários operários e suas famílias, provenientes de diversos lugares do Nordeste, para o local da construção (VITAL, 2001). 74 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Figura 1: Território administrativo do Seridó Potiguar Fonte: Correia (2020). Após o término das obras, grande parte dos trabalhadores se deslocaram para outras obras de açudagem empreendidas pelas políticas desenvolvimentistas e de combate à seca do Governo Federal. Contudo, outras famílias se estabeleceram definitivamente e a Vila do Acampamento Gargalheiras deu lugar à comunidade Povoado Gargalheiras (VITAL, 2001). Até os dias atuais a atividade principal da comunidade é a pesca artesanal, na qual o deslocamento sobre as águas ainda ocorre por meio das canoas feitas em madeiras (Figura 2). Entre os anos de 2012 e 2020, a região passou por uma forte seca que culminou no colapso hídrico do açude pela primeira vez em sua história (Figura 3). Figura 2: canoas utilizadas por pescadores no açude Gargalheiras. Fonte: Arquivo pessoal (2021). PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 75 Figura 3: canoa abandonada na parte mais profunda do açude Gargalheiras. Fonte: Arquivo pessoal (2018) Acari, juntamente com as cidades vizinhas, Carnaúba e Parelhas, possuem um rico patrimônio arqueológico espalhado em diversos sítios pré-coloniais com a presença de grafismos rupestres da tradição Nordeste, Agreste e Itaquatiara. Existem ainda sítios litocerâmicos a céu aberto distribuídos nas bacias do rios da e serras da região o que atesta uma intensa ocupação por populações indígenas em diferentes períodos (CAVIGNAC; ALVEAL, 2019). Recentemente, a região foi reconhecida como um território de relevância mundial pela Unesco por meio do Geoparque Seridó (UNESCO, 2022). Em vários destes sítios é possível observar gravuras rupestres com características que se assemelham a possíveis embarcações (Figuras 4 e 5). A recorrência destes grafismos intriga os visitantes e tem causado discussões acadêmicas. Com isso, Rios e Santos Jr., levantam as seguintes questões: a) Seriam mesmo representações de embarcações ou são representações de outros objetos com morfologias semelhantes? b) Por que essas representações aparecem em suportes rochosos localizados em espaços geoambientais (platô de serras e riachos não perenes), que, na atualidade, não comportariam qualquer tipo de navegação? c) Por que essa recorrência é tão visível em sítios arqueológicos do Seridó do Rio Grande do Norte e, praticamente, inexistente (ou aparece de forma intrusiva) nos demais estados nordestinos? (RIOS; SANTOS JR., 2014, p. 31). 76 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Figuras 4: Pinturas rupestres encontradas no sítio arqueológico Casa Santa em Carnaúba dos Dantas - RN. Fonte: Arquivo pessoal (2018). Figura 5: Inscrição rupestre em baixo relevo encontrada no sítio arqueológico Poço do Arroz em Acari-RN. Fonte: Arquivo pessoal (2018). Considerando que existem artefatos arqueológicos que confirmam a utilização de canoas primitivas pelos indígenas onde hoje se encontra o Rio Grande do Norte, Rios e Santos Jr. (2014) concluem ser possível que os autores das pinturas rupestres tenham registrado ações do cotidiano náutico na faixa litorânea ou no leito do Rio Piranhas-Açu, que era navegável por cerca de 50 km da foz até o interior. Outra possibilidade poderia estar atrelada a um processo mitológico criado ao longo das gerações a partir dos processos migratórios desses grupos utilizando embarcações em seus deslocamentos para a região do Seridó, o que explicaria, em parte, a reprodução desse signo náutico nos grupos posteriores. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 77 Outras possíveis hipóteses são de que as representações gráficas tenham sido elaboradas para externar uma rede indígena, um caminho para uma aldeia, uma possível barca lunar, uma ave ou peixe da região, ou qualquer outro signo. Entretanto, Rios e Santos Jr. (2014) ressaltam a importância de se ter prudência com as interpretações acerca das gravuras rupestres respeitando o hermetismo simbólico inerentes aos grafismos já que pela falta de evidências conclusivas e por se tratar de obras artísticas não se pode fazer afirmações conclusivas quanto aos seus significados. ESPAÇO, APEGO AO LUGAR E APROPRIAÇÃO A existência humana se dá em um espaço e um lugar. É no espaço que existimos como extensão e materialidade, visto que o corpo físico ocupa um espaço e precisa do mesmo para o seu desenvolvimento e deslocamento. Enquanto na noção de lugar, o espaço ganha importância e sua identificação situa-se para além dos seus limites físicos. Para os estudos das relações pessoa-ambiente, lugar é o espaço com o qual se estabelece relação. É algo que vai além do espaço. É onde moramos, trabalhamos, nos divertimos, vivemos. É um espaço ao qual se atribui significado e que ganha valor pela vivência e pelos sentimentos (CAVALCANTE; NÓBREGA, 2011, p. 182). A vinculação das pessoas com os ambientes pode ocorrer de diferentes formas, considerando não apenas os aspectos materiais e funcionais dos espaços, mas também aspectos afetivos, simbólicos e sociais. Estudos realizados a partir das Relações Pessoa-Ambiente (FELIPPE; KUHNEN, 2012) apresentam a noção de apego ao lugar como o vínculo emocional positivo estabelecido pelas pessoas com os ambientes sóciofísicos que experienciam. Vale destacar que o conceito não é único quando falamos sobre os afetos nas relações pessoa-ambiente. Neste estudo utilizamos a noção apresentada por Elali e Medeiros (2011), na qual o apego ao lugar envolve três dimensões: funcional, simbólica e relacional. A dimensão funcional, refere-se à influência do espaço físico que incide sobre o comportamento das pessoas de forma a atrair, encorajar e inibir os corpos. A dimensão simbólica diz respeito ao conteúdo simbólico de origem individual e sócio cultural que atua como mediador da relação pessoa-ambiente influenciando na maneira como os indivíduos e grupos compreendem e agem frente a diferentes situações. Por fim, a dimensão relacional corresponde ao envolvimento social cotidiano e sua interação com as características do ambiente. Esta relação conecta cognitiva e afetivamente as pessoas ao ambiente auxiliando na definição da identidade pessoal e comunitária. Outro conceito importante no estudo da Relação Pessoa-Ambiente é o conceito de Apropriação. Segundo Cavalcante e Elias (2011), a Apropriação é um processo psicossocial por meio do qual o ser humano se projeta no espaço e o transforma de maneira a criar um lugar seu. Neste espaço, os sujeitos deixam marcas e alterações visíveis criando uma referência que o orienta e preserva sua identidade. Conforme Pol (1996, apud CAVALCANTE; ELIAS, 2011), este processo possui dois elementos estruturais e complementares. A primeira, apropriação por ação/transformação, consiste em comportamentos de demarcação e ocupação do território. A segunda, apropriação por identificação simbólica, refere-se a processos mentais e condutas que levam o sujeito a transformar o espaço em lugar reconhecível e pleno de significado para si e para seu grupo social. 78 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE EXPRESSÕES DA RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE Para além da dimensão física, as pinturas e as canoas são expressões da identidade e da percepção ambiental das pessoas pertencentes ao lugar. Neste sentido, o Gargalheiras é mais do que simplesmente um açude e uma vila já que neste espaço as pessoas se encontram, trabalham, praticam esportes, se confraternizam e criam relações afetivas com o ambiente. E neste ambiente, a canoa se caracteriza como elemento paisagístico e afetivo do lugar. Esta embarcação cumpre o papel de ferramenta de trabalho para os pescadores e meio de locomoção para moradores e visitantes. No aspecto símbolo, as canoas estão associadas à prosperidade já que sua utilização é sinônimo da presença de água, alimentação e renda para as famílias da comunidade (Figura 6). Também é por meio das canoas que acontecem manifestações culturais daquela comunidade como corridas de remo e a Procissão Náutica de N. S. de Lourdes, padroeira dos pescadores (Figura 7). No documentário Feito Torto Pra Ficar Direito do diretor Bhig Villas Bôas, o modelista Carlos Heitor Chaves fala sobre a relação do pescador com sua embarcação frente a ameaça do desaparecimento do modo tradicional de praticar a pesca proporcionada pela chegada de novas tecnologias: Isto aqui é uma embarcação de trabalho. É um meio de trabalho como outro qualquer. No entanto, a relação que você tem com este objeto e com o meio onde ele trabalha faz com que o ser humano estabeleça novas relações, novos conhecimentos, tenha ideias, tenha desejos, tenha anseios. Tudo isso desapareceu. Modos de encarar a vida, modos de encarar a natureza, modos de encarar os relacionamentos humanos (FEITO, 2015). Figura 6: Pescador da comunidade Gargalheiras e seu filho praticando a pesca artesanal. Fonte: acervo pessoal de Ivan Russo (2021). PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 79 Figura 7: Procissão náutica da padroeira dos pescadores em Gargalheiras. Fonte: acervo pessoal de Ivan Russo (2021). Assim como as canoas, as pinturas rupestres representam a interação do ser humano com seu ambiente, pois são expressão simbólica, relacional e funcional do apego ao lugar de existência. Na região do Seridó, a arte rupestre, assim como outros materiais arqueológicos presentes nos inúmeros sítios arqueológicos, representa marcas de uma história renegada que resiste a um duro processo de apagamento e violência iniciado com a chegada dos colonizadores portugueses. Para Macedo (2014) a memória e a história sobre os índios fazem parte do patrimônio cultural dos seridoenses. Para ele: Mesmo que os índios não estejam mais vivendo na região, pinturas, gravuras, artefatos e ossos encontrados nas furnas e abrigos dos vales, além de povoarem o imaginário local, reafirmam sua presença entre nós – ainda que, reiteramos, como testemunho residual de um passado perdido no tempo (MACEDO, 2014, p. 230). As pinturas e gravuras foram um meio de expressar apego e apropriação do lugar por aqueles que as produziram em tempos longínquos. É provável que nunca saibamos ao certo o significado de seu conteúdo, mas sua simples existência é sinal de resistência da memória indígena no Seridó. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas inscrições rupestres do Seridó, assim como, na utilização da canoa e da pesca artesanal por parte dos pescadores do Gargalheiras, vemos marcas de resistência da ancestralidade. Estas expressões não devem ser encaradas como meras marcas de povos esquecidos ou, simplesmente, atrações turísticas. Elas devem ser encaradas como verdadeiros patrimônios capazes de evocar um sentimento de resgate ancestral e pertencimento ao lugar. Neste contexto, fica evidente o papel e a importância das contribuições a partir do olhar da Psicologia Ambiental, para o resgate e valorização da ancestralidade e das práticas tradicionais e comunitárias. Acreditamos que, desta maneira, podemos construir uma psicologia mais justa e promotora de direitos humanos, emancipação dos povos e promoção de saúde e qualidade de vida. 80 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Sem pretensão de esgotar o assunto, iniciamos aqui, especialmente para o povo seridoense, uma reflexão sobre a importância do resgate da nossa ancestralidade, bem como a importância de se valorizar e preservar as práticas e saberes locais. Por fim, pretendemos também que este trabalho sirva de inspiração para a criação de novos trabalhos e estudos que possam se aprofundar mais no tema. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 81 REFERÊNCIAS CAVALCANTE, Sylvia; ELIAS, Terezinha Façanha. Apropriação. In: CAVALCANTE, Sylvia; ELALI, Gleice Azambuja (org.). Temas básicos em psicologia ambiental. Petrópolis: Vozes, 2011. Cap. 5. p. 63-69. CAVALCANTE, Sylvia; NÓBREGA, Lana Maria Andrade. Espaço e Lugar. In: CAVALCANTE, Sylvia; ELALI, Gleice Azambuja (org.). Temas básicos em psicologia ambiental. Petrópolis: Vozes, 2011. Cap. 14. p. 182-190. CAVIGNAC, Julie A. (org.); ALVEAL, Carmem (org.). Guia Cultural Indígena Rio Grande do Norte. Natal: Flor do Sal, 2019. ISBN 978-65-990211-1-4 CORREIA, Isac Alves. Andando pelos sertões: intenções de mobilidade em áreas urbanas diante das secas no Seridó Potiguar. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana [online]. 2021, v. 29, n. 62 [Acessado 5 maio 2022] , pp. 133-150. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/198085852503880006209>. Epub 10 Set 2021. ISSN 2237-9843. https://doi.org/10.1590/198085852503880006209. ELALI, Gleice Azambuja; MEDEIROS, Samia Thaís Feijó de. Apego ao lugar: vínculo com o lugar - place attachment. In: CAVALCANTE, Sylvia; ELALI, Gleice Azambuja (org.). Temas básicos em psicologia ambiental. Petrópolis: Vozes, 2011. Cap. 4. p. 53-59. FEITO Torto Pra Ficar Direito. Direção de Bhig Villas Bôas. Produção de Ana Paula Mendes. Roteiro: Bhig Villas Bôas. Música: Caíto Marcondes. 2015. (53 min.), color. Disponível em: https:// youtu.be/wRjNPj5M5kU. Acesso em: 10 abr. 2021. FELIPPE, Maíra Longhinotti; KUHNEN, Ariane. O apego ao lugar no contexto dos estudos pessoa-ambiente: práticas de pesquisa. Estudos de Psicologia (Campinas), [S.L.], v. 29, n. 4, p. 609-617, dez. 2012. 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Gargalheiras: cenário produtivo de revelações e transformações sociais (1990 - 2000). 2001. 82 f. Monografia (Especialização) - Curso de História, História e Geografia Pós-Graduação em História do Nordeste, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2001. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 83 ÎANDÊ IRA YBY SUÍ PYNDORAMA: MANÓ PARANÃ OBAYTÎ YBAKA (SOMOS MEL DA TERRA DE PYNDORAMA: ONDE O MAR ENCONTRA CÉU) Casé Angatu (Carlos José F. Santos) manó paranã / obaitî ybaka / robaca amana obaitî yby / yby tecó y / suí ygarapés robaca paranã / obaytî ybaka / nheypyrunga bebé ybyuamana moakyma / yjara erecoara / yecobé (Casé Angatu) ERYMÃ ÎANDÊ JARA SUÍ YBY Emimotara opá katuana pupé opakatu! Tyba T-eté Anga Catupey Moronguetá Purasisaua Güyp. Carama suí Îe’emonguetá Îe’engara: Caruba Moema Îe’enga Túibaepaguama Aneramey Porancy Açu. Carama suí îe’emonguetá îe’engara teé pé yba rura: Caruba suí yapu suí Caruana, Tupixuara, Anhanga ã tamanhanga supé Kaaetée suí Jurema, yapu moema Y suí Yara/Yanaina, Ka’áipora, yapu suí Ybaka suí Gûyrá, Guarassy, Îacy. Yapus suí Aras suí Aupaba Tupinambá Olivença xembaé ojey etama – yapu bae te ecoara maenduassaba ecoara anga e-eté ... aberamei îe’engara moema îe’enga túibaepaguama porancy açu. Erimã îandê jara suí Yby. Îandê Iané Ara Masuí Xukui Amó Ara Maramoñanga Ñerana Icobé... Îandê Yby. Îandê pyruera ira Yby. Îandê Yby suí Pyndorama. SOMOS MEL DA TERRA DE PYNDORAMA: ONDE O MAR ENCONTRA CÉU14 Casé Angatu (Carlos José F. Santos) Onde mar / encontra céu / vira chuva Encontra terra / terra está nas águas / dos rios Viram mar / encontram céu / reiniciam voar Ar molhar / mãe das águas cuida / da água vida (Casé Angatu) NÃO SOMOS DONOS DA TERRA Desejo que tudo bem com todes, todas e todos! somos corpas/corpos e almas nuas com sentimentos instintivos dançando o tempo todo no espaço. Roda de conversas e cantigas: encantamentos das falas ancestrais como uma grande dança. Estas rodas de conversas, cantigas são diferentes porque guiadas pelos encantamentos dos sons dos espíritos bons, familiares e protetores da Natureza que povoam as matas/florestas de Jurema, sons das Águas de Yara/Janaína, protetora das matas, sons do céu dos pássaros, Espírito Solar, Lua. Sons dos seres viventes do Território Tupinambá Olivença, lugar onde moro. Sons habitando minha memória, habitando minha alma corpo... como cantigas das falas ancestrais numa grande dança. Não somos donos da Terra. Somos um mundo onde cabem muitos mundos de lutas, (re) existências e resistências. Nossa pele, o mel da Terra. Somos terra da terra sem males. Segue uma interpretação quase impossível do que foi escrito em Tupy na forma como é manifestado no Sul da Bahia. Sobre a palavra Pindorama é uma das formas pelas quais alguns indígenas Tupy se referiam ao território onde moravam. Significando Terra das palmeiras (Pindoba) ou Terra Encantada (sem males) no sentido da diversidade e fertilidade da Natureza, incluindo a própria Pindoba. Pode ser também o lugar onde moram as pessoas ancestrais, as Encantarias e os diversos seres não humanos. 14 86 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE TERRITORIALIDADES, MEIO-AMBIENTE E COMUNIDADES TRADICIONAIS Foi, em Tupy, com as palavras acima de abertura deste capítulo, que em 07 de agosto de 2021 iniciei a Carama suí Îe’emonguetá Îe’engara (Roda de conversas e cantigas) durante o VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social. O tema da mesa era: Territorialidades, Meio-Ambiente e Comunidades Tradicionais (Eixo 4 do Encontro). Após alguns meses desse importante Encontro, no final de 2021 (especificamente a partir de dezembro), alguns lugares no Nordeste e em Pindorama foram abalados por fortes temporais, afetando dramaticamente e em grande número as parcelas mais empobrecidas da população. Moro em um desses lugares afetados: a Terra Indígena Tupinambá de Olivença – Ilhéus/Bahia. Este texto foi escrito sob os impactos do ocorrido na região onde vivo, Sul da Bahia, mas também abalando o Extremo Sul, Oeste, Sudoeste Baiano e Norte de Minas. Em 2022, durante o primeiro semestre, novamente ocorreram tempestades vitimando pessoas em vários estados nordestinos, além de estados na Região Norte, Centro-oeste, Sudeste e Sul. Ou seja, desde o final do ano passado (2021) e durante o primeiro semestre de 2022, as populações de baixa renda estão morrendo, ficando feridas, desabrigadas e adoecendo, mas sempre resistindo e (re)existindo. De acordo com o site Uol o “Brasil teve mais de 500 mortes por temporais desde o fim do ano passado (2021)” (UOL, 21/05/2022)15. Possivelmente esse número é bem maior com as frequentes subnotificações dos órgãos governamentais, quando se trata das camadas empobrecidas da população. Somente em Pernambuco, com as chuvas em 2022 enquanto quando concluía este texto, o número de mortos era de 129 pessoas (CBN, 07/06/2022)16. Assim, este texto foi escrito no calor dos acontecimentos que vivenciei junto com parcelas das camadas empobrecidas da população e com a comunidade tradicional/originária17 onde vivo, luto, resisto e (re)existo. De muitos modos as palavras em seguida têm profundas relações com a Carama suí Îe’emonguetá Îe’engara (Roda de conversas e cantigas) citadas, bem como com a temática geral do evento (‘Psicologia Social & Luta Antirracista: reflexões e estratégias ético-políticas a partir da interseccionalidade’). Buscamos apresentar um olhar indígena decolonial sobre o que ocorreu e ainda ocorre, pensando nas territorialidades, Ambiente e como as pessoas do povo no geral (entre as quais, nas comunidades tradicionais) ensinam caminhos. Tratando-se de uma luta antirracista e de estratégias ético-políticas para superar o racismo ambiental, estrutural e histórico. Saliento, portanto, ser fundamental ponderar que não foram/são somente os temporais os provocadores do sofrimento humano, mas também sendo necessário superar o Capitalismo, gerando genocídios constantes. Afirmamos haver um genocídio18 porque basta verificar a etnicidade e o UOL, Portal. Brasil teve mais de 500 mortes por temporais desde o fim do ano passado (2021). Disponível em: https:// noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/05/31/brasil-teve-mais-de-500-mortes-por-temporais-desde-o-fim-do-ano-passado.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 21 mai.2022. 16CBN, Jornal da. Sobe para 129 o número de mortos devido às chuvas em Pernambuco. Disponível em: https://cbn. globoradio.globo.com/media/audio/377671/sobe-para-129-o-numero-de-mortes-por-causa-das-chu.htm. Acesso em 07 jun. 2022. 17 Utilizo as palavras Comunidade Tradicional/Originária para as populações indígenas que vivem numa determinada região (em meu caso, em Olivença – Ilhéus/BA) de forma comunitária e mantendo suas tradições. Quando se trata de comunidades indígenas, a palavra originária é utilizada porque é uma das formas pelas quais nos denominamos: Povos Originários – por estarmos aqui antes das invasões europeias do século XVI. 18 Quando utilizamos termos como genocídio ou etnocídio é no sentido de salientar que são tentativas de extermínio total de alguns grupos socioculturais e étnicos. No entanto, é fundamental considerar que também existem diferentes formas de resistências e (re)existências fazendo com que o genocídio e o etnocídio não se completem de forma total. 15 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 87 “extrato” social da maioria de vitimados pelas tempestades, doenças como a pandemia de covid-19, pelas ações violentas do Estado e do capital. Dedico este texto a todas as pessoas em Pindorama que se encantaram, foram feridas e perderam o pouco que tinham materialmente; como se não bastassem a pandemia, as ações genocidas do atual governo fascista e a estrutural desigualdade social/econômica agredindo as parcelas despossuídas de bens materiais. Dedico especificamente às parcelas da população fora das pautas de alguns movimentos sociais e identitários. Pessoas que resistem, (re)existem e ensinam os caminhos. A SABEDORIA ANCESTRAL GUIA A PERCEPÇÃO ORIGINÁRIA Lembro bem do dia 06 de dezembro de 2021, aproximadamente dois anos transcorreram do início da Pandemia de Covid-19. Na ocasião existia uma esperança que a doença estava diminuindo e aguardávamos ansiosos/as as vacinas. Porém, propositalmente o Governo Federal demorou para obter a imunização, radicalizando sua “bio-necropolítica que estrutura o bio-necropoder de imposições coloniais e o capitalismo” (ANGATU e TUPINAMBÁ, 2022a, p. 196). Naquela primeira segunda-feira do último mês de 2021 logo cedo dois indígenas Tupinambá pescadores (Byjupyrá e Bayaku) se encontraram à beira-mar em frente à Aldeia Jairy Ituaçu e a Taba Gwarïnï Atã (onde moro), na Terra Tupinambá de Olivença (Ilhéus/BA)19. Como quase cotidianamente faço pela manhã também estava no local. Ao se encontrarem conversaram: - Katuara (bom dia) Parentes, disse Byjupyrá. - Katuara, responderam Bayaku e Casé Angatu. - Hoje o mar (paranã) tá retado de agitado (yaíba) e a maré cheia (yúra pungá), falou Byjupyrá. - Do jeito que tá não tem como botar a jangada (ygapeba) no mar (paranã) - afirmou Bayaku. - Tupã sabe o que faz e Janayna também. Bora molhar a palavra que a chuva (amana) tá forte (atã) e vai demorar - previu Byjupyrá. - Isto se não virá tempestade (ybytuaíba) - pressentiu Bayaku. E aquela chuva virou mesmo tempestade como intuíram Byjupyrá e Bayaku, demorando cerca de seis dias para estiar. Os meus parentes tinham razão nas previsões da percepção originária, gerada das vivências atemporais como pescadores e da sabedoria ancestral. Porém, não sabíamos que o temporal seria fora do comum em intensidade, demorando um tempo maior para abrandar. Os nomes dos parentes neste diálogo foram recriados no sentido de resguardar os mesmos. Outra observação é que partes do texto a partir deste tópico foram publicadas no Jornal Correio da Cidadania em 10/01/2022 com o título Um olhar indígena decolonial sobre as inundações que abriram o ano (ANGATU, Casé. Um olhar indígena decolonial sobre as inundações que abriram o ano. In: Jornal Correio da Cidadania. Disponível em: https://www.correiocidadania.com.br/ social/14888-um-olhar-indigena-decolonial-sobre-as-inundacoes-que-abriram-o-ano. Acesso em jan. 2022. 19 88 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Até então não tínhamos noção que aquela tempestade era gerada por um ciclone subtropical denominado pela Marinha do Brasil com o nome em Tupy de “Ubá”.20 Do mesmo modo, como previsto que o lugar onde morávamos seria uma das áreas mais afetadas pelas tempestades, bem como toda região Sul, Extremo Sul, Oeste, Sudoeste da Bahia e Norte de Minas Gerais. Para piorar logo após a passagem do Ubá fomos novamente abalados por outra tempestade que estendeu-se por vários dias. Os novos temporais, segundo os meteorologistas, foram provocados pelo “fenômeno climático” chamado “La Niña” e pelo aumento da temperatura no Oceano Atlântico. Entretanto, será que as agências/institutos meteorológicos e climatológicos não conseguiriam prever “eventos extremos” como os ocorridos? Não seria possível emitir alertas e tomar medidas de precaução? Assim questionamos: somente os temporais são responsáveis por afetarem pessoas (geralmente as mais empobrecidas), resultando em mortes, ferimentos, doenças e perdas materiais? Não se trata de racismo ambiental relacionado ao Capitalismo e seus mandatários? A HISTÓRICA/ESTRUTURAL BIO-NECROPOLÍTICA DO BIONECROPODER CAPITALISTA QUE AS TEMPESTADES REVELARAM Não foi objetivo nesse texto responder conclusivamente às inquietações enunciadas, mas aventar possibilidades de ponderações. Será possível afirmar e com toda razão: o atual governo negacionista do conhecimento, da pesquisa e da Ciência tem cortado verbas e investimentos também neste setor das previsões meteorológicas e climatológicas. Isto tem ocorrido e possui relações com as consequências geradas pelo “Ubá” e “La Niña”. Sendo notória a nefasta atuação genocida do governo fascista/negacionista buscando a deterioração dos estudos, pesquisas e políticas públicas, especificamente quando favorecem a população pobre. A título de exemplo, em setembro de 2021 o Governo Federal interrompeu a atuação do Sistema Nacional de Meteorologia (SNM), depois de quatro meses da criação. Outra demonstração do descaso do atual Governo Federal ocorreu em junho/2021, quando os mandatários da República deixaram sob ameaça de desligamento o supercomputador “Tupã” por falta de recursos para a manutenção. Um equipamento essencial nas análises de dados do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos de responsabilidade do Instituto Nacional de Pesquisas Especiais – INPE (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações). O desligamento foi postergado somente porque o supercomputador também é necessário para a agricultura. Sendo evidente a necessidade de denunciar essas ações deliberadamente genocidas do atual governo. A não previsão eficiente de eventos climáticos gera mortes, pessoas feridas, doenças, sofrimentos e perdas materiais. Aliás, a política genocida não é uma novidade, bastando lembrar como o Governo Federal atuou negando o enfrentamento à Covid-19. No entanto, mesmo considerando o sucateamento dos estudos e previsões climáticas e meteorológicas, questionamos: o Estado (nas diferentes esferas), a Marinha do Brasil e o Siste- O nome “Ubá” pela Marinha do Brasil é de origens Tupy, significando Canoa. A Marinha utiliza nomes indígenas para denominar “eventos climáticos ou meteorológicos extremos” como: Arani (tempo furioso); Bapo; Cari (homem branco); Deni (povo indígena); Eçaí (olho pequeno); Guará (lobo do cerrado); Iba (ruim); Jaguar (lobo); Kurumí (menino); Mani (deusa indígena); Oquira (broto de folhagem); Potira (flor); Raoni (grande guerreiro); Ubá (canoa indígena); Yakecan (o som do céu) (ANGATU, Casé. Um olhar indígena decolonial sobre as inundações que abriram o ano. In: Jornal Correio da Cidadania. Disponível em: https://www.correiocidadania.com.br/social/14888-um-olhar-indigena-decolonial-sobre-as-inundacoes-que-abriram-o-ano . Acesso em jan. 2022). 20 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 89 ma Nacional de Defesa Civil não são informados sobre eventos climáticos por agências/institutos meteorológicos/climatológicos ainda existentes dos órgãos públicos ou privados, bem como pelas universidades públicas? Caso possível a previsão porque não alertam às populações nas áreas que provavelmente serão afetadas por temporais e vendavais, evitando algumas das tragédias resultando em mortes? Caso tenham avisado, por que não tomaram medidas de prevenções? Ou será que se trata mesmo de racismo ambiental? Para José Marengo, Coordenador-Geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais - CEMADEN, “há uma dificuldade histórica em retirar moradores de áreas de risco”21. Isto é, a histórica lógica de morte daqueles comandando o sistema capitalista pensando em custos e não em vidas. Em outras palavras: bio-necropolítica do bio-necropoder onde se mede as despesas e não as vidas. Lembrando que mesmo as chuvas cessando fica o perigo de doenças, novos acidentes em decorrência das estruturas abaladas das casas, prédios públicos, comerciais, estradas, condições do solo, encostas e rios. Como explicado pela Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), além da necessidade de alerta a população é necessário medidas estruturais efetivas após manifestações climáticas e meteorológicas extremas: Essa paralisação abrupta envolve, simultaneamente, perdas materiais e econômicas, assim como danos ao ambiente e à saúde das populações por meio de agravos e doenças que podem causar mortes imediatas e posteriores. Uma ocorrência do gênero torna o grupo afetado incapaz de lidar com a situação utilizando os próprios recursos, o que pode ampliar os prejuízos para além do lugar de sua eclosão (FIOCRUZ, 2017). PROTAGONISMOS POPULAR/ANCESTRAL INDICANDO CAMINHOS PARA A COLETIVA AUTOCONSTRUÇÃO DA VIDA: O MOTYRÕ Ciente desse quadro apresentado pela FIOCRUZ, outro questionamento surgiu: por que não são efetuadas medidas estruturais preventivas antes dos “eventos naturais extremos” ocorrerem? Não estamos tratando de remoções forçadas de famílias ou pessoas das chamadas “áreas de risco”. O que assinalo é construir alternativas de forma participativa para atenderem as perspectivas de vida e habitacionais de toda população despossuída de riqueza material. Insistimos: é necessário construir coletivamente e de maneira participativa caminhos para moradia popular gratuita, atendendo as perspectivas de vida dos habitantes. Sendo gratuita porque senão não é popular. Não se tratando de implementar práticas históricas de exclusão das camadas empobrecidas da população. Em dois livros, discuti especificamente a cidade de São Paulo e a Região Metropolitana, analisando como os donos do poder político e econômico usam os discursos de urbanidade, segurança, higiene, combatendo às moradias de risco para implementar ações de limpezas socioculturais, expulsões e exclusões (ANGATU, 2017 e 2006). São exemplos históricos neste sentido o combate aos cortiços, favelas, moradores/as em situação de rua, habitações em áreas consideradas irregulares e de risco, perseguições ao comércio popular, diferentes formas de trabalhar e expressar tradições socioculturais. O caminho que assina- UOL, Portal. Bahia: órgão federal emitiu 3 alertas de risco de inundações. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/28/orgao-federal-emitiu-alertas-mas-chuva-superou-todas-as-previsoes-na-bahia. htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 28 dez. 2021. 21 90 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE lo é outro porque parte do princípio da construção participativa/coletiva de soluções para a habitação popular e criação de infraestruturas atendendo as perspectivas de vidas das pessoas. Soluções por vezes existentes nas formas como o próprio povo constrói as moradas e vivências, resistindo às imposições e (re)existindo em suas tradições. Aliás, as ações com a participação popular nas decisões estão previstas na Lei nº 10.257 (Estatuto da Cidade), de 10 de julho de 2001: (...) o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 2001). Do mesmo modo, pensar/agir assim não se trata de uma utopia ou devaneio impraticável. Um exemplo de ações pensando na moradia das camadas empobrecidas da população de forma participativa/coletiva foi a atuação da Prefeita Luiza Erundina na cidade de São Paulo entre 1989 e 1992. Foi realizado o Programa de Construção por Mutirão e Autogestão: “os mutirões foram pensados como solução habitacional de baixo custo onde os próprios ‘mutirantes’ num sistema de ‘autogestão eram responsáveis pela construção da unidade e também pela administração do empreendimento”’22. Ressaltando que mutirão é uma palavra de origens Tupy representando a forma como fazemos as coisas: potyrom ou motyrõ significando “pôr as mãos juntas, trabalhar juntos e de forma comum”. Ou seja, o manejo coletivo da autoconstrução originária ou popular. A uka (oca) onde moro na Aldeia Gwarïnï Taba Atã na Terra Indígena Tupinambá de Olivença (Ilhéus/Bahia) foi assim construída, bem como as demais. Nas cidades vejo em alguns lugares, especialmente nos territórios das camadas populares, várias características dessa forma de construir indígena. Até porque muitas das pessoas habitando nas periferias ou nas chamadas áreas de risco tem origens na indianidade. Assim, também penso a construção da habitação popular pelos Movimentos por Moradia e Ocupações ocorrendo em diversas cidades. Ocupações legítimas e assinalando alguns dos caminhos para o próprio poder público. São pessoas que autoconstroem as habitações. Com essas formas populares de autoconstrução da habitação não é possível esquecer a necessária demarcação das terras indígenas, quilombolas, as chamadas comunidades tradicionais e a Reforma Agrária. Afinal de contas qual a procedência e/ou ancestralidade daqueles vivendo em situações consideradas de risco nas cidades? Por acaso não são pessoas “herdeiras” de um processo estrutural e histórico de espoliação/expulsão das terras? Como exemplificação do que desejei escrever, pensemos nos dados censitários da população indígena a partir dos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística para 2010: “[...] do total de 896,9 mil indígenas, cerca de 324,8 mil (36%) viviam/vivem em cidades” (ANGATU, 2021). No entanto, às vezes percebo a falta de ponderações mais profundas e estruturais mesmo entre os reivindicando e mobilizados pelo reconhecimento de direitos, participando em movimentos sociais, identitários e nos nomeados partidos de esquerda. Isto transparecendo numa certa indiferença quando as pessoas vitimadas por eventos climáticos ou meteorológicos extremos aparentemente não são organizadas em movimentos sociais e/ ou não se autodeclaram em algumas das identidades possíveis ou idealizadas. São pessoas fora das pautas mesmo daqueles participantes de movimentos sociais e identitários. Novamente questionamos: quais as origens étnicas/sociais da maioria das pessoas vitimadas/esquecidas pelo Estado nas CEDEM, Centro de Documentação e Memória da UNESP. Habitação social da prefeita Erundina é referência internacional. Disponível em: https://www.cedem.unesp.br/#!/noticia/173/habitacao-social-da-prefeita-erundina-e-referencia-internacional/. Acesso em 29 nov.2016. 22 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 91 áreas afetadas por esses “eventos extremos”? Quais as ancestralidades daquelas morando em áreas de risco e empobrecidas? Quais as origens da população carcerária/privada de liberdade? Como escrevi: por acaso não são “herdeiras” de um estrutural e histórico processo colonial e capitalista de espoliação/expulsão das terras? Como possibilita ponderar Frantz Fanon, o caminho é refletir sobre a necessária decolonização. Isto é, precisamos enfrentar um processo de culpabilização dos empobrecidos pela pobreza. Combater psicopatologias tentando introjetar nas subjetividades uma rede de auto-responsabilização por não se adaptarem a chamada “civilização” ou posturas idealizadas. Posições desviando o foco estrutural do processo de colonização, enriquecimento, racismo e desigualdade social do sistema capitalista (ANGATU, 2022a). São expressões da colonialidade: assinalar que o empobrecimento é culpa dos pobres; responsabilizar pelos “eventos naturais extremos” o “ser humano” como uma categoria genérica universal; atribuindo à “vingança da Natureza” o ocorrido. RESISTENTE E (RE)EXISTENTE: “UMA NOITE NÃO É NADA”. Precisamos ser unidas/unidos na luta resistente e (re)existente de todas as pessoas marginalizadas e excluídas pelo Estado, pelos grupos hegemônicos no poder econômico/político e pelo Capitalismo. O aumento da frequência dos chamados “eventos naturais extremos” tem relações com a existência do Capitalismo. Segundo o climatologista Francisco E. Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, “num planeta mais quente, eventos extremos tornam-se mais frequentes, com a formação de depressões subtropicais como esta”23. A contínua exploração da Natureza, bem como o aumento da elevada desigualdade social são fatores que provocam desequilíbrios naturais e cada vez mais colocam pessoas em situações de perigo. Pessoas geralmente das camadas populares e vítimas daqueles governando instituições, empresas, organizações, Estados e corporações. Dirigentes adoecidos de wetiko, palavra usada “por grupos indígenas norte-americanos” para denominar o “patógeno [que] engana seus hóspedes, levando-os a acreditar que obter a força vital dos demais (plantas, animais, pessoas etc.) é uma forma lógica e racional de existir. Em outras palavras, é o vírus do egoísmo (...)” (ANGATU, 2022b, p. 111). Cada dia mais a destruição em nome do capital vem devorando as matas, animais, povos e águas em vários lugares. Essa fome insaciável tem vários nomes de empresas, pessoas, Estados, corporações, instituições, organizações. Nomes tentando se disfarçar com o “manto” nada sagrado de civilização e desenvolvimentismo. Por vezes também aparecem disfarçados em ‘empreendedorismos’, ‘sustentabilidade’, ‘ecologismo’ e ‘ambientalismo de resultados’. Novos questionamentos surgem então: como acreditar nas resoluções da Conferência do Clima (COP26) no enfrentamento da dita urgência ambiental sem discutir o Capitalismo que em si é devastador da Natureza? Por que também não discutir o fim da exploração do humano pelo humano e do trabalho humano? Como discutir Ambiente sem mobilizações contra as desigualdades gerando as ocupações de risco? Por que não debater o término das desigualdades sociais e econômicas? Porque também não falarmos que o Capitalismo gera governos fascistas, ditatoriais e falsos democratas? Os seres humanos comandando a destruição estrutural e sistemática da Natureza possuem nomes e dirigem política e economicamente o Capitalismo no plano estatal e nos setores privados. BBC NEWS. O que causou tempestade atípica que arrasou o Sul da Bahia. Disponível em: https://www.bbc.com/ portuguese/brasil-59617328. Acesso em 10 dez.2021. 23 92 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE A Natureza em nossa concepção não é vingativa, mas está com sabedoria avisando para pararmos as atuações dos que estruturalmente dizimam a meio natural e cometem os ecocídios. Ao não enfrentarmos a doença do capital, devastadora da Natureza e dos direitos humanos, novos eventos climáticos ou meteorológicos extremos, patógenos e comorbidades como a covid-19 surgirão ameaçando a vida na totalidade. Não entendam essas palavras como manifestações distópicas, melancólicas, conformistas, fatalistas. Sendo Indígena e como os povos originários resisto e (re)existo a mais de cinco séculos de invasões, genocídios, etnocídios e ecocídios. O Capitalismo e mandatários também são responsáveis pelos chamados eventos climáticos e meteorológico extremos afetando as vidas das pessoas empobrecidas, resultando em mortes, ferimentos, doenças e perdas do pouco que tem. Reafirmo que precisamos nos unir às lutas de resistências e (re)existências cotidianas das pessoas supostamente não são organizadas em movimentos sociais e/ou que não se autodeclaram em algumas das identidades possíveis ou idealizadas. Meu caminhar é de inspiração Zapatista no sentido da união à/a todas/os enfrentando e lutando contra o capital, resistindo e (re)existindo. Por um mundo onde caiba vários mundos, com justiça social, respeitando as diferenças socioculturais. Quando perguntaram ao zapatista Subcomandante Marcos porque cobria o rosto, ao finalizar a resposta o mesmo afirmou: Marcos é todas as minorias intoleradas, oprimidas, resistindo, exploradas, dizendo ¡Ya basta! Todas as minorias na hora de falar e maiorias na hora de se calar e aguentar. Todos os intolerados buscando uma palavra, sua palavra. Tudo que incomoda o poder e as boas consciências, este é Marcos. Às vezes é necessário cobrir o rosto para mostrar a realidade (SUBCOMANDANTE MARCOS, 28 de março de 1994). Os potyrom, motyrõ, mutirões populares, são expressões desses caminhos para construção coletiva, autônoma e às margens do poder do Estado. As autodemarcações indígenas resultantes das retomadas das terras ancestrais assinalam para este caminho como ocorre no Território Tupinambá de Olivença (Ilhéus/BA). Na ausência do Estado e do capital o povo em geral não cansa de indicar exemplos de resistências e (re)existências ao bio-necropolítica mantendo o bio-necropoder do Capitalismo. Alguns desses caminhos surgem durante estes momentos catastróficos, mas também cotidianamente24. “Mutirão improvisa ponte com pedra para liberar acesso a cidade ilhada na BA”. (UOL, 13/12/2021) & “BA: Moradores fazem ‘corrente’ para levar doações após cratera abrir em via”. (UOL, 28/12/2021). 24 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 93 Motyrõs populares lembrando algumas das canções no nossos porancys25 e torés: Vamo, vamo minha gente Uma noite não é nada Vamo vê se nós acaba Com resto da empretitada Aqui chegou foi o Povo No romper da madrugada Vamo vê se nós acaba Com resto da empreitada Awêrê Aiêntên ! Porancys é a forma como os Tupinambá de Olivença denominam seus rituais para a natureza considerada como encantada. Em outras regiões do Nordeste esses rituais são denominados como torés. 25 94 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE REFERÊNCIAS ANGATU, Casé (Carlos José F. Santos) e TUPINAMBÁ, Ayra (Vanessa Rodrigues dos Santos). Povos Indígenas - Somos Um Mundo Onde Cabem Muitos Mundos. In: REIS, T. S. e OLIVEIRA, M. P. (Organizadores). Lutas e Movimentos Sociais no Tempo Presente : historiografia, teoria e metodologia - volume 1. Boa Vista: Editora da UFRR, 2022a, p. 176-210. ANGATU, Casé (Carlos José F. Santos). Já somos outros mundos possíveis, mas precisamos desarraigar o humano e o capital do centro do universo. In: TETTAMANZY, A. L. L., SANTOS, C. M. e MEDEIROS, V. L. C. Letras e vozes dos Lugares. Porto Alegre: Zouk, 2022b, p. 108-126. ____________. Nem Tudo Era Italiano – São Paulo e Pobreza na virada do século (1870-1915). SP: Annablume/FAPESP, 4a. Edição 2017. ____________. Identidades Urbanas e Globalização – a formação dos múltiplos territórios em Guarulhos/SP. SP: SINPRO/GRU, 2006. ____________. Dossiê: De/S/Colonização Estética: Saberes Tradicionais, Artes, Dissidências. In: Revista Espaço Acadêmico. Maringá. UEM, 2021. Disponível em: https://periodicos.uem.br/ojs/ index.php/EspacoAcademico/article/view/60509/751375152906?fbclid=IwAR1RDNYIDffpT3lPS-ZtSQg5Uq0QcGN3e4Btu3YpAs5CNskUC7HnlAHOAZc. 2021, p.13-24. ____________. Um olhar indígena decolonial sobre as inundações que abriram o ano. In: Jornal Correio da Cidadania. Disponível em: https://www.correiocidadania.com.br/social/14888-um-olhar-indigena-decolonial-sobre-as-inundacoes-que-abriram-o-ano . 10 jan. 2022. BBC NEWS. O que causou tempestade atípica que arrasou o Sul da Bahia. Disponível em: https:// www.bbc.com/portuguese/brasil-59617328. Acesso em 10 dez. 2021. BRASIL, República Federativa do. Estatuto da Cidade - Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001 que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em:https://presrepublica.jusbrasil.com.br/legislacao/101340/estatuto-da-cidade-lei-10257-01 . Acesso em 10 ago. 2001. CBN, Jornal da. Sobe para 129 o número de mortos devido às chuvas em Pernambuco. Disponível em: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/377671/sobe-para-129-o-numero-de-mortes-por-causa-das-chu.htm. Acesso em 07 jun. 2022. CEDEM, Centro de Documentação e Memória da UNESP. Habitação social da prefeita Erundina é referência internacional. Disponível em: https://www.cedem.unesp.br/#!/noticia/173/habitacao-social-da-prefeita-erundina-e-referencia-internacional/. Acesso em 29 nov. 2016. CLIMATEMPO, Clima e Previsão do Tempo. Novo ciclone subtropical poderá se formar na costa brasileira. Disponível em: https://www.climatempo.com.br/noticia/2021/04/17/novo-ciclone-subtropical-podera-se-formar-na-costa-brasileira-9190. Acesso em 14 abr. 2021. FIOCRUZ, Fundação Instituto Oswaldo Cruz. Análise de Situação em Clima e Saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica - Icict, Ministério da Saúde, Organização Panamericana de Saúde - Opas, 2017. Disponível em: https://climaesaude. icict.fiocruz.br/tema/eventos-extremos-0. Acesso em 20 dez. 2017. SUBCOMANDANTE MARCOS. EZLN - Himno Zapatista (Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=thAiSkX4qwo. Acesso em 28 mar. 1994. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 95 UOL, Portal. Brasil teve mais de 500 mortes por temporais desde o fim do ano passado (2021). Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2022/05/31/brasil-teve-mais-de-500-mortes-por-temporais-desde-o-fim-do-ano-passado.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 21 mai. 2022. ____________. Bahia: órgão federal emitiu 3 alertas de risco de inundações. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/28/orgao-federal-emitiu-alertas-mas-chuva-superou-todas-as-previsoes-na-bahia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 28 dez. 2021. UOL, Cotidiano. Mutirão improvisa ponte com pedra para liberar acesso a cidade ilhada na BA. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/13/moradores-e-prefeito-improvisam-ponte-para-chegar-a-municipio-ilhado-na-ba.htm?cmpid=copiaecola&cmpid=copiaecola. Acesso em 13 dez. 2021. ____________. BA: Moradores fazem ‘corrente’ para levar doações após cratera abrir em via. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/12/28/moradores-fazem-corrente-para-levar-doacoes-na-bahia.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 28 dez. 2021. 96 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE SER INDÍGENA E LGBT: RESISTÊNCIA E AFIRMAÇÃO NO TERRITÓRIO PANKARARU26 Bia Pankararu Texto advindo de nossa participação, em 2021, no VII Encontro Regional Nordeste da ABRAPSO - Associação Brasileira de Psicologia Social - como convidada na Roda Gigante 5, cujo tema foi ‘Feminismos, estudos sobre masculinidades e estudos queer’, que contou também com participação de Antonio César de Holanda (Alagoas) e Letícia Carolina (Piauí). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RAGn_oU8rs8, acesso 31 de maio de 2022. 26 INTRODUÇÃO Nessas linhas apresento um relato advindo da minha experiência enquanto mulher indígena Pankararu e LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros), mais precisamente bisssexual. Minha contribuição com esse texto, então, não é fornecer uma teoria sobre o que seria ser indígena e LGBT, mas sim prover um relato pessoal de como fui me constituindo, na minha própria trajetória, enquanto indígena que não performa a heterossexualidade. Desse lugar, espero contribuir também com o debate político (de interesse da Psicologia Social) sobre os processos de resistência e afirmação que nós enfrentamos como membros dessa população que é, simultaneamente, a semente da resistência indígena e ainda luta por afirmação e igualdade de direitos, independente da nossa orientação sexual. O território indígena Pankararu, localizado no sertão pernambucano, estende-se pelos municípios de Petrolândia, Tacaratu e Jatobá. Eu nasci na aldeia Brejo dos Padres, aldeia mãe do povo Pankararu, mas cresci e me criei na Aldeia Agreste, onde se encontra meu tronco familiar, onde resido e faço parte da organização social da comunidade - localizada especificamente no município de Tacaratu. Hoje, com 28 anos, sou mãe de Otto27, de 6 anos, casada com Viviane Matos, mulher preta, natural de Salvador, advogada e minha grande parceira de vida. Eu vivi por alguns momentos fora da aldeia, em São Paulo, durante minha infância. Na época, migrei com a minha mãe, que sempre teve em São Paulo a garantia de emprego, mas aos meus 11 anos voltamos para o território Pankararu e daqui não mais saímos. A COLONIZAÇÃO “DEU MUITO CERTO” Coloco-me hoje, então, enquanto uma mulher não hétero, consciente das várias narrativas que marginalizaram ao longo da história a homossexualidade e continuam a marginalizar a diversidade sexual como um todo. Até pouco tempo, havia uma perspectiva patológica de vivermos nossa sexualidade. São gerações de narrativas distorcidas, pecaminosas, vulgarizadas, criminalizadas e alienantes para a grande massa da sociedade. Isso diz pra nós que ainda precisamos investir nesse assunto, especialmente no campo da Psicologia, pois a saúde mental de LGBTs é diretamente afetada por esses entendimentos preconceituosos que afrontam nossos direitos humanos. Na saúde pública, por exemplo, essa ainda é uma questão política importante e pouquíssimo debatida e fomentada amplamente no território nacional e ainda menos nos espaços, territórios e populações tradicionais e originárias. A localidade onde moro, a nossa terra Pankararu, localiza-se há 3km do centro da cidade de Tacaratu-PE, ou seja, muito próximo do meio urbano e não-indígena. Apesar dessa proximidade, nossa cultura e nosso povo guarda suas diferenças do povo de lá, ou seja, dos não-indígenas: o código de visão, a forma de encarar o mundo, de enxergar o mundo, a cultura, entre outros. Nossa forma de se sentir seguro também é diferente do que eles acham que é segurança, e de como fazer para se sentir seguro. Considerando a minha orientação enquanto pessoa bissexual, a questão da segurança representa uma busca muito importante, para que possamos viver a nossa vida em paz, sendo quem somos completamente. Na minha experiência, eu sempre me senti muito mais à vontade para viver minha sexualidade livremente na cidade, mas eu me sinto mais segura como pessoa e como indivíduo, cidadã, dentro do território Pankararu. Isto é, a cidade representava um espaço onde eu “Otto”, episódio da série “Primeiros Anos” do Canal Futura, disponível no YouTube em: https://www.youtube.com/watch?v=4rrFZqCYcxU , acesso 22 de junho de 2022. 27 98 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE encontrava, por exemplo, outras pessoas LGBTs ou lugares e atividades onde esse grupo tinha mais visibilidade e socializam mais facilmente. Isso sempre me causou alguns porquês, fazendo eu me perguntar por que não ter esse sentimento de plenitude dentro do território indígena. Ocorre que sabemos que, infelizmente, a colonização “deu muito certo” no Brasil, produzindo ganhos materiais e simbólicos para o colonizador, que inclusive contaram/contam com efeitos produzidos também entre os povos colonizados. Os nossos mais velhos, até hoje, absorveram muito da cultura cristã, dividida entre: o que supostamente é certo e o que é supostamente errado na forma de se viver a sexualidade, as noções de pecado, de céu e de inferno, etc. Simultaneamente, sabemos que nossa gente teve que “abraçar a cruz” também, incorporando o catolicismo na cosmovisão originária, de modo que hoje preservamos em nossa cultura também a cultura cristã convivendo com nossas crenças próprias. Esse movimento é para nós uma forma de sobrevivência das culturas originárias, que poderiam de alguma forma ser mantidas, fazendo a mesma resistir até o presente e amalgamada com o catolicismo. Aqui entre os Pankararu, por exemplo, a aldeia principal do nosso povo se chama Brejo dos Padres, recebendo esse nome em referência ao período de atuação das Missões Católicas que chegaram aqui. Os padres ocuparam esse lugar, esse espaço, evitando até invasões de outros grupos não-indígenas, como por exemplo os Bandeirantes. Essa história, ao longo dos séculos, foi criando traços na realidade das relações sociais que vivemos hoje na aldeia - como também em outros povos do Nordeste. Infelizmente, é muito notável dentro do território a presença da cultura machista e homofóbica para com os próprios parentes que não performam a heterossexualidade. Isso é muito dolorido. Sofrer discriminação de um desconhecido já é muito traumático, imagine vindo de alguém que chamamos de “parente”. “TIRADA DO ARMÁRIO” O contexto do território é tal que não há anonimato. Todo mundo se conhece, todo mundo sabe de quem você é filho, quem são seus irmãos e o que você faz. Então você não tem anonimato, no sentido de manter uma certa discrição em uma parte da sua existência, de você viver sua vida, de viver sua sexualidade. E quando se é adolescente e está justamente iniciando sua vida sexual e viver suas primeiras ligações afetivas e amorosas, cedo ou tarde, toda a comunidade acaba se envolvendo direta ou indiretamente nessa construção. As inseguranças, medos e conflitos que essa fase já tem “por natureza”, ficam extremamente maiores e mais violentas com o peso de toda uma comunidade julgando e opinando sobre tal vivência. É como um reality sem câmeras, mas muitos olhos e bocas pra ver e falar. Eu como jovem indígena, contei para minha mãe que sentia atração por outras meninas de uma forma muito dolorida. Fui “tirada do armário” numa situação muito constrangedora, de revelação dessa intimidade que os adolescentes ainda estão construindo. Todo mundo se conhecia e a situação envolveu duas, três ou quatro famílias muito próximas. Quais impactos esse tipo de processo gera em jovens indígenas? Eu consigo, hoje, olhar para esse passado e identificar situações de violências relativas à minha sexualidade; por exemplo, quando escutei me dizerem diversas vezes “você não encontrou o homem certo, ai se eu te pego”, como uma coação a estupro mesmo. Numa festa, enquanto dançava uma música de forró com um rapaz da aldeia, ele me disse “se você não ficar comigo, se não tiver relação comigo, vou espalhar pra todo mundo que você é sapatão”. Larguei ele na dança e voltei para meus amigos. Foi nessa situação que o boato se espalhou e tive que contar para minha mãe antes PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 99 que ela soubesse por fofocas. Eu só tinha 14 anos. Nada aconteceu de fato, em termos físicos para comigo/meu corpo, mas são situações que cicatrizam na nossa memória e no nosso pensamento, coisas do tipo que nos marcam tão profundamente que só hoje consigo enxergar como violência. Com o passar do tempo, eu tive oportunidade de começar a trabalhar com produção cultural, então pude conviver com mais pessoas do âmbito das artes, um meio onde estas questões de diversidade sexual foram melhor acolhidas. Comecei a trabalhar com movimentos artísticos aqui no próprio território também, principalmente voltado para a música, quando por muito tempo colaborei com registro de captação28 de pífano (tanto na sua participação no âmbito religioso do cristianismo, como também no âmbito da nossa prática ritual Pankararu). Neste processo, eu consegui me aproximar dos parentes mais velhos, os mestres do pífano, e também me aproximar dos adolescentes, pois tínhamos um projeto de ensino de música. Nesse intercâmbio e na convivência com eles, eu consegui construir relações, tanto com os mais velhos como com os mais novos, e consegui também desmistificar muita coisa que as pessoas tinham como verdades absolutas sobre mim e sobre LGBTs em geral. Pude desmistificar que as pessoas homossexuais não são “desaforadas” ou “agressivas”, e que são sim marginalizadas dentro do próprio território e tudo isso é só um movimento de defesa e proteção. Desfazendo essas visões deturpadas sobre pessoas LGBTs por mais da metade da minha vida, eu acredito então que eu consigo ser meu próprio exemplo aqui. Porém, isso não significa que minhas origens não corroboraram para quem eu sou hoje, ao contrário. Na minha família, temos algumas pessoas ligadas aos movimentos de luta pela saúde aqui na aldeia, aos movimentos sociais. Minha mãe é uma das lideranças do território e foi Agente Comunitária de Saúde por mais de 10 anos. Então, eu cresci com um movimento de políticas públicas de saúde dentro da minha casa, desde criança. Aos 21 anos, terminei o curso de técnico de enfermagem e assumi uma função dentro do meu território, prestando serviço em 3 aldeias, das 14 existentes em Pankararu, onde cobria uma população de mais de 2 mil pessoas, uma função que, para mim, é uma função de confiança, visto que me colocava a entrar na casa das pessoas para fazer atendimentos de promoção à saúde no âmbito da saúde da família, em contexto indígena. Então, por mais de 7 anos trabalhei para a comunidade e com a comunidade, pude construir um outro elo com meus parentes aqui no território, um elo de profissionalismo, respeito e confiança mútua. A partir destes trabalhos de produção, com audiovisual29, com muitos movimentos culturais, tanto de Pankararu e também de Pernambuco, em Tacaratu, com o Côco de Tebei e os Mestres Zabumbeiros, então sempre estive nos circuitos culturais, de saúde, políticas públicas e militância de direitos humanos. Foi a partir dessas experiências que eu tive oportunidade de estar mais junto dos meus e desconstruir preconceitos aqui. Nesse sentido que eu cito o meu eu como exemplo: da luta por desconstruir preconceitos e homofobia a partir de dentro do território. Hoje eu vejo que as meninas de 16 e 17 anos no território seriam as “Bias” de 10 anos atrás, mas hoje elas aparentam um comportamento muito mais seguro de si, muito mais à vontade para ser quem são, para tocarem seus assuntos e para se relacionarem sem aquele estigma negativo - antes difundido pela família num passado próximo. Pesquisa etnomusical ‘Entre Santos e Encantados’, Projeto Zabumbeiros (página no Facebook). Consultar o filme ‘Rama Pankararu’, de Pedro Sodré, produzido por Copa Filmes e Bia Pankararu - também assinando roteiro, produção e atuando como protagonista - lançado em 2022, no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, ainda sem data de estreia no Brasil. Trailer disponível no YouTube. 28 29 100 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Atualmente, a integração e afirmação de pessoas LGBTs no meu território ocorre, na minha perspectiva, de forma mais tranquila nas relações de amizade. As vejo muito mais à vontade, com mais confiança de si, mais propriedade de se colocar publicamente com sua sexualidade. Penso que esse movimento é muito perceptível e ocorre em razão de termos a quem olhar e nos enxergar numa história já vivida antes e entender que: se foi possível para aquela pessoa, pode ser possível pra mim também. No meu caso, quando mais jovem, eu não tinha uma referência em termos de sexualidade não hétero. Não havia modelo algum para eu adotar como minha referência, se assim eu quisesse. Havia, por outro lado, os “fuxicos” (fofocas), comentários sobre a sexualidade de um ou outro parente que se mantinha “dentro do armário”. Não havia uma só pessoa “assumida” que eu tivesse convívio no território. Ou seja, alguém que tivesse, tal qual as pessoas heterossexuais, relacionamentos (homoafetivos) de conhecimento público. Não havia, consequentemente, quem falasse sobre isso de uma forma digna, ou seja, falasse sobre relacionamento homoafetivo com respeito. Esse tipo de relacionamento não estava de forma igualitária colocado nos espaços da saúde pública, da educação, não eram trabalhados diretamente com a comunidade. Não era superado o viés marginalizado, deixando os relacionamentos de LGBTs à margem do convívio em comunidade. As fofocas e os discursos marginalizadores sobre nós, pessoas LGBTs, nos colocam sempre no espaço dos, digamos assim, “excluídos”, onde geralmente é na rua, em praças, bares, becos, à sombra, longe das vistas dos olhares e julgamentos. Nesses espaços onde nosso anseio por liberdade e a pouca maturidade com que chegamos lá, acaba sendo muito perigoso para qualquer jovem se envolver com uso abusivo do álcool e outras drogas, além de violências físicas, sexuais, emocionais e nos distanciando ainda mais do convívio saudável e respeitoso em comunidade - sem termos a chance de mostrar como podemos agregar positivamente à toda organização social a qual fazemos parte. Às vezes, coloca-se um sentimento de que seria melhor não fazer o enfrentamento, seria melhor ir para outro lugar. É nessa fuga que muitas vezes se perde o elo do indivíduo com o coletivo. CONSIDERAÇÕES FINAIS: HONRAR A PRÓPRIA NATUREZA No caso de LGBTs indígenas, nós estamos também levando o nome do nosso povo, da nossa tradição, da nossa cultura e reafirmando que, inclusive, homofobia e machismo não são próprios da cultura indígena. Essas formas de patologizar e discriminar não são originárias nossas. Tudo isso “veio na caravela”, ou seja, foi imposto aqui por meio do processo de colonização. Afinal, temos registros de relações homossexuais/homoafetivas em vários povos da América Latina no decorrer da história pré-colonial. O nosso maior exemplo, a nível de registro, é o indígena Tupinambá Tibira. Tibira foi assassinado no Maranhão em 1613 ou 1614 executado explodido na boca de um canhão para servir de exemplo aos demais indígenas que tinham relações afetivas e sexuais com outros do mesmo sexo. Esse seria o castigo. Numa época em que o conceito de “gay” e “homossexual” sequer existiam, Tibira é o primeiro caso em que temos registro de condenação à morte, com aval da igreja, por vivenciar relações homoafetivas, onde, na verdade, ele apenas vivia a sua própria natureza. Quando escutamos de parentes mais velhos colocações como “ah, no meu tempo isso [a homossexualidade, por exemplo] não existia” penso que tentam colocar as sexualidades não hétero como algo novo que teriam surgido não no passado, mas como se fossem uma produção da Modernidade e da juventude enquanto, na verdade, as mais diversas vivências de afetividade, entendimento familiar e sexualidade sempre existiram. Ocorre que, com toda a dominação colonial, infelizmente nós fomos esquecendo de honrar a nossa própria natureza, pois o indígena em essência é a própria natureza. A liberdade de vivê-la plenamente foi-nos tirada lentamente a cada bala de canhão, a cada crucifixo, a cada violência e violações dos nossos territórios, corpos, línguas, modos PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 101 de vida e de como até hoje somos empurrados a escolher entre ser o que somos ou performar o que a sociedade, indígena e não-indígena, aceita como normal. Nada mais coerente para um indígena do que honrar sua própria natureza. A minha natureza é a minha consciência de desejo e concretizar o mesmo, é respeitar o meu corpo, é ter uma vida afetiva e sexual plena e completa diante daquilo que julgo adequado a mim. Por consequência, minha saúde mental e emocional está ligada diretamente ao viver plenamente essa verdade e isso, inclusive, é saúde. Quando se rompe um desses laços, a gente compromete significativamente a vida e a saúde de qualquer pessoa - e um indígena adoecido psicologicamente é sinal de que todo o povo está adoecido também, sejam em aspectos sociais ou culturais, econômicos, de sustentabilidade, enfim, quando um indivíduo indígena adoece, todo coletivo adoece junto. 102 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS DE MÃES-SOLO À LUZ DO SOFRIMENTO ÉTICO-POLÍTICO NA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL Valentina Cabral Lopes dos Santos Claudia Aline Soares Monteiro INTRODUÇÃO Em meados do século XIX, a maternidade no contexto ocidental é encarada como o papel mais importante na vida de uma mulher (BADINTER, 1985). A maternidade ainda hoje possui uma imposição social (maternidade compulsória), contudo ela pode ser vivenciada de diferentes modelos, inclusive sozinha. (SOUZA; FRANCA; DE DEUS, 2019) Ao longo do tempo, houve um crescimento significativo de mães-solo no país. Mas o que significa ser mãe-solo? Em contraponto ao termo mãe-solteira, historicamente utilizado para identificar as mulheres que criam os seus filhos sozinhas, a expressão mãe-solo tem se popularizado na sociedade atual como uma tentativa de desconstruir a definição pejorativa e relacionada ao estado civil da mulher com o fato de ser mãe. Mudar a forma de se referir a essas mulheres visa, desta maneira, dissolver as nuances de preconceito com as genitoras. Contudo, por conta dos aspectos sócio-históricos, ainda há uma série de estigmas vinculados ao assumir a maternidade-solo (SILVA; CASSIANO; CORDEIRO, 2019). Com isso, aponta-se que as principais dificuldades de ser mãe-solo no Brasil estão na tentativa de equilibrar trabalho e maternidade, além da solidão sentida e do pouco tempo para si, focando na família e na sobrevivência da mesma. Ressalta-se período pandêmico afrouxou ainda mais as desigualdades sociais pertencentes a este modelo familiar nas mais diversas áreas da vida. Com relação aos dados específicos das famílias monoparentais, de acordo com IBGE (2019), pela pesquisa “Análise das Condições de Vida da População Brasileira”, cerca de 63% das famílias comandadas por mulheres negras sem cônjuge e com filhos de até 14 anos vivem com montante de R$ 420,00 reais, o mesmo recorte cai para 39,6% abaixo da linha da pobreza para famílias sob o comando de mulheres brancas. As concretudes da vida enfrentadas por essas mulheres nos aspectos socioeconômicos fazem com que muitas estejam em condições de vulnerabilidade social de pobreza e marginalização. Desse modo, a pesquisa se justifica, primeiramente, por fatores pessoais em que eu sou uma filha da mãe, tendo acesso frente a frente a uma realidade de dificuldades muito comum nas diferentes famílias monoparentais. Em sequência, por conta do cenário social, quando se trata da maternidade-solo, torna-se ainda mais dificultoso o acolhimento dessa família pela sociedade, e cabe a Psicologia discutir e se ocupar desses lugares e questões, possuindo importância social, econômica e política. O principal objetivo dessa investigação é compreender a vivência da maternidade-solo de mulheres participantes do Clube de Mães Caiane Mateus à luz da categoria sofrimento ético político em uma perspectiva interseccional. Outro objetivo fundamental foi de identificar qual a visão sobre a maternidade-solo para cada uma das participantes. Dessa forma, havia também uma perspectiva de investigar os modos e meios de vida dessas mulheres que vivenciam a maternidade-solo. Por fim, como último objetivo da vigente pesquisa foi de analisar quais as maiores mudanças psicológicas e sociais após ser mãe-solo na vida dessas mulheres. A partir disso, o problema de pesquisa é expresso pela seguinte pergunta: Como é a vivência da maternidade-solo, considerando a categoria sofrimento ético-político e a perspectiva interseccional, na vida de mulheres do Clube de Mães Caiane Mateus? Este artigo encontra-se organizado em uma seção de estudos bibliográficos, onde pôde-se refletir e discutir a maternidade a partir dos referenciais teóricos: sofrimento ético político de Bader Sawaia (1999) e a ferramenta de análise da interseccionalidade. Posteriormente, apresenta-se o método utilizado para pesquisa, os resultados e as discussões propiciados, além das considerações 104 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE finais. Assim sendo, a partir das questões introduzidas, dar-se-á como foco principal a construção das múltiplas nuances para o gênero feminino que vive a maternidade-solo. A MATERNIDADE E SUAS IMPLICAÇÕES PSICOSSOCIAIS No século XVIII, com o aumento da mortalidade infantil na Europa, o governo tenta mudar o cenário de crescimento populacional através de um discurso ideológico, com foco na amamentação, em que fossem exaltadas as mães que se dispusessem aos cuidados dos filhos, em troca de um reconhecimento social. No Brasil colônia, uma roupagem do discurso religioso e político é imbricada, para que houvesse um projeto demográfico de ocupação dos vazios das terras recém-invadidas, logo, dentro da lógica, seria necessário os cuidados e amamentação materna (BADINTER, 1985). Já na perspectiva da população negra, desde o sequestro advindos do continente africano para utilização de forma exploratória e de dominação como mão de obra barata e sexual, o lugar social do negro é tido como inferior frente aos brancos. Todo esse processo de construção da imagem do negro, reverbera principalmente para as mulheres negras, que eram submetidas a exploração até de seu próprio corpo. Com esses abusos sexuais, muitas mulheres negras engravidaram dos seus senhores, esses bebês acabavam sendo vendidos ou não assumidos. Dessa forma, para as mulheres negras, a maternidade fora negada e seu corpo transfigura-se em produto dentro do comércio de escravos, para tornar possível a apropriação da sua capacidade de reproduzir e amamentar (DAVIS, 2016). Com a história da maternidade, percebe-se que o maternar incide em diferentes formatos para diferentes mulheres, seja por conta de sua cor ou classe. Contudo, no geral, as problemáticas que envolvem as mulheres cis-gênero mães-solo com frequência estão imbricadas em condições socioeconômicas de difícil estado. Inevitavelmente, a estrutura vivencial brasileira, corroborada pelo atual governo, é demarcada pelo complexo acesso às políticas públicas efetivas, retirada parcial e total de direitos de maneira progressiva e políticas neoliberais que acentuam o controle em massa de uma população que sofre constantemente com altas cargas laborais e baixos níveis de remuneração. Dessa forma, traz-se o conceito de sofrimento ético-político da Bader Sawaia (1999) através da dialética inclusão/exclusão, que retrata acerca das desigualdades em relações verticalizadas de poder, utilizando-se mecanismos de controle social para manter esse movimento de um indivíduo inserido, porém não incluso e culpabilizado. Com isso, esse sofrimento atravessa sentimentos de afetividade através de campos singulares de cada sujeito onde há um entrelace ao social. Na dialética inclusão/exclusão, trata-se “não [somente] de um sofrimento de ordem individual, proveniente de desajustamentos e desadaptações, mas um tipo de sofrimento determinado exclusivamente pela situação social da pessoa, impedindo-a de lutar contra os cerceamentos sociais” (BERTINI, 2014, p. 62). Dessa forma, a autora explicita que, A categoria analítica sofrimento ético-político abrange as múltiplas afecções do corpo e da alma que mutilam a vida de diferentes formas (...). Portanto, o sofrimento ético-político retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade.” (SAWAIA, 1999, p.104) Com isso, percebe-se que a análise da exclusão a partir do sofrimento ético-político possibilita captar as diversas nuances vivenciais da pessoa que está rotineiramente no espaço do não lugar (presença-ausência). Com essa categoria analítica será possível ampliar visões desse sofrimento éti- PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 105 co-político, isto é, dessas mulheres mães-solo cada vez mais empobrecidas e afastadas das políticas públicas afirmativas através da dialética inclusão/exclusão. À vista das desigualdades investigadas, a saúde mental das mães-solo ainda é pouco problematizada e não há ações afirmativas especificas para esse tipo de maternidade. Segundo Oliveira, Pereira e Rolim (2021, p.7), poucos estudos se propuseram a investigar de forma mais abrangente os fatores psicossociais e suas implicações relacionadas à maternagem solo propriamente dita. Mas, em estudo descoberto pelas autoras, realizado por Liang, Berger & Brand (2019, p.260), foram encontradas evidências de que esse tipo de maternagem é “um fator de risco comum para a depressão, ansiedade e estresse” à mulher. Torna-se ainda mais complexa essa análise quando a visão macro expande-se pela interseccionalidade, que é uma ferramenta analítica que amplia esse olhar ao vivencial. A interseccionalidade é um instrumento teórico-metodológico que propõe a inseparabilidade estrutural entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado. É evidente que as mulheres negras, principalmente as mais pobres, são repetidas vezes atingidas pela sobreposição de gênero, raça e classe (AKOTIRENE, 2019). Carla Akotirene (2019), autora brasileira do livro “Interseccionalidade” da coleção “Feminismos Plurais”, situa suas perspectivas a partir do feminismo decolonial e menciona sua visão do conceito enquanto “a identidade da qual participa o racismo interceptado por outras estruturas” (p.48). Nessa visão, a interseccionalidade sugere que raça “traga subsídios de classe-gênero e esteja em um patamar de igualdade analítica” (p. 36). Pois, tal perspectiva teórica “mostra mulheres negras posicionadas em avenidas longe da cisgeneridade branca heteropatriarcal” (p. 30). Sendo assim, utilizar a interseccionalidade como um prisma, é analisar de forma imbricada às opressões estruturais, de modo que elas não são somadas, já que são indissociáveis. Outras autoras que estudam a temática são Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge através do livro também intitulado “Interseccionalidade” (2021), para tratar as desigualdades sociais advindas de raça, classe, gênero, sexualidade, capacidade e etnia. Para estas autoras decoloniais, o conceito de interseccionalidade “fornece uma estrutura de interseção entre desigualdades sociais e desigualdade econômica como medida da desigualdade social global” (p.34). Isto é, ao focar em raça, gênero, idade e estatuto de cidadania, o conceito altera o modo de pensarmos os principais indicadores de econômica, como renda. Dessa forma, a interseccionalidade é uma práxis crítica que precisa ser reiterada sempre nas análises dos fenômenos psicossociais e políticos contemporâneos. Levando-se em consideração, dessa forma, o sofrimento ético-político com o olhar da interseccionalidade, as questões explanadas teoricamente acabam sendo adversidades enfrentadas cotidianamente por mães-solo, que ganham ainda mais potência a depender do lugar social, de classe e de cor em que esta mulher está inserida. Para além disso, o Estado não providencia políticas públicas mínimas que facilitem a criação das crianças, tais como creches públicas e democráticas, escola em horário integral e transporte escolar por exemplo, o que dificulta a saída de grande parte das famílias da marginalização. Tudo isso reverbera em frustrações e angústias que atravessam toda a subjetividade dessa pessoa e repercutem seriamente no âmbito psíquico dessas mulheres, e até em certos casos em adoecimento mental. METODOLOGIA Diante do exposto, o presente artigo foi desenvolvido a partir da pesquisa de campo de abordagem qualitativa descritiva que procura “o aprofundamento de uma realidade específica” (PRODANOY, 2016, p. 59). É imprescindível mencionar a pesquisa obteve parecer favorável pelo Comitê 106 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE de Ética da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), de nº 4.900.034. Todas as mulheres participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), para que pudessem estar informadas sobre os objetivos do estudo. Além disso, todas as participantes foram asseguradas em sua privacidade, sendo utilizados nomes fictícios criados pela pesquisadora para essa proteção. Toda a conduta profissional da pesquisa está ancorada no Código de Ética Profissional do Psicólogo e na Resolução Nº 466 de 12 de dezembro de 2012, além das normas da resolução 510/16 da Comissão Nacional de Saúde. As participantes deste estudo foram 5 (cinco) mulheres adultas cis-gênero que tiveram filho(s) e assumiram a maternidade de maneira solitária, em situação de vulnerabilidade socioeconômica, com filhos inscritos na Creche Comunitária do Clube de Mães Caiane Mateus, na cidade de São Luís no estado do Maranhão. Estas são mulheres de 28 (vinte e oito) anos a 49 (quarenta e nove) anos, possuindo de 1 (um) a 3 (três) filhos, autodeclarando-se 3 (três) como pardas e 2 (duas) como negras, a maioria com escolaridade de ensino médio completo, com renda média de 1 (um) salário mínimo e em sua maioria utilizando de Bolsa Família ou Auxílio Emergencial. Além disso, muitas dessas mulheres são transpassadas pelas vivências de residirem em área periférica da cidade. Incorpora-se nessa pesquisa o ser periférica como Silva (2020, p.65) se apropria, “a experiência de estar num território plural em termos de classe e raça”. É importante registrar que Rita, Tereza, Maria, Wanda e Helena possuem sua própria história de luta e, mesmo com esse breve resumo do perfil das participantes, obtido a partir do questionário aplicado, não há dimensões para explicar suas histórias, narrativas e memórias. Os materiais que foram utilizados, além dos materiais básicos como caneta, foram uma prancheta de acrílico, para apoio dos papéis; e um gravador de voz digital (instalado como aplicativo de celular) para que pudesse haver a captação da voz das participantes individualmente e de forma grupal. Além disso, na oficina grupal ocorreu a utilização de recursos expressivos, tais como, lápis de cor, giz de cera, tintas, pinceis, balões, massa de modelar, tesoura, cola, fitilhos e forminhas. É válido ressaltar também que, por estarmos em um momento pandêmico, álcool em gel e máscara foram materiais disponibilizados e sua utilização foi obrigatória. A análise foi realizada a partir do conteúdo falado nas duas etapas da pesquisa: 1ª fase) Questionário sociodemográfico com Entrevistas iniciais individuais e a 2ª fase) Oficina de Conexão criativa com as participantes da pesquisa. Inicialmente, após a leitura e assinatura do TCLE foi aplicado um questionário colhendo os dados sociodemográficos da participante. Posteriormente, foi realizada uma entrevista inicial semiestruturada com cada mulher, que constavam perguntas relacionadas à maternidade e os efeitos psicossociais na vida dessas mulheres. Das 05 (cinco) entrevistas individuais, 03 (três) foram realizadas de modo presencial, em local adequado (Escola Comunitária Caiane Mateus). Havendo maiores necessidades com relação à pandemia e pela própria escolha das participantes, 02 (duas) entrevistas foram realizadas de modo online pela plataforma Google Meet. Todas as entrevistas foram transcritas posteriormente pela pesquisadora e enviadas de forma privada a cada uma das participantes, que concordaram com todo o conteúdo descrito. Já a segunda etapa, surge a ideia de realizar uma Oficina de Conexão Criativa, que veio por meio dos escritos de Natalie Rogers, filha de Carl Rogers, quem desenvolveu a Abordagem Centrada na Pessoa (ACP). Na Terapia Expressiva, combina-se recursos expressivos, como movimentos corporais, imaginação guiada, comunicação verbal e não-verbal, com o objetivo de facilitar a conexão aos processos de expressão, consciência de si e criatividade. A Oficina de Conexão Criativa, iniciou-se com um momento de relaxamento. Em seguida, foi realizado um exercício de apresentação utilizando cores. Após esse momento, foi realizada atividade sobre a vivência da maternidade-solo, utilizando recursos expressivos partindo da pergunta “O que representa ser mãe-solo para você?”. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 107 Ao final, cada uma demonstrou o que foi possível ser feito e explicou sua visão sobre a expressão artística feita, houve também um breve diálogo sobre assuntos transversais a esse tipo de maternância. Quanto ao procedimento metodológico, Bardin (1977) sugere um modo de análise que se divide em três momentos: a pré-análise, a exploração do material, e o tratamento dos dados e interpretação. A primeira etapa denominada de pré-análise, também conhecida como “leitura flutuante”, é o contato inicial do pesquisador com o material a ser analisado. A segunda etapa designada como exploração do material, ressalta o trabalho de categorização dos conteúdos a partir da análise temática de cada categoria. Nesse momento, a partir dos objetivos específicos da pesquisa foram categorizadas as três unidades de registro, são elas: Visão sobre maternidade-solo; Maiores mudanças psicológicas e sociais após ser mãe-solo; Modos e meios de vida; e através destas, deu-se categorias temáticas prévias. Na terceira e última etapa denominada tratamento dos dados e interpretação, consiste na realização da inferência e da interpretação dos conteúdos que foram categorizados dentro do conhecimento teórico do sofrimento ético-político e da perspectiva interseccional acerca da maternidade-solo, de modo a atribuir significados mais amplos aos conteúdos analisados. Dessa forma, das 13 (treze) categorias temáticas prévias restaram 04 (quatro) categorias temáticas que emergiram através dos conteúdos falados em entrevista e em oficina grupal. As categorias de análise encontradas nesse estudo foram: Sobrecarga, Rede de apoio, Fonte de sustento e Fome. Estas serão melhor explanadas a seguir. DIÁLOGOS ACERCA DA MATERNIDADE-SOLO: UM OLHAR VIVENCIAL Elucida-se nesta seção os resultados e discussões respectivos a pesquisa realizada com as 05 (cinco) mães-solo participantes tanto das entrevistas como de oficina grupal. Com relação a 1ª fase do questionário sociodemográfico e entrevistas, é cabível situar que, apesar de ter sido um primeiro momento, as participantes conseguiram não somente se expressar com facilidade, como também demonstraram estar confortáveis para falar de situações muito pessoais e, por vezes, muito angustiantes. Acredita-se que havia a necessidade de escuta, principalmente por não existir espaços/pessoas acolhedoras que possam estar preparadas e disponíveis para ouvir as demandas dessas mães-solo enquanto sujeitos que passaram por inúmeras violações. Já na Oficina de Conexão Criativa, destaca-se um ambiente de emancipação, acolhimento e identificação, que foram sendo construídos à medida em que aquelas mulheres tiravam as “máscaras” que utilizam na sociedade enquanto forma de proteção de si mesmas. Iniciando a análise das categorias temos a sobrecarga, que é um aspecto que surge desde o início da pesquisa, pois está muito intrínseco aos papeis exercidos pelo gênero feminino na sociedade. No entanto, com a maternidade-solo, pode-se dizer que se eleva o nível de responsabilidade e atribuições, consequentemente, a sobrecarga também aumenta. De acordo com Pereira e Leitão (2020, p. 06), com relação a essa divisão desigual dos papéis de gênero, “trata-se de uma distribuição pautada numa visão naturalizada de comportamentos vistos como masculinos e femininos, em que se supõe que à mulher cabe uma maior responsabilidade no que diz respeito aos cuidados com os filhos”. Com isso, pode-se perceber que se torna cansativo ter que dar conta do trabalho, cuidado com os filhos, atentar-se ao lar e outras tantas tarefas, como podemos perceber na seguinte fala: “Aí é o tempo que tenho pra mim, pra cuidar, pra limpar a casa até a hora de ir buscar ela que é a hora que ela chega da escola, aí já é o tempo todo só pra ela” (Maria, 38 anos – Entrevista). 108 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Nesse cenário, o que se identifica são mulheres sobrecarregadas, infelizes, excluídas e culpabilizadas, “já que quanto mais distantes do papel de cuidadoras, mais são tidas como negligentes e egoístas. Logo, a culpabilização se torna inerente à maternidade” (Souza; Franca e de Deus, 2019, p. 03). Revela-se ainda a coragem das mulheres participantes em admitir a sobrecarga vivida, e que isso não invalida os afetos sentidos por ser descendentes, mas demonstra os efeitos alarmantes de um sofrimento ético-político invisibilizado à saúde integral (física e psicológica) da mulher mãe-solo. Outro aspecto mencionado foi a importância de uma rede de apoio. Ter uma rede de apoio e vínculo efetivo com outras pessoas é essencial para a que a maternagem-solo possa acontecer de forma mais tranquila. Sabe-se das sequelas decorrentes da sobrecarga nessa maternidade e o apoio social vem no intuito desse afago a essa mulher. Segundo Rapoport e Piccinini (2006) uma rede de apoio pode ser formada pela família extensa e até por amizades, mas é essencial destacar o simbólico no papel de cuidado reproduzido por outras mulheres (mães, tias, primas). “Ah, é um apoio grande. Muito mesmo! Porque as vezes quando é nas folgas delas [primas], elas ficam com as minhas filhas pra eu trabalhar... porque, às vezes, eu trabalho até dia de final de semana, até feriado, aí elas [minhas primas] vêm ficam com elas [minhas filhas]” (Rita, 30 anos - Entrevista). Infelizmente, nem todas as participantes conseguem sentir-se com uma boa rede de apoio, pois nem sempre é possível seja para os pais ajudar ou até mesmo pagar algum serviço especializado. Elas colocam ainda o quão importante seria se o genitor cumprisse com as suas obrigações. “Eu como mãe e como mulher sinto falta do apoio de ambos, da família dele e do pai, até porque me ajudaria muito se eu tivesse esse apoio. Às vezes eu fico muito restrita as coisas que eu tenho que fazer por eu não ter muitas vezes com quem deixar as crianças. Quando o pessoal aqui em casa não pode me socorrer, teria que ter uma segunda opção que seriam eles e eu não tenho esse apoio deles [família paterna das crianças] e nem do pai [das crianças]” (Tereza, 28 anos – Entrevista) Já na categoria fonte de sustento, pode-se observar a respeito das adversidades cotidianas principalmente concernentes com a área econômica. Na atualidade, as desigualdades tornaram-se cada vez mais acentuadas, o que inclui fortemente a família monoparental. Embora haja uma luta diária, tendo o propósito de educar, cuidar para as crianças se desenvolverem, define-se como uma “batalha” frustrante, pois não há tantas oportunidades às mães-solo. A maioria das mães-solo participantes dessa pesquisa reafirmam as dificuldades de sustentar um lar. “(...) Dar mais oportunidades pros meus filhos... e eles querem também muito, eu prometi, sabe?... e assim eu sempre disse que as coisas iam melhorar depois do curso, e aí, eles sempre perguntam porque agora terminou o curso, mas o mercado de trabalho tá difícil” (Tereza, 28 anos - Oficina de grupo). O sofrimento ético-político nas desigualdades sociais destacado por Sawaia (1999), fundamenta que não são aleatórios os movimentos de exclusão e inclusão presentes no neoliberalismo. Por conta disso, os sujeitos em situação de exclusão social continuarão sendo manipulados para manter o funcionamento do modelo de produção atual, explorando-se sua força de trabalho. Este sofrimento proveniente das formas injustas das relações econômicas afirma que os males dessa relação de poder recaem na vida dos sujeitos, resignando a um desenvolvimento econômico irrealizável e prejudicando a saúde socioemocional e afetiva das mães-solo (HENRIQUE, 2016). Por fim, a última categoria de análise traz, de forma latente, o sofrimento ético-político experienciado por 3 (três) mães dessa pesquisa: a fome. Grande parte das vezes, o sofrimento ético-político de mães-solo é perpassado por um lugar de gênero, raça, classe, idade e territorialidade, PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 109 estando relacionado muito mais com questões concretas como fome e pobreza do que de uma psicologização de um sofrimento individualizante. Dessa forma, as implicações psicológicas do fenômeno que é passar fome podem ser diversificadas. Percebe-se nas falas a seguir como a pobreza é intermédio para vivências dolorosas. “Assim, quando tinha comida, eu não comia. Eu não comia... Aí eu ia lavava louça, lavava roupa pra deixar a minha comida, pra eles terem o que comer de noite, porque se eu fosse comer eles não iam ter. Eles perguntavam, “mãe, não vai comer?” e eu dizia que ia depois, e aí passava e não comia.” (Helena, 49 anos - Oficina de grupo). “Aí foi chegando a hora do almoço, aí eu levantei e fui vê no armário e só tinha arroz. Aí fui botei o arroz no fogo, botei no prato dos três e chamei pra almoçar. Quando eles chegaram na mesa (voz embargada) eles falaram assim “mãe, cadê o resto? Hoje só tem arroz?’ (choro) ‘é meu filho hoje só tem arroz, mas a mamãe vai dar um jeito, você come o arroz agora e de noite mamãe dá um jeito’” (Wanda, 28 anos - Oficina de grupo) A fome e a pobreza são partes da experiência diária de algumas dessas mães. Com isso, os impactos negativos das transformações em andamento do novo capitalismo deixam indícios a respeito da população mais pobre: o subemprego e o desemprego; a precariedade laboral e intermitente, influenciando diretamente no acesso à saúde e debilidade da mesma; o desconforto da moradia precária e insalubre, a alimentação insuficiente, a fome, a fadiga, a resignação, a revolta, a tensão e o medo são sinais que muitas vezes anunciam os limites da condição de vida dos excluídos e subalternizados na sociedade. Estes sinais expressam também o quanto a sociedade naturalizou e banalizou a pobreza e a fome das classes sociais mais baixas (YAZBEK, 2012). Dessa forma, a categoria de análise “fatalismo” de Martin-Baró esclarece muito essa maneira de se situar na vida. Para o autor (2017, p. 175) o fatalismo “é a compreensão da existência humana em que o destino de todos está predeterminado e todo fato que ocorre de modo inescapável”. Em vista disso, observa-se que essas mães-solo muitas vezes naturalizam o sofrimento ético-político sofrido por ser o modo encontrado para a continuação dessa maternidade. Com essa naturalização, os adoecimentos psíquicos também são minimizados, principalmente porque a essa camada da população os espaços de cuidado e acolhimento em saúde mental ainda são negados. CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa, em síntese, visou compreender a vivência da maternidade-solo de mulheres participantes do Clube de Mães Caiane Mateus à luz da categoria sofrimento ético-político em uma perspectiva interseccional, a partir de questionário sociodemográfico, entrevistas semiestruturada individuais e uma oficina de Conexão Criativa. O primeiro tópico traz um pouco dos referenciais teóricos da categoria analítica sofrimento ético-político de Sawaia (1999) e a visão da interseccionalidade. Posteriormente, apresenta-se os dados coletados e faz-se uma breve discussão através das 04 (quatro) categorias analíticas: Sobrecarga, Rede de Apoio, Fonte de sustento e Fome. Esta investigação tornou-se de suma importância por se defrontar com 05 (cinco) realidades que, em semelhanças e diferenças, contribuem para a abrangência da compreensão das famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Conclui-se esse artigo manifestando a percepção de que o sofrimento ético-político vivenciado por mães-solo são advindos da falta de uma maior e completa rede de apoio e de políticas assistenciais, de maneira geral, específicas para esse tipo de maternagem; da responsabilidade exclusiva nos cuidados com os filhos, gerando uma sobrecarga; da falta de oportunidades dentro de um sistema neoliberal que explora e não beneficia as classes mais baixas; 110 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE e de processos de resignação, fome, fadiga próprios de um contexto sociocultural que exclui e marginaliza essas famílias. Tudo isso pode se presentificar de forma mais latente a depender de marcadores sociais como gênero, raça, classe, idade e territorialidade, que fazem com que estas mães-solo estejam ainda mais distantes de ações afirmativas que as possam contemplar. Dessa forma, deseja-se que esse trabalho possa salientar meios e modos concretos de suporte em todas as áreas da vida dessas mulheres mães-solo. Torna-se essencial que ocorra a garantia de direitos pelo Estado. Além disso, necessita-se de um posicionamento ético e crítico da Psicologia, na construção de serviços democráticos e públicos que possam escutar e acolher as mães-solo, sendo uma possibilidade a realização de ações em formato grupal, posto a natureza coletiva do sofrimento ético-político das populações vulnerabilizadas. Portanto, afirma-se que não há um esgotamento do tema neste trabalho, o que sugere novas produções científicas sobre a temática, como as violências físicas e psicológicas sofridas por ex-parceiros/genitores e como repercute na saúde mental das mães-solo e dos filhos, além da questão do aborto para as mães-solo, tendo em vista a ausência do genitor. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 111 REFERÊNCIAS AKOTIRENE, Carla (2019). Interseccionalidade / Coleção Feminismos Plurais - São Paulo: Pólen. BADINTER, Elisabeth (1985). Um amor conquistado: o mito do amor materno; Rio de Janeiro: Nova Fronteira. BARDIN, L (1977). Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70. BERTINI, F. M. A. (2014). Sofrimento ético-político: uma análise do estado da arte. São Paulo: Psicologia & Sociedade. BILGE, Sirma; COLLINS, Patrícia Hill (2021). Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo. DAVIS, Angela (2016). Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo. HENRIQUE, M. A (2016). A Psicologia sócio-histórica, cotidiano e afetividade no enfrentamento do sofrimento ético-político / Trabalho de Conclusão de Curso – Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia. LIANG, Linda; BERGER, Ursula; BRAND, Christian (2019). 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Rio de Janeiro:_IBGE. 112 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE SOUZA, Andressa da Silva; FRANCA, Kamilla Matos Cardoso; DEUS, Yasmim Ellen Rodrigues de (2019). MATERNIDADE COMPULSÓRIA: implicações na vida da mulher contemporânea. Barreiras: 17o Congresso de Iniciação Científica da FASB. YAZBEK, Maria Carmelita (2012). Pobreza no Brasil contemporâneo e formas de seu enfrentamento. Serviço Social & Sociedade. ZANELLO, Valeska; PORTO, Madge (Org.), (2016). Aborto e (não) desejo de maternidade(s) :questões para a psicologia. Brasília: Conselho Federal de Psicologia. PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 113 SOBRE AUTORAS/ES Bia Pankararu Nascida num hospital de Paulo Afonso, Bahia, mas crescida em Pernambuco, no território indígena Pankararu, município de Tacaratu. Bia tem 28 anos, mãe de Otto, sertaneja e ativista dos direitos humanos. Atua na produção cultural no Estado de Pernambuco desde a adolescência realizando diversos projetos de pesquisa e fomento à cultura tradicional e contemporânea. Atuou por mais de 7 anos na saúde indígena como técnica em enfermagem compondo a equipe multidisciplinar do Pólo Base Pankararu. Também é comunicadora, produtora audiovisual, escritora e seu trabalho mais recente é o longa-metragem “Rama Pankararu”, primeiro filme onde assina roteiro e o protagoniza como atriz. E-mail: beatrizpankararu@gmail.com Bruna Gabriella Santiago Silva Graduada em História pela Universidade Federal de Campina Grande. Mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe. Doutoranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Autora do livro “O Pensamento de Angela Davis: perspectivas de liberdade e resistência”, 2021. Pesquisa relações de raça e gênero no Brasil e Estados Unidos. E-mail: leituraspretas@gmail.com. Casé Angatu (Carlos José Ferreira dos Santos) Indígena e morador no Território Tupinambá em Olivença (Ilhéus/BA) na Taba Gwarïnï Atã. Pós-Doutorando em Psicologia na UNESP/Assis/SP, Doutor pela FAU/USP, Mestre pela PUC/SP e Historiador (UNESP). Docente no Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal do Sul da Bahia (PPGER/UFSB) e na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/Ilhéus/BA). E-mail: angatucase@gmail.com Claudia Aline Soares Monteiro Doutora em Psicologia (2004) pela Universidade de Brasília. Atualmente, desde 2009, Servidora Pública Docente Associada II do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus de São Luís. Coordena o Projeto de Extensão “Plantão Psicológico Centrado na Pessoa: democratizando o acesso popular à Psicologia”, desde 2017. E-mail: cas.monteiro@ufma.br PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 115 Fernanda Fernandes Gurgel Doutora em Psicologia Social pela UFRN / UFPB, e estágio doutoral na Universidade Complutense de Madri (Espanha). Professora Adjunta da Faculdade de Ciências da Saúde do Trairí (FACISA/UFRN). Participante da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), vinculada ao Grupo de Trabalho em Psicologia Ambiental. Sócia fundadora da Associação Brasileira de Psicologia Ambiental e Relações Pessoa-Ambiente (ABRAPA). Email: fernandafgurgel@hotmail.com João Batista da Silva Dantas Graduando no curso de graduação em Psicologia pela Faculdade de Ciências da Saúde do Trairí (FACISA/UFRN). Email: joao.silva.110@ufrn.edu.br João Paulo Macedo Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Docente dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar) e da Universidade Federal do Ceará (UFC). Bolsista Produtividade do CNPq. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6624843385034057 - Orcid: orcid.org/0000-0003-4393-8501. E-mail: jpmacedo@ufpi.edu.br João Paulo Pereira Barros Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Currículo Lattes: http://lattes. cnpq.br/0351156693555523. ORCID: 0000-0001-7680-576X. E-mail: joaopaulobarros@ufc.br José Fernando Andrade Costa Doutorado em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: jfacosta@uefs.br. 116 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE Koram Xucuru-Kariri (Maria Eliete Alves de Souza) Filha de parteira, neta de mestre de raiz do povo Xucuru-Kariri de Palmeira dos Índios-Alagoas. Desde os quatorze anos acompanha sua mãe na promoção de saúde do seu povo. Hoje Koran é mezinheira, mulher que usa as ervas e alimentação como cura; é também terapeuta holística, mestra em reiki xamânico e fitoterapeuta, além de estudante de graduação de Pedagogia da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL). E-mail: koram-xk@bol.com.br Luís Fernando de Souza Benicio Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Currículo Lattes: http:// lattes.cnpq.br/1979920596496521. ORCID: 0000-0002-0765-2568. E-mail: luisf.benicio@gmail.com Natasha Wonderfull Mulher trans, negra, feminista e militante da defesa dos direitos humanos no estado de Alagoas. Atua na área da saúde há mais de dez anos como técnica de enfermagem e integra a equipe do Consultório na Rua. É representante da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e do FONATRANS (Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros). É fundadora da ACTTRANS (Associação Cultural de Travesti e Transexuais de Alagoas) e do Canal Wonderfull, o primeiro canal trans com o objetivo de apresentar o cotidiano e os enfrentamentos de pessoas trans em Alagoas. É conselheira do Conselho LGBT do Estado de Alagoas e artista performista diretora do Transhow. E-mail: esmeraldina-5@hotmail.com Samir Pérez Mortada Pós-doutorado e doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade de São Paulo (IP-USP). Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), em Salvador. E-mail: spmortada@gmail.com. Sirlene Pereira Bispo Graduanda em Psicologia na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). E-mail: sirlenepbispo1@gmail.com PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE 117 Suzana Santos Libardi Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGP-UFRJ), professora adjunta da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) - Campus do Sertão, coordenadora do Núcleo Alagoas da ABRAPSO (biênio 2020-2021). E-mail: suzana.libardi@delmiro.ufal.br Tathina Lucio Braga Netto Mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas, psicóloga da Pró-Reitoria Estudantil da Universidade Federal de Alagoas, conselheira no Conselho Regional de Psicología de Alagoas (CRP/15 -IV Plenário -2019 a 2022), coordenadora da Comissão de Direitos Humanos do CRP/15 (2019 - 2022), coordenadora do Núcleo ABRAPSO (2021 - 2023). E-mail. tathina.netto@palmeira.ufal.br Valentina Cabral Lopes dos Santos Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus de São Luís. Pesquisa acerca de estudos de gênero, questões étnico-raciais e interseccionalidade. E-mail: valentina.lopes@discente.ufma.br Veridiana Silva Machado Graduada em Psicologia. Doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos pelo Pós-Afro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública; Mestre em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP). Especialista em Psicoterapia Analítica pelo Instituto Junguiano da Bahia. Ativista e coordenadora regional na Articulação Nacional de Psicólogas(os/es) e Pesquisadoras(es) Negras(os/es) – ANPSINEP. E-mail: veridiana.s.machado@gmail.com 118 PSICOLOGIA SOCIAL E LUTA ANTIRRACISTA: REFLEXÕES E ESTRATÉGIAS ÉTICO-POLÍTICAS A PARTIR DA INTERSECCIONALIDADE