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O Tr á gico n a M ode r n ida de
∗
M oisé s de Le m os M a r t in s
Professor Cat edrát ico
m oisesm @ics.um inho.pt
Universidade do Minho
Cent ro de Est udos de Com unicação e Sociedade
Cam pus de Gualt ar
4710- 057 Braga
Port ugal
2004
∗
MARTI NS, M. L. ( 2002) O Trágico na Modernidade, in I NTERACT Revist a on- line de ar t e,
cult ura e t ecnologia, nº 5
http://www.interact.com.pt/interact5/default.htm
Moisés de Lemos Martins
O Trágico na Modernidade
Resumo.
Um não-sei-quê de bárbaro, primitivo, sanguinário, enfim, de não-racional, empesta-nos o ar. E
a sua presença incita-nos a reflectir sobre o facto de uma coisa poder ser verdadeira, sem que
todavia seja boa, bela ou justa. Como desforra perversa do "íntimo terror" de uma cidade
rendida ao fantasma da assepsia social e também como desforra perversa do aborrecimento
letal em que a mesma cidade agoniza, instala-se entre nós uma insurreição latente, o
terrorismo, guerras tribais de toda a espécie, crenças arcaicas, integrismos e fanatismos das
mais variadas origens e obediências. A meu ver, a abstenção cívica, a sedição quotidiana e a
escalada terrorista participam de uma mesma erótica funesta, espécie de reacção alérgica de
um corpo social empobrecido, desenraizado, votado ao abismo da troca total num mundo raso
de imaterialidades.
O Trágico na Modernidade
1. A tolerância zero e o risco zero
A modernidade vive hoje assombrada pelo fantasma da assepsia social. Daí as campanhas da
"tolerância zero" face ao álcool, à droga e ao banditismo, urbano e suburbano. Daí as
operações locais para a supressão das barracas. E as nacionais para o banimento da pobreza.
Daí as mobilizações globais para a erradicação do terrorismo. É o fantasma da assepsia social
que nos embala na fantasia do "risco zero": segurança e bem-estar plenos, nas estradas, nos
campos e nas cidades, na vida de todos os dias. "Se conduzir, não beba". "Não à droga, sim à
vida". "Mais esquadras e mais polícias". "Sexo seguro". "Liberdade duradoura". Tudo
operações de caça ao animal que vive no humano, exorcismos para enxotar as sombras
(medos e angústias) que possuem o corpo individual e colectivo.
Tolerância zero e risco zero dão conta do "íntimo terror", para utilizarmos uma figura
lyotardiana (Lyotard, 1993), de uma ordem pragmática e civilizada, uma ordem que sonha com
o sucesso e fecha um condomínio para o fruir à vontade. Este fantasma é hoje metaforizado na
perfeição pelo centro comercial. Cidade da ordem, cidade asséptica, cidade opulenta, cidade
de iguais, cidade jovem e de sedução, reverberante de luz, sem excluídos, o centro comercial
realiza a nossa modernidade como racionalidade tecnológica e como experiência estética –
razão e emoção vão de mãos dadas, elas que são as duas grandes estilizações do moderno
(Miranda, 1994; Martins, 2002).
Além do "íntimo terror" que percorre a nossa cidade e a ensombra, o nosso ideal democrático
sofre hoje a provação de um aborrecimento letal. Poder-se-ia pensar que tendo nós deixado de
morrer de fome, o nosso mundo rejubilaria em "liberdade livre", como canta o verso de
Rimbaud. Puro engano, o facto de termos deixado de morrer de fome, resultou apenas em
termos passado a morrer de tédio. A nossa condição moderna não tem o andar pesado das
botas cardadas, nem respira a ar de chumbo de nenhuma "pax romana". Hoje não parece
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constituir ameaça para o Ocidente o rolo compressor de nenhuma razão armada de baionetas.
Em lado nenhum ocorre a intimação à ordem, a não ser nas paragens sombrias do
fundamentalismo islâmico. Não há intimação à ordem nas coisas do pensamento, nem nas
coisas da acção política, nem mesmo nas coisas do sentimento e dos costumes, e isto apesar
da Sida e de outros apertos bem contemporâneos e bem perturbadores. O positivismo da
razão é proclamado fora de lei, ou então um erro. Por ele dobram os sinos incansavelmente, a
ponto de podermos dizer que O Erro de Descartes de António Damásio (1994) e a Emotional
Intelligence (1995) de Daniel Goleman são neste contexto apenas umas pequenas badaladas,
talvez um pequeno Toque das Trindades, sobre o passamento da razão.
Fundado no contrato livremente consentido, o ideal democrático permitiu o sonho de uma
sociedade governada em nome do bem, do justo e do verdadeiro. Simplesmente o sonho
dessa ordem civilizada, feita de segurança e bem-estar, faz-se agora pagar pela certeza de
morrermos de pasmo. A mesma cidade que exorciza os seus medos e angústias em aventuras
previsíveis e sem risco, fustigando sombras diante da televisão e em centros comerciais,
agoniza de aborrecimento num quotidiano higienizado e atola-se no indiferentismo e
absentismo políticos.
Walter Benjamin (1992: 28), nos anos trinta, falava já da "crise da experiência" que
contaminava a nossa modernidade. Via-a então como uma consequência catastrófica da
Guerra Mundial. Mais perto de nós, Giorgio Agamben fala da impossibilidade em que nos
encontramos hoje de nos apropriarmos da nossa condição propriamente histórica. É essa
impossibilidade que "torna insuportável o nosso quotidiano" (Agamben, 2000: 20). Apesar de
reconfortada por uma calda de emoções, de produção mediática e tecnológica, que dá pelo
nome de transparência comunicacional, mas que administra "terror sem horror, comoção sem
emoção, compaixão sem paixão", como escreve Teresa Cruz (s.d.: 111-112), a cidade vive
hoje anestesiada, sem "nenhuma espécie de compromisso com a época e com as ideias que a
motivam" (Benjamin, 1993: 590), chafurdando num quotidiano transformado pelos média na
presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante, que o nega enquanto quotidiano em que
arriscamos a pele.
Por vezes, um pouco à maneira de Rosa Luxemburgo, ainda se ouve falar da filosofia alemã,
do sonho americano, do pensamento francês e do ponto de vista inglês. E também se ouve
dizer que o "espírito" de tal povo foi por um tempo depositário e testemunho da Ideia
fundadora. Lyotard (1993) lembrando a invocação feita em Atenas, Filadélfia e Paris da ideia
de liberdade, do mesmo modo que em Roma e Londres se invocou a ideia de paz imperial, e
em Berlim e Tóquio a ideia de raça salvadora, concluiu que estas figuras tinham uma vocação
de combate, remetiam para conflitos de ideias, mobilizando e organizando as forças
disponíveis numa determinada área geográfica e demográfica. E logo acrescentou que nestas
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figuras se tecia e testava já o sistema mais apto para o crescimento, o sistema que melhor se
prestava a uma mobilização geral das forças disponíveis. Também Ernest Junger ao explicar,
em 1920, o sucesso dos Aliados na Guerra contra o Império alemão, reconheceu que uma
comunidade de cidadãos que se julgavam livres se prestava melhor para a "mobilização total"
do que o corpo dos súbditos de Guilherme II. E de facto, olhadas as coisas agora, cinquenta
anos volvidos sobre a II Guerra Mundial e doze sobre a Guerra Fria, o diagnóstico de Junger
não poderia afigurar-se mais verdadeiro. Passando por cima de vários milénios a tentar e a
experimentar toda a espécie de organização da comunidade, a democracia neoliberal triunfa
em todas as frentes. O que quer dizer que "a história humana foi apenas a selecção natural
pela competição, precisamente pela competição, da forma mais eficaz de todas as formas de
organização da comunidade", diz ainda Lyotard.
E assim chegamos ao mundo raso da troca total, que é o mundo no seu estado presente. É
pelo facto de ser eficaz que a democracia neoliberal tem prestígio e faz autoridade. O
consenso procede desta evidência. É a este mundo, neste estado, mundo democrático
neoliberal, que nós consentimos. O sociólogo francês Michel Maffesoli, numa recente
passagem pela Universidade do Minho, ilustrou bem este estado de espírito, com uma frase de
efeito: "Le monde c’est du caca, il faut vivre avec ça".
2. A deserção do espírito
No mundo raso da troca total, nada se furta ao consenso, que é um outro nome do mercado,
nada se furta, pois, à competição e ao ganho. Ou seja, nada se furta ao sucesso, sendo todo o
sucesso ganhar. Nem mesmo o livre agir, seja criação, acto de amor ou convicção. É que da
mesma forma que a moeda é fetichizada como equivalente geral de toda a mercadoria (bens,
corpos e almas), é agora fetichizada a opinião como equivalente geral do livre agir (criação,
acto de amor e convicção). Vergado o livre agir à opinião, que o invertebraliza, é vê-lo passar
pela corrida infernal à transparência comunicacional. Também a criação, o acto de amor e a
convicção têm que ser de sucesso, ou seja, têm que ter audiência, têm que se abismar no
mundo raso da troca total.
Neste abastardamento do ideal democrático vê Michel de Certeau (1980: 22-23) a deserção do
Espírito. É paradoxal mas bem sugestiva a analogia que estabelece entre a nossa condição
moderna e a antiga condição dos judeus no tempo em que Jerusalém foi vencida pelos
Babilónios. A cidade vivia o drama da deportação, mas aqueles que haviam sido poupados
viam-se como uma elite, por permanecerem junto aos muros sagrados. O profeta Ezequiel, que
é "um hábil construtor de uma língua da imaginação", dá-nos dessa deserção do espírito uma
"visão", que tem hoje um sentido diferente, mas que é de igual modo terrível. O profeta vê o
carro quatro vezes querubínico da "glória" de Jahvé elevar-se acima do Templo e abandonar a
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cidade (Ezequiel, cap. 10-11). O espírito desertava. A arquitectura das instituições esvaziavase de sentido, e aqueles que as ocupavam apenas mantinham pedras, um solo e apetrechos–
uma bem falaciosa maneira de possuir o espírito. Para Ezequiel, a invisível razão de ser do seu
povo havia deixado esta terra e tomado o caminho do exílio.
Alguma coisa de análogo acontece connosco, diz Michel de Certeau. Produz-se um exílio no
nosso ideal democrático. As nossas instituições parecem abandonadas precisamente por
aqueles que julgam garantir a verdade e a justiça só pelo facto de as ocuparem. Emigra
também a adesão dos cidadãos. Muitas vezes com espavento e com protesto. Mas de um
modo geral sem barulho, tal uma água que se esgueira por entre os dedos da mão. O próprio
espírito que animava a representação do nosso ideal democrático abandona-nos. Não
desapareceu, emigrou, foi para longe das estruturas democráticas, convertidas pela partida do
espírito em desoladores espectáculos ou em liturgias da ausência. São assim hoje, por
exemplo, os debates parlamentares e as campanhas eleitorais. Se porventura os importantes
líderes de partidos e de sindicatos vêm protestar, mãos levantadas ao céu, contra um tempo
desprovido de virtudes, o problema não está, segundo a imagem do profeta, em não existir um
"espírito". Está simplesmente em já não habitar neles. Não é que o espírito falte; falta-lhes é a
eles.
A dissociação entre o ideal democrático e aqueles que deixaram de o habitar rasga lentamente
o tecido da nossa cultura. Uma espécie de irracionalidade colectiva multiplica nas instituições
os homens exilados do espírito - exilados afinal da única coisa que tornaria credíveis os seus
poderes. Emigra o espírito, emigra a adesão dos cidadãos. Vence o indiferentismo e o
absentismo.
3. A política como estratégia de gestão
Como desforra perversa do "íntimo terror" de uma cidade rendida ao fantasma da assepsia
social e também como desforra perversa do aborrecimento letal em que a mesma cidade
agoniza, instala-se nela uma insurreição latente, o terrorismo, guerras tribais de toda a espécie,
crenças arcaicas, integrismos e fanatismos das mais variadas origens e obediências. Um nãosei-quê de bárbaro, primitivo, sanguinário, enfim, de não-racional, empesta-nos o ar. E a sua
presença incita-nos a reflectir sobre o facto de uma coisa poder ser verdadeira, sem que
todavia seja boa, bela ou justa. Esta questão ocupou Max Weber, no momento em que era
implantada a ordem racional moderna. Mas sobre ela já havia meditado Nietzsche, e antes dele
Baudelaire, nas suas Fleurs du Mal. Às "flores do mal" do nosso tempo, que são legião e que
realizam esse "verdadeiro" que não é bom, nem belo nem justo, chama Michel Maffesoli (2000:
166) o "regresso do trágico". Incluindo "sombras e luzes, generosidades e torpezas", o trágico,
que toma a vida na sua inteireza, constituiria, na longa duração, o fundamento da cultura
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popular.
Os mais diversos imaginários, toda a espécie de crença, identidades religiosas, sentimentos de
pertença comunitária e outros fenómenos emocionais, contaminam o conjunto do corpo social,
furtando-se todavia à lógica mecânica e finalista de um social dominado pela razão
instrumental. Ruanda, Zaire, Nigéria, ex-Jugoslávia, Kosovo, Timor Loro Sae, Palestina,
Afeganistão – sempre os mesmos massacres, carnificinas, terrorismos suicidários. Diante da
irrupção destas paixões identitárias e destas emoções tribais, o que é que pode, no entanto, a
proposta de um ideal democrático? Diante dos mitos ancestrais que alimentam as
comunidades locais e nacionais, é ainda eficaz a resposta dos valores universalistas
produzidos pelos nossos sistemas filosóficos dos séculos XVIII e XIX?
Higienizada e morrendo de aborrecimento, a nossa modernidade vê, entretanto, as políticas
esgotarem-se em estratégias de gestão e as guerras confinarem-se a operações policiais. Para
o Ocidente, o Afeganistão não é, aliás, outra coisa: operação de higienização, ou seja,
estratégia de gestão e operação policial. Veja-se, neste sentido, a esclarecedora polémica a
respeito dos presos afegãos da ilha cubana de Guantánamo. A diplomacia americana chegou a
colocar a questão de os presos afegãos não serem considerados prisioneiros de guerra, com
estatuto, dignidade e direitos reconhecidos pela Convenção de Genebra. É que não há dúvidas
sobre o que fazer com bandos armados, o mais que eles podem exigir é a intervenção da
polícia.
Não resisto neste ponto a convocar um delicioso trecho de Bragança de Miranda, retirado do
seu livro Política e Modernidade. Está ele a páginas tantas (Miranda, 1997: 13) a falar da ideia
de política como "acção livre de muitos e desejavelmente de todos", quando tem necessidade
de se demarcar da Realpolitik, uma política que vive a assombração permanente de uma razão
pragmática. E lembra a propósito o Ricardo III de Shakespeare, onde, no estado de urgência
(no caso era a guerra) toda a estática dos atributos e das qualidades era abolida, passando os
combatentes a serem todos iguais. Os happy few de então eram os companheiros de luta. Os
happy few de agora são os que governam o egoísmo dos atributos, dos médicos contra os
odontologistas brasileiros, dos magistrados contra os professores universitários, dos nortenhos
contra os sulistas, dos portistas contra os benfiquistas, dos portugueses contra os africanos e
os imigrantes do Leste, dos católicos contra os IURD, dos regionalistas contra os antiregionalistas. A guerra, que para Shakespeare era o melhor sinal do estado de urgência, passa
a guerra da distribuição... do orçamento. A nova forma de guerra é, de facto, cada vez mais
caso de polícia, uma vez que a nossa situação de urgência tende a esgotar-se em conflitos
entre egoísmos de interesses; exactamente nisso, em egoísmos de interesses, ou seja, em
distribuição do orçamento. Não admira, assim, que a política se confunda com a "arte" de
governar, ou por outras palavras, como a arte de poucos suscitarem permanentemente o
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"mistério da obediência" de muitos, como fala La Boétie.
Nesta nova forma de guerra, que é apenas caso de polícia, uma vez que a situação de
urgência não passa de conflitos entre egoísmos de interesses, não se procura desautorizar
ninguém. Apenas se procura forçar o adversário a negociar a sua integração no sistema,
segundo as regras. Tem sido sempre assim, por exemplo, com Arafat e os Palestinianos, com
o IRA e os Irlandeses do Norte, com a ETA e os Bascos.
É verdade que neste jogo pode levantar-se a dúvida sobre o que é que os miseráveis têm que
possa ser negociado. Estou a pensar nos Países do Terceiro Mundo. Pascal tinha todavia toda
a razão ao ironizar que "ninguém morre tão pobre que não deixe alguma coisa atrás de si"
(apud Benjamin, 1992: 45). Assim acontece, de facto, com os países pobres. Deixando atrás
de si a sua dívida, podem sempre negociar o endividamento.
Fria, calculista, desapaixonada, não sentindo o calor, embora a todo o tempo uma euforia
libidinal e retórica, uma calda de emoções de produção mediática e tecnológica, a sobreaqueça
e a comande do exterior, a política esgota-se, pois, em estratégia de gestão e em operação
policial. Entretanto, cavando a deserção do espírito, não se cansa de galgar terreno
socialmente um mundo raso de imaterialidades, raso pelo alastramento da razão pragmática
que nos invertebraliza.
4. Os média e a razão pragmática
É verdade que a razão pragmática em que consiste o mercado e o consenso não permite a
paz. Mas garante a segurança e o crescimento, através da competicão, e é quanto lhe basta. A
razão pragmática serve-se da competição como de um único meio, porque não tem outros. A
natureza deste mundo, mundo raso de imaterialidades, mundo da troca total, prevê a revisão,
mas não admite a subversão. Cada vez mais o radicalismo é aí um abencerragem, e também o
é qualquer inconformismo. Em política, a alternância é uma regra, mas a alternativa está
excluída. E veja-se a Cimeira do Ambiente de Quioto no Japão, que ocorreu há cerca de quatro
anos: nada de subverter a lógica da segurança e do desenvolvimento do sistema, o que quer
dizer, nada de subverter o sistema de produção industrial que envenena o planeta, nada de
subverter a lógica da globalização imposta pelo capitalismo hegemónico. Revisão,
moralidades, humanismo, vá que não vá. Alternativas, subversão da lógica do sistema,
alteração do nosso estilo de vida, cuidado com isso. Daí que em Quioto a alegria tenha sido
grande por termos diminuído de 6% a 8% a nossa ração de veneno.
Penso que este mundo, um mundo raso de imaterialidades, um mundo de troca total, não tem
apenas o favor dos média, como é comum dizer-se. Pelo contrário, num mundo em que o
importante é a vitória, o sucesso, ganhar sempre, os meios de comunicação social, e acima de
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todos eles a televisão, são o seu instrumento privilegiado, são o instrumento que o sistema de
sucesso encontrou para se dar em exibição e se reproduzir.
Relembro a SIC dos anos do seu apogeu. Por certo o canal mais emblemático da nossa
condição democrática, a SIC constituiu, anos a fio, um verdadeiro ícone do "capitalismo
imperialista liberal", como poderia dizer um marxista, se porventura o marxismo não tivesse
morrido, passe a ironia. Feita de mercado, competição, consenso, consulta popular,
sondagens, feita de debate e de transparência comunicacional, foi este canal até data recente
uma infatigável dobadoira da alternância e da revisão de sucesso. Nada lhe escapava da
política à religião e ao direito, da vida pública à vida privada e aos sentimentos, do sofrimento à
morte, em tempo real e em tempo virtual, em tempo ficcional e na ficção de todos os tempos.
A legitimidade deste mundo da troca total repousa no facto de se auto-construir, revendo-se
continuamente em todos os domínios, integrando as estratégias de sucesso, e suscitando
mesmo divergências, diferenças, disparidades (que todavia devem processar-se no respeito
pelas regras do desacordo). Auto-construindo-se, este mundo raso de imaterialidades vai-se
tornando cada vez mais complexo. E à força de tão grande complexidade, chega a poder
controlar e explorar as energias que antes eram meramente dissipativas, puro desperdício,
porque "naturais" ou "humanas". Alguém dizia que a saúde é o silêncio dos órgãos. A saúde do
sistema abafa os barulhos, ou seja, a subversão e as alternativas. Daí que emoção e prazer só
se for segundo as regras da transparência.
Volto a relembrar a SIC dos seus tempos áureos. O exemplo que apresento é o reality show
"All you need is love". Até há pouco tempo, o amor e a paixão enquanto sentimentos naturais e
humanos o mais que podiam fazer de um homem, se quisermos pensar num caso limite, era
levá-lo a estoirar os miolos, numa fragorosa confirmação, aliás, do seu desperdício. Pensando
em termos tradicionais, é um desperdício a energia que se consome em pura perda. "Louca da
casa", como da imaginação disse Descartes, havia era que cingi-la com o abraço de urso da
razão. Mas agora o caso muda de figura. O amor e a paixão passam a ter utilidade, deixam de
ser energia desperdiçada, ao integrarem a estratégia de sucesso da guerra de audiências de
uma estação televisiva. Ou seja, à semelhança do que acontece com a criação e a convicção,
também o amor e a paixão passam, pela competição, a servir o mercado e o consenso, os
quais, já o referi, funcionam pela lei do debate e da transparência.
Vi nas últimas eleições autárquicas um cartaz absolutamente admirável deste ponto de vista.
Em Amares, concelho do distrito de Braga, um dos concorrentes à Câmara local anunciou a
sua candidatura deste modo surpreendente: "Amizade para todos". Ora, é verdade que nós
somos amigos dos animais. Aqui, sim, é legítima a generalização hiperbólica, porque a
amizade é apenas uma força de expressão, apenas um mimo ternurento. Mas a amizade
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relativa a pessoas, todos o sabemos, é um bem raro, remete para uma escolha pessoal: os
amigos nós escolhemo-los, têm para nós um rosto, o que faz com que geralmente sejam
poucos. E no entanto, os cartazes da campanha política de Amares falam já de uma outra
realidade, uma realidade em que os sentimentos se tornam dóceis e úteis, servindo a razão
pragmática.
5. Para uma erótica colectiva
As operações de caça ao animal que vive no humano e os exorcismos para enxotar as
sombras que possuem o corpo individual e colectivo integram o regime de uma razão
pragmática, uma razão esgazeada pelo abismo do sucesso e assombrada pelo fantasma da
assepsia. As campanhas da tolerância zero e do risco zero, e a encenação da aventura
humana, através de viagens tranquilas ao reino da evasão, do exotismo e do fantástico,
viagens essas prodigadas pelas tecnologias, pelos média e pelos centros comerciais, cavam e
aprofundam o movimento de empobrecimento da experiência humana, diagnosticado por
Benjamin e Agamben. À comunidade falta-lhe hoje um corpo habitado por uma erótica gozosa.
Faltam-lhe afectos, paixão, desejo, sentimento, efervescência, jubilação.
Quando insistimos em designar o ataque às Twin Towers e ao Pentágono como "os
acontecimentos do 11 de Setembro e as suas consequências", estamos a integrar o terrorismo
no tradicional esquema histórico-político da nossa racionalidade, ou irracionalidade, finalista. A
meu ver, a abstenção cívica, a sedição quotidiana e a escalada terrorista participam de uma
mesma erótica funesta, espécie de reacção alérgica de um corpo social empobrecido,
desenraizado, votado ao abismo da troca total num mundo raso de imaterialidades. Embora em
gradações diversas, que vão da violência morna à violência bárbara, primitiva e sanguinária, do
que se trata sempre é de "eros" a deixar-se tentar e possuir por "thanatos".
Notas bibliográficas
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BENJAMIN, Walter, 1992 [1936], "O narrador. Reflexões sobre a obra
de Nicolai Lesskov", in Sobre arte, técnica, linguagem e política,
Lisboa, Relógio D’Água, pp. 27-57.
BENJAMIN, Walter, 1993, "Caratteristica della nova generazione", in
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Ombre Corte, Scritti 1928-1929, Turim, Einaudi.
CERTEAU, Michel de, 1980, La culture au pluriel, Paris, Christian
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MAFFESOLI, Michel, 2000, L’instant éternel. Le retour du tragique
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MIRANDA, José Bragança de, 1994, Analítica da actualidade, Lisboa,
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MIRANDA, José Bragança de, 1997, Política e Modernidade.
Linguagem e violência na cultura contemporânea, Lisboa, Colibri.
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