KAFKA AN-ÁRQUICO
Andityas Soares de Moura Costa Matos
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CONTEXTOS DO TEXTO: TEMPO DE AN-ARQUIA
O texto italiano Il partito di Kafka foi escrito por Marcelo Tarì entre 2018 e 20191 e originalmente publicado nas
páginas 83 a 105 do primeiro número de 2020 da revista
Pólemos: materiali di filosofia e critica sociale, editada pelo
Departamento de Filosofia da Universidade La Sapienza
de Roma. O artigo compõe um dossiê especial organizado por Valeria Bonacci e Flavio Luzi dedicado ao pensamento de Giorgio Agamben e intitulado Il gesto che resta.
Agamben contemporaneo. Pode-se dizer que a contribuição de Tarì se ajusta muito bem à proposta do dossiê,
dado que desenvolve algumas intuições especialmente
críticas do grande filósofo italiano sem adotar nenhuma
posição servil, simplificadora ou professoral. De fato, são
fundamentais para o entendimento do texto as noções de
forma-de-vida, profanação e arqueologia, ideias positivas e afirmativas de Agamben que, infelizmente, são bem
menos conhecidas do que aquelas de feição negativa que,
1
Conforme comunicação por e-mail de 16 de outubro de 2022.
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como vida nua e estado de exceção, acabaram se ligando
de forma simplista à produção do filósofo.
A proposta de Tarì, como costuma acontecer com
aquelas inspiradas por Agamben, está no limiar entre a
simplicidade e a profundidade, pois pretende, com base
em um pequeno conto de Kafka de 1920 – Zur Frage der
Gesetze (A questão das leis) – nos apresentar uma verdadeira arqueologia da lei e do poder, indicando a natureza
ilusória da primeira enquanto entidade ou coisa, dado
que as leis só existem enquanto produzem efeitos, ou seja,
trata-se muito mais de um fazer e não de uma essência,
diferentemente do que pensam os juristas e os políticos
da maneira mais acrítica que se possa imaginar. Todavia,
a crítica à lei que Tarì apresenta não é mais do que uma
preparação para a sua destituição do poder, lido a partir
de Reiner Schürmann enquanto uma dimensão anárquica, ou seja, privada de fundamento e, na verdade, vazia.
Com efeito, em seu belo e intrincado estudo O princípio da anarquia: Heidegger e a questão do agir,2 depois
de um longo percurso pela história da metafísica – e,
portanto, da linguagem e das formas de pensar, ser e
sentir do Ocidente –, Schürmann nos revela que o poder se funda em um nada, ou melhor, na ilusão daqueles
que, como os “nobres” do conto de Kafka, nos impõem
SCHÜRMANN, Reiner. Le principe d’anarchie: Heidegger et la
question de l’agir. Paris: Seuil, 1982.
2
sua terrível carga como se fosse uma realidade. Schürmann começa por esclarecer que o intuito de seu livro
consiste em repensar a questão entre teoria e prática
sem colocá-la nos termos tradicionais, mas sem também esquecer que, de fato, o agir depende do ser, como
resumiram os medievais na sentença agire sequitur esse.
Tal foi inclusive reconhecido por Gilles Deleuze e Félix
Guattari quando, diante das críticas de que a filosofia de
ambos, de matriz ontológica, não teria uma valência política, afirmaram que o próprio ser, objeto privilegiado
da ontologia, é imediatamente político, dado que “antes
do ser, há a política”.3
Pois bem, Schürmann afirma que an-árquico é o
atuar que não deriva da theoría, tratando-se de um agir
desprovido de arkhé, configuração existencial que só
pôde ser descoberta – mas não tematizada – por Heidegger na época de clausura da metafísica, ou seja, no
tempo histórico – que é o nosso – em que os fundamentos habituais do ser – a cidade perfeita dos renascentistas, o reino celeste de Agostinho, a razão de Descartes,
o consenso pragmático transcendental de Apel etc. – se
revelaram enquanto meros esquemas atributivo-participativos sem conteúdo, não se tratando, como pretendia
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Trad. Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro:
34, 1996, p. 78.
3
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10
a tradição, de princípios gerais e universais, mas meros
princípios epocais e locais.
A partir dessa compreensão surge uma tarefa propriamente genealógica, levada a efeito tanto por Heidegger
quanto por Schürmann, e que consiste na exposição e no
desvelamento desses princípios epocais desde a aurora
grega até à noite dos tempos em que, por meio da técnica,
surge a possibilidade de reconhecer a dimensão anárquica da existência. Para Heidegger, tal envolve compreender
a técnica como uma violência ordenada, consequência de
decisões que vêm desde os gregos e a violência que impuseram à linguagem, e que hoje se traduz na supremacia
tecnológica que ameaça destruir todo o planeta.
Todavia, entendo que a tarefa heideggeriana permanece incompleta, dado que à inevitável e negativa pars
destruens com que Heidegger criticou e desconstruiu
muitos dos mitologemas ocidentais não se seguiu a necessária e positiva pars construens, o que não significa
que ele não nos tenha legado algumas preciosas intuições
sobre essa dimensão, como ensina Schürmann. Com
efeito, ao perceber que a primeira e principal violência é
a da palavra, que força os entes a coincidir com os conceitos – Begriff em alemão, que vem do verbo greifen, o
qual significa, como o capere latino, “capturar” – e estes a se organizarem em uma gramática mediante uma
lógica que deriva de uma metafísica,4 o último Heidegger
nos diz que devemos deixar espaço livre às palavras, de
modo que a solução não está em imaginar e praticar outras violências linguísticas-conceituais-técnicas, e sim no
deixar-ser (lassen), na serenidade. Para tanto, é preciso
abandonar a teleocracia, ou seja, a ditadura da finalidade,
e deixar o campo livre às coisas, o que, segundo entendo,
pode-se traduzir com mais radicalidade nas ideias de caráter destrutivo de Benjamin e na de fim do juízo/culpa
propugnado por Artaud e Deleuze, que assumem a “inocência” de todas as coisas e sua ausência de fundamento
ou finalidade, como bem se expressou mestre Eckhart –
também largamente estudado por Schürmann5 – ao nos
dizer que “a rosa é sem porquê, ela simplesmente floresce”, dimensão vivente e potente para além da qual já não
se pode pensar, mas somente viver. Dessa maneira, deixando que as coisas, e não os produtos meramente úteis,
possam vir à presença, abre-se a possibilidade de uma
4
De fato, em um estudo fundamental intitulado Categorias de língua e
categorias de pensamento, Benveniste demonstrou como as categorias
de Aristóteles, tidas como as bases universais de qualquer pensamento, não são mais do que ideias derivadas das particulares estruturas
da língua grega. Cf. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística
geral I. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luiza Neri. São Paulo:
Pontes/Universidade Estadual de Campinas, pp. 68-80, 1998.
SCHÜRMANN, Reiner. Maestro Eckhart o la gioia errante. Trad. M.
Sampaolo. Roma: Laterza, 2008.
5
11
aproximação em relação a outra origem, dessa vez não
principial nem hierárquica, na qual a lei esteja desativada
e o poder abandonado, passando assim da violência técnico-linguística a uma contingência radical que indico
com o nome de an-arquia.
ARQUEOLOGIA E FORMAS-DE-VIDA
12
Todavia, e aqui retomo de forma mais direta o texto de
Tarì, só se pode chegar à conclusão de que a lei e o poder
se fundam em um nada – algo que, curiosamente, tanto
Carl Schmitt quanto Hans Kelsen, cada qual a seu modo
problemático, já haviam intuído, mas não desenvolvido e
muito menos tirado de tal intuição as suas consequências
necessárias6 – após um rigoroso trabalho arqueológico,
o qual vem sendo efetivado por aquilo que chamo de
filosofia radical desde o início do século passado, destacando-se em tal tarefa os nomes de Benjamin, Foucault,
Deleuze e Agamben, todos citados por Tarì em seu texto,
cujo eixo central está na noção de forma-de-vida.
A arqueologia, ensina Agamben, consiste em um
tipo de pensamento analógico que, indo do singular ao
singular – e não do geral ao particular (dedução) ou do
particular ao geral (indução), que parecem ser os únicos
Cf. MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. ΝΟΜΟΣ
ΠΑΝΤΟΚΡΑΤΩΡ ? apocalipse, exceção, violência. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 105, pp. 277-342, 2012.
6
estilos de pensar aceitos pela ciência e a filosofia oficiais
–, busca encontrar a origem, ou seja, o “ponto de insurgência” de certo fenômeno político, social, artístico,
econômico etc. A arqueologia, tal como proposta por
Giorgio Agamben, tem por objetivo desvelar as permanências de ideias e práticas historicamente encobertas
que, de modo semelhante aos fósseis, determinam as experiências atuais de maneira subterrânea, mas decisiva,
por mais que sejam percebidas como eventos passados
e superados. Nesse sentido, a violência está presente arqueologicamente nas leis assim como a suposta língua
indo-europeia está presente no grego, no sânscrito e no
português atual, do mesmo modo que as radiações originárias do big bang de 14,8 bilhões de anos atrás permanecem até hoje no universo, podendo ser captadas pelos
astrofísicos.7 Bem se vê, portanto, que a origem visada
pelo método arqueológico não tem sentido cronológico,
tratando-se antes da origem enquanto constante presença de uma pré-história encoberta no presente.
Lançando mão da arqueologia filosófica, Tarì expõe
a vacuidade e a anarquia – que ele chama de infernal – do
poder, a qual nada tem a ver com a an-arquia ontológica
que faz o papel de (des)fundamento, tornando possível as
AGAMBEN, Giorgio. Arqueología filosófica. In: AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum: sobre el método. Trad. Flavia Costa y Mercedes
Ruvituso. Barcelona: Anagrama, pp. 109-150, 2010.
7
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14
formas-de-vida. Sim, porque a anarquia se diz de muitos
modos, poderíamos sustentar parafraseando Aristóteles.
Há uma anarquia do poder, conforme reconhecem com
crueldade os tetrarcas da Salò de Pasolini, e há uma an-arquia vivente, potente, singular e comum que se traduz
na recusa de qualquer arkhé, ou seja, de todo comando
e princípio, esses dois sentidos que a palavra grega carrega consigo e que precisam ser simultaneamente desativados.8 Ocorre que tal an-arquia vivente, como discuti
em meu mais recente livro,9 acaba sendo capturada pelos
“nobres” e, envolvida em mil véus, argumentos e sentenças, se corrompe, transformando-se na anarquia do
poder, sempre velada e mistificada, contando para tanto
com vários dispositivos, entre os quais um dos mais importantes reside na dúbia ideia de sujeito.
Retomando criticamente Foucault para dar o passo à
frente que o filósofo francês não ousou, e usando o instrumental teórico de Deleuze, de Agamben e do Comitê
Invisível, Marcello Tarì não se limita a afirmar a obviedade segundo a qual os sujeitos são não apenas produtores de poder, sendo eles próprios produtos do poder,
AGAMBEN, Giorgio. Che cos’è un comando? Milano: Nottetempo,
2020.
8
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. A an-arquia que vem:
fragmentos de um dicionário de política radical. São Paulo: sobinfluencia edições, 2022.
9
sustentando ainda que tal configuração é apenas epocal,
não correspondendo a um destino ontológico inevitável
dos seres humanos. Em outras palavras, Tarì acredita que
somos capazes de abandonar – ou melhor, destituir – a
posição de sujeitos, o que pode se dar mediante uma série de exercícios e práticas de si que conformam as formas-de-vida, quer dizer, vidas que, ao contrário da vida
nua sempre produzida pelos mecanismos exclusivos-inclusivos da máquina antropológica – entre os quais se
destacam o direito e a propriedade –, são inseparáveis de
suas formas, daí porque se grafe a expressão com hifens.
Para pensar e experimentar o que seria uma vida
inseparável de sua forma, é preciso abandonar toda a
metafísica ocidental que nos ensina que somos coisas ou
entes e compreender que nada somos, sempre estamos
sendo, ou seja, muito mais do que o ser, importa o modo
como aparecemos no mundo, razão pela qual Agamben,
ao final do monumental projeto homo sacer, nos propõe
uma ontologia modal10 que deve muitíssimo ao panteísmo de Spinoza, para quem tudo que existe são modos da mesma substância, que Deleuze chama de “feliz
anarquia dos seres”11 e o holandês codifica na fulgurante
10
AGAMBEN, Giorgio. L’uso dei corpi. Vicenza: Neri Pozza, 2014.
DELEUZE, Gilles. Les plages d’immanence. In: CAZENAVE, Annie;
LYOTARD, Jean-François (eds.). L’art des confins: mélanges offerts à
Maurice de Gandillac. Paris: Presses Universitaires de France, 1985, p. 79.
11
15
sentença Deus sive natura. Evidentemente, em um texto
tão curto como o de Tarì, não há espaço para que ele se
debruce sobre exemplos reais, concretos e práticos do
que podem ser as formas-de-vida, motivo pelo qual remeto o leitor interessado à obra que o tornou conhecido
no Brasil, Um piano nas barricadas, livro no qual Tarì
acompanha o surgimento, o desenvolvimento e a dura
repressão das inúmeras formas-de-vida que integraram
a chamada autonomia italiana nos anos setenta.12
KAFKA CONTRA A REPRESENTAÇÃO
16
Feitos esses esclarecimentos sobre o texto de Tarì e o
contexto filosófico ao qual ele pertence, resta-me, para
conferir certa originalidade a este prefácio, trazer algumas referências à complexa relação entre a lei, o direito
e Kafka. Nesse sentido, se a lei para Kafka é o signo da
dominação, cumpre desativá-la de alguma forma, e para
tanto Tarì apresenta duas táticas referidas no conto já citado: aquela do “pequeno partido”, que consiste em negar que as leis de fato existem, e aquela da “maioria do
povo”, que indica a necessidade de conhecer e estudar
as leis para delas se apropriar. Todavia, nenhuma dessas
táticas é suficiente, pois não questionam o próprio ser
TARÌ, Marcello. Um piano nas barricadas: por uma história da
autonomia (Itália, 1970). Trad. Edições antipáticas. São Paulo:
GLAC/n-1 edições, 2019.
12
da lei, ou seja, não desvelam a sua anarquia constitutiva,
e é nesse ponto que Tarì propõe, sempre com base em
Kafka, um terceiro movimento, dessa vez de caráter estratégico, que é exatamente a destituição.
Sobre a destituição em geral, deixo que o próprio
Tarì disserte no texto a seguir, eis que aqui quero me
referir a um aspecto específico do pensamento de Kafka
dedicado à crítica do direito, que não se limita unicamente à denúncia da lei, mas se volta também contra a
representação. Mais do que um dos maiores comunistas
de todos os tempos, como Tarì corretamente o classifica,
Kafka é também, conforme entendo, um dos mais importantes pensadores da an-arquia, já que ele não apenas identifica o vazio da máquina do poder, mas também denuncia a sua principal estratégia que, afinal de
contas, torna possível que o povo se identifique com os
nobres. Trata-se da representação política, tematizada
de maneira bastante irônica na obra de Kafka.
Se quisermos compreender o sentido do poder representativo nos escritos kafkianos, é preciso lê-los
para além da interpretação convencional que neles encontra apenas a expressão cifrada da alienação do ser
humano. Walter Benjamin, por exemplo, vê em Kafka
a situação de uma escritura que, convertida em gesto,
já nada significa. É como se o mundo fosse um texto
que não podemos decifrar ou do qual perdemos a chave.
17
18
Em uma carta destinada a Scholem, Benjamin declara
que as duas situações se equivalem, pois uma escritura
sem a chave que lhe corresponda, não é escritura, apenas vida.13 Trata-se de um problema similar ao da possibilidade de transmissão da tradição – e não da lei, que
para Benjamin conforma uma questão secundária no
mundo de Kafka – em cenários nos quais somente a sua
forma subsiste, convertendo-se em uma estrutura que
constantemente atrasa o Messias. Nessa perspectiva, se
Benjamin pôde, apoiado no breve conto kafkiano dedicado ao Dr. Bucéfalo – cavalo de Alexandre Magno hoje
convertido em advogado –, afirmar que o direito estudado e não praticado é a porta da justiça, ele acaba, no
entanto, por reconhecer a impossibilidade de Kafka ligar esse estudo às promessas contidas no encontro entre
a lei (simbolizada pela Torá) e a tradição.14 Daí porque a
“épica kafkiana” volta a ter o significado que muitas ve-
13
BENJAMIN, Walter. Brief an Gerhard Scholem, 11. August 1934. In:
BENJAMIN, Walter. Briefe. Band I. Herausgegeben und mit Anmerkungen versehen von Gershom Scholem und Theodor W. Adorno.
Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, pp. 617-619, 1978, p. 618.
14
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: Zur zehnten Wiederkehr seines
Todestages. In: BENJAMIN, Walter. Band II. Unter Mitwirkung von
Theodor W. Adorno und Gershom Scholem. Herausgegeben von Rolf
Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser. Frankfurt-am-Main:
Suhrkamp, pp. 409-438, 1991, p. 437.
zes teve na boca de Sheherazade: postergar o porvenir.15
Aqui está um elemento importante, como veremos.
Em muitos de seus contos, Kafka se refere de maneira
obsessiva a algumas figuras que giram em torno da ideia
de um poder distante, mas perigosa e contraditoriamente onipresente, agindo como uma ameaça que, desincorporada à semelhança de um mana pós-moderno,
graças a sua própria ausência determina, limitando-o, o
miserável horizonte de sentido da vida política dos seres humanos. Pululam nas páginas de Kafka soberanos
inalcançáveis, às vezes vistos ao longe nas torres de seus
castelos sitiados por bárbaros, assim como fronteiras
longínquas e nunca bem definidas – mas sempre anunciadoras de uma guerra que parece estar fora do tempo
–, tudo isso sob a incômoda e ameaçadora suposição da
existência de leis inacessíveis cujo poder está exatamente na separação de qualquer substância normativa minimamente socializada, o que garante a preeminência de
grupos governantes formados por aristocratas fechados
em um autismo desconcertante.
Para exemplificar esses três aspectos da distância em
Kafka – 1) soberanos ausentes apenas evocados por aristocratas insensibilizados ou funcionários subalternos
abusivos; 2) fronteiras incertas; e 3) leis que apenas con15
BENJAMIN, Franz Kafka, p. 427.
19
20
firmam o poder sem realmente controlá-lo –, dimensão
que integra sua muito particular metafísica da separação,
os contos mais importantes são: In der Strafkolonie (Na
colônia penal, 1914), Beim Bau der chinesischen Mauer
(A construção da muralha da China, 1917), Ein altes Blatt
(Um velho manuscrito, 1917), Es war in Sommer (Foi no
verão, 1917), Unser Städtchen (Nossa cidadezinha, 1920),
Zur Frage der Gesetze (Sobre a questão das leis, 1920), Die
Truppenaushebung (O recrutamento das tropas, 1920) e
Das Stadtwappen (O escudo da cidade, 1920).16
Somente a partir das sombrias paisagens desses contos podemos tensionar os intermináveis campos hermenêuticos que localizam e conferem sentido aos principais
temas kafkianos, entre os quais desponta o problema da
relação representativa que se estabelece entre o povo e
os nobres, magnificamente ilustrada na fábula moral de
Kafka intitulada Vor dem Gesetz (Diante da lei), escrita
provavelmente no final de 1914, incluída de maneira autônoma no livro de contos Ein Landarzt (Um médico de
aldeia, 1919) e integrada posteriormente em Der Prozeß
(O processo, 1925), obra de publicação póstuma. Nesse
pequeno relato, um camponês é impedido de ultrapassar a porta da lei pelo guarda que a vigia. Ao perceber
Todos esses contos estão disponíveis em KAFKA, Franz. Die Erzählungen. Herausgegeben von Roger Hermes. Frankfurt-am-Main:
Fischer, 2007.
16
que o camponês tenta ver o que há atrás da porta, o
guarda lhe avisa: “Se está assim tão curioso, tenta entrar,
apesar de eu te proibir. Mas nota bem: eu sou poderoso.
E sou apenas o mais humilde dos guardas. Mas de sala
em sala há outros guardas, cada um mais poderoso do
que o anterior. Nem eu próprio já consigo suportar a
vista do terceiro”.17 Passam-se muitos anos, sempre com
o camponês esperando uma oportunidade para entrar
na lei, chegando mesmo a subornar o guarda, até que,
no fim de sua vida, ele pergunta, com um fio de voz, por
que ninguém mais além dele tentou ultrapassar a porta da lei, recebendo do guarda a resposta de que aquela
porta era destinada só a ele, o camponês que agora agonizava, e que, portanto, logo seria fechada.
O paradoxo parece claro, dado que, como ocorre no
dispositivo da representação política, quem é o verdadeiro dono do poder não pode utilizá-lo, sendo que toda
tentativa nesse sentido acaba veementemente desencorajada pelos corpos hierárquicos subordinados que, não
obstante, aceitam o suborno que se lhes oferece. Daí
porque, em uma estrutura representativa, o poder resida
sempre na hierarquia, na sagrada arkhé capaz de ligar ou
desligar os circuitos do poder. Mais ainda: viver em um
sistema hierárquico significa assumir que uma pequena
KAFKA, Franz. Parábolas e fragmentos. Trad. João Barrento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 56.
17
21
22
parte das pessoas toma as decisões que a maioria deve
simplesmente executar; significa que para os grupos dirigentes há direitos e privilégios e para o grosso do povo
apenas submissão e deveres, eventualmente travestidos
como direitos.
Essa estrutura de afastamento e de impossibilidade
de realização política na imanência é um leitmotiv na
obra de Kafka. Lembremo-nos de Joseph K., que busca
desesperadamente conectar razões e culpa, esta sempre
pressuposta – e por isso mesmo inegável e inultrapassável –, sem jamais encontrar os juízes competentes para
julgá-lo, o que não impede que seja executado ao final
por funcionários subordinados, que são os verdadeiros
donos do poder, parece sugerir Kafka. No mundo kafkiano há também um mensageiro que nunca consegue
chegar a seu destino, um agrimensor que jamais se encontra com o senhor do castelo que aparentemente o
contratou para medir suas terras e muitas outras figuras
que se perdem no labirinto das contínuas mediações e
representações que, em uma fuga para frente, afastam
os personagens de seus objetivos, conformando sujeitos
fraturados: um mensageiro que não consegue entregar
mensagens, um agrimensor que não mede, um réu que
não é acusado formalmente e, por isso mesmo, perde já
de início a qualidade mesma de réu para se tornar apenas vítima, ou melhor, homo sacer, corpo matável. To-
dos esses infelizes são metáforas adequadas para evocar
o dispositivo da representação política contemporânea,
que cria sujeitos políticos impossibilitados de exercer o
poder político, ou seja, sujeitos “livres” que, ao preço de
sê-lo na dimensão retórica, não podem exercer de verdade a liberdade que os constitui. Trata-se assim de um
indecidível (P/p)ovo governante que não se governa.
É exatamente essa figura paradoxal que aparece em
um dos mais perturbadores aforismos de Kafka escritos
durante sua estância em Zürau, na Boêmia, entre setembro de 1917 e abril de 1918. Nele Kafka se refere a homens
que, diante da escolha entre ser reis ou mensageiros de
reis, preferiram, agindo como crianças, ser mensageiros. Passaram então a caminhar pelo mundo gritando
ordens sem sentido, pois não há reis que as possam
fundamentar.18 A desincorporação do poder atinge assim seu nível mais extremo, quando se percebe que não
há ninguém para sustentar as ordens que agora existem
apenas na dimensão fantasmática de sua elocução vazia,
18
“Foi-lhes oferecida a escolha de serem reis ou mensageiros de reis.
À maneira das crianças, todos quiseram ser mensageiros. É por isso
que, não havendo reis, existem apenas mensageiros que percorrem
o mundo e gritam uns aos outros mensagens que perderam o sentido. Eles gostariam de dar fim a suas vidas miseráveis, mas não se
atrevem devido ao juramento que prestaram”. (KAFKA, Franz. Die
Züraeur Aphorismen. Hrsg. Roberto Calasso. Frankfurt-am-Main:
Suhrkamp, 2006, aforismo n. 47).
23
24
ou seja, enquanto simples forma de lei, a vigência sem
significado aludida no diálogo epistolar entre Scholem
e Benjamin sobre Kafka. Tal me leva a retomar uma
tese que desenvolvi já há alguns anos segundo a qual
a representação política não corresponde a uma forma
de mediação.19
De fato, a mediação consiste em uma estrutura que
relaciona duas realidades distintas que, em última análise, são inconfundíveis, como se lê em outro aforismo de
Kafka no qual ele afirma que a mediação da serpente foi
necessária para ligar os seres humanos ao Mal, já que,
no final das contas, o Mal pode até mesmo seduzir o ser
humano, mas nunca se transformar em humano.20 Admitido tal esquema, passo a problematizar a “mediação”
representativa. Em sua estrutura há dois polos inconfundíveis, quais sejam, o Povo governante (transcendente) e o povo governado (imanente), os representantes e
os representados, os quais se relacionariam somente por
meio da representação, dispositivo que ultrapassaria
a irrelação entre os dois polos. Contudo, ao se aceitar
MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Representação política
contra democracia radical: uma arqueologia (a)teológica do poder
separado. Belo Horizonte: Fino Traço, 2020.
19
20
“Foi necessária a mediação da serpente: o Mal pode seduzir os
humanos, mas não tornar-se humano”. (KAFKA, Franz. Die Züraeur
Aphorismen. Hrsg. Roberto Calasso. Frankfurt-am-Main: Suhrkamp, 2006, aforismo n. 51).
como “natural” tal configuração, esquece-se que “foi-lhes oferecida a escolha de serem reis ou mensageiros
de reis”, ou seja, o poder político, em suas origens, não é
algo diverso da potência criativa e produtiva dos sujeitos
sociais que o criaram, tendo se separado deles graças a
uma operação artificial tipicamente representativa. Daí
deriva a disjunção entre Povo-sujeito e povo-objeto característica do poder político representativo, que funciona com base em uma radical desresponsabilização dos
sujeitos, os quais agem “à maneira das crianças”. Mais
do que unir, a representação fratura. Ou fratura porque
une, à semelhança das sínteses disjuntivas de Deleuze e
Guattari. Uma vez produzida a cisão, não existem mais
reis, apenas ordens vazias que vagam de mensageiro a
mensageiro, sem dar sentido ao mundo humano.
A representação política se revela então enquanto
dispositivo que quebra o bloco ontológico multidão-poder em nome da díade presente na ideia de poder
do povo, agora separado em sujeito e objeto. Por isso
a representação não corresponde a um dispositivo de
mediação que tornaria possível a relação política em
sentido democrático; sua função é manter separadas as
instâncias ontológicas – o ser dos sujeitos sociais e o seu
fazer político – que originariamente existem apenas de
modo relacional, em conjunto.
25
REPRESENTAÇÃO E FARSA
26
Ademais, em Kafka a representação jamais revela qualquer conteúdo político coletivo, dado que sempre se efetiva em termos de representação pessoal (Vertretung).
Esta, devido a suas aporias, acaba se resolvendo em uma
representação do tipo teatral, que pode ser cômica ou
letal, ou melhor, é cômica porque é letal. Conforme uma
interessante proposta de Na’ama Rokem, para expor o
lugar (vazio) da representação em Kafka, é interessante comparar a obra do autor tcheco com a de Theodor
Herzl, intelectual sionista que Kafka conhecia.21
Além de escritor e dramaturgo, Herzl foi um destacado sionista que, objetivando resolver o problema da
nacionalidade judia – que, para se afirmar, não podia
contar com os elementos tradicionais de um território
ou de uma língua compartilhada –, trouxe à tona uma
antiga figura do direito romano, qual seja, o gestor.
Como o próprio Herzl define, gestor é quem age no lugar de outra pessoa que, estando ausente, precisa presumivelmente ter seus interesses protegidos. O exemplo clássico no Direito Civil contemporâneo seria o de
alguém que, sabendo que seu vizinho está viajando e
ROKEM, Na’ama. Zionism before the law: the politics of representation in Herzl and Kafka. The Germanic Review: Literature, Culture,
Theory, v. 83, n. 4, pp. 321-342, 2008.
21
vê um incêndio se iniciar em sua casa, a arromba para
apagar o fogo, pressupondo que essa seria a vontade do
ausente, tornando-se assim seu gestor.22 Percebe-se – e
Herzl faz questão de frisar esse ponto – que o gestor não
conta com autorização expressa daquele cujos interesses
ele, em um momento de perigo, gere. De fato, para Herzl
o gestor não recebe nenhuma autorização; pelo menos
não uma autorização humana, dado que ela deflui do
próprio estado de necessidade.23 Trata-se então de uma
estrutura limítrofe do Direito Civil e que pode ser aproximada a uma espécie de estado de exceção no campo
privado, aparentando-se o gestor, em certo sentido, com
o soberano schmittiano.
A partir dessas ideias, Herzl pensa em um grupo de
pessoas e instituições que possam agir como gestoras da
dispersa comunidade judaica, garantido assim a construção do então ansiado Estado judeu, o qual não nasceria
democraticamente por meio de eleições ou historicamente graças a processos de longa duração. Ao contrário, tendo em vista o estado de necessidade de toda a
A figura do gestor é prevista no art. 861 do Código Civil brasileiro
nos seguintes termos: “Aquele que, sem autorização do interessado,
intervém na gestão de negócio alheio, dirigi-lo-á segundo o interesse
e a vontade presumível de seu dono, ficando responsável a este e às
pessoas com que tratar”.
22
HERZL, Theodor. Der Judenstaat: Versuch einer modernen Lösung der Judenfrage. Wien, 1896.
23
27
28
comunidade, o gestor – nunca identificado com um
homem específico, mas com as ações de muitos homens
e instituições judaicas – preparará a constituição político-jurídica do Estado hebreu, da mesma maneira que o
vizinho cuida dos interesses daquele que está viajando.
O gestor se assemelha ao representante, mas com ele
não se confunde. Antes de mais, porque a relação entre
o gestor e aquele que tem seus interesses protegidos é
claramente privada, faltando a dimensão política e pública da representação. Além disso, o gestor é sempre
um “representante da ausência”, pois age diante da não
presença de outro sujeito. Esta característica torna a figura do gestor particularmente adequada para discutirmos a impoliticidade da nossa época, dado que ao invés
de representação, o que vemos se avolumar com cada
vez mais intensidade no cenário contemporâneo é a gestão econômica de supostos interesses sócio-políticos da
coletividade – identificada com um povo ausente – por
parte de sujeitos que não receberam nenhuma autorização ou mandato para tanto. Ao contrário, eles se deram
tal autorização frente ao “perigo” e ao “estado de necessidade” traduzidos na possibilidade de o povo tomar o
poder e exercê-lo de forma direta.
Para além de sua obra estritamente político-jurídica, Herzl aproveita a figura do gestor em peças teatrais
e outros escritos literários, quase sempre o identifican-
do de modo mais ou menos cômico a advogados que
representam interesses contrapostos. Diante do caos
inaugurado pelas reivindicações de seus clientes, o advogado-gestor acaba permanecendo inativo, incapaz de
representar, ainda que de forma privada, aqueles que o
constituíram para tanto.24 É aqui então que a inflexão de
Kafka se impõe, dado que ele utiliza um personagem simetricamente oposto aos advogados com muitos clientes satirizados por Herzl. Em O processo, Joseph K. erra
pelos labirintos da cidade buscando desesperadamente
alguém que o represente, sem nunca colmatar a ausência
que redunda não apenas no nonsense do próprio processo, mas na vergonha que, afinal, lhe sobrevive enquanto
resto inassumível e, portanto, irrepresentável. No caso
de Kafka, trata-se não de um representante omisso de
vários representados, mas de um representado que possui – ou quer possuir – vários representantes,25 todos
24
ROKEM, Zionism before the law, pp. 330-334.
A exemplo do que ocorre com o comerciante Block, que além de
Huld mantém secretamente junto a si outros cinco advogados: “–
Pois – disse o comerciante, hesitando e com tom de voz de quem está
confessando algo desonroso –, tenho outros advogados ainda. – Não
há nada de mau nisso – disse K., um tanto decepcionado. – Aqui, sim
–, exclamou o comerciante, que estivera contendo a respiração desde
o momento em que confessara seu segredo; mas depois da observação de K. pareceu adquirir maior confiança. – Isso é algo que não se
permite. E menos permitido ainda está o contratar os serviços de
advogadinhos quando já se goza dos de um advogado propriamente
25
29
30
eles, contudo, infalivelmente inúteis e até mesmo prejudiciais a seus interesses.26
O protagonista busca sucessivamente se aproximar
do comerciante Block, do pintor Titorelli, do advogado
Huld e de sua enfermeira Leni, que acaba se transformando em amante de K. Ele está sempre tentando não
apenas compreender o processo em que se envolve mais
e mais, pretendendo também que essas personagens secundárias intercedam em seu nome diante do Tribunal
que o julgará. Todas as tentativas, no entanto, são vãs,
já que a própria contextura espectral de K., que parece
nunca ser efetivamente ouvido nem visto por seus interlocutores, impõe-lhe uma impossibilidade de representação, seja pública ou até mesmo privada. Na verdade,
todos aqueles que cruzam o caminho de K. passam a
se comportar não como seus representantes, e sim enquanto gestores de seus interesses, como se ele não es-
dito. Contudo, isso precisamente foi o que eu fiz: além do doutor
Huld, tenho cinco rábulas. – Cinco? – exclamou K.; já o número o
enchia de assombro. – Cinco advogados além deste? O comerciante confirmou com uma inclinação de cabeça. – Exatamente, estou
negociando agora com um sexto. – Mas para que você precisa de
tantos advogados? – perguntou K. – Necessito de todos – explicou o
comerciante” (KAFKA, Franz. O processo. Trad. Torrieri Guimarães.
São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 186).
26
ROKEM, Zionism before the law, p. 337.
tivesse fisicamente presente. Isso fica claro no diálogo
mantido com o advogado Huld:
Este discurso longe de convencer a K. o impacientava.
Através do tom do advogado acreditava já estar vendo
o que o esperava e cedia; tornariam a começar aquelas
palavras de estímulo, voltaria o advogado a afirmar-lhe que se produziam progressos na causa, voltaria a
dizer-lhe que havia melhorado a disposição dos funcionários judiciais, mas que se apresentavam grandes
dificuldades que se opunham a seus trabalhos... em
resumo, voltaria a dizer-lhe o que ele já sabia até o enfastiamento para enganá-lo com incertas esperanças e
atormentá-lo com incertas ameaças. Era preciso impedir tal coisa de uma vez por todas. Por isso, K. disse:
– Que fará você pela minha causa se eu lhe mantenho
a minha representação? O advogado resignou-se até a
admitir esta pergunta ofensiva e respondeu: – Continuarei levando por diante as gestões realizadas em seu
favor. – Já o sabia – disse K. – Quer dizer então que
qualquer palavra mais é supérflua.27
K. se move em um mundo que ele não entende e que
talvez realmente não tenha qualquer sentido, e isso não
pelo acúmulo das leis e sentenças que o constituem, mas
devido a uma ausência anômica da verdadeira lei que
27
KAFKA, O processo, pp. 204-205.
31
32
poderia destituir todas as demais, aquela que aparece
como algo inatingível no célebre episódio da catedral,
quando Kafka enxerta no romance o terrificante conto
Diante da lei que já comentei.
A transformação final que confere a esse mundo
radicalmente não representativo a sua densidade de sonho mau consiste no aprofundamento de um tópos que,
já presente em Herzl, acaba sendo levado ao máximo
paroxismo por Kafka, quando o representante – que se
comporta como gestor durante todo o livro – se transmuta em mero ator. Em vários momentos do texto Kafka liga a representação privada (Vertretung), em especial
aquela efetivada por advogados, à representação teatral
(Darstellung), vendo o cenário do Tribunal e de suas adjacências como um imenso palco em que se celebram,
uma após outras, inúmeras farsas. Até mesmo os agentes do Tribunal que no fim sacrificarão K. como se fosse
um animal são comparados a atores:
“Mandaram-me velhos atores de segunda ordem”,
disse-se K., enquanto os contemplava outra vez para
persuadir-se de que realmente era assim. “Pretendem
acabar comigo a preço muito vil”. K. voltou-se então
de súbito para eles e perguntou: – Em que teatro vocês
representam? – Teatro? – perguntou um dos senhores,
movendo apenas um ângulo da boca ao outro, como
em busca de conselho. Mas o outro se comportou
como um mudo que lutasse contra seu organismo que
se nega a obedecer-lhe.28
Em um mundo no qual a representação política se tornou impossível graças à ausência de um povo a ser representado – o qual, contudo, busca sem cessar e sem
sucesso fazer-se representar por uma série de entidades que se negam a tanto exatamente porque não veem
qualquer consistência ontológica no povo – restam
apenas duas possibilidades, ambas funcionando de maneira concomitante: a gestão cruel daqueles que foram
forçosamente invisibilizados, papel hoje reservado aos
poderes econômicos e financeiros, e a contínua apresentação de uma peça teatral em que os poderes públicos
– o Executivo, o Legislativo e, com muita especificidade,
o Judiciário – mantêm as aparências de normalidade de
um rito político-jurídico que, contudo, já se desgastou e
só pode ser compreendido, na esteira do corrosivo comentário de Marx sobre Napoleão III, enquanto a farsa
que se segue à tragédia.29
28
KAFKA, O processo, pp. 239-240.
“Hegel observa em algum lugar que todas as grandes pessoas e fatos da história mundial ocorrem, por assim dizer, duas vezes. Ele se
esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a outra vez
como farsa” (MARX, Karl. Der achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte. In: ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. Werke. Band 8. Berlin: Dietz, pp. 111-207, 1960, p. 115. Edição eletrônica disponível em:
29
33
NO ENTANTO...
34
Para fazer face a essa situação paradoxal, que é ao mesmo tempo de inflação normativa e de anomia, não basta
simplesmente destituir a lei, sendo necessário desativar
as dimensões que a tornam algo que pode ser apropriado, o que não acontece com a verdadeira lei que falta,
simbolizada metaforicamente pela Torá, mas que podemos entender como uma lei interna ao próprio ser e
que se confunde com a vida, não estando dela separado,
sendo ela própria a vida.
Nessa perspectiva, é importante citar o exemplum
das comunidades franciscanas que, conforme a arqueologia filosófica que Giorgio Agamben desenvolveu em
Altíssima pobreza, opuseram ao direito de propriedade
referendado e exigido pela Igreja o mero uso, desarticulando assim o mecanismo apropriador do nómos na
medida em que a regra se tornou vida, ou melhor, confundindo-se com a vida mesma, a regra não pôde mais
se estruturar enquanto mecanismo externo do direito
ou do dever, perdendo assim seu caráter aflitivo.
Trata-se de uma experiência similar à da regra
constitutiva descrita por Wittgenstein e retomada por
Agamben no último livro da série Homo sacer, quando
<http://kulturkritik.net/systematik/philosophie/mew_pdf/mew_
band08.pdf>. Acesso em: 20 set. 2017).
ele nos explica que as regras do xadrez não se impõem
externamente às peças; ao contrário, a peça chamada de
peão nada mais é do que a soma das regras de xadrez
que regulam seus movimentos e, portanto, o constituem, de modo que não existe um peão fora das regras,
nem regras que o regulem enquanto entidade ontológica diversa do próprio jogo.30 Tal arranjo se revelou para
os franciscanos como uma maneira de ser e de estar em
que incessantemente a regra (des)constitui o sujeito e o
sujeito (des)constitui a regra, sem a necessidade de garantir âmbitos proprietários. Com o experimento franciscano, a vida se tornou regra: regula vitae.31
E é somente a partir de então que se pode falar nesse
misterioso direito estudado e não praticado referido por
Benjamin, dado que, conforme lembra Sebald em um
belo texto dedicado a Canetti,32 o estudo infinito se diferencia do saber, que acaba se tornando totalitário e paranoico quando se considera dono de um conhecimento
que precisaria ser protegido dos outros. Diferentemente,
o estudo constitui-se como um conhecimento que não é
um poder nem uma propriedade e jamais pode ser ad30
AGAMBEN, L’uso dei corpi, pp. 306-307.
AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà. Vicenza: Neri Pozza, 2011,
seção 1.3 da parte II.
31
SEBALD, W. G. A descrição da infelicidade. Trad. Telma Costa. Lisboa: Quetzal, 2016, p. 108.
32
35
quirido de uma vez por todas, estando sempre aberto à
dimensão comum e singular do pensamento, que não
pertence a ninguém e por isso pode ser usado por todos.
Eis o que podemos aprender, entre muitas coisas, com o
pequeno Ravachol que Kafka dizia ser quando se perdia
nas ruas de Praga e chegava atrasado na escola.
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