53, mayo 2024: 1-27
Os Calibans da Terra
Sobre os usos do personagem shakespeareano como autoidentificação do
subalterno
Los Calibanes de la Tierra
Sobre los usos del personaje shakesperiano como autoidentificación del subalterno
The Calibans of the Earth
On the uses of the Shakespearean character as a self-identification of the subaltern
Fabricio Pereira da Silva
Resumo: O artigo compara diferentes utilizações do arquétipo “Caliban” na
construção de identidades subalternas pelos próprios subalternos. Centra-se
prioritariamente em intelectuais periféricos, delimitando “tipos ideais” de usos de
Caliban pelos próprios subalternos. A partir de um exaustivo levantamento de usos
do personagem, se estabelecem “imagens arquetípicas” que ele poderia projetar a
partir daqueles usos. A questão central é por que razão esta inversão de sentido foi
atrativa para tantos autores, ou seja, procurar a autoidentificação com um
personagem apresentado como desprezível numa primeira leitura. Se pergunta
também ao final se faria sentido ainda utilizar um personagem como Caliban para
projetar grandes grupos humanos.
Palavras-chave: A Tempestade de William Shakespeare; Caliban; intelectualidade
periférica; identidades subalternas.
Resumen: El artículo compara diferentes usos del arquetipo “Calibán” en la
construcción de identidades subalternas, por parte de los propios subalternos. Se
centra prioritariamente en intelectuales periféricos, delimitando “tipos ideales” de
usos de Calibán por parte de los propios subalternos. A partir de un estudio
exhaustivo de los usos del personaje, se establecen las “imágenes arquetípicas” que
podría proyectar a partir de esos usos. La pregunta central es por qué esta inversión
de sentido resultó atractiva para tantos, es decir, buscar la autoidentificación con un
personaje presentado como un ser despreciable en una primera lectura. Al final
Brasileiro. Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj, Brasil).
Professor do Departamento de Estudos Políticos e da Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO, Brasil). E-mail: fabriciopereira31@gmail.com. ORCID: 00000002-0266-4084.
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también se pregunta si seguiría teniendo sentido utilizar a un personaje como
Calibán para proyectar grandes grupos humanos.
Palabras-clave: La Tempestad de William Shakespeare; Caliban; intelectualidad
periférica; identidades subalternas.
Abstract: The article compares different uses of the “Caliban” archetype in the
construction of subaltern identities by the subalterns themselves. It focuses
primarily on intellectuals of the periphery, delimiting “ideal types” of uses of
Caliban. Based on an exhaustive survey of the character's uses, “archetypal images”
are established that he could project from those uses. The central question is why
this inversion of meaning was attractive to so many, that is, to seek selfidentification with a character presented as a despicable being on a first reading.
The final question is also whether it would still make sense to use a character like
Caliban to project large human groups.
Keywords: William Shakespeare’s The Tempest; Caliban; Peripheral intellectuals;
Subaltern identities.
Recibido: 4 de diciembre 2023 Aceptado: 13 de abril de 2024
Introdução1
A senhorita me ensinou sua língua, e o que ganhei
com isso foi que aprendi a praguejar. Que a peste
vermelha acabe com vocês, por me terem ensinado
sua linguagem.
(A Tempestade, William Shakespeare, 2019 [16101611], p. 28)
Como é sabido, se para algo serviu a Caliban2 aprender a língua inglesa com Miranda,
foi para amaldiçoar a Próspero e sua filha de um modo que seus amos pudessem compreender.
1
Agradeço a Marcela Croce, Andrés Kozel, Bernardo Ricupero e Eduardo Devés pelas conversas e comentários
sobre o tema aqui desenvolvido. Agradeço também pelas sugestões apresentadas pelos avaliadores anônimos, em
especial o da Avaliação 1.
2 Adoto aqui a grafia “Caliban” seguindo Roberto Fernández Retamar (2004, pp. 35-36), em lugar de “Calibán” ou
de “Calibã”. Com isso, o autor evitava demarcar a sílaba tônica. Retamar insistia na tese de que Caliban é um
anagrama de “canibal”: “caníbal” na língua espanhola, cannibale na língua francesa, canibal na portuguesa, cannibal
na inglesa. Com tal escolha, Retamar queria frisar o abandono da grafia que utilizou em seus primeiros escritos
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Do mesmo modo, o personagem de Shakespeare foi apropriado por uma profusão de
intelectuais subalternos para ilustrar e expressar sua revolta de um modo inteligível a seu
subjugador. Este artigo compara diferentes usos do personagem na construção de identidades
subalternas a partir dos próprios subalternos. Seu foco está em intelectuais que ocupam
posições periféricas, epistemologicamente e geopoliticamente (o que hoje se denomina “Sul
Global”), e não tem a intenção de esgotar todos aqueles possíveis usos, muito menos de
mapear completamente a imensidão de autores periféricos que recorrem ao texto de
Shakespeare com a intenção aqui analisada. De um modo geral, após exaustivo (mas
evidentemente incompleto) levantamento de autores e de obras, delimitei cinco “tipos ideais”
de usos de Caliban como símbolo de subalternidade pelos próprios subalternos. Estes tipos
ideias (como qualquer tipo ideal) possuem fronteiras por vezes borradas, e podem se combinar
com outros em alguns casos. Ajudam, porém, a abordar o tema e a organizar a discussão.
Com este exercício, procuro enfrentar algumas perguntas. Primeiramente, por que em
determinado momento foi atrativa para tantos essa inversão de sentido, ou seja, buscar
autoidentificação com um personagem apresentado como desprezível em suas primeiras
leituras e releituras? Ela sem dúvida se assemelha à inversão da visão sobre o negro realizada
um pouco antes pelo Movimento da Negritude. Cabe questionar também por que tanta
atenção àquele específico texto de Shakespeare, que não estava em princípio entre os de maior
circulação dentre a extensa produção atribuída ao dramaturgo inglês, e naquele texto a um
específico personagem que não parece ser central. Finalmente, cabe refletir se faria sentido
continuar associando povos, regiões, parcelas inteiras de humanidade a arquétipos e a imagens
arquetípicas.
Em que sentido Caliban poderia ser entendido como um “arquétipo”, ou talvez
melhor, como uma “imagem arquetípica” recorrente? Bernardo Ricupero (2021) observa que
um dos primeiros autores que associaram o personagem ao colonialismo e ao colonizado, o
psicanalista francês Octave Mannoni, em Psychologie de la Colonisation (1950), já apresentava
Caliban, Ariel, o Sexta-Feira (de Robinson Crusoé, de Daniel Defoe) e as várias representações
dos canibais como expressões de arquétipos. Aimé Césaire, no seu último grande texto sobre o
conceito de “negritude” (e talvez o mais interessante), o Discours sur la Négritude (1987),
afirmava se importar pouco com cromossomos, mas crer nos arquétipos (Césaire, 2004[1987],
p. 83). A começar pelos “arquétipos” e “imagens arquetípicas” definidos por Carl Jung, remetese a padrões da ordem da herança histórica e do inconsciente coletivo, padrões que não se
sustentam num essencialismo biológico (racial, genético), mas de todo modo em repetições e
em permanências. Considero o canibal de Michel de Montaigne, o bom selvagem de JeanJacques Rousseau, o antropófago de Oswald de Andrade, o Macunaíma de Mário de Andrade,
o gaucho de José Hernández, o negro de Césaire, os usos de Caliban aqui analisados, e tantos e
(“Calibán”), e ao mesmo tempo adotar o que entendia ser uma postura anticolonialista, considerando que a forma
“Calibán” utilizada por quase todos os autores hispano-americanos era um contágio francês (de cannibale). No
entanto, mantenho a grafia “Calibã” em citações de autores que a utilizam, em fidelidade a seus textos.
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tantos outros como exemplos de arquétipos ou de imagens arquetípicas utilizados na busca por
definições sintéticas de um povo, uma nação, uma raça, uma região3.
Cabe frisar mais uma vez que não há intenção de esgotar o tema nestas páginas,
abordar todas as obras que se utilizaram dos personagens de A Tempestade como imagens
arquetípicas – apesar da extensa pesquisa realizada. Cabe também explicitar que este não é um
texto sobre Shakespeare, sobre A Tempestade, ou mesmo sobre a recepção desta obra ao longo
dos séculos. O foco está posto nos específicos usos de um determinado personagem,
propondo a elaboração de tipos ideais daqueles usos, os quais serão construídos a partir de
algumas das releituras que estão entre as mais conhecidas. Para selecionar estas releituras, este
artigo não faz distinções entre ficção e não-ficção, entre escritos políticos/militantes ou
acadêmicos. Considera-se que todos os usos de Caliban podem interessar a esta análise. De
todo modo, ficcionais ou não, acadêmicos ou não, todos os textos aqui analisados são políticos,
pois querem intervir numa realidade opressiva.
O texto se estrutura da seguinte forma. Na próxima seção, apresento um resumo do
argumento da peça, debato alguns possíveis significados para o personagem naquela obra e
contexto, procuro delimitar o período e as razões pelas quais Caliban se converteu na imagem
arquetípica de subalterno para os próprios subalternos. Na seção seguinte, delimito cinco tipos
ideias de Caliban: o “negro colonizado”, o “negro pós-colonial”, o “mestiço latino-americano e
caribenho”, o “antropófago”, e o “operário filho de Sycorax”. Por fim, abordo os desusos de
Caliban nas últimas décadas, sugerindo algumas chaves para este desinteresse e enfrentando a
questão da atual viabilidade de se continuar associando grandes grupos humanos a imagens
arquetípicas.
Os usos de A Tempestade como (auto)identificação: afinal, quem é Caliban?
Consideremos que nem todos os leitores deste texto se recordarão de A Tempestade.
Apresentarei então muito brevemente o argumento da peça – me desculpando desde já pelos
spoilers. A ação se passa(ria) numa ilha do Mediterrâneo, entre algum ponto entre a Península
Itálica e a costa argelina. Próspero, Duque de Milão, é traído e expulso do Ducado por seu
irmão Antônio com o apoio de Alonso, Rei de Nápoles. É deixado à deriva no mar com sua
filha Miranda, então uma menina, e acabam chegando a uma ilha “deserta”. Próspero,
controlador de artes mágicas, escraviza duas criaturas que ali encontra: Ariel, espírito etéreo e
Quando comecei a imaginar essa pesquisa, a pensava a partir de termos como “analogias” e “metáforas”. Por
exemplo, entender Caliban como uma analogia do colonizado, ou seu aprendizado da língua de Próspero e de
Miranda como uma metáfora da preservação do uso da língua do colonizador por povos formalmente
descolonizados. Foram diversas conversas com Marcela Croce ao longo dos últimos anos que me levaram às
ideias de “arquétipos”, “imagens arquetípicas” e “personagens-arquétipo”. Se formos considerar as reflexões
junguianas que deram origem a tais usos, veremos que o mais preciso é considerar Caliban como uma “imagem
arquetípica” ou (mais literalmente) um “personagem-arquétipo”, que serão as noções preferencialmente utilizadas
aqui. Isto porque os arquétipos estariam presentes apenas no inconsciente coletivo, se manifestando
concretamente mais precisamente em imagens arquetípicas.
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nobre; e Caliban, “escravo selvagem e deformado” filho da bruxa Sycorax. Quanto a Caliban
em particular, Próspero afirma tê-lo escravizado após uma tentativa de estupro de Miranda, o
que é confirmado por Caliban: “Tu me impediste, mas eu poderia ter povoado esta Ilha de
Calibanzinhos!” (Shakespeare, 2019 [1610-1611], p. 27).
Próspero se torna senhor da ilha por doze anos, até o momento em que a ação da peça
se desenrola. Se utilizando de sua magia e do controle que exerce sobre Ariel, provoca um
naufrágio que leva Antônio e Alonso à ilha. Ali, eles e seus agregados são atormentados e
confundidos pelas artes mágicas de Próspero e de Ariel, enquanto aproximam Miranda (agora
uma jovem donzela) de Ferdinando, herdeiro do Reino de Nápoles. Enquanto estas duas ações
se desenrolam, Caliban é encontrado por dois serviçais dos nobres, Trínculo e Estéfano.
Bêbados, eles tramam uma rebelião contra seus senhores, facilmente desbaratada – dada a
inépcia dos três. Ao final, Próspero se arrepende de seu plano de vingança contra seus algozes
(ou talvez considerasse este desenrolar desde o início?), ao mesmo tempo em que obtém
sucesso na aproximação de sua filha com o herdeiro napolitano. Num final de reconciliação,
anunciam-se alguns acontecimentos que não serão retratados na peça. Próspero, com seu
ducado restituído, afirma que todos viajarão a Nápoles para o casamento de Ferdinando e
Miranda, a bordo do navio magicamente recuperado, e que posteriormente retornará a Milão.
Promete nunca mais lançar mão de seus poderes mágicos e enfim libertar Ariel, como
prometido ao longo de toda a ação. Não fica claro o que ocorrerá com Caliban.
Não restam muitas dúvidas de que o herói da trama é Próspero. Toda a peça é
estruturada a partir da luta de Próspero para controlar a Natureza (à qual Ariel, Caliban e
Sycorax estão associados) e procurar intervir sobre a Providência. O faz através de seus
estudos, suas artes, seus conhecimentos de “magia branca”. Próspero poderia até mesmo ser
um alter ego do velho Shakespeare no final de sua vida, refletindo sobre sua trajetória e seus
conflitos internos. O encerramento da peça (o apelo final por perdão de Próspero ao público)
pareceria remeter a uma despedida do autor (algo sugerido por Bloom, 1998, entre muitos
outros). Possivelmente, esta associação de Próspero a Shakespeare seria problemática para
nossos autores subalternos aqui analisados, e não algo comum entre estes autores. Se Próspero
é evidentemente o herói no texto original, nestas releituras ele nos é apresentado como vilão: é
o colonizador, o opressor. Associar diretamente o próprio autor do texto que é reinterpretado
à colonização e à opressão poderia ser um exercício doloroso, podendo até mesmo levar à
negação de sua obra. Por sorte, a realidade é bem mais complexa e matizada do que isso. Não
tivemos que presenciar qualquer tentativa de “cancelamento” de Shakespeare até o momento.
Mas afinal, quem é Caliban em A Tempestade4? Um inferior, sem dúvida, retratado como
um selvagem, deformado, sub-humano, animalizado, com “odor de peixe”. Fenotipicamente, é
descrito como “sardento”, e sua mãe Sycorax “de olhos azulados” e originada da Argélia –
4
Para ir além da ênfase colonial que demos a este artigo (mas também considerando com atenção este aspecto),
provavelmente a principal análise dos usos de Caliban é o livro de Alden Vaughan e Virginia Mason Vaughan,
intitulado Shakespeare’s Caliban – A Cultural History (1991). Outra referência a ser citada é a obra organizada por
Nadia Lie e Theo D’Haen, intitulada Constellation Caliban: Figurations of a Character (1997).
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enquanto Próspero se refere a Caliban como “esta coisa escura”. Se formos ler literalmente o
texto5, Caliban teria origem africana, no Norte da África possivelmente: tuaregue, cabila. É
com propriedade que Ali Alshhre (2017) associa “Caliban” a uma corruptela de Cabília, região
do norte da Argélia e território dos cabilas, um dos povos berberes. Também afirma que
Caliban seria um negro africano, remetendo à afirmação de Vaughan e Vaughan (1991) e
alguns outros do conhecimento que teria Shakespeare da palavra cauliban, “negro” na língua
romani. Esta associação já é mais controversa, dada a referência no texto ao seu aspecto
sardento – o que também complicaria sua associação a um indígena americano.
De todo modo, Caliban parece remeter a diversas referências, e seus aspectos
fenotípicos não deveriam ser lidos tão literalmente. A ilha na qual a trama se desenrola
propriamente se parece mais com uma ilha caribenha do que uma próxima ao norte da África.
No texto há diversas referências ao Novo Mundo (conferir Ricupero, 2014, nota 1). Afirma-se
haver inspiração da leitura do ensaio de Michel de Montaigne “Dos Canibais” (1580) para a
criação do personagem. Mas recordemos que Montaigne remetia em seu ensaio aos
tupinambás do Brasil, não ao Caribe. Por sua vez, Setebos, a deidade adorada por Sycorax na
peça, é de origem patagônica. Enfim, a partir dessa associação com indígenas americanos
(vagamente de qualquer parte do Novo Mundo) convencionou-se associar Caliban a partir do
século XIX a uma corruptela de “canibal”, consequentemente e mais especificamente de
“caribe” (como em Bruner, 1976, e em Retamar, 2004) – mais do que a “Cabília” ou a outras
possibilidades já aventadas pela literatura especializada.
Efetivamente, pode-se considerar que há influências diversas na caracterização do
personagem Caliban e de um modo geral na elaboração do texto, passando pelos relatos de
viagens ao Novo Mundo, por Montaigne, pela literatura utópica, e evidentemente pela política
inglesa. Shakespeare provavelmente lançou mão de todos os recursos que naquele contexto
estavam associados ao que estava começando a ser elaborado (e seguiria sendo ao longo dos
séculos seguintes) como o “exótico”, o “utópico”, o “selvagem”, o “Oriente”. É a esta
ambiência, me parece, que a peça quer remeter a plateia. Evidente que toda esta complexidade
de significantes favorece as muitas releituras e entendimentos sobre Caliban, como indígena
americano, norte-africano, negro africano, e mesmo o “selvagem” no interior das sociedades da
própria modernidade ocidental em ascensão (o que veremos quando tratarmos do Caliban de
Silvia Federici) (Bruner, 1976, Nixon, 1987, Vaughan, Vaughan, 1991, Lie, D’Haen, 1997,
Valdés García, 2017, 2020, Bonfiglio, 2021).
Não me atrevo a adentrar neste debate sobre os sentidos e intenções do autor – para o
qual não tenho qualquer expertise. Retorno à imagem arquetípica Caliban: por que tanto
interesse, num contexto histórico tão específico, a este personagem de Shakespeare em
particular? Com poucas exceções, estou me referindo aqui a um período que vai do início dos
anos 1950 a meados dos 1970 – e numa recorrência ainda mais concentrada, da virada dos
5
Mas apenas se formos ler o texto literalmente... Essa passagem em especial se tornou uma das mais debatidas da
obra, e uma das possíveis leituras é a de que Próspero se referiria a um conflito com sua própria escuridão interior
ao afirmar “esta coisa escura eu reconheço ser meu”.
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anos 1960 para os 1970. Num determinado momento o personagem se torna interessante, e
depois disso quase sai de cena. As razões para a saída de cena podem ser mais bem discutidas
ao final, mas desde já se pode associar a fortuna do personagem naquele momento ao
despertar do Terceiro Mundo, do “espírito de Bandung”. Trata-se dos anos imediatamente
anteriores e posteriores aos processos de descolonização da maior parte da África, da Ásia e do
Caribe. Adicionalmente, de mobilizações na América Latina (formalmente independente) por
sua “Segunda Independência” e pela Revolução Socialista, dois processos de forma alguma
desassociados naquele contexto. Caliban é entendido então como o sujeito colonial, o
subalterno, o condenado da Terra, o oprimido. Em especial, associado aos povos que habitam
aquilo que contemporaneamente seria denominado vagamente como o “Sul Global”.
Porém, não é simples se associar a um personagem que em princípio é caracterizado de
modo tão desprezível no texto original. Ali Caliban tem seus momentos de graça e inteligência,
mas no geral é associado como vimos a um ser sub-humano, a tolices, à ignorância, ao fedor,
ao estupro. Não há dúvidas, o herói ali é Próspero, enquanto Ariel (ainda que escravizado) é
associado a diversas qualidades e talentos. Não à toa, a recepção latino-americana do texto
começou no final do século XIX através da associação da região a Ariel, e dos EUA a Caliban.
Assim, os escravos Ariel e Caliban eram apresentados como antíteses geradas pela colonização
da América – também respectivamente de heranças latinas e anglo-saxãs, e de valores
aristocratas e populares (medíocres).
Aquela recepção foi em boa medida indireta: se deu a partir da França, em particular da
releitura da peça realizada por Ernest Renan (Caliban: Suite de La Tempête, de 1878) na qual se
associou demofobicamente Caliban ao povo e em particular aos communards da Comuna de
Paris6. Adicionalmente, possuía muito de latinista e particularmente de hispanista: tratava-se de
uma reação à ascensão dos EUA, exacerbada com sua vitória sobre a Espanha na guerra de
1898 que praticamente extinguiu o império espanhol. Era uma recepção realizada por
intelectuais hispano-americanos que se viam como parte desta herança, do ramo latino ou mais
particularmente hispânico do Ocidente. Primeiramente, o crítico francês radicado na Argentina
Paul Groussac e o fundador do modernismo hispano-americano Rubén Darío (a partir de
1893), e na sequência José Enrique Rodó (em seu clássico Ariel de 1900) foram os principais
operadores desta associação de Ariel à América Latina, em oposição aos calibanescos EUA
(Ricupero, 2016, Turatti, 2016).
Desse modo, estes primeiros usos de Caliban na periferia o assumem em chave
negativa, associando-o ao agressor (Vaughan, Vaughan, 1991). Isso naturalmente respeitava
toda a tradição de interpretações negativas do personagem, fartamente sugeridas no texto de
origem. Sabemos, porém, que décadas depois foram as associações em chave positiva da
América Latina a Caliban que se impuseram, e mais do que isso, de outras regiões e grupos
periféricos do mundo. Caliban iniciava então sua ressignificação. Elementos daquela imagem
arquetípica, até então entendidos como sub-humanos, passavam a ser revalorizados: sua
6 Mas também de Alfred Fouillée (em L´idée moderne du droit, de 1878), que criticava a releitura de Renan e defendia
uma conciliação entre Ariel e Caliban, entre aristocracia e democracia.
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agressividade, pele presumidamente escura, associação à natureza, os saberes ancestrais
herdados de sua mãe, sua revolta e, finalmente, a tentativa de rebelião contra seu mestre.
Aqui deve-se explicitar que quem recorria a Caliban no período que interessa a esta
análise (principalmente o terceiro quarto do século XX), na América Latina e em outras zonas
e grupos periféricos, era uma figura bem específica: a do intelectual que se reconhecia como
colonizado, periférico. Ele era erudito o suficiente para remeter àquela referência
shakespeariana, mas por sua condição subalterna teria que exprimir sua revolta recorrendo à
literatura do colonizador. Sem dúvida um tipo híbrido, de fronteira. Este intelectual Caliban é
no final das contas o objeto deste artigo, se considerarmos bem. Porém, há diversos modos de
se assumir como um intelectual Caliban. Se pode definir “tipos” de Calibans e de “intelectuais
Caliban”, ou melhor, de usos da imagem arquetípica Caliban. É a isto que a próxima seção vai
se dedicar.
Os tipos de Caliban
Caliban, o negro colonizado
É provável que a reinterpretação mais famosa de A Tempestade seja a de Aimé Césaire.
Não é nem a primeira reelaboração periférica da obra, nem mesmo a primeira que podemos
localizar no Caribe ou entre pensadores negros de um modo geral7. Porém, pode-se considerar
Une Tempête (1969)8, esta adaptação da obra de Shakespeare para um teatro negro realizada por
nosso poeta da negritude e do anticolonialismo, como a versão paradigmática do Caliban negro
e colonizado. Aqui temos o negro escravizado que luta contra seu senhor, bem como o negro
colonizado que luta contra seu colonizador. Césaire converte Caliban no herói da negritude,
noção que ele mesmo havia desenvolvido décadas antes, e do pensamento anticolonial, do qual
é talvez o principal referente.
Césaire reelabora a obra de Shakespeare com consideráveis modificações. Aqui
Próspero é um senhor de escravos, Caliban é um “escravo negro”, e Ariel um “escravo,
etnicamente um mulato”. Caliban organiza ao longo da peça uma rebelião contra seu senhor,
enquanto Ariel procura demovê-lo de seus planos, propondo negociar com Próspero, provocar
nele uma autoconsciência da opressão que exerce. Caliban é o protagonista da trama, e parece
ser o herói, um herói “revolucionário”. Próspero é sua antítese. Ariel é quem parece assumir
uma posição mais dúbia, que poderia ser lida como “reformista”. Naquele contexto, poderia
remeter a movimentos de libertação nacional que não propõem a independência imediata, que
7
A primeira referência caribenha a Caliban parece ser do barbadiano George Lamming, em The Pleasures of Exile
(1960). Em 1969, o também barbadiano Edward Kamau Brathwaite inclui um poema sobre Caliban em seu livro
Islands, Césaire publica Une Tempête, e Retamar “Cuba hasta Fidel” (seu primeiro texto fazendo um paralelo entre
América Latina e Caribe e Caliban).
8 Une Tempête é a quarta e última obra teatral do autor, que antes havia escrito Et les chiens se taisaient (1958), La
tragédie du Roi Christophe (1963) e Une saison au Congo (1966).
8
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constroem soluções negociadas, talvez a seu próprio amigo Léopold Senghor. Mas é o próprio
Césaire quem admite que estava marcado por referencias norte-americanas durante a
elaboração da peça, naquele conturbado final de década. Desse modo, é mais simples associar
Caliban a Malcolm X (o próprio personagem afirma em sua primeira entrada em cena que a
partir de então se chamaria “X”) e aos Panteras Negras, e Ariel a Martin Luther King (Crispin,
2010).
O texto é repleto de referências de época. Por exemplo, quando Caliban grita
“Freedom Now!” (em inglês no original), o lema Black Power estadunidense. Ou “Uhuru!”
(liberdade em Swahili), expressão usada na Revolta dos Mau Mau ao longo dos anos 1950 e
naquele momento bastante utilizada por Julius Nyerere. Como mencionado, Caliban afirma
que não se chamaria mais Caliban, mas X9:
Caliban: Bem, é o seguinte: decidi que não vou ser mais Caliban.
Próspero: Que idiotice é essa? Não entendo!
Caliban: Te digo que a partir deste momento não respondo mais ao nome de
Caliban.
Próspero: De onde veio isto?
Caliban: Bem, de que Caliban não é meu nome. É simples!
Próspero: Talvez seja o meu!
Caliban: É o apelido com o qual teu ódio me vestiu e do qual cada chamado me
insulta.
Próspero: Porra! Ficamos susceptíveis! Bem, sugira... É preciso que eu te chame de
alguma maneira! Como vai ser? Canibal te cairia bem, mas estou certo de que você
não vai gostar! Vejamos, Aníbal! Esse te cai bem! Por que não! Todo mundo gosta
de nomes históricos!
Caliban: Me chame X. É melhor. Com quem diz o homem sem nome. Mais
exatamente, o homem ao que lhe roubaram o nome. Você fala de história. Bem, isso
também é história, e famosa! Cada vez que me chamar, isso me vai fazer lembrar o
fato fundamental, que você me roubou tudo, inclusive minha identidade! Uhuru!
(Césaire, 1997, pp. 27-28).
Apesar da referência ao canibalismo no trecho acima (lembremos da associação mais
comum de Caliban aos indígenas do Novo Mundo e ao Caribe), O Caliban de Césaire é
atravessado por referências negro-africanas. Há diversas referências ao deus iorubá Shango
(Xangô, o único personagem novo que Césaire insere na trama), a já mencionada uhuru, e
chama atenção a conexão de Caliban com as forças da natureza. Isso remete à visão sobre o
negro presente tanto no Movimento da Negritude quanto nas diferentes versões de
“socialismos africanos”, com as quais Césaire (e Senghor) dialogou (Pereira da Silva, 2023).
Caliban se integra à natureza, a sente e com ela conversa (capacidade herdada de sua mãe
Sycorax, de seus antepassados portanto), enquanto Próspero é a “antinatureza”. Caliban tem o
9
Como o X adotado por Malcolm X, representando o desconhecimento em relação a seus antepassados
africanos, o roubo da memória pelo processo de escravização.
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mar por companheira, ouve as canções do vento. Enquanto organiza sua rebelião, convida os
animais a apoiá-lo:
Para trás, víboras, escorpiões e ouriços! Feras que picam, mordem e perfuram! Com
ferrão! Com febre! Com veneno! Para trás! Ou se insistirem, para me lamberem
descubram uma língua favorável como a do sapo, cuja baba pura me embala em
sonhos encantadores do futuro. Porque é por todos vós, por todos nós, que eu
enfrento hoje o inimigo comum. Sim, hereditário e comum... Olha, um ouriço! Meu
doce pequenino... Que um animal, se assim posso dizer, natural, venha atrás de mim
no dia em que eu parto ao ataque de Próspero é esperado! Próspero é a
antinatureza. Eu digo: abaixo a antinatureza! Olha, ao ouvir estas palavras, o nosso
ouriço se ouriça? Não, ele retrai seus espinhos! Isso é a Natureza! Ela é gentil, em
suma! Basta saber falar com ela! (Césaire, 1997, pp. 74-75).
A maior mudança da versão de Césaire em relação ao original ocorre – não poderia
deixar de ser – no final da trama. Caliban percebe que Trínculo e Estéfano não poderiam
ajudá-lo em sua Revolução (os proletários brancos parecem não ser confiáveis afinal), e decide
atacar Próspero sozinho, mas não tem coragem de assassiná-lo desarmado. Ariel aprisiona
Caliban, Trínculo e Estéfano. Como se sabe, ao final da peça Próspero é atravessado por afãs
de perdão, e procura arrependimento em Caliban. Este afirma só se arrepender de ter
fracassado em sua rebelião:
Próspero: O que esperava?
Caliban: Tomar de novo minha ilha e reconquistar minha liberdade.
Próspero: E o que faria sozinho nesta ilha frequentada pelo diabo e sacudida pela
tempestade?
Caliban: Para começar, me livrar de você… Te vomitar. A você, tuas bombas, tuas
obras! Vomitar tua toxina branca!
Próspero: Como programa é mais para negativo…
Caliban: Você não está nele, já disse que te vomitaria, e isso é muito positivo…
Próspero: Decididamente é o mundo de ponta-cabeça. Já vimos de tudo: Caliban
dialético!10 (Césaire, 1997, pp. 86-87).
Próspero, como um bom colonizador que se considera responsável pela colônia e pelo
colonizado (obras civilizatórias suas afinal, o seu “fardo de homem branco”), afirma amar
Caliban, e argumenta que vivem juntos há dez anos, sendo dessa forma “compatriotas” em
algum sentido. Em vão. Em um pungente discurso de autoafirmação de sua humanidade
negada por Próspero, Caliban prevê que seu colonizador não retornará à Europa, por estar
aferrado à sua “missão civilizatória”, à sua “vocação”: “sua vocação é me foder! E por isso vai
ficar, como essa gente que fez as colônias e não pode mais viver em outro lugar” (Césaire,
Difícil não remeter às insistentes críticas recebidas pela negritude de que seria um “racismo às avessas”, ou à
famosa defesa que dele fez Jean-Paul Sartre de que constituiria dialeticamente um necessário “racismo
antirracista”, uma antítese do racismo branco, mas que no futuro estaria fadado a desaparecer.
10
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1997, p. 89). E de fato Próspero fica, no que é possivelmente a grande reviravolta desta versão:
“Sem mim esta ilha é muda. Aqui, então, está meu dever. Ficarei” (Césaire, 1997, p. 90). Ato
contínuo à saída de cena dos outros personagens europeus, Próspero faz menção de lutar com
Caliban. Cai o pano até a metade e volta a subir, sinalizando a passagem do tempo. A cena final
se passa na penumbra, com Próspero envelhecido, cansado, perturbado, acossado pela
natureza. Temos enfim um Caliban vitorioso em sua longa guerra de libertação, integrado a seu
ambiente, senhor de sua ilha:
[Próspero:] Vou me defender... Não vou deixar minha obra morrer... (Gritando.) Vou
defender a civilização! (Dispara em todas as direções.) Tomem... Tenho um momento
para ficar tranquilo. Mas está frio... É estranho, o clima mudou... Faz frio nesta ilha...
Devíamos pensar em acender uma fogueira... Bem, meu velho Caliban, somos só
nós dois nesta ilha, nada mais que você e eu. Você e eu! Você-eu! Eu-você! Mas, o
que está fazendo? (Gritando.) Caliban!
Se escuta ao longe, entre o barulho da ressaca e o chilrear dos pássaros, os vestígios do canto de
Caliban.
A LIBERDADE AH, A LIBERDADE!
(Césaire, 1997, p. 92)
Em resumo, este é o Caliban anticolonial. Remete tanto ao passado de negro
escravizado no processo de colonização das Américas, quanto ao negro colonizado na África.
Trata-se de um Caliban em busca da liberdade, em luta de vida e morte com o outro polo da
dicotomia: o colonizador Próspero.
Caliban, o negro pós-colonial
Caliban também se estabeleceu na África Sul-Saariana, e se prestou a ser reapropriado
por intelectuais negro-africanos como um símbolo de rebeldia do colonizado. Mas se
notabilizou principalmente como uma imagem arquetípica da necessidade de um processo de
“descolonização mental”, na medida em que teve que se apropriar da língua dos colonizadores
para poder se fazer entender. Neste sentido, quero tratar de duas obras: Franz Fanon’s Uneven
Ribs: Poems, More & More [As costelas desiguais de Frantz Fanon: poemas, mais e mais] (1971),
do ugandense e sul-sudanês Taban Lo Liyong; e Homecoming: essays on African and Caribbean
literature, culture and politics [Voltando para casa: ensaios sobre literatura, cultura e política
africana e caribenha] (1972), do queniano Ngũgĩ wa Thiong'o11. Interessa a ambos os escritores
e críticos literários (que colaboravam e trabalhavam juntos naquele período no Quênia) o
11
O ganense Raphael Ernest Grail Armattoe parece ter sido o primeiro autor negro-africano a fazer uma
associação de sua condição a Caliban e ao texto shakespeareano, em poemas reunidos em seu livro póstumo Deep
Down the Blackman’s Mind (1954). Antes um autor inglês radicado por algum tempo na África do Sul, Leonard
Barnes, em Caliban in Africa: an impression of colour-madness (1930) havia associado Caliban negativamente aos
africâneres e ao regime de apartheid que estavam estabelecendo.
11
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Caliban que amaldiçoa o colonizador na língua que lhe foi ensinada. No caso de Thiong'o, esse
tipo de reflexões levaria na sequência à sua conhecida decisão política de renunciar
parcialmente à língua de Próspero (e de Miranda) para escrever em kikuyu.
Aqui as referências à relação entre Próspero e Caliban passam por uma reflexão em
torno da colonização mental, entendendo a supressão da identidade, história e cultura do
colonizado pelo colonizador como elementos fundamentais da dominação. Nesse sentido, o
texto de Shakespeare – um referente fundamental do cânon literário do colonizador – se
apresenta como um recurso para a descolonização mental. Seu próprio uso já denota uma
hibridação, uma transculturação, ou seja, implica na criação de algo novo. Esse recurso pode
ser entendido como um ato de antropofagia, e veremos isso quando tratarmos do Caliban de
Darcy Ribeiro.
Pode-se considerar que as abordagens de Lo Liyong e de Thiong'o são distintas e de
certo modo disruptivas em relação ao projeto liberacionista de Césaire. Lo Liyong e Thiong'o,
representantes da geração de intelectuais posterior às descolonizações africanas, se apropriam
de Caliban agora para apontar os limites da descolonização, e questionar quais seriam os
próximos passos. Parecem dizer: “seguimos colonizados mesmo após as independências. E
agora? O que fazer a seguir?” Enquanto a resposta de muitos intelectuais do final dos anos
1960 e princípio dos 1970 passava pelo marxismo africano, outros começavam a delinear
viradas que mais tarde seriam enquadradas em vagas etiquetas, como a do “pós-colonial”.
Nesse sentido, chama atenção este trecho tão carregado de humor e ironia – como de
costume na obra de Lo Lyiong:
Bill Shakespeare / Criou um personagem chamado Caliban, / O servo relutante de
Próspero, / E este Caliban poderia ter tido Miranda / – Ela que é uma coisa linda
de se ver – uma garota / Tão necessitada de amor e para quem / Ferdinando era
uma maravilha de um admirável mundo novo, / E que poderia ter ajudado Caliban
a povoar a ilha / Com Calibanzinhos cheirando a peixe / Se Próspero não tivesse
estragado seu plano. / Uma coisa sobre Caliban: foi-lhe ensinada a língua / E que
pote cheio de maldições continha! / O papagaio criado pelos irmãos de Long John
Silver / Teria morrido de inveja. / Caliban disse: Ensinaste-me a língua / E que
posso fazer com ela / A não ser amaldiçoar-te? / (A propósito, / Também me
chamo Taban / Muito próximo de Caliban / E ensinaram-me a língua / E que faço
eu com ela / A não ser amaldiçoar, à minha maneira?) / Faz bem à Humanidade /
Ensinar aos homens as palavras / Sem prévia triagem / Dos que delas fariam / Um
uso humano / E daqueles que apenas permanecem / A inclinar o mundo / E a
deslocá-lo / Pelo mero poder das palavras (Lo Liyong, 1971, p. 41).
Neste trecho há uma associação do autor a Caliban, que chama atenção para a
semelhança de seu nome com o do personagem (diz-se que ele teria assumido esse
pseudônimo inclusive como uma derivação de Caliban). Taban também lança mão da
linguagem do colonizador para amaldiçoá-lo, à sua maneira: para inclinar, deslocar o mundo
com o poder de suas palavras. Palavras poderosas estas. Vale também mencionar sua referência
a outro personagem não-branco (negro, ou talvez árabe) de Shakespeare: “caliban cheirava a
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peixe / disse trínculo / mas uma besta de carga tem de cheirar a alguma coisa / se não for
peixe cheira a comida / homem a homem otelo venceu iago / em confronto direto / são os
atos dissimulados que desorientam o mundo” (Lo Liyong, 1971, p. 68). Otelo, o “moro de
Veneza”, ao final assassinou sua esposa Desdêmona e se suicidou motivado pela trama ardilosa
do vilão Iago. Nota-se nos textos de Lo Lyiong a valorização do desvio, do subliminar, em
lugar do enfrentamento aberto. A dissimulação e as palavras podem mudar o mundo,
“inclinando-o”, “deslocando-o”, “desorientando-o”. Pode-se considerar isto a intenção de
lançar luz sobre formas culturais, simbólicas de dominação, mas também de resistência e de
luta – geralmente legadas às sombras.
Como não poderia deixar de ser, Ngũgĩ wa Thiong'o é mais explícito em seus ensaios,
destacando o empenho do colonizador europeu em destruir os valores do colonizado africano,
“na tradição clássica de Próspero”: “Shakespeare dramatizou a prática e a psicologia da
colonização anos antes de esta se tornar um fenômeno global” (Thiong'o, 1972, p 7). Thiong'o
descreve bem o processo que levou Próspero a se assenhorear da ilha e de Caliban:
Próspero, o estrangeiro na ilha, chega com a voz suave da serpente. A princípio, ele
é simpático com Caliban e lisonjeia-o, mas o tempo todo está aprendendo os
segredos da ilha. Para ele, Caliban não tem cultura nem passado significativo. Ele até
deu a sua língua para Caliban. E antes que Caliban perceba, Próspero se apodera de
sua terra, estabelece um governo de um homem só e transforma Caliban num
trabalhador escravo (Thiong'o, 1972, pp. 8-9).
Thiong'o traça um paralelo entre as atitudes de Próspero e tudo que no processo
colonizador se dedicava a negar a humanidade do colonizado africano. Pois, assim como
Próspero, o colonizador europeu “conhecia e temia a ameaça representada por homens
confiantes no seu passado e na sua herança. Por qual outra razão ele dedicaria o seu poderio
militar, o seu fervor religioso e a sua energia intelectual para negar que o africano tivesse deuses
verdadeiros, tivesse uma cultura, tivesse um passado significativo?” (Thiong'o, 1972, p. 9).
Negando sua religiosidade, cultura, história, linguagem, o colonizador recusava ao colonizado
sua humanidade, e consequentemente sua capacidade de resistência e de autogestão – do
mesmo modo que Próspero procurou fazer com Caliban ao longo de todo o texto de
Shakespeare.
Resumidamente, este tipo de Caliban é o negro pós-colonial. Formalmente livre da
escravização e da colonização, ele ainda se percebe efetivamente dominado – entre outros
elementos, pela colonização mental que persiste. A situação complexa e algo inesperada pode
exigir alguma ironia em seu tratamento, e certamente o uso de novas estratégias de libertação
em relação a uma dominação agora mais difusa.
Caliban, o mestiço latino-americano e caribenho
Considero que as reflexões em torno de Caliban produzidas por Roberto Fernández
Retamar sejam de longe as mais conhecidas no campo intelectual latino-americano e caribenho.
13
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A utilização por Retamar do que ele trataria como “conceito-metáfora” ou “personagem
conceitual”12 para definir a identidade latino-americana e caribenha foi longa e profícua, no que
é provavelmente a mais insistente relação com aquilo que prefiro considerar aqui uma imagem
arquetípica. As reflexões do intelectual cubano foram reunidas na obra Todo Caliban, cuja
edição do CLACSO de 2004 é a versão mais completa. Aqueles textos seguem alimentando
debates sobre a identidade regional, e dividindo os críticos, entre aqueles que defendem a
vigência de Caliban como sujeito unificado e símbolo da região, a despeito dos “relatos pósmodernos, multiculturais e pós-estruturalistas” (como Néstor Kohan, 2013, p. 115); e aqueles
que julgam este tipo de uso como essencialista e mesmo antimarxista, como é o caso de
Alejandro Fielbaum (2023).
Na obra de Retamar vemos o Caliban antilhano que vai se metamorfoseando em latinoamericano. Um indígena caribenho que não pode mais falar por si mesmo, ou não podia então
falar por si mesmo. Agora trata-se de um Caliban não mais indígena, ou negro, mas mestiço –
como mestiço seria o subcontinente latino-americano e caribenho, este novo sujeito histórico
que emerge das reflexões de Retamar. Este argumento pode ter sido retrabalhado e matizado
nos escritos posteriores, mas no seminal “Caliban” de 1971 está lá de modo explícito: “existe
no mundo colonial, no planeta, um caso especial: uma vasta zona para a qual a mestiçagem não
é o acidente, mas a essência, a linha central: nós, ‘nossa América mestiça’” (Retamar, 2004, p.
5). A história da região, bem como sua cultura mestiça13, é para nosso autor a história e a
cultura de Caliban. É a esta cultura, dando seus primeiros passos, que nosso autor dedica sua
atenção, uma cultura com características próprias: ainda que nascida (como toda cultura) de
uma síntese, e neste caso de uma síntese efetivamente “planetária”, ela não repetiria nenhuma
das características das culturas que a originaram (Retamar, 2004, pp. 65-66).
Retamar demonstra em seus trabalhos profundo conhecimento em torno das reflexões
sobre Caliban e A Tempestade – desde os usos latinistas e hispanistas que associavam Caliban
aos EUA e que tiveram Rodó como seu símbolo, passando pelas reflexões sobre o
colonialismo desde Mannoni e Frantz Fanon, até os usos caribenhos desde George Lamming,
que em The pleasures of exile (1960) parece ter inaugurado a associação entre Caliban e a
América Latina e Caribe14. Retamar, ao mesmo tempo em que elaborou identidades em torno
da imagem arquetípica Caliban, se constituiu numa referência incontornável sobre o tema.
12
Retamar busca essas definições respectivamente em Gayatri Spivak e em Gilles Deleuze e Felix Guattari. O
autor as apresenta no texto “Adeus a Caliban” (1993), que publicou como pós-escrito do seu texto “Caliban”
(1971) em edições posteriores, como em Todo Caliban (2004) que utilizo aqui. Também discute aquelas noções em
“Caliban quinhentos anos mais tarde” (1993), no qual remeto particularmente à esclarecedora nota 3 (cf. Retamar,
2004, p. 143).
13 Me parece evidente que o autor trata da dimensão cultural da mestiçagem, não de qualquer elemento
propriamente racial ou étnico. Para afastar mal-entendidos, Retamar insiste neste ponto em escritos posteriores
nos quais retorna ao tema. E passa a recorrer ao conceito de “transculturação” de Fernando Ortiz.
14 Richard Morse, em um artigo pouco conhecido publicado em espanhol no semanário uruguaio Marcha, também
antecipa a associação dos EUA a Próspero e da América Latina a Caliban. O faz a partir da leitura de Mannoni,
numa abordagem psicológica e culturalista, e já argumentando a favor daquele pretenso espírito comunitário
14
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O Caliban de Retamar trabalha numa construção dupla de identidade, positiva e
negativa. Além de mestiço (o que parece ser o elemento positivo e o mais central em sua
constituição), trata-se também de uma construção anti-imperialista15, de uma identidade em
negativo na qual o polo opositor é Próspero, o império estadunidense. Nesse sentido, Retamar
se mantém naquela tradição latino-americanista mais larga, com a importante mudança de
associar agora a região a Caliban, não mais a Ariel. Mas Retamar também dialoga fluentemente
com a literatura caribenha anglófona, algo que é incomum entre nossos intelectuais, como é
incomum entender as identidades latino-americana e caribenha (não apenas hispânica) de um
modo entrelaçado. E Retamar dialoga também com a literatura anticolonial em geral – africana
e caribenha, francófona e anglófona.
Apesar da América Latina e Caribe serem associados primordialmente a Caliban, a
anterior associação a Ariel não é de todo abandonada por Retamar: “Não há verdadeira
polaridade Ariel-Caliban: ambos são servos nas mãos de Próspero, o feiticeiro estrangeiro. Só
que Caliban é o rude e inconquistável dono da ilha, enquanto Ariel, criatura aérea, ainda que
filho também da ilha, é nela, como viram [Aníbal] Ponce e Césaire, o intelectual” (Retamar,
2004, p. 31). Nesse sentido, pode-se afirmar que Retamar é acima de tudo martiano, mas não
abandona totalmente Rodó. De todo modo, Ariel é secundário na trama de Retamar, ou na luta
revolucionária da região. Ele deve escolher entre seguir servindo a Próspero (seguir como
“intelectual pequeno-burguês”) ou adquirir sua verdadeira liberdade unindo-se a Caliban.
Optando pelo segundo caminho, Ariel deverá trair sua classe e ao mesmo tempo romper com a
cultura de seu senhor, ou melhor, utilizar a cultura europeia ensinada por Próspero para
maldizê-lo. Para Retamar, este configuraria o duplo dilema do intelectual periférico.
Para encerrar esta seção, gostaria de mencionar um texto menos lido de Retamar,
“Caliban quinhentos anos mais tarde” (1993). O faço porque aqui (e aparentemente somente
aqui) o autor agrega dois novos sentidos perfeitamente complementares entre si a seu
“personagem conceitual”. Neste texto elaborado a partir de conferências proferidas em 1992
em diversas universidades estadunidenses (nos 500 anos da “descoberta” da América,
portanto), Caliban remete também aos “condenados da Terra em seu conjunto, cuja existência
alcançou dimensão única a partir de 1492” (Retamar, 2004, p. 143); bem como àqueles países
que foram “subdesenvolvidos pelos países subdesenvolventes”, respectivamente Caliban e
Próspero (Retamar, 2004, p. 156). Portanto, remete tanto a uma generalização do arquétipo a
subalternos de um modo geral, quanto àquela área que já teve diversos nomes (colônias,
subdesenvolvidos, Terceiro Mundo, não-alinhados...), sendo hoje majoritariamente denominada
“Sul Global”.
latino-americano que seria a marca de seu livro clássico O espelho de Próspero (1988). Não encontrei menção de
Retamar àquele artigo. Agradeço a Bernardo Ricupero pela indicação de sua existência.
15 Um anti-imperialismo que se desdobra em socialismo. Porém, este me parece um elemento secundário em
relação ao anti-imperialismo que o antecede. Poder-se-ia afirmar que isto também ocorre com o processo
revolucionário cubano como um todo, com o qual Retamar tanto se associou.
15
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Por que estas duas conexões me interessam? A primeira já está explicitada no título que
escolhi para este ensaio, uma referência apenas indireta ao clássico livro de Fanon – de fato, me
inspirei na menção feita àquele livro por Retamar, em seu texto de 1993. Ambas as conexões
serão desenvolvidas na Conclusão, porque as considero valiosas pistas deixadas por Retamar de
como Caliban poderia se manter vigente como um personagem arquetípico no século XXI. De
fato, foi este “Caliban quinhentos anos mais tarde” que definitivamente me animou a escrever
este ensaio, agora trinta anos mais tarde.
Em síntese, este Caliban é anti-imperialista, e representa o “povo” mestiço latinoamericano e caribenho (e seus aliados, tal como o intelectual crítico) em luta contra o império
do Norte. Em potência, poderia representar mais amplamente também a luta do Sul Global
contra o Norte Global.
Caliban, o antropófago
Considero que as reflexões sobre Caliban (e calibanescas) de Fernández Retamar
remetem diretamente ao romance Utopia Selvagem (1982) de Darcy Ribeiro16. Me parece
evidente a partir da leitura do romance que Darcy se apropria do personagem não a partir de
Shakespeare e de seus estudiosos, mas sim das reflexões latino-americanistas de Fernández
Retamar, com o qual naquele momento já nutria grande amizade. A partir da relação de ambos,
pode-se entender também por que nos últimos escritos do cubano sobre Caliban podemos
encontrar referências a Darcy, a seu romance e à antropofagia oswaldiana17.
O Caliban latino-americano e caribenho de Fernández Retamar é recepcionado por
Darcy, e aqui ele se reconfigura como brasileiro, ou mais precisamente como indígena
brasileiro18. Seja como um bom selvagem, um bárbaro, um sub-humano, ou no caso de Darcy
16 Uma recepção brasileira de Caliban anterior a Utopia Selvagem foi a releitura de Augusto Boal de A Tempestade
(escrita em 1974, encenada em 1976 e publicada em livro em 1979). Boal foi provavelmente o primeiro autor
brasileiro a se dedicar com mais afinco a esta tarefa, e em seu texto podem ser encontradas diversas
representações de Caliban, que é apresentado como negro, indígena, operário, latino-americano, asiático, africano,
camponês.... Em suma, traduz em diversas expressões o “oprimido” de seu teatro. Parece evidente que a
aproximação tanto de Boal quanto de Darcy com aquela obra se dá a partir das representações latino-americanas
de Caliban (e de Ariel), em especial através da amizade dos dois com Retamar. Pode-se sugerir que isto não
ocorreria, não fosse o exílio latino-americano de ambos.
17 Em sua larga polêmica com Retamar, Emir Rodríguez Monegal também chamou a atenção de seu “rival”
intelectual para seu desconhecimento da antropofagia brasileira – lacuna reconhecida por Retamar em textos
posteriores.
18 É provável que a primeira referência a Caliban na literatura brasileira esteja na Lira dos vinte anos, coleção de
poemas que Álvares de Azevedo publicou em 1853. A antologia se dividia em duas partes, a primeira etérea e
idealista, a segunda sombria e trágica. Na transição entre uma e outra, Azevedo explica: “quase que depois de
Ariel esbarramos em Caliban” (Azevedo, 1996, p. 86). Ariel e Caliban aqui são as duas almas que convivem no
poeta. Azevedo se aproxima então daquele entendimento dos personagens como expressões de um conflito
interno do próprio Próspero. Encontramos o mesmo sentido em um curto poema de Machado de Assis, “No
alto”, publicado em 1901 – Machado já havia se referido a Próspero e Ariel em Quincas Borba, de 1891. No poema,
16
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(e de Oswald) um “pândego”, este Caliban que aqui se configura como símbolo de brasilidade
é de novo (como em todas as associações do indígena do Novo Mundo a Caliban) um
exercício de construção identitária do qual o principal interessado não faz parte. Não é de
modo algum uma autoidentidade, uma releitura indígena realizada pelo próprio indígena, mas
uma heteroidentidade. Ainda se tratava (com todo o conhecimento de causa e boa vontade de
Darcy) de um indígena silenciado, começando a se expressar na língua do colonizador. Mas é,
ao menos neste caso, um personagem que olha para o colonizador com galhofa, que não aceita
o eurocentrismo, e que sai vitorioso deste encontro. De todo modo, não pude encontrar ao
longo da pesquisa para a elaboração deste ensaio nenhum uso do personagem arquetípico
Caliban por intelectuais autoidentificados como indígenas. Não parece ter sido interessante até
aqui a algum intelectual indígena subverter positivamente a associação hegemônica do
personagem a Caribe/canibal – como o foi para intelectuais negros subverter sua associação ao
negro colonizado/escravizado.
Vejamos rapidamente a estrutura do romance – pedindo perdão uma vez mais pelos
spoilers. A história é narrada majoritariamente em terceira pessoa (digamos que pelo narradorDarcy), e são habituais as intervenções do narrador sob a forma de digressões, às vezes
extensas. O argumento está centrado nas peripécias na selva do tenente negro Gasparino
Carvalhall, que vai mudando de identidade ao longo de sua aventura entre as icamiabas
(amazonas) primeiro e entre os indígenas Galibi depois. Na primeira metade do romance,
Carvalhall tem que se haver com o poder total que as icamiabas exercem sobre ele, capturado
para cumprir a função de macho reprodutor. Quando enfim o dispensam sem matá-lo (o que
era seu grande terror), deve lidar com os Galibi e seu chefe Caliban, que desconfiam de suas
histórias sem fundamento. Caliban só é acolhido (e não comido) devido à intervenção das
freiras Tivi e Uxa, que vivem entre os indígenas tentando catequizá-los – sem nenhum sucesso.
A vida de Carvalhall agora está nas mãos, portanto, e até o final do romance, dos Galibi e de
Caliban. O romance termina num grande delírio bacanal inspirado pelo uso ritual de Caapi, de
forte humor antropofágico, erótico e escatológico, que convém não descrever para não estragar
a experiência de futuros leitores da obra.
Portanto, há duas entradas para a discussão de Caliban na obra. Uma é a reflexão do
narrador/Darcy sobre o encontro do europeu com o indígena, e tudo que isto gerou segundo
nosso narrador – desde os primeiros romances utópicos, passando pel’A Tempestade e pelo
Caliban bárbaro e sub-humano19, mas também pelo bom selvagem montaigniano e
rousseauniano, até chegar às interpretações arielistas ou calibanescas da identidade latinonosso maior romancista se refere a Ariel e (ainda que não o mencione explicitamente) a Caliban: “O poeta chegara
ao alto da montanha, / E quando ia a descer a vertente do oeste, / Viu uma cousa estranha, / Uma figura má. /
Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, / Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, / Num tom
medroso e agreste / Pergunta o que será. / Como se perde no ar um som festivo e doce, / Ou bem como se fosse
/ Um pensamento vão. / Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. / Para descer a encosta / O outro lhe deu a
mão” (Machado de Assis, 1994).
19 “Mais ainda se consagra Canibal ao se converter em Calibã. Assim chamado, vive em 1612 um enredo
tempestuoso no qual, ao ganhar voz e civilização, nosso avô se fode” (Ribeiro, 2014, p. 26).
17
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americana. O narrador-Darcy deixa evidente sua preferência pela conexão da América Latina
com Caliban – associada anteriormente a Ariel por um “cisplatino leitor de Renan, que
confundindo tudo chama Próspero de Calibã, reivindicando para nós a espiritualidade latina na
triste figura de Ariel, intelectual dócil, servil e adamado20” (Ribeiro, 2014, p. 27).
A outra entrada são os usos de Caliban, Próspero e Ariel na obra. Este último não
aparece no romance, só merecendo aquela já citada associação a um “intelectual adamado”.
Próspero surge no que é talvez a passagem mais surpreendente do livro. Não como “o
império” em Fernández Retamar ou o “colonizador” em tantos outros, mas como o elemento
central de uma distopia futurista, na qual a sociedade “civilizada” é controlada por Próspero,
um supercomputador ao qual todos estão ligados e que exerce controle absoluto sobre as
pessoas, regulando suas rotinas, o que podem assistir e fazer, deixando-as felizes (e
eternamente na inocência). Próspero é o principal elemento no funcionamento da “Utopia
Burguesa Multinacional” (UBM). Finalmente, temos Caliban, que já vimos ser o chefe da tribo
Galibi. No caso, um chefe que não está numa posição hierarquicamente superior, um chefe que
é um “pândego”; para todos os indígenas “o amigão”; para Carvalhall “um palhaço” “que não
assume a dignidade da chefia”; para a jovem freira Tivi “um alento e um desafio”; para a velha
freira Uxa, “se não é o próprio demônio, é agente graduado dele” (Ribeiro, 2014, p. 125).
Em mais uma digressão, perto do final da obra, o narrador-Darcy retoma a palavra para
dar sua própria interpretação de Caliban. Para mim, esta passagem traduz a utopia romântica
entrevista pelo romance:
Até suponho que os socialistas verdadeiramente comunistas o que querem, sem
saber, é um mundo como este Galibi. O que buscam há tanto tempo e tão
afanosamente – esse velho sonho ansiado de uma coisa que só faltava imaginar bem
para possuir realmente – é, nada mais nada menos, do que essa convivência índia
num reino mecânico e computacional: civilizado. Este tuxaua deles, por exemplo,
que bem podia ser um rei, é na verdade um banana, como bem diz Orelhão
[Carvalhall]. Mas por que todo chefe ou rei – se é que tem de havê-los – não há de
ser um companheirão? Jamais Calibã deu uma ordem na vida e no dia que der todo
mundo vai cair na risada. Sou passadista, confesso. Mas não pense o leitor que
advogo o retorno à Barbárie. Longe de mim tal disparate. O que tenho é uma
incurável nostalgia de um mundo que bem podia ser, mas jamais foi e que eu nem
sei como seria e se soubesse não diria” (Ribeiro, 2014, pp. 140-141).
De todo modo, esta utopia romântica não aparece como um projeto de futuro viável,
como horizonte de expectativas para utilizar a expressão de Reinhart Koselleck. Essa digressão
do narrador-Darcy assume papel secundário em meio ao que Andrés Kozel (2019) interpreta
corretamente como uma “distopia catártica”. O romance lida com dilemas não resolvidos, com
o que parecem ser as dúvidas de um autor que se debate entre o que o próprio Darcy uma vez
20
O retrato de Ariel como efeminado e adamado já havia sido feito por Augusto Boal, e é evidentemente uma
passagem que hoje não podemos deixar de entender como homofóbica. A América Latina teria que ser associada
ao revoltoso/másculo Caliban, não ao servil/efeminado Ariel.
18
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nomeou como a “revolução necessária” e a “utopia possível” – e com as quais (afirma Kozel)
o autor conseguiria lidar apenas através do humor, sarcasmo e ironia que atravessam o livro.
Esta “utopia selvagem” do romance parece irrealizável para o autor, o que ele mesmo admite
na passagem citada – é mais utopia como “não-lugar”. Neste sentido, o Caliban de Darcy não
simboliza um projeto revolucionário nem um sujeito revolucionário – como representava na
obra de Fernández Retamar ou de Césaire.
Pode-se considerar Utopia selvagem a mais importante reelaboração brasileira do
personagem arquetípico Caliban – vimos que não foi a única nem a primeira (conferir nota 14).
Mas nesta subseção gostaria de remeter também à antropofagia de Oswald de Andrade. Se
Oswald não parece ter feito qualquer referência explícita a Caliban, seus usos do arquétipo do
“indígena antropófago” se aproximam muito dos usos de Caliban aqui discutidos. Se Caliban
for efetivamente um indígena canibal, é no sentido de subverter uma simbologia negativa em
positiva e tomá-la como base para a construção de uma identidade (no caso a brasileira) que o
indígena antropófago aparece em Oswald. Isto ocorre no seu mais conhecido “Manifesto
Antropófago” (1928), quando define a antropofagia como a característica central da cultura
brasileira e reivindica seu passado originário como inspiração para o futuro. Mas Oswald
também o faz em seus últimos escritos, do começo da década de 1950, quando retoma a
imagem arquetípica do antropófago depois de muitos anos para defender a salvação da
humanidade através da retomada de um passado antropofágico e matriarcal, associado, porém,
aos mais modernos avanços tecnológicos (Andrade, 1978). E há claramente ecos da
antropofagia oswaldiana em Utopia Selvagem – e menções explícitas a Oswald e a seu mais
famoso manifesto, posicionado pelo narrador-Darcy como o principal momento de encontro
do brasileiro consigo mesmo.
Em resumo, este tipo de Caliban é um pândego, e em meio à galhofa deglute o que
vem de fora a transforma em algo próprio. Não define um horizonte revolucionário palpável,
vive mais propriamente uma distopia. Mas através da antropofagia produz algo novo e belo,
talvez a Nova Roma tropical projetada por Darcy – que numa catarse escatológica poderia
produzir um novo tempo.
Caliban, o proletário filho de Sycorax
Houve uma recente retomada da imagem arquetípica Caliban, através de sua utilização
pela filósofa italiana radicada nos EUA Silvia Federici21, em seu já clássico O Calibã e a Bruxa –
mulheres, corpo e acumulação primitiva (publicado originalmente em inglês em 2004, e primeira
edição brasileira de 2017). Trazer Federici ao debate permite demonstrar que Caliban enfim
não está completamente em desuso. Permite também ir além da noção de uma noção
estritamente geopolítica de intelectualidade periférica (que habita a periferia global ou o Sul
Global), entendendo-a no sentido mais amplo de “subalternidade” que está no título deste
21
Federici já havia remetido a Caliban (com menos repercussão) em sua obra com Leopoldina Fortunati Il grande
Calibano – Storia del corpo sociale ribelle nella prima fase del capitale, de 1984.
19
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artigo. Caliban também pode servir para representar o Sul que habita o Norte – ou qualquer
sujeito subalterno. Mas interessa particularmente, como veremos, para trazer ao debate (antes
tarde do que nunca) uma personagem oculta.
Caliban ressurge em chave positiva, e associado ao feminismo – mais precisamente
objeto de reflexões do feminismo. Não se trata de uma operação simples em princípio,
considerando-se que aquele personagem é claramente heteronormativo, associado à
masculinidade, e (como se explicita na peça) provavelmente teria tentado praticar um estupro.
Miranda, efetivamente a única personagem feminina que tem voz na peça, dificilmente se
prestaria a alguma releitura libertadora. Ainda assim, foi possível localizar algumas tentativas de
releituras feministas de Miranda, por exemplo, a realizada por Coco Fusco em “El Diario de
Miranda/Miranda’s Diary” (1995). Cabe mencionar também a reapropriação feminista do
próprio Caliban, através da associação à sua linhagem, em Daughters of Caliban (1997) de
Consuelo López Springfield, onde a autora desenvolve a ideia de que “todas somos filhas de
Caliban”22.
Assim, quem emerge junto com Caliban (e com maior destaque) é a personagem
oculta, porém muito presente no texto de Shakespeare: sua mãe Sycorax, a bruxa. É a ela que
Federici remete para simbolizar a centralidade da acumulação primitiva no desenvolvimento do
capitalismo, e nela simboliza a exploração da mulher e do corpo feminino, restrita agora ao
espaço privado e ao trabalho não remunerado doméstico. Sycorax remete à perseguição à
“bruxaria”, às práticas inapropriadas e insubmissas das mulheres. A “bruxaria” aqui atua como
o símbolo da repressão à mulher na passagem do feudalismo para o capitalismo e no processo
de colonização das Américas.
A bruxa/Sycorax é a imagem arquetípica central da análise de Federici, associada a seu
filho Caliban que é entendido como proletário e colonizado. O “Grande Caliban” da época
seria o proletariado. Assim como Caliban, este “personificava os ‘humores enfermos’ que se
escondiam no corpo social, começando pelos monstros repugnantes da vagabundagem e do
alcoolismo” (Federici, 2017, p. 282). O proletário era aquela figura desumanizada, que iria
culminar no communard de Renan no século XIX23.
A tese central do livro, portanto, é a continuidade entre Caliban e sua mãe, e também
entre a exploração do Novo mundo e a dos homens proletários e mulheres da Europa na
transição ao capitalismo. Caliban e Sycorax são os sujeitos que estão na base da formação e
desenvolvimento do capitalismo, sua exploração constituindo-se na base do sistema:
Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura
caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial
e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de
resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em
22
Um interessante debate sobre esses usos (e uma defesa da associação com Sycorax) está em Lara (2007).
A leitura demofóbica de Renan, refutada por muitos, se tornou um parâmetro na associação negativa de Caliban
ao proletariado moderno. Porém, a leitura de Federici não foi a primeira a fazer a associação em chave positiva. O
marxista argentino Aníbal Ponce já a havia feito em seu Humanismo burguês e humanismo proletário, de 1938.
23
20
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A tempestade fica relegada a segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena,
enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo
precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa
viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos à
rebelião (Federici, 2017, pp. 23-24).
Federici associa Próspero ao “homem novo” expressado na burguesia industrial, e
interpreta Ariel e Caliban como analogias do conflito entre a razão e a brutalidade em seu
próprio interior. Faz um paralelo entre a revolta de Caliban, Trínculo e Estéfano na peça e a
temida (pelos senhores) aliança entre brancos pobres, negros e indígenas, segundo ela um
medo constante até o final do século XVIII, quando as fronteiras raciais estariam
“irrevogavelmente” estabelecidas. E pergunta: se a revolta fosse liderada por Sycorax e pelas
irmãs das bruxas que estavam então sendo condenadas à fogueira? Estaria do mesmo modo
condenada ao fracasso?
De todo modo, ainda que não o responda, Federici observa a ironia de que tenha sido
Caliban, e não Sycorax, que tenha sido apropriada por Retamar e tantos outros como símbolo
da resistência à colonização. Caliban teve que recorrer às ferramentas do colonizador para lutar
contra seu senhor, e se perdeu em suas equívocas tentativas de obter a liberdade ao longo da
trama. Enquanto isso, Sycorax era descrita por Shakespeare como poderosa a ponto de
controlar a Lua e as marés, “pode ter ensinado seu filho a apreciar os poderes locais – a terra,
as águas, as árvores, os ‘tesouros da natureza’ – e os laços comunais que, durante séculos de
sofrimento, continuam nutrindo a luta pela libertação até o dia de hoje, e que habitavam, como
uma promessa, a imaginação de Calibã” (Federici, 2017, pp. 405-406). Aqui vemos a associação
em chave positiva de Sycorax e de Caliban à natureza. Federici inverte assim a lógica moderna
hegemônica da separação entre homem e natureza – aquela lógica que localiza a mulher, o
proletário, o colonizado, o selvagem e as raças inferiores no segundo polo, aquele polo sem
humanidade e sem agência, que deve ser explorado pelo homem, colonizador, capitalista,
branco.
Sinteticamente, este Caliban, mais que um proletário, é o filho de Sycorax. Sua mãe é a
fonte de seu poder, que remete em última instância à integração orgânica de Sycorax com a
Natureza. Trata-se do sujeito revolucionário marxiano em nova versão: sua força é herdada das
bruxas e seus saberes ancestrais, numa releitura feminista de sabor ecossocialista e decolonial.
Sobre os desusos de Caliban: ainda fazem sentido imagens arquetípicas
unificadoras em meio a tanta fragmentação?
Vimos que Caliban representou diversos atores subalternos da modernidade capitalista,
notavelmente na periferia do sistema – mas também em seu centro, como representação dos
proletários, filhos de Sycoraxs queimadas em fogueiras ou aprisionadas no espaço privado. De
todas as representações, talvez a mais recorrente tenha sido a do negro colonizado,
escravizado, desumanizado. Vimos que especificamente esta analogia com Caliban foi
fartamente adotada pelos próprios subalternos, enquanto autoidentificação – operada por
21
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intelectuais negros das duas margens do Atlântico. Também o foi como autorrepresentação de
toda uma região, a América Latina (e Caribe).
Por outro lado, vimos que serviu com recorrência à representação de indígenas canibais
(ou antropófagos), desde as primeiras interpretações do texto. Esta representação
eventualmente foi positiva – de Montaigne a Darcy. Mas não consegui localizar nenhuma
autoidentificação nesta chave, ou seja, nenhum intelectual indígena autoidentificado como tal
lançando mão da imagem arquetípica Caliban. Na emergência de epistemologias indígenas
ocorrida na América Latina nas últimas décadas, não parece haver sido interessante recorrer a
Caliban. Tampouco, em particular, na emergência de um pensamento indígena finalmente
ocorrida nos últimos anos no Brasil. É razoável imaginar um pensador indígena
contemporâneo diante de Caliban se questionando: “para que serve isto, o que eu tenho a ver
com isto, para que vou remeter a uma peça de um branco, inglês, que escreveu nos séculos
XVI e XVII?”. Mas nenhum daqueles autores negros de quadras históricas passadas parece ter
se preocupado com isso. E talvez aqui esteja o começo de uma possível explicação para o
quase abandono de Caliban.
Se tivermos que estabelecer um marco temporal, parece ter ocorrido uma redução e
quase interrupção dos usos de Caliban por volta de meados dos anos 1970. Por quê? Sugerirei
dois argumentos. Um primeiro argumento é o de que parece ter sido necessário às elites
intelectuais contra-hegemônicas em ascensão nos mundos periféricos recorrer a referências do
colonizador, como modo de legitimação. Eles eram marcadamente híbridos, intelectuais de
fronteira, em boa medida atravessados pelo eurocentrismo – há farta literatura sobre o
Movimento da Negritude que enfatiza este ponto (cf. Pereira da Silva, 2023). Sabemos que
escolas de pensamento periféricas recentes interpelam o eurocentrismo de um modo mais
crítico do que há meio século ou há um século – em particular quando se trata de pensamentos
que se entendem como autóctones, originários. Sugiro então que contemporaneamente haveria
maior brecha para a opção política de não remeter a clássicos e a imagens europeias.
Um segundo argumento, ainda mais generalista e de difícil comprovação, é o de que
haveria ao que parece um desuso dos arquétipos, dos tipos ideais e das narrativas universalistas,
em meio a uma crise da modernidade em todas as suas dimensões. Pode-se remeter a uma
fragmentação identitária, à constatação de identidades múltiplas e híbridas, e a toda a tradição
teórica dos movimentos intelectuais sob os rótulos de “pós-coloniais, “pós-modernistas”,
“decoloniais”. Depois de décadas de reflexão crítica, alguns de nós aceitamos que (ao menos
até aqui) não há “universalidade” em Shakespeare ou em qualquer outro – o que pode ser
entendido como um processo epistêmico de “provincialização” da Europa (Mignolo, 2011)24.
Por outro lado, neste tipo de argumento está embutido o risco da excessiva
fragmentação. Passar das grandes narrativas à atomização e ao relativismo absoluto parece um
24
De todo modo, a inquestionável riqueza da obra do bardo permite uma profusão de releituras ao longo dos
séculos, por sua qualidade e complexidade. Não é qualquer obra que permitiria isto. É possivelmente a obra que
mais se aproximaria do que é costumeiramente entendido como “universal” – se houvesse universalidade na
modernidade.
22
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perigo que poderia ser evitado recorrendo a universalismos parciais, a identidades parciais que
pudessem dialogar (Ribeiro, 2015, Wallerstein, 2007). Como um horizonte de futuro
emancipatório, poder-se-ia pensar em parcialidades que dialogariam pela primeira vez num
genuíno universalismo, nem exclusivista nem excludente, e respeitoso das peculiaridades
civilizacionais (Pereira da Silva, Kozel, 2022). Estas parcialidades poderiam contribuir para a
constituição de um “universalismo plural”, um “pluriverso” ou “transmodernidade” (Kothari
et al, 2021, Dussel, 2016, Acosta, 2016).
Vimos que em seu texto “Caliban quinhentos anos mais tarde”, Retamar associou
Caliban aos “condenados da Terra em seu conjunto”, bem como aos países do sistema-mundo
que foram “subdesenvolvidos pelos países subdesenvolventes” (Retamar, 2004). Nestes
sentidos, Caliban poderia se constituir num elemento de condensação dos diversos grupos
subalternos, bem como do que hoje chamamos de “Sul Global” – evidentemente dois sentidos
que se complementam e eventualmente se sobrepõem. Quanto ao primeiro sentido, a noção de
interseccionalidade, entre outros recursos teóricos, vai refazendo caminhos de unidade na
diversidade. Poder-se-ia sugerir um “Caliban interseccional”, atravessado por múltiplas
identidades subalternas. Quanto ao segundo sentido, em meio a toda a diversidade das regiões
subalternizadas do mundo, a imagem arquetípica Caliban poderia ser um elemento de
autoidentificação para este Sul Global que já se constituiu como “povos colonizados”, países
“atrasados” ou “subdesenvolvidos”, “Terceiro Mundo”, “não alinhados”. Esta possibilidade só
apareceu em Retamar, e mais precisamente naquele texto específico e tardio de Retamar já
mencionado. Trata-se apenas de uma sugestão a partir destas considerações finais, que não
pode ser desenvolvida a contento dentro dos limites deste trabalho.
De todo modo, pode-se reconhecer, a favor de possíveis extrapolações como essa, que
os subalternos do mundo ainda “falam” a língua dos colonizadores, em sentido literal e
figurado. Literalmente, ainda falamos as línguas dos colonizadores por mais que se tenha
questionado este ato de fala, e por mais que se tenha transformado aquelas línguas a partir de
múltiplos acentos, no limite gerando variadas formas de créoles. Figurativamente, e apesar de
todas as críticas elaboradas particularmente nas últimas décadas, seguimos
epistemologicamente atravessados pelo eurocentrismo. O que unifica os subalternos do mundo
– e a periferia do mundo – é o passado e presente de dominação. Subalternos e periféricos o
são porque foram e são dominados. Esta dominação é bem concreta e é simbólica. É
econômico-social, mas também igualmente cultural, simbólica, epistemológica. Esta dimensão
é claramente a enfatizada neste artigo, na medida em que estamos lidando não diretamente
com representações de si mesmos elaboradas por grupos sociais ou movimentos sociais e
políticos – mas especificamente de reflexões de “intelectuais Caliban” atravessados pelo dilema
de ter que se expressar através da epistemologia, língua e literatura do colonizador.
Minha aposta é de que ainda faz sentido seguir subvertendo por mais algum tempo e
encontrando sentidos insuspeitos no maior clássico da “literatura ocidental”. É viável seguir
encontrando em textos canônicos elementos de autoidentificação, simplesmente porque suas
imagens não perderam sua força, e são compreensíveis para certa comunidade de intelectuais
espalhada pelo globo. Ainda mais poderosa é a imagem de Caliban, ao menos por três razões:
23
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pela própria riqueza do texto, que guarda grandes possibilidades, nuances e complexidades;
pela condição de dominado vivenciada por Caliban, como o são os subalternos do mundo e as
regiões subalternas do mundo; e finalmente, pela larga história de seus usos por aqueles
subalternos (aqui parcialmente resgatada), com a qual podemos seguir dialogando e que
podemos seguir enriquecendo.
Para concluir, apresentarei um último argumento em defesa de Caliban, mas
principalmente do legado quase esquecido de sua mãe, a real dona ancestral daquele território.
Se pôde antever a força da imagem arquetípica Sycorax ao analisarmos Calibã e a bruxa. Para
além de seu evidente potencial para a teoria crítica feminista, vimos que Federici notou
também a associação de Caliban e de sua mãe à natureza, o que com o avanço da modernidade
foi adotando inconteste sentido negativo – e A Tempestade se estrutura em torno do esforço de
Próspero, através de sua Arte, em controlar a Natureza (Caliban/Ariel). Na lógica cartesiana
embutida no cogito ergo sum, a natureza (e quem estiver circunscrito a ela) é desprovido de
existência. Porém, Federici observa o poder de Sycorax, transmitido por ela a Caliban. Num
contexto de busca por “novas” – mais precisamente ancestrais – relações de integração e
horizontalidade da humanidade com a natureza que ainda consigam desarmar a bomba-relógio
à qual estamos amarrados, faz-se necessário recorrer a epistemologias e modos de vida
alternativos – das quais grupos subalternos das periferias globais se constituem em criadores e
agentes. Sycorax e Caliban parecem ter potencial como representações destas epistemologias e
modos de vida, e a partir disto poderiam se abrir novas possibilidades ainda pouco exploradas
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