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53, mayo 2024: 1-27 Os Calibans da Terra Sobre os usos do personagem shakespeareano como autoidentificação do subalterno Los Calibanes de la Tierra Sobre los usos del personaje shakesperiano como autoidentificación del subalterno The Calibans of the Earth On the uses of the Shakespearean character as a self-identification of the subaltern Fabricio Pereira da Silva Resumo: O artigo compara diferentes utilizações do arquétipo “Caliban” na construção de identidades subalternas pelos próprios subalternos. Centra-se prioritariamente em intelectuais periféricos, delimitando “tipos ideais” de usos de Caliban pelos próprios subalternos. A partir de um exaustivo levantamento de usos do personagem, se estabelecem “imagens arquetípicas” que ele poderia projetar a partir daqueles usos. A questão central é por que razão esta inversão de sentido foi atrativa para tantos autores, ou seja, procurar a autoidentificação com um personagem apresentado como desprezível numa primeira leitura. Se pergunta também ao final se faria sentido ainda utilizar um personagem como Caliban para projetar grandes grupos humanos. Palavras-chave: A Tempestade de William Shakespeare; Caliban; intelectualidade periférica; identidades subalternas. Resumen: El artículo compara diferentes usos del arquetipo “Calibán” en la construcción de identidades subalternas, por parte de los propios subalternos. Se centra prioritariamente en intelectuales periféricos, delimitando “tipos ideales” de usos de Calibán por parte de los propios subalternos. A partir de un estudio exhaustivo de los usos del personaje, se establecen las “imágenes arquetípicas” que podría proyectar a partir de esos usos. La pregunta central es por qué esta inversión de sentido resultó atractiva para tantos, es decir, buscar la autoidentificación con un personaje presentado como un ser despreciable en una primera lectura. Al final  Brasileiro. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, Brasil). Professor do Departamento de Estudos Políticos e da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, Brasil). E-mail: fabriciopereira31@gmail.com. ORCID: 00000002-0266-4084. 1 53, mayo 2024: 1-27 también se pregunta si seguiría teniendo sentido utilizar a un personaje como Calibán para proyectar grandes grupos humanos. Palabras-clave: La Tempestad de William Shakespeare; Caliban; intelectualidad periférica; identidades subalternas. Abstract: The article compares different uses of the “Caliban” archetype in the construction of subaltern identities by the subalterns themselves. It focuses primarily on intellectuals of the periphery, delimiting “ideal types” of uses of Caliban. Based on an exhaustive survey of the character's uses, “archetypal images” are established that he could project from those uses. The central question is why this inversion of meaning was attractive to so many, that is, to seek selfidentification with a character presented as a despicable being on a first reading. The final question is also whether it would still make sense to use a character like Caliban to project large human groups. Keywords: William Shakespeare’s The Tempest; Caliban; Peripheral intellectuals; Subaltern identities. Recibido: 4 de diciembre 2023 Aceptado: 13 de abril de 2024 Introdução1 A senhorita me ensinou sua língua, e o que ganhei com isso foi que aprendi a praguejar. Que a peste vermelha acabe com vocês, por me terem ensinado sua linguagem. (A Tempestade, William Shakespeare, 2019 [16101611], p. 28) Como é sabido, se para algo serviu a Caliban2 aprender a língua inglesa com Miranda, foi para amaldiçoar a Próspero e sua filha de um modo que seus amos pudessem compreender. 1 Agradeço a Marcela Croce, Andrés Kozel, Bernardo Ricupero e Eduardo Devés pelas conversas e comentários sobre o tema aqui desenvolvido. Agradeço também pelas sugestões apresentadas pelos avaliadores anônimos, em especial o da Avaliação 1. 2 Adoto aqui a grafia “Caliban” seguindo Roberto Fernández Retamar (2004, pp. 35-36), em lugar de “Calibán” ou de “Calibã”. Com isso, o autor evitava demarcar a sílaba tônica. Retamar insistia na tese de que Caliban é um anagrama de “canibal”: “caníbal” na língua espanhola, cannibale na língua francesa, canibal na portuguesa, cannibal na inglesa. Com tal escolha, Retamar queria frisar o abandono da grafia que utilizou em seus primeiros escritos 2 53, mayo 2024: 1-27 Do mesmo modo, o personagem de Shakespeare foi apropriado por uma profusão de intelectuais subalternos para ilustrar e expressar sua revolta de um modo inteligível a seu subjugador. Este artigo compara diferentes usos do personagem na construção de identidades subalternas a partir dos próprios subalternos. Seu foco está em intelectuais que ocupam posições periféricas, epistemologicamente e geopoliticamente (o que hoje se denomina “Sul Global”), e não tem a intenção de esgotar todos aqueles possíveis usos, muito menos de mapear completamente a imensidão de autores periféricos que recorrem ao texto de Shakespeare com a intenção aqui analisada. De um modo geral, após exaustivo (mas evidentemente incompleto) levantamento de autores e de obras, delimitei cinco “tipos ideais” de usos de Caliban como símbolo de subalternidade pelos próprios subalternos. Estes tipos ideias (como qualquer tipo ideal) possuem fronteiras por vezes borradas, e podem se combinar com outros em alguns casos. Ajudam, porém, a abordar o tema e a organizar a discussão. Com este exercício, procuro enfrentar algumas perguntas. Primeiramente, por que em determinado momento foi atrativa para tantos essa inversão de sentido, ou seja, buscar autoidentificação com um personagem apresentado como desprezível em suas primeiras leituras e releituras? Ela sem dúvida se assemelha à inversão da visão sobre o negro realizada um pouco antes pelo Movimento da Negritude. Cabe questionar também por que tanta atenção àquele específico texto de Shakespeare, que não estava em princípio entre os de maior circulação dentre a extensa produção atribuída ao dramaturgo inglês, e naquele texto a um específico personagem que não parece ser central. Finalmente, cabe refletir se faria sentido continuar associando povos, regiões, parcelas inteiras de humanidade a arquétipos e a imagens arquetípicas. Em que sentido Caliban poderia ser entendido como um “arquétipo”, ou talvez melhor, como uma “imagem arquetípica” recorrente? Bernardo Ricupero (2021) observa que um dos primeiros autores que associaram o personagem ao colonialismo e ao colonizado, o psicanalista francês Octave Mannoni, em Psychologie de la Colonisation (1950), já apresentava Caliban, Ariel, o Sexta-Feira (de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe) e as várias representações dos canibais como expressões de arquétipos. Aimé Césaire, no seu último grande texto sobre o conceito de “negritude” (e talvez o mais interessante), o Discours sur la Négritude (1987), afirmava se importar pouco com cromossomos, mas crer nos arquétipos (Césaire, 2004[1987], p. 83). A começar pelos “arquétipos” e “imagens arquetípicas” definidos por Carl Jung, remetese a padrões da ordem da herança histórica e do inconsciente coletivo, padrões que não se sustentam num essencialismo biológico (racial, genético), mas de todo modo em repetições e em permanências. Considero o canibal de Michel de Montaigne, o bom selvagem de JeanJacques Rousseau, o antropófago de Oswald de Andrade, o Macunaíma de Mário de Andrade, o gaucho de José Hernández, o negro de Césaire, os usos de Caliban aqui analisados, e tantos e (“Calibán”), e ao mesmo tempo adotar o que entendia ser uma postura anticolonialista, considerando que a forma “Calibán” utilizada por quase todos os autores hispano-americanos era um contágio francês (de cannibale). No entanto, mantenho a grafia “Calibã” em citações de autores que a utilizam, em fidelidade a seus textos. 3 53, mayo 2024: 1-27 tantos outros como exemplos de arquétipos ou de imagens arquetípicas utilizados na busca por definições sintéticas de um povo, uma nação, uma raça, uma região3. Cabe frisar mais uma vez que não há intenção de esgotar o tema nestas páginas, abordar todas as obras que se utilizaram dos personagens de A Tempestade como imagens arquetípicas – apesar da extensa pesquisa realizada. Cabe também explicitar que este não é um texto sobre Shakespeare, sobre A Tempestade, ou mesmo sobre a recepção desta obra ao longo dos séculos. O foco está posto nos específicos usos de um determinado personagem, propondo a elaboração de tipos ideais daqueles usos, os quais serão construídos a partir de algumas das releituras que estão entre as mais conhecidas. Para selecionar estas releituras, este artigo não faz distinções entre ficção e não-ficção, entre escritos políticos/militantes ou acadêmicos. Considera-se que todos os usos de Caliban podem interessar a esta análise. De todo modo, ficcionais ou não, acadêmicos ou não, todos os textos aqui analisados são políticos, pois querem intervir numa realidade opressiva. O texto se estrutura da seguinte forma. Na próxima seção, apresento um resumo do argumento da peça, debato alguns possíveis significados para o personagem naquela obra e contexto, procuro delimitar o período e as razões pelas quais Caliban se converteu na imagem arquetípica de subalterno para os próprios subalternos. Na seção seguinte, delimito cinco tipos ideias de Caliban: o “negro colonizado”, o “negro pós-colonial”, o “mestiço latino-americano e caribenho”, o “antropófago”, e o “operário filho de Sycorax”. Por fim, abordo os desusos de Caliban nas últimas décadas, sugerindo algumas chaves para este desinteresse e enfrentando a questão da atual viabilidade de se continuar associando grandes grupos humanos a imagens arquetípicas. Os usos de A Tempestade como (auto)identificação: afinal, quem é Caliban? Consideremos que nem todos os leitores deste texto se recordarão de A Tempestade. Apresentarei então muito brevemente o argumento da peça – me desculpando desde já pelos spoilers. A ação se passa(ria) numa ilha do Mediterrâneo, entre algum ponto entre a Península Itálica e a costa argelina. Próspero, Duque de Milão, é traído e expulso do Ducado por seu irmão Antônio com o apoio de Alonso, Rei de Nápoles. É deixado à deriva no mar com sua filha Miranda, então uma menina, e acabam chegando a uma ilha “deserta”. Próspero, controlador de artes mágicas, escraviza duas criaturas que ali encontra: Ariel, espírito etéreo e Quando comecei a imaginar essa pesquisa, a pensava a partir de termos como “analogias” e “metáforas”. Por exemplo, entender Caliban como uma analogia do colonizado, ou seu aprendizado da língua de Próspero e de Miranda como uma metáfora da preservação do uso da língua do colonizador por povos formalmente descolonizados. Foram diversas conversas com Marcela Croce ao longo dos últimos anos que me levaram às ideias de “arquétipos”, “imagens arquetípicas” e “personagens-arquétipo”. Se formos considerar as reflexões junguianas que deram origem a tais usos, veremos que o mais preciso é considerar Caliban como uma “imagem arquetípica” ou (mais literalmente) um “personagem-arquétipo”, que serão as noções preferencialmente utilizadas aqui. Isto porque os arquétipos estariam presentes apenas no inconsciente coletivo, se manifestando concretamente mais precisamente em imagens arquetípicas. 3 4 53, mayo 2024: 1-27 nobre; e Caliban, “escravo selvagem e deformado” filho da bruxa Sycorax. Quanto a Caliban em particular, Próspero afirma tê-lo escravizado após uma tentativa de estupro de Miranda, o que é confirmado por Caliban: “Tu me impediste, mas eu poderia ter povoado esta Ilha de Calibanzinhos!” (Shakespeare, 2019 [1610-1611], p. 27). Próspero se torna senhor da ilha por doze anos, até o momento em que a ação da peça se desenrola. Se utilizando de sua magia e do controle que exerce sobre Ariel, provoca um naufrágio que leva Antônio e Alonso à ilha. Ali, eles e seus agregados são atormentados e confundidos pelas artes mágicas de Próspero e de Ariel, enquanto aproximam Miranda (agora uma jovem donzela) de Ferdinando, herdeiro do Reino de Nápoles. Enquanto estas duas ações se desenrolam, Caliban é encontrado por dois serviçais dos nobres, Trínculo e Estéfano. Bêbados, eles tramam uma rebelião contra seus senhores, facilmente desbaratada – dada a inépcia dos três. Ao final, Próspero se arrepende de seu plano de vingança contra seus algozes (ou talvez considerasse este desenrolar desde o início?), ao mesmo tempo em que obtém sucesso na aproximação de sua filha com o herdeiro napolitano. Num final de reconciliação, anunciam-se alguns acontecimentos que não serão retratados na peça. Próspero, com seu ducado restituído, afirma que todos viajarão a Nápoles para o casamento de Ferdinando e Miranda, a bordo do navio magicamente recuperado, e que posteriormente retornará a Milão. Promete nunca mais lançar mão de seus poderes mágicos e enfim libertar Ariel, como prometido ao longo de toda a ação. Não fica claro o que ocorrerá com Caliban. Não restam muitas dúvidas de que o herói da trama é Próspero. Toda a peça é estruturada a partir da luta de Próspero para controlar a Natureza (à qual Ariel, Caliban e Sycorax estão associados) e procurar intervir sobre a Providência. O faz através de seus estudos, suas artes, seus conhecimentos de “magia branca”. Próspero poderia até mesmo ser um alter ego do velho Shakespeare no final de sua vida, refletindo sobre sua trajetória e seus conflitos internos. O encerramento da peça (o apelo final por perdão de Próspero ao público) pareceria remeter a uma despedida do autor (algo sugerido por Bloom, 1998, entre muitos outros). Possivelmente, esta associação de Próspero a Shakespeare seria problemática para nossos autores subalternos aqui analisados, e não algo comum entre estes autores. Se Próspero é evidentemente o herói no texto original, nestas releituras ele nos é apresentado como vilão: é o colonizador, o opressor. Associar diretamente o próprio autor do texto que é reinterpretado à colonização e à opressão poderia ser um exercício doloroso, podendo até mesmo levar à negação de sua obra. Por sorte, a realidade é bem mais complexa e matizada do que isso. Não tivemos que presenciar qualquer tentativa de “cancelamento” de Shakespeare até o momento. Mas afinal, quem é Caliban em A Tempestade4? Um inferior, sem dúvida, retratado como um selvagem, deformado, sub-humano, animalizado, com “odor de peixe”. Fenotipicamente, é descrito como “sardento”, e sua mãe Sycorax “de olhos azulados” e originada da Argélia – 4 Para ir além da ênfase colonial que demos a este artigo (mas também considerando com atenção este aspecto), provavelmente a principal análise dos usos de Caliban é o livro de Alden Vaughan e Virginia Mason Vaughan, intitulado Shakespeare’s Caliban – A Cultural History (1991). Outra referência a ser citada é a obra organizada por Nadia Lie e Theo D’Haen, intitulada Constellation Caliban: Figurations of a Character (1997). 5 53, mayo 2024: 1-27 enquanto Próspero se refere a Caliban como “esta coisa escura”. Se formos ler literalmente o texto5, Caliban teria origem africana, no Norte da África possivelmente: tuaregue, cabila. É com propriedade que Ali Alshhre (2017) associa “Caliban” a uma corruptela de Cabília, região do norte da Argélia e território dos cabilas, um dos povos berberes. Também afirma que Caliban seria um negro africano, remetendo à afirmação de Vaughan e Vaughan (1991) e alguns outros do conhecimento que teria Shakespeare da palavra cauliban, “negro” na língua romani. Esta associação já é mais controversa, dada a referência no texto ao seu aspecto sardento – o que também complicaria sua associação a um indígena americano. De todo modo, Caliban parece remeter a diversas referências, e seus aspectos fenotípicos não deveriam ser lidos tão literalmente. A ilha na qual a trama se desenrola propriamente se parece mais com uma ilha caribenha do que uma próxima ao norte da África. No texto há diversas referências ao Novo Mundo (conferir Ricupero, 2014, nota 1). Afirma-se haver inspiração da leitura do ensaio de Michel de Montaigne “Dos Canibais” (1580) para a criação do personagem. Mas recordemos que Montaigne remetia em seu ensaio aos tupinambás do Brasil, não ao Caribe. Por sua vez, Setebos, a deidade adorada por Sycorax na peça, é de origem patagônica. Enfim, a partir dessa associação com indígenas americanos (vagamente de qualquer parte do Novo Mundo) convencionou-se associar Caliban a partir do século XIX a uma corruptela de “canibal”, consequentemente e mais especificamente de “caribe” (como em Bruner, 1976, e em Retamar, 2004) – mais do que a “Cabília” ou a outras possibilidades já aventadas pela literatura especializada. Efetivamente, pode-se considerar que há influências diversas na caracterização do personagem Caliban e de um modo geral na elaboração do texto, passando pelos relatos de viagens ao Novo Mundo, por Montaigne, pela literatura utópica, e evidentemente pela política inglesa. Shakespeare provavelmente lançou mão de todos os recursos que naquele contexto estavam associados ao que estava começando a ser elaborado (e seguiria sendo ao longo dos séculos seguintes) como o “exótico”, o “utópico”, o “selvagem”, o “Oriente”. É a esta ambiência, me parece, que a peça quer remeter a plateia. Evidente que toda esta complexidade de significantes favorece as muitas releituras e entendimentos sobre Caliban, como indígena americano, norte-africano, negro africano, e mesmo o “selvagem” no interior das sociedades da própria modernidade ocidental em ascensão (o que veremos quando tratarmos do Caliban de Silvia Federici) (Bruner, 1976, Nixon, 1987, Vaughan, Vaughan, 1991, Lie, D’Haen, 1997, Valdés García, 2017, 2020, Bonfiglio, 2021). Não me atrevo a adentrar neste debate sobre os sentidos e intenções do autor – para o qual não tenho qualquer expertise. Retorno à imagem arquetípica Caliban: por que tanto interesse, num contexto histórico tão específico, a este personagem de Shakespeare em particular? Com poucas exceções, estou me referindo aqui a um período que vai do início dos anos 1950 a meados dos 1970 – e numa recorrência ainda mais concentrada, da virada dos 5 Mas apenas se formos ler o texto literalmente... Essa passagem em especial se tornou uma das mais debatidas da obra, e uma das possíveis leituras é a de que Próspero se referiria a um conflito com sua própria escuridão interior ao afirmar “esta coisa escura eu reconheço ser meu”. 6 53, mayo 2024: 1-27 anos 1960 para os 1970. Num determinado momento o personagem se torna interessante, e depois disso quase sai de cena. As razões para a saída de cena podem ser mais bem discutidas ao final, mas desde já se pode associar a fortuna do personagem naquele momento ao despertar do Terceiro Mundo, do “espírito de Bandung”. Trata-se dos anos imediatamente anteriores e posteriores aos processos de descolonização da maior parte da África, da Ásia e do Caribe. Adicionalmente, de mobilizações na América Latina (formalmente independente) por sua “Segunda Independência” e pela Revolução Socialista, dois processos de forma alguma desassociados naquele contexto. Caliban é entendido então como o sujeito colonial, o subalterno, o condenado da Terra, o oprimido. Em especial, associado aos povos que habitam aquilo que contemporaneamente seria denominado vagamente como o “Sul Global”. Porém, não é simples se associar a um personagem que em princípio é caracterizado de modo tão desprezível no texto original. Ali Caliban tem seus momentos de graça e inteligência, mas no geral é associado como vimos a um ser sub-humano, a tolices, à ignorância, ao fedor, ao estupro. Não há dúvidas, o herói ali é Próspero, enquanto Ariel (ainda que escravizado) é associado a diversas qualidades e talentos. Não à toa, a recepção latino-americana do texto começou no final do século XIX através da associação da região a Ariel, e dos EUA a Caliban. Assim, os escravos Ariel e Caliban eram apresentados como antíteses geradas pela colonização da América – também respectivamente de heranças latinas e anglo-saxãs, e de valores aristocratas e populares (medíocres). Aquela recepção foi em boa medida indireta: se deu a partir da França, em particular da releitura da peça realizada por Ernest Renan (Caliban: Suite de La Tempête, de 1878) na qual se associou demofobicamente Caliban ao povo e em particular aos communards da Comuna de Paris6. Adicionalmente, possuía muito de latinista e particularmente de hispanista: tratava-se de uma reação à ascensão dos EUA, exacerbada com sua vitória sobre a Espanha na guerra de 1898 que praticamente extinguiu o império espanhol. Era uma recepção realizada por intelectuais hispano-americanos que se viam como parte desta herança, do ramo latino ou mais particularmente hispânico do Ocidente. Primeiramente, o crítico francês radicado na Argentina Paul Groussac e o fundador do modernismo hispano-americano Rubén Darío (a partir de 1893), e na sequência José Enrique Rodó (em seu clássico Ariel de 1900) foram os principais operadores desta associação de Ariel à América Latina, em oposição aos calibanescos EUA (Ricupero, 2016, Turatti, 2016). Desse modo, estes primeiros usos de Caliban na periferia o assumem em chave negativa, associando-o ao agressor (Vaughan, Vaughan, 1991). Isso naturalmente respeitava toda a tradição de interpretações negativas do personagem, fartamente sugeridas no texto de origem. Sabemos, porém, que décadas depois foram as associações em chave positiva da América Latina a Caliban que se impuseram, e mais do que isso, de outras regiões e grupos periféricos do mundo. Caliban iniciava então sua ressignificação. Elementos daquela imagem arquetípica, até então entendidos como sub-humanos, passavam a ser revalorizados: sua 6 Mas também de Alfred Fouillée (em L´idée moderne du droit, de 1878), que criticava a releitura de Renan e defendia uma conciliação entre Ariel e Caliban, entre aristocracia e democracia. 7 53, mayo 2024: 1-27 agressividade, pele presumidamente escura, associação à natureza, os saberes ancestrais herdados de sua mãe, sua revolta e, finalmente, a tentativa de rebelião contra seu mestre. Aqui deve-se explicitar que quem recorria a Caliban no período que interessa a esta análise (principalmente o terceiro quarto do século XX), na América Latina e em outras zonas e grupos periféricos, era uma figura bem específica: a do intelectual que se reconhecia como colonizado, periférico. Ele era erudito o suficiente para remeter àquela referência shakespeariana, mas por sua condição subalterna teria que exprimir sua revolta recorrendo à literatura do colonizador. Sem dúvida um tipo híbrido, de fronteira. Este intelectual Caliban é no final das contas o objeto deste artigo, se considerarmos bem. Porém, há diversos modos de se assumir como um intelectual Caliban. Se pode definir “tipos” de Calibans e de “intelectuais Caliban”, ou melhor, de usos da imagem arquetípica Caliban. É a isto que a próxima seção vai se dedicar. Os tipos de Caliban Caliban, o negro colonizado É provável que a reinterpretação mais famosa de A Tempestade seja a de Aimé Césaire. Não é nem a primeira reelaboração periférica da obra, nem mesmo a primeira que podemos localizar no Caribe ou entre pensadores negros de um modo geral7. Porém, pode-se considerar Une Tempête (1969)8, esta adaptação da obra de Shakespeare para um teatro negro realizada por nosso poeta da negritude e do anticolonialismo, como a versão paradigmática do Caliban negro e colonizado. Aqui temos o negro escravizado que luta contra seu senhor, bem como o negro colonizado que luta contra seu colonizador. Césaire converte Caliban no herói da negritude, noção que ele mesmo havia desenvolvido décadas antes, e do pensamento anticolonial, do qual é talvez o principal referente. Césaire reelabora a obra de Shakespeare com consideráveis modificações. Aqui Próspero é um senhor de escravos, Caliban é um “escravo negro”, e Ariel um “escravo, etnicamente um mulato”. Caliban organiza ao longo da peça uma rebelião contra seu senhor, enquanto Ariel procura demovê-lo de seus planos, propondo negociar com Próspero, provocar nele uma autoconsciência da opressão que exerce. Caliban é o protagonista da trama, e parece ser o herói, um herói “revolucionário”. Próspero é sua antítese. Ariel é quem parece assumir uma posição mais dúbia, que poderia ser lida como “reformista”. Naquele contexto, poderia remeter a movimentos de libertação nacional que não propõem a independência imediata, que 7 A primeira referência caribenha a Caliban parece ser do barbadiano George Lamming, em The Pleasures of Exile (1960). Em 1969, o também barbadiano Edward Kamau Brathwaite inclui um poema sobre Caliban em seu livro Islands, Césaire publica Une Tempête, e Retamar “Cuba hasta Fidel” (seu primeiro texto fazendo um paralelo entre América Latina e Caribe e Caliban). 8 Une Tempête é a quarta e última obra teatral do autor, que antes havia escrito Et les chiens se taisaient (1958), La tragédie du Roi Christophe (1963) e Une saison au Congo (1966). 8 53, mayo 2024: 1-27 constroem soluções negociadas, talvez a seu próprio amigo Léopold Senghor. Mas é o próprio Césaire quem admite que estava marcado por referencias norte-americanas durante a elaboração da peça, naquele conturbado final de década. Desse modo, é mais simples associar Caliban a Malcolm X (o próprio personagem afirma em sua primeira entrada em cena que a partir de então se chamaria “X”) e aos Panteras Negras, e Ariel a Martin Luther King (Crispin, 2010). O texto é repleto de referências de época. Por exemplo, quando Caliban grita “Freedom Now!” (em inglês no original), o lema Black Power estadunidense. Ou “Uhuru!” (liberdade em Swahili), expressão usada na Revolta dos Mau Mau ao longo dos anos 1950 e naquele momento bastante utilizada por Julius Nyerere. Como mencionado, Caliban afirma que não se chamaria mais Caliban, mas X9: Caliban: Bem, é o seguinte: decidi que não vou ser mais Caliban. Próspero: Que idiotice é essa? Não entendo! Caliban: Te digo que a partir deste momento não respondo mais ao nome de Caliban. Próspero: De onde veio isto? Caliban: Bem, de que Caliban não é meu nome. É simples! Próspero: Talvez seja o meu! Caliban: É o apelido com o qual teu ódio me vestiu e do qual cada chamado me insulta. Próspero: Porra! Ficamos susceptíveis! Bem, sugira... É preciso que eu te chame de alguma maneira! Como vai ser? Canibal te cairia bem, mas estou certo de que você não vai gostar! Vejamos, Aníbal! Esse te cai bem! Por que não! Todo mundo gosta de nomes históricos! Caliban: Me chame X. É melhor. Com quem diz o homem sem nome. Mais exatamente, o homem ao que lhe roubaram o nome. Você fala de história. Bem, isso também é história, e famosa! Cada vez que me chamar, isso me vai fazer lembrar o fato fundamental, que você me roubou tudo, inclusive minha identidade! Uhuru! (Césaire, 1997, pp. 27-28). Apesar da referência ao canibalismo no trecho acima (lembremos da associação mais comum de Caliban aos indígenas do Novo Mundo e ao Caribe), O Caliban de Césaire é atravessado por referências negro-africanas. Há diversas referências ao deus iorubá Shango (Xangô, o único personagem novo que Césaire insere na trama), a já mencionada uhuru, e chama atenção a conexão de Caliban com as forças da natureza. Isso remete à visão sobre o negro presente tanto no Movimento da Negritude quanto nas diferentes versões de “socialismos africanos”, com as quais Césaire (e Senghor) dialogou (Pereira da Silva, 2023). Caliban se integra à natureza, a sente e com ela conversa (capacidade herdada de sua mãe Sycorax, de seus antepassados portanto), enquanto Próspero é a “antinatureza”. Caliban tem o 9 Como o X adotado por Malcolm X, representando o desconhecimento em relação a seus antepassados africanos, o roubo da memória pelo processo de escravização. 9 53, mayo 2024: 1-27 mar por companheira, ouve as canções do vento. Enquanto organiza sua rebelião, convida os animais a apoiá-lo: Para trás, víboras, escorpiões e ouriços! Feras que picam, mordem e perfuram! Com ferrão! Com febre! Com veneno! Para trás! Ou se insistirem, para me lamberem descubram uma língua favorável como a do sapo, cuja baba pura me embala em sonhos encantadores do futuro. Porque é por todos vós, por todos nós, que eu enfrento hoje o inimigo comum. Sim, hereditário e comum... Olha, um ouriço! Meu doce pequenino... Que um animal, se assim posso dizer, natural, venha atrás de mim no dia em que eu parto ao ataque de Próspero é esperado! Próspero é a antinatureza. Eu digo: abaixo a antinatureza! Olha, ao ouvir estas palavras, o nosso ouriço se ouriça? Não, ele retrai seus espinhos! Isso é a Natureza! Ela é gentil, em suma! Basta saber falar com ela! (Césaire, 1997, pp. 74-75). A maior mudança da versão de Césaire em relação ao original ocorre – não poderia deixar de ser – no final da trama. Caliban percebe que Trínculo e Estéfano não poderiam ajudá-lo em sua Revolução (os proletários brancos parecem não ser confiáveis afinal), e decide atacar Próspero sozinho, mas não tem coragem de assassiná-lo desarmado. Ariel aprisiona Caliban, Trínculo e Estéfano. Como se sabe, ao final da peça Próspero é atravessado por afãs de perdão, e procura arrependimento em Caliban. Este afirma só se arrepender de ter fracassado em sua rebelião: Próspero: O que esperava? Caliban: Tomar de novo minha ilha e reconquistar minha liberdade. Próspero: E o que faria sozinho nesta ilha frequentada pelo diabo e sacudida pela tempestade? Caliban: Para começar, me livrar de você… Te vomitar. A você, tuas bombas, tuas obras! Vomitar tua toxina branca! Próspero: Como programa é mais para negativo… Caliban: Você não está nele, já disse que te vomitaria, e isso é muito positivo… Próspero: Decididamente é o mundo de ponta-cabeça. Já vimos de tudo: Caliban dialético!10 (Césaire, 1997, pp. 86-87). Próspero, como um bom colonizador que se considera responsável pela colônia e pelo colonizado (obras civilizatórias suas afinal, o seu “fardo de homem branco”), afirma amar Caliban, e argumenta que vivem juntos há dez anos, sendo dessa forma “compatriotas” em algum sentido. Em vão. Em um pungente discurso de autoafirmação de sua humanidade negada por Próspero, Caliban prevê que seu colonizador não retornará à Europa, por estar aferrado à sua “missão civilizatória”, à sua “vocação”: “sua vocação é me foder! E por isso vai ficar, como essa gente que fez as colônias e não pode mais viver em outro lugar” (Césaire, Difícil não remeter às insistentes críticas recebidas pela negritude de que seria um “racismo às avessas”, ou à famosa defesa que dele fez Jean-Paul Sartre de que constituiria dialeticamente um necessário “racismo antirracista”, uma antítese do racismo branco, mas que no futuro estaria fadado a desaparecer. 10 10 53, mayo 2024: 1-27 1997, p. 89). E de fato Próspero fica, no que é possivelmente a grande reviravolta desta versão: “Sem mim esta ilha é muda. Aqui, então, está meu dever. Ficarei” (Césaire, 1997, p. 90). Ato contínuo à saída de cena dos outros personagens europeus, Próspero faz menção de lutar com Caliban. Cai o pano até a metade e volta a subir, sinalizando a passagem do tempo. A cena final se passa na penumbra, com Próspero envelhecido, cansado, perturbado, acossado pela natureza. Temos enfim um Caliban vitorioso em sua longa guerra de libertação, integrado a seu ambiente, senhor de sua ilha: [Próspero:] Vou me defender... Não vou deixar minha obra morrer... (Gritando.) Vou defender a civilização! (Dispara em todas as direções.) Tomem... Tenho um momento para ficar tranquilo. Mas está frio... É estranho, o clima mudou... Faz frio nesta ilha... Devíamos pensar em acender uma fogueira... Bem, meu velho Caliban, somos só nós dois nesta ilha, nada mais que você e eu. Você e eu! Você-eu! Eu-você! Mas, o que está fazendo? (Gritando.) Caliban! Se escuta ao longe, entre o barulho da ressaca e o chilrear dos pássaros, os vestígios do canto de Caliban. A LIBERDADE AH, A LIBERDADE! (Césaire, 1997, p. 92) Em resumo, este é o Caliban anticolonial. Remete tanto ao passado de negro escravizado no processo de colonização das Américas, quanto ao negro colonizado na África. Trata-se de um Caliban em busca da liberdade, em luta de vida e morte com o outro polo da dicotomia: o colonizador Próspero. Caliban, o negro pós-colonial Caliban também se estabeleceu na África Sul-Saariana, e se prestou a ser reapropriado por intelectuais negro-africanos como um símbolo de rebeldia do colonizado. Mas se notabilizou principalmente como uma imagem arquetípica da necessidade de um processo de “descolonização mental”, na medida em que teve que se apropriar da língua dos colonizadores para poder se fazer entender. Neste sentido, quero tratar de duas obras: Franz Fanon’s Uneven Ribs: Poems, More & More [As costelas desiguais de Frantz Fanon: poemas, mais e mais] (1971), do ugandense e sul-sudanês Taban Lo Liyong; e Homecoming: essays on African and Caribbean literature, culture and politics [Voltando para casa: ensaios sobre literatura, cultura e política africana e caribenha] (1972), do queniano Ngũgĩ wa Thiong'o11. Interessa a ambos os escritores e críticos literários (que colaboravam e trabalhavam juntos naquele período no Quênia) o 11 O ganense Raphael Ernest Grail Armattoe parece ter sido o primeiro autor negro-africano a fazer uma associação de sua condição a Caliban e ao texto shakespeareano, em poemas reunidos em seu livro póstumo Deep Down the Blackman’s Mind (1954). Antes um autor inglês radicado por algum tempo na África do Sul, Leonard Barnes, em Caliban in Africa: an impression of colour-madness (1930) havia associado Caliban negativamente aos africâneres e ao regime de apartheid que estavam estabelecendo. 11 53, mayo 2024: 1-27 Caliban que amaldiçoa o colonizador na língua que lhe foi ensinada. No caso de Thiong'o, esse tipo de reflexões levaria na sequência à sua conhecida decisão política de renunciar parcialmente à língua de Próspero (e de Miranda) para escrever em kikuyu. Aqui as referências à relação entre Próspero e Caliban passam por uma reflexão em torno da colonização mental, entendendo a supressão da identidade, história e cultura do colonizado pelo colonizador como elementos fundamentais da dominação. Nesse sentido, o texto de Shakespeare – um referente fundamental do cânon literário do colonizador – se apresenta como um recurso para a descolonização mental. Seu próprio uso já denota uma hibridação, uma transculturação, ou seja, implica na criação de algo novo. Esse recurso pode ser entendido como um ato de antropofagia, e veremos isso quando tratarmos do Caliban de Darcy Ribeiro. Pode-se considerar que as abordagens de Lo Liyong e de Thiong'o são distintas e de certo modo disruptivas em relação ao projeto liberacionista de Césaire. Lo Liyong e Thiong'o, representantes da geração de intelectuais posterior às descolonizações africanas, se apropriam de Caliban agora para apontar os limites da descolonização, e questionar quais seriam os próximos passos. Parecem dizer: “seguimos colonizados mesmo após as independências. E agora? O que fazer a seguir?” Enquanto a resposta de muitos intelectuais do final dos anos 1960 e princípio dos 1970 passava pelo marxismo africano, outros começavam a delinear viradas que mais tarde seriam enquadradas em vagas etiquetas, como a do “pós-colonial”. Nesse sentido, chama atenção este trecho tão carregado de humor e ironia – como de costume na obra de Lo Lyiong: Bill Shakespeare / Criou um personagem chamado Caliban, / O servo relutante de Próspero, / E este Caliban poderia ter tido Miranda / – Ela que é uma coisa linda de se ver – uma garota / Tão necessitada de amor e para quem / Ferdinando era uma maravilha de um admirável mundo novo, / E que poderia ter ajudado Caliban a povoar a ilha / Com Calibanzinhos cheirando a peixe / Se Próspero não tivesse estragado seu plano. / Uma coisa sobre Caliban: foi-lhe ensinada a língua / E que pote cheio de maldições continha! / O papagaio criado pelos irmãos de Long John Silver / Teria morrido de inveja. / Caliban disse: Ensinaste-me a língua / E que posso fazer com ela / A não ser amaldiçoar-te? / (A propósito, / Também me chamo Taban / Muito próximo de Caliban / E ensinaram-me a língua / E que faço eu com ela / A não ser amaldiçoar, à minha maneira?) / Faz bem à Humanidade / Ensinar aos homens as palavras / Sem prévia triagem / Dos que delas fariam / Um uso humano / E daqueles que apenas permanecem / A inclinar o mundo / E a deslocá-lo / Pelo mero poder das palavras (Lo Liyong, 1971, p. 41). Neste trecho há uma associação do autor a Caliban, que chama atenção para a semelhança de seu nome com o do personagem (diz-se que ele teria assumido esse pseudônimo inclusive como uma derivação de Caliban). Taban também lança mão da linguagem do colonizador para amaldiçoá-lo, à sua maneira: para inclinar, deslocar o mundo com o poder de suas palavras. Palavras poderosas estas. Vale também mencionar sua referência a outro personagem não-branco (negro, ou talvez árabe) de Shakespeare: “caliban cheirava a 12 53, mayo 2024: 1-27 peixe / disse trínculo / mas uma besta de carga tem de cheirar a alguma coisa / se não for peixe cheira a comida / homem a homem otelo venceu iago / em confronto direto / são os atos dissimulados que desorientam o mundo” (Lo Liyong, 1971, p. 68). Otelo, o “moro de Veneza”, ao final assassinou sua esposa Desdêmona e se suicidou motivado pela trama ardilosa do vilão Iago. Nota-se nos textos de Lo Lyiong a valorização do desvio, do subliminar, em lugar do enfrentamento aberto. A dissimulação e as palavras podem mudar o mundo, “inclinando-o”, “deslocando-o”, “desorientando-o”. Pode-se considerar isto a intenção de lançar luz sobre formas culturais, simbólicas de dominação, mas também de resistência e de luta – geralmente legadas às sombras. Como não poderia deixar de ser, Ngũgĩ wa Thiong'o é mais explícito em seus ensaios, destacando o empenho do colonizador europeu em destruir os valores do colonizado africano, “na tradição clássica de Próspero”: “Shakespeare dramatizou a prática e a psicologia da colonização anos antes de esta se tornar um fenômeno global” (Thiong'o, 1972, p 7). Thiong'o descreve bem o processo que levou Próspero a se assenhorear da ilha e de Caliban: Próspero, o estrangeiro na ilha, chega com a voz suave da serpente. A princípio, ele é simpático com Caliban e lisonjeia-o, mas o tempo todo está aprendendo os segredos da ilha. Para ele, Caliban não tem cultura nem passado significativo. Ele até deu a sua língua para Caliban. E antes que Caliban perceba, Próspero se apodera de sua terra, estabelece um governo de um homem só e transforma Caliban num trabalhador escravo (Thiong'o, 1972, pp. 8-9). Thiong'o traça um paralelo entre as atitudes de Próspero e tudo que no processo colonizador se dedicava a negar a humanidade do colonizado africano. Pois, assim como Próspero, o colonizador europeu “conhecia e temia a ameaça representada por homens confiantes no seu passado e na sua herança. Por qual outra razão ele dedicaria o seu poderio militar, o seu fervor religioso e a sua energia intelectual para negar que o africano tivesse deuses verdadeiros, tivesse uma cultura, tivesse um passado significativo?” (Thiong'o, 1972, p. 9). Negando sua religiosidade, cultura, história, linguagem, o colonizador recusava ao colonizado sua humanidade, e consequentemente sua capacidade de resistência e de autogestão – do mesmo modo que Próspero procurou fazer com Caliban ao longo de todo o texto de Shakespeare. Resumidamente, este tipo de Caliban é o negro pós-colonial. Formalmente livre da escravização e da colonização, ele ainda se percebe efetivamente dominado – entre outros elementos, pela colonização mental que persiste. A situação complexa e algo inesperada pode exigir alguma ironia em seu tratamento, e certamente o uso de novas estratégias de libertação em relação a uma dominação agora mais difusa. Caliban, o mestiço latino-americano e caribenho Considero que as reflexões em torno de Caliban produzidas por Roberto Fernández Retamar sejam de longe as mais conhecidas no campo intelectual latino-americano e caribenho. 13 53, mayo 2024: 1-27 A utilização por Retamar do que ele trataria como “conceito-metáfora” ou “personagem conceitual”12 para definir a identidade latino-americana e caribenha foi longa e profícua, no que é provavelmente a mais insistente relação com aquilo que prefiro considerar aqui uma imagem arquetípica. As reflexões do intelectual cubano foram reunidas na obra Todo Caliban, cuja edição do CLACSO de 2004 é a versão mais completa. Aqueles textos seguem alimentando debates sobre a identidade regional, e dividindo os críticos, entre aqueles que defendem a vigência de Caliban como sujeito unificado e símbolo da região, a despeito dos “relatos pósmodernos, multiculturais e pós-estruturalistas” (como Néstor Kohan, 2013, p. 115); e aqueles que julgam este tipo de uso como essencialista e mesmo antimarxista, como é o caso de Alejandro Fielbaum (2023). Na obra de Retamar vemos o Caliban antilhano que vai se metamorfoseando em latinoamericano. Um indígena caribenho que não pode mais falar por si mesmo, ou não podia então falar por si mesmo. Agora trata-se de um Caliban não mais indígena, ou negro, mas mestiço – como mestiço seria o subcontinente latino-americano e caribenho, este novo sujeito histórico que emerge das reflexões de Retamar. Este argumento pode ter sido retrabalhado e matizado nos escritos posteriores, mas no seminal “Caliban” de 1971 está lá de modo explícito: “existe no mundo colonial, no planeta, um caso especial: uma vasta zona para a qual a mestiçagem não é o acidente, mas a essência, a linha central: nós, ‘nossa América mestiça’” (Retamar, 2004, p. 5). A história da região, bem como sua cultura mestiça13, é para nosso autor a história e a cultura de Caliban. É a esta cultura, dando seus primeiros passos, que nosso autor dedica sua atenção, uma cultura com características próprias: ainda que nascida (como toda cultura) de uma síntese, e neste caso de uma síntese efetivamente “planetária”, ela não repetiria nenhuma das características das culturas que a originaram (Retamar, 2004, pp. 65-66). Retamar demonstra em seus trabalhos profundo conhecimento em torno das reflexões sobre Caliban e A Tempestade – desde os usos latinistas e hispanistas que associavam Caliban aos EUA e que tiveram Rodó como seu símbolo, passando pelas reflexões sobre o colonialismo desde Mannoni e Frantz Fanon, até os usos caribenhos desde George Lamming, que em The pleasures of exile (1960) parece ter inaugurado a associação entre Caliban e a América Latina e Caribe14. Retamar, ao mesmo tempo em que elaborou identidades em torno da imagem arquetípica Caliban, se constituiu numa referência incontornável sobre o tema. 12 Retamar busca essas definições respectivamente em Gayatri Spivak e em Gilles Deleuze e Felix Guattari. O autor as apresenta no texto “Adeus a Caliban” (1993), que publicou como pós-escrito do seu texto “Caliban” (1971) em edições posteriores, como em Todo Caliban (2004) que utilizo aqui. Também discute aquelas noções em “Caliban quinhentos anos mais tarde” (1993), no qual remeto particularmente à esclarecedora nota 3 (cf. Retamar, 2004, p. 143). 13 Me parece evidente que o autor trata da dimensão cultural da mestiçagem, não de qualquer elemento propriamente racial ou étnico. Para afastar mal-entendidos, Retamar insiste neste ponto em escritos posteriores nos quais retorna ao tema. E passa a recorrer ao conceito de “transculturação” de Fernando Ortiz. 14 Richard Morse, em um artigo pouco conhecido publicado em espanhol no semanário uruguaio Marcha, também antecipa a associação dos EUA a Próspero e da América Latina a Caliban. O faz a partir da leitura de Mannoni, numa abordagem psicológica e culturalista, e já argumentando a favor daquele pretenso espírito comunitário 14 53, mayo 2024: 1-27 O Caliban de Retamar trabalha numa construção dupla de identidade, positiva e negativa. Além de mestiço (o que parece ser o elemento positivo e o mais central em sua constituição), trata-se também de uma construção anti-imperialista15, de uma identidade em negativo na qual o polo opositor é Próspero, o império estadunidense. Nesse sentido, Retamar se mantém naquela tradição latino-americanista mais larga, com a importante mudança de associar agora a região a Caliban, não mais a Ariel. Mas Retamar também dialoga fluentemente com a literatura caribenha anglófona, algo que é incomum entre nossos intelectuais, como é incomum entender as identidades latino-americana e caribenha (não apenas hispânica) de um modo entrelaçado. E Retamar dialoga também com a literatura anticolonial em geral – africana e caribenha, francófona e anglófona. Apesar da América Latina e Caribe serem associados primordialmente a Caliban, a anterior associação a Ariel não é de todo abandonada por Retamar: “Não há verdadeira polaridade Ariel-Caliban: ambos são servos nas mãos de Próspero, o feiticeiro estrangeiro. Só que Caliban é o rude e inconquistável dono da ilha, enquanto Ariel, criatura aérea, ainda que filho também da ilha, é nela, como viram [Aníbal] Ponce e Césaire, o intelectual” (Retamar, 2004, p. 31). Nesse sentido, pode-se afirmar que Retamar é acima de tudo martiano, mas não abandona totalmente Rodó. De todo modo, Ariel é secundário na trama de Retamar, ou na luta revolucionária da região. Ele deve escolher entre seguir servindo a Próspero (seguir como “intelectual pequeno-burguês”) ou adquirir sua verdadeira liberdade unindo-se a Caliban. Optando pelo segundo caminho, Ariel deverá trair sua classe e ao mesmo tempo romper com a cultura de seu senhor, ou melhor, utilizar a cultura europeia ensinada por Próspero para maldizê-lo. Para Retamar, este configuraria o duplo dilema do intelectual periférico. Para encerrar esta seção, gostaria de mencionar um texto menos lido de Retamar, “Caliban quinhentos anos mais tarde” (1993). O faço porque aqui (e aparentemente somente aqui) o autor agrega dois novos sentidos perfeitamente complementares entre si a seu “personagem conceitual”. Neste texto elaborado a partir de conferências proferidas em 1992 em diversas universidades estadunidenses (nos 500 anos da “descoberta” da América, portanto), Caliban remete também aos “condenados da Terra em seu conjunto, cuja existência alcançou dimensão única a partir de 1492” (Retamar, 2004, p. 143); bem como àqueles países que foram “subdesenvolvidos pelos países subdesenvolventes”, respectivamente Caliban e Próspero (Retamar, 2004, p. 156). Portanto, remete tanto a uma generalização do arquétipo a subalternos de um modo geral, quanto àquela área que já teve diversos nomes (colônias, subdesenvolvidos, Terceiro Mundo, não-alinhados...), sendo hoje majoritariamente denominada “Sul Global”. latino-americano que seria a marca de seu livro clássico O espelho de Próspero (1988). Não encontrei menção de Retamar àquele artigo. Agradeço a Bernardo Ricupero pela indicação de sua existência. 15 Um anti-imperialismo que se desdobra em socialismo. Porém, este me parece um elemento secundário em relação ao anti-imperialismo que o antecede. Poder-se-ia afirmar que isto também ocorre com o processo revolucionário cubano como um todo, com o qual Retamar tanto se associou. 15 53, mayo 2024: 1-27 Por que estas duas conexões me interessam? A primeira já está explicitada no título que escolhi para este ensaio, uma referência apenas indireta ao clássico livro de Fanon – de fato, me inspirei na menção feita àquele livro por Retamar, em seu texto de 1993. Ambas as conexões serão desenvolvidas na Conclusão, porque as considero valiosas pistas deixadas por Retamar de como Caliban poderia se manter vigente como um personagem arquetípico no século XXI. De fato, foi este “Caliban quinhentos anos mais tarde” que definitivamente me animou a escrever este ensaio, agora trinta anos mais tarde. Em síntese, este Caliban é anti-imperialista, e representa o “povo” mestiço latinoamericano e caribenho (e seus aliados, tal como o intelectual crítico) em luta contra o império do Norte. Em potência, poderia representar mais amplamente também a luta do Sul Global contra o Norte Global. Caliban, o antropófago Considero que as reflexões sobre Caliban (e calibanescas) de Fernández Retamar remetem diretamente ao romance Utopia Selvagem (1982) de Darcy Ribeiro16. Me parece evidente a partir da leitura do romance que Darcy se apropria do personagem não a partir de Shakespeare e de seus estudiosos, mas sim das reflexões latino-americanistas de Fernández Retamar, com o qual naquele momento já nutria grande amizade. A partir da relação de ambos, pode-se entender também por que nos últimos escritos do cubano sobre Caliban podemos encontrar referências a Darcy, a seu romance e à antropofagia oswaldiana17. O Caliban latino-americano e caribenho de Fernández Retamar é recepcionado por Darcy, e aqui ele se reconfigura como brasileiro, ou mais precisamente como indígena brasileiro18. Seja como um bom selvagem, um bárbaro, um sub-humano, ou no caso de Darcy 16 Uma recepção brasileira de Caliban anterior a Utopia Selvagem foi a releitura de Augusto Boal de A Tempestade (escrita em 1974, encenada em 1976 e publicada em livro em 1979). Boal foi provavelmente o primeiro autor brasileiro a se dedicar com mais afinco a esta tarefa, e em seu texto podem ser encontradas diversas representações de Caliban, que é apresentado como negro, indígena, operário, latino-americano, asiático, africano, camponês.... Em suma, traduz em diversas expressões o “oprimido” de seu teatro. Parece evidente que a aproximação tanto de Boal quanto de Darcy com aquela obra se dá a partir das representações latino-americanas de Caliban (e de Ariel), em especial através da amizade dos dois com Retamar. Pode-se sugerir que isto não ocorreria, não fosse o exílio latino-americano de ambos. 17 Em sua larga polêmica com Retamar, Emir Rodríguez Monegal também chamou a atenção de seu “rival” intelectual para seu desconhecimento da antropofagia brasileira – lacuna reconhecida por Retamar em textos posteriores. 18 É provável que a primeira referência a Caliban na literatura brasileira esteja na Lira dos vinte anos, coleção de poemas que Álvares de Azevedo publicou em 1853. A antologia se dividia em duas partes, a primeira etérea e idealista, a segunda sombria e trágica. Na transição entre uma e outra, Azevedo explica: “quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban” (Azevedo, 1996, p. 86). Ariel e Caliban aqui são as duas almas que convivem no poeta. Azevedo se aproxima então daquele entendimento dos personagens como expressões de um conflito interno do próprio Próspero. Encontramos o mesmo sentido em um curto poema de Machado de Assis, “No alto”, publicado em 1901 – Machado já havia se referido a Próspero e Ariel em Quincas Borba, de 1891. No poema, 16 53, mayo 2024: 1-27 (e de Oswald) um “pândego”, este Caliban que aqui se configura como símbolo de brasilidade é de novo (como em todas as associações do indígena do Novo Mundo a Caliban) um exercício de construção identitária do qual o principal interessado não faz parte. Não é de modo algum uma autoidentidade, uma releitura indígena realizada pelo próprio indígena, mas uma heteroidentidade. Ainda se tratava (com todo o conhecimento de causa e boa vontade de Darcy) de um indígena silenciado, começando a se expressar na língua do colonizador. Mas é, ao menos neste caso, um personagem que olha para o colonizador com galhofa, que não aceita o eurocentrismo, e que sai vitorioso deste encontro. De todo modo, não pude encontrar ao longo da pesquisa para a elaboração deste ensaio nenhum uso do personagem arquetípico Caliban por intelectuais autoidentificados como indígenas. Não parece ter sido interessante até aqui a algum intelectual indígena subverter positivamente a associação hegemônica do personagem a Caribe/canibal – como o foi para intelectuais negros subverter sua associação ao negro colonizado/escravizado. Vejamos rapidamente a estrutura do romance – pedindo perdão uma vez mais pelos spoilers. A história é narrada majoritariamente em terceira pessoa (digamos que pelo narradorDarcy), e são habituais as intervenções do narrador sob a forma de digressões, às vezes extensas. O argumento está centrado nas peripécias na selva do tenente negro Gasparino Carvalhall, que vai mudando de identidade ao longo de sua aventura entre as icamiabas (amazonas) primeiro e entre os indígenas Galibi depois. Na primeira metade do romance, Carvalhall tem que se haver com o poder total que as icamiabas exercem sobre ele, capturado para cumprir a função de macho reprodutor. Quando enfim o dispensam sem matá-lo (o que era seu grande terror), deve lidar com os Galibi e seu chefe Caliban, que desconfiam de suas histórias sem fundamento. Caliban só é acolhido (e não comido) devido à intervenção das freiras Tivi e Uxa, que vivem entre os indígenas tentando catequizá-los – sem nenhum sucesso. A vida de Carvalhall agora está nas mãos, portanto, e até o final do romance, dos Galibi e de Caliban. O romance termina num grande delírio bacanal inspirado pelo uso ritual de Caapi, de forte humor antropofágico, erótico e escatológico, que convém não descrever para não estragar a experiência de futuros leitores da obra. Portanto, há duas entradas para a discussão de Caliban na obra. Uma é a reflexão do narrador/Darcy sobre o encontro do europeu com o indígena, e tudo que isto gerou segundo nosso narrador – desde os primeiros romances utópicos, passando pel’A Tempestade e pelo Caliban bárbaro e sub-humano19, mas também pelo bom selvagem montaigniano e rousseauniano, até chegar às interpretações arielistas ou calibanescas da identidade latinonosso maior romancista se refere a Ariel e (ainda que não o mencione explicitamente) a Caliban: “O poeta chegara ao alto da montanha, / E quando ia a descer a vertente do oeste, / Viu uma cousa estranha, / Uma figura má. / Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, / Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, / Num tom medroso e agreste / Pergunta o que será. / Como se perde no ar um som festivo e doce, / Ou bem como se fosse / Um pensamento vão. / Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. / Para descer a encosta / O outro lhe deu a mão” (Machado de Assis, 1994). 19 “Mais ainda se consagra Canibal ao se converter em Calibã. Assim chamado, vive em 1612 um enredo tempestuoso no qual, ao ganhar voz e civilização, nosso avô se fode” (Ribeiro, 2014, p. 26). 17 53, mayo 2024: 1-27 americana. O narrador-Darcy deixa evidente sua preferência pela conexão da América Latina com Caliban – associada anteriormente a Ariel por um “cisplatino leitor de Renan, que confundindo tudo chama Próspero de Calibã, reivindicando para nós a espiritualidade latina na triste figura de Ariel, intelectual dócil, servil e adamado20” (Ribeiro, 2014, p. 27). A outra entrada são os usos de Caliban, Próspero e Ariel na obra. Este último não aparece no romance, só merecendo aquela já citada associação a um “intelectual adamado”. Próspero surge no que é talvez a passagem mais surpreendente do livro. Não como “o império” em Fernández Retamar ou o “colonizador” em tantos outros, mas como o elemento central de uma distopia futurista, na qual a sociedade “civilizada” é controlada por Próspero, um supercomputador ao qual todos estão ligados e que exerce controle absoluto sobre as pessoas, regulando suas rotinas, o que podem assistir e fazer, deixando-as felizes (e eternamente na inocência). Próspero é o principal elemento no funcionamento da “Utopia Burguesa Multinacional” (UBM). Finalmente, temos Caliban, que já vimos ser o chefe da tribo Galibi. No caso, um chefe que não está numa posição hierarquicamente superior, um chefe que é um “pândego”; para todos os indígenas “o amigão”; para Carvalhall “um palhaço” “que não assume a dignidade da chefia”; para a jovem freira Tivi “um alento e um desafio”; para a velha freira Uxa, “se não é o próprio demônio, é agente graduado dele” (Ribeiro, 2014, p. 125). Em mais uma digressão, perto do final da obra, o narrador-Darcy retoma a palavra para dar sua própria interpretação de Caliban. Para mim, esta passagem traduz a utopia romântica entrevista pelo romance: Até suponho que os socialistas verdadeiramente comunistas o que querem, sem saber, é um mundo como este Galibi. O que buscam há tanto tempo e tão afanosamente – esse velho sonho ansiado de uma coisa que só faltava imaginar bem para possuir realmente – é, nada mais nada menos, do que essa convivência índia num reino mecânico e computacional: civilizado. Este tuxaua deles, por exemplo, que bem podia ser um rei, é na verdade um banana, como bem diz Orelhão [Carvalhall]. Mas por que todo chefe ou rei – se é que tem de havê-los – não há de ser um companheirão? Jamais Calibã deu uma ordem na vida e no dia que der todo mundo vai cair na risada. Sou passadista, confesso. Mas não pense o leitor que advogo o retorno à Barbárie. Longe de mim tal disparate. O que tenho é uma incurável nostalgia de um mundo que bem podia ser, mas jamais foi e que eu nem sei como seria e se soubesse não diria” (Ribeiro, 2014, pp. 140-141). De todo modo, esta utopia romântica não aparece como um projeto de futuro viável, como horizonte de expectativas para utilizar a expressão de Reinhart Koselleck. Essa digressão do narrador-Darcy assume papel secundário em meio ao que Andrés Kozel (2019) interpreta corretamente como uma “distopia catártica”. O romance lida com dilemas não resolvidos, com o que parecem ser as dúvidas de um autor que se debate entre o que o próprio Darcy uma vez 20 O retrato de Ariel como efeminado e adamado já havia sido feito por Augusto Boal, e é evidentemente uma passagem que hoje não podemos deixar de entender como homofóbica. A América Latina teria que ser associada ao revoltoso/másculo Caliban, não ao servil/efeminado Ariel. 18 53, mayo 2024: 1-27 nomeou como a “revolução necessária” e a “utopia possível” – e com as quais (afirma Kozel) o autor conseguiria lidar apenas através do humor, sarcasmo e ironia que atravessam o livro. Esta “utopia selvagem” do romance parece irrealizável para o autor, o que ele mesmo admite na passagem citada – é mais utopia como “não-lugar”. Neste sentido, o Caliban de Darcy não simboliza um projeto revolucionário nem um sujeito revolucionário – como representava na obra de Fernández Retamar ou de Césaire. Pode-se considerar Utopia selvagem a mais importante reelaboração brasileira do personagem arquetípico Caliban – vimos que não foi a única nem a primeira (conferir nota 14). Mas nesta subseção gostaria de remeter também à antropofagia de Oswald de Andrade. Se Oswald não parece ter feito qualquer referência explícita a Caliban, seus usos do arquétipo do “indígena antropófago” se aproximam muito dos usos de Caliban aqui discutidos. Se Caliban for efetivamente um indígena canibal, é no sentido de subverter uma simbologia negativa em positiva e tomá-la como base para a construção de uma identidade (no caso a brasileira) que o indígena antropófago aparece em Oswald. Isto ocorre no seu mais conhecido “Manifesto Antropófago” (1928), quando define a antropofagia como a característica central da cultura brasileira e reivindica seu passado originário como inspiração para o futuro. Mas Oswald também o faz em seus últimos escritos, do começo da década de 1950, quando retoma a imagem arquetípica do antropófago depois de muitos anos para defender a salvação da humanidade através da retomada de um passado antropofágico e matriarcal, associado, porém, aos mais modernos avanços tecnológicos (Andrade, 1978). E há claramente ecos da antropofagia oswaldiana em Utopia Selvagem – e menções explícitas a Oswald e a seu mais famoso manifesto, posicionado pelo narrador-Darcy como o principal momento de encontro do brasileiro consigo mesmo. Em resumo, este tipo de Caliban é um pândego, e em meio à galhofa deglute o que vem de fora a transforma em algo próprio. Não define um horizonte revolucionário palpável, vive mais propriamente uma distopia. Mas através da antropofagia produz algo novo e belo, talvez a Nova Roma tropical projetada por Darcy – que numa catarse escatológica poderia produzir um novo tempo. Caliban, o proletário filho de Sycorax Houve uma recente retomada da imagem arquetípica Caliban, através de sua utilização pela filósofa italiana radicada nos EUA Silvia Federici21, em seu já clássico O Calibã e a Bruxa – mulheres, corpo e acumulação primitiva (publicado originalmente em inglês em 2004, e primeira edição brasileira de 2017). Trazer Federici ao debate permite demonstrar que Caliban enfim não está completamente em desuso. Permite também ir além da noção de uma noção estritamente geopolítica de intelectualidade periférica (que habita a periferia global ou o Sul Global), entendendo-a no sentido mais amplo de “subalternidade” que está no título deste 21 Federici já havia remetido a Caliban (com menos repercussão) em sua obra com Leopoldina Fortunati Il grande Calibano – Storia del corpo sociale ribelle nella prima fase del capitale, de 1984. 19 53, mayo 2024: 1-27 artigo. Caliban também pode servir para representar o Sul que habita o Norte – ou qualquer sujeito subalterno. Mas interessa particularmente, como veremos, para trazer ao debate (antes tarde do que nunca) uma personagem oculta. Caliban ressurge em chave positiva, e associado ao feminismo – mais precisamente objeto de reflexões do feminismo. Não se trata de uma operação simples em princípio, considerando-se que aquele personagem é claramente heteronormativo, associado à masculinidade, e (como se explicita na peça) provavelmente teria tentado praticar um estupro. Miranda, efetivamente a única personagem feminina que tem voz na peça, dificilmente se prestaria a alguma releitura libertadora. Ainda assim, foi possível localizar algumas tentativas de releituras feministas de Miranda, por exemplo, a realizada por Coco Fusco em “El Diario de Miranda/Miranda’s Diary” (1995). Cabe mencionar também a reapropriação feminista do próprio Caliban, através da associação à sua linhagem, em Daughters of Caliban (1997) de Consuelo López Springfield, onde a autora desenvolve a ideia de que “todas somos filhas de Caliban”22. Assim, quem emerge junto com Caliban (e com maior destaque) é a personagem oculta, porém muito presente no texto de Shakespeare: sua mãe Sycorax, a bruxa. É a ela que Federici remete para simbolizar a centralidade da acumulação primitiva no desenvolvimento do capitalismo, e nela simboliza a exploração da mulher e do corpo feminino, restrita agora ao espaço privado e ao trabalho não remunerado doméstico. Sycorax remete à perseguição à “bruxaria”, às práticas inapropriadas e insubmissas das mulheres. A “bruxaria” aqui atua como o símbolo da repressão à mulher na passagem do feudalismo para o capitalismo e no processo de colonização das Américas. A bruxa/Sycorax é a imagem arquetípica central da análise de Federici, associada a seu filho Caliban que é entendido como proletário e colonizado. O “Grande Caliban” da época seria o proletariado. Assim como Caliban, este “personificava os ‘humores enfermos’ que se escondiam no corpo social, começando pelos monstros repugnantes da vagabundagem e do alcoolismo” (Federici, 2017, p. 282). O proletário era aquela figura desumanizada, que iria culminar no communard de Renan no século XIX23. A tese central do livro, portanto, é a continuidade entre Caliban e sua mãe, e também entre a exploração do Novo mundo e a dos homens proletários e mulheres da Europa na transição ao capitalismo. Caliban e Sycorax são os sujeitos que estão na base da formação e desenvolvimento do capitalismo, sua exploração constituindo-se na base do sistema: Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em 22 Um interessante debate sobre esses usos (e uma defesa da associação com Sycorax) está em Lara (2007). A leitura demofóbica de Renan, refutada por muitos, se tornou um parâmetro na associação negativa de Caliban ao proletariado moderno. Porém, a leitura de Federici não foi a primeira a fazer a associação em chave positiva. O marxista argentino Aníbal Ponce já a havia feito em seu Humanismo burguês e humanismo proletário, de 1938. 23 20 53, mayo 2024: 1-27 A tempestade fica relegada a segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à rebelião (Federici, 2017, pp. 23-24). Federici associa Próspero ao “homem novo” expressado na burguesia industrial, e interpreta Ariel e Caliban como analogias do conflito entre a razão e a brutalidade em seu próprio interior. Faz um paralelo entre a revolta de Caliban, Trínculo e Estéfano na peça e a temida (pelos senhores) aliança entre brancos pobres, negros e indígenas, segundo ela um medo constante até o final do século XVIII, quando as fronteiras raciais estariam “irrevogavelmente” estabelecidas. E pergunta: se a revolta fosse liderada por Sycorax e pelas irmãs das bruxas que estavam então sendo condenadas à fogueira? Estaria do mesmo modo condenada ao fracasso? De todo modo, ainda que não o responda, Federici observa a ironia de que tenha sido Caliban, e não Sycorax, que tenha sido apropriada por Retamar e tantos outros como símbolo da resistência à colonização. Caliban teve que recorrer às ferramentas do colonizador para lutar contra seu senhor, e se perdeu em suas equívocas tentativas de obter a liberdade ao longo da trama. Enquanto isso, Sycorax era descrita por Shakespeare como poderosa a ponto de controlar a Lua e as marés, “pode ter ensinado seu filho a apreciar os poderes locais – a terra, as águas, as árvores, os ‘tesouros da natureza’ – e os laços comunais que, durante séculos de sofrimento, continuam nutrindo a luta pela libertação até o dia de hoje, e que habitavam, como uma promessa, a imaginação de Calibã” (Federici, 2017, pp. 405-406). Aqui vemos a associação em chave positiva de Sycorax e de Caliban à natureza. Federici inverte assim a lógica moderna hegemônica da separação entre homem e natureza – aquela lógica que localiza a mulher, o proletário, o colonizado, o selvagem e as raças inferiores no segundo polo, aquele polo sem humanidade e sem agência, que deve ser explorado pelo homem, colonizador, capitalista, branco. Sinteticamente, este Caliban, mais que um proletário, é o filho de Sycorax. Sua mãe é a fonte de seu poder, que remete em última instância à integração orgânica de Sycorax com a Natureza. Trata-se do sujeito revolucionário marxiano em nova versão: sua força é herdada das bruxas e seus saberes ancestrais, numa releitura feminista de sabor ecossocialista e decolonial. Sobre os desusos de Caliban: ainda fazem sentido imagens arquetípicas unificadoras em meio a tanta fragmentação? Vimos que Caliban representou diversos atores subalternos da modernidade capitalista, notavelmente na periferia do sistema – mas também em seu centro, como representação dos proletários, filhos de Sycoraxs queimadas em fogueiras ou aprisionadas no espaço privado. De todas as representações, talvez a mais recorrente tenha sido a do negro colonizado, escravizado, desumanizado. Vimos que especificamente esta analogia com Caliban foi fartamente adotada pelos próprios subalternos, enquanto autoidentificação – operada por 21 53, mayo 2024: 1-27 intelectuais negros das duas margens do Atlântico. Também o foi como autorrepresentação de toda uma região, a América Latina (e Caribe). Por outro lado, vimos que serviu com recorrência à representação de indígenas canibais (ou antropófagos), desde as primeiras interpretações do texto. Esta representação eventualmente foi positiva – de Montaigne a Darcy. Mas não consegui localizar nenhuma autoidentificação nesta chave, ou seja, nenhum intelectual indígena autoidentificado como tal lançando mão da imagem arquetípica Caliban. Na emergência de epistemologias indígenas ocorrida na América Latina nas últimas décadas, não parece haver sido interessante recorrer a Caliban. Tampouco, em particular, na emergência de um pensamento indígena finalmente ocorrida nos últimos anos no Brasil. É razoável imaginar um pensador indígena contemporâneo diante de Caliban se questionando: “para que serve isto, o que eu tenho a ver com isto, para que vou remeter a uma peça de um branco, inglês, que escreveu nos séculos XVI e XVII?”. Mas nenhum daqueles autores negros de quadras históricas passadas parece ter se preocupado com isso. E talvez aqui esteja o começo de uma possível explicação para o quase abandono de Caliban. Se tivermos que estabelecer um marco temporal, parece ter ocorrido uma redução e quase interrupção dos usos de Caliban por volta de meados dos anos 1970. Por quê? Sugerirei dois argumentos. Um primeiro argumento é o de que parece ter sido necessário às elites intelectuais contra-hegemônicas em ascensão nos mundos periféricos recorrer a referências do colonizador, como modo de legitimação. Eles eram marcadamente híbridos, intelectuais de fronteira, em boa medida atravessados pelo eurocentrismo – há farta literatura sobre o Movimento da Negritude que enfatiza este ponto (cf. Pereira da Silva, 2023). Sabemos que escolas de pensamento periféricas recentes interpelam o eurocentrismo de um modo mais crítico do que há meio século ou há um século – em particular quando se trata de pensamentos que se entendem como autóctones, originários. Sugiro então que contemporaneamente haveria maior brecha para a opção política de não remeter a clássicos e a imagens europeias. Um segundo argumento, ainda mais generalista e de difícil comprovação, é o de que haveria ao que parece um desuso dos arquétipos, dos tipos ideais e das narrativas universalistas, em meio a uma crise da modernidade em todas as suas dimensões. Pode-se remeter a uma fragmentação identitária, à constatação de identidades múltiplas e híbridas, e a toda a tradição teórica dos movimentos intelectuais sob os rótulos de “pós-coloniais, “pós-modernistas”, “decoloniais”. Depois de décadas de reflexão crítica, alguns de nós aceitamos que (ao menos até aqui) não há “universalidade” em Shakespeare ou em qualquer outro – o que pode ser entendido como um processo epistêmico de “provincialização” da Europa (Mignolo, 2011)24. Por outro lado, neste tipo de argumento está embutido o risco da excessiva fragmentação. Passar das grandes narrativas à atomização e ao relativismo absoluto parece um 24 De todo modo, a inquestionável riqueza da obra do bardo permite uma profusão de releituras ao longo dos séculos, por sua qualidade e complexidade. Não é qualquer obra que permitiria isto. É possivelmente a obra que mais se aproximaria do que é costumeiramente entendido como “universal” – se houvesse universalidade na modernidade. 22 53, mayo 2024: 1-27 perigo que poderia ser evitado recorrendo a universalismos parciais, a identidades parciais que pudessem dialogar (Ribeiro, 2015, Wallerstein, 2007). Como um horizonte de futuro emancipatório, poder-se-ia pensar em parcialidades que dialogariam pela primeira vez num genuíno universalismo, nem exclusivista nem excludente, e respeitoso das peculiaridades civilizacionais (Pereira da Silva, Kozel, 2022). Estas parcialidades poderiam contribuir para a constituição de um “universalismo plural”, um “pluriverso” ou “transmodernidade” (Kothari et al, 2021, Dussel, 2016, Acosta, 2016). Vimos que em seu texto “Caliban quinhentos anos mais tarde”, Retamar associou Caliban aos “condenados da Terra em seu conjunto”, bem como aos países do sistema-mundo que foram “subdesenvolvidos pelos países subdesenvolventes” (Retamar, 2004). Nestes sentidos, Caliban poderia se constituir num elemento de condensação dos diversos grupos subalternos, bem como do que hoje chamamos de “Sul Global” – evidentemente dois sentidos que se complementam e eventualmente se sobrepõem. Quanto ao primeiro sentido, a noção de interseccionalidade, entre outros recursos teóricos, vai refazendo caminhos de unidade na diversidade. Poder-se-ia sugerir um “Caliban interseccional”, atravessado por múltiplas identidades subalternas. Quanto ao segundo sentido, em meio a toda a diversidade das regiões subalternizadas do mundo, a imagem arquetípica Caliban poderia ser um elemento de autoidentificação para este Sul Global que já se constituiu como “povos colonizados”, países “atrasados” ou “subdesenvolvidos”, “Terceiro Mundo”, “não alinhados”. Esta possibilidade só apareceu em Retamar, e mais precisamente naquele texto específico e tardio de Retamar já mencionado. Trata-se apenas de uma sugestão a partir destas considerações finais, que não pode ser desenvolvida a contento dentro dos limites deste trabalho. De todo modo, pode-se reconhecer, a favor de possíveis extrapolações como essa, que os subalternos do mundo ainda “falam” a língua dos colonizadores, em sentido literal e figurado. Literalmente, ainda falamos as línguas dos colonizadores por mais que se tenha questionado este ato de fala, e por mais que se tenha transformado aquelas línguas a partir de múltiplos acentos, no limite gerando variadas formas de créoles. Figurativamente, e apesar de todas as críticas elaboradas particularmente nas últimas décadas, seguimos epistemologicamente atravessados pelo eurocentrismo. O que unifica os subalternos do mundo – e a periferia do mundo – é o passado e presente de dominação. Subalternos e periféricos o são porque foram e são dominados. Esta dominação é bem concreta e é simbólica. É econômico-social, mas também igualmente cultural, simbólica, epistemológica. Esta dimensão é claramente a enfatizada neste artigo, na medida em que estamos lidando não diretamente com representações de si mesmos elaboradas por grupos sociais ou movimentos sociais e políticos – mas especificamente de reflexões de “intelectuais Caliban” atravessados pelo dilema de ter que se expressar através da epistemologia, língua e literatura do colonizador. Minha aposta é de que ainda faz sentido seguir subvertendo por mais algum tempo e encontrando sentidos insuspeitos no maior clássico da “literatura ocidental”. É viável seguir encontrando em textos canônicos elementos de autoidentificação, simplesmente porque suas imagens não perderam sua força, e são compreensíveis para certa comunidade de intelectuais espalhada pelo globo. Ainda mais poderosa é a imagem de Caliban, ao menos por três razões: 23 53, mayo 2024: 1-27 pela própria riqueza do texto, que guarda grandes possibilidades, nuances e complexidades; pela condição de dominado vivenciada por Caliban, como o são os subalternos do mundo e as regiões subalternas do mundo; e finalmente, pela larga história de seus usos por aqueles subalternos (aqui parcialmente resgatada), com a qual podemos seguir dialogando e que podemos seguir enriquecendo. Para concluir, apresentarei um último argumento em defesa de Caliban, mas principalmente do legado quase esquecido de sua mãe, a real dona ancestral daquele território. Se pôde antever a força da imagem arquetípica Sycorax ao analisarmos Calibã e a bruxa. Para além de seu evidente potencial para a teoria crítica feminista, vimos que Federici notou também a associação de Caliban e de sua mãe à natureza, o que com o avanço da modernidade foi adotando inconteste sentido negativo – e A Tempestade se estrutura em torno do esforço de Próspero, através de sua Arte, em controlar a Natureza (Caliban/Ariel). Na lógica cartesiana embutida no cogito ergo sum, a natureza (e quem estiver circunscrito a ela) é desprovido de existência. Porém, Federici observa o poder de Sycorax, transmitido por ela a Caliban. Num contexto de busca por “novas” – mais precisamente ancestrais – relações de integração e horizontalidade da humanidade com a natureza que ainda consigam desarmar a bomba-relógio à qual estamos amarrados, faz-se necessário recorrer a epistemologias e modos de vida alternativos – das quais grupos subalternos das periferias globais se constituem em criadores e agentes. Sycorax e Caliban parecem ter potencial como representações destas epistemologias e modos de vida, e a partir disto poderiam se abrir novas possibilidades ainda pouco exploradas para futuras releituras (e reencenações) de A Tempestade. Bibliografia Acosta, Alberto. O Bem Viver – Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016. Alshhre, Ali. “William Shakespeare’s The Tempest: Caliban is a Black African”. Symposium for English Graduate Students, 2017. dspace.sunyconnect.suny.edu/handle/1951/72589 Andrade, Oswald de. Obras completas. Vol. VI. Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias: manifestos, teses de concursos e ensaios. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Armattoe, Raphael Ernest Grail. Deep Down the Blackman’s Mind: Poems. Ilfracombe: Arthur H. Stockwell, 1954. Azevedo, Álvares de. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Bloom, Harold. Shakespeare: the invention of the human. New York: Riverhead Books, 1998. 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