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Arquitectura, Corpo e Cognição UMA REFLEXÃO SOBRE A EXPERIÊNCIA PERCEPTIVA NO ARQUITECTÓNICO RUTE MORAIS PEIXOTO ORIENTAÇÃO: PROFESSOR DOUTOR LUÍS SEBASTIÃO DA COSTA VIEGAS Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto em Arquitectura “(…) projectar, planear, desenhar, não deverão traduzir-se para o arquitecto na criação de formas vazias de sentido, impostas por capricho da moda ou por capricho de qualquer outra natureza. As formas que ele criará deverão resultar, antes, de um equilíbrio sábio entre a sua visão pessoal e a circunstância que o envolve e para tanto deverá ele conhecê-la intensamente, tão intensamente que conhecer e ser se confundem (…)” Fernando Távora, Da Organização Geral do Espaço, 1962 Agradecimentos Ao Professor Doutor Luís Viegas, pela sua dedicação à profissão de arquitecto e docente, pela motivação e apoio prestados e, por cultivar, desde 2010, o espírito crítico e a paixão que tenho pela arquitectura. Ao Ricardo Tomé, por me acompanhar, desde 2008, nesta jornada académica, e por ser, em tudo o que faço, o meu braço direito incondicional. Aos meus pais, por me ensinarem que podemos ser tudo o que quisermos na vida. Ao meu irmão, por me ensinar que devemos manter-nos fiéis a nós próprios. À minha avó Dalva e ao meu avô Joaquim, que apesar de nunca terem sabido muito bem o é que eu estudava, apoiaram-me sempre até ao final das suas vidas. À Sara Soares, por ter lido e criticado o meu trabalho quando tinha coisas melhores para fazer. À Sandra Bastos, dedicada amiga e colega de trabalho, pelas inúmeras conversas motivadoras, e por me ‘chamar à terra’ sempre que precisei. À Monika Šafářová e ao Lovro Jelenko, por fazermos parte de uma equipa. Ao Professor Doutor Or Ettlinger, por me ter mostrado que a arquitectura é muito mais do que ‘construir edifícios’ , pela disponibilidade prestada, e pelas discussões multidisciplinares que tivemos. À Arquitecta Joana Mendes Barata, por tudo o que me ensinou e pelo voto de confiança atribuído. A todos os meus amigos, colegas, professores e mentores, que me aconselharam e acompanharam nos vários estágios de desenvolvimento desta dissertação, instigando a minha curiosidade por este e outros temas contribuindo, assim, para o meu crescimento pessoal, profissional e académico. Resumo A presente dissertação aborda a problemática da experiência perceptiva no âmbito da arquitectura, propondo a introdução da temática do corpo e dos sentidos, enquanto componentes indissociáveis de um sistema unitário, na discussão e prática projectuais. Recorrendo, especialmente, aos livros The Eyes of The Skin e The Thinking Hand do arquitecto Juhani Pallasmaa, assim como a outros autores multidisciplinares que abordam a Fenomenologia, são feitos apontamentos relativamente à importância da multissensorialidade e da manualidade no trabalho artístico. Começa-se por clarificar a relação de cumplicidade entre corpo e mente, seguindo-se uma apresentação de cada uma das faculdades cognitivas humanas e do modo como, ao longo da História, se pode verificar uma tendência para privilegiar a visão em detrimento dos restantes sentidos. Assim, procura-se esclarecer a forma como todos estes contribuem, em parceria, para a nossa experiência do mundo. Parte-se, então, para uma investigação sobre o papel da memória humana nas dinâmicas da percepção, distinguindo as suas particularidades com base no ensaio Public Memory in Place and Time de Edward Casey. Paralelamente, introduz-se a questão da linguagem verbal e corporal enquanto habilidades comunicativas essenciais da condição humana, destacando a mão que, dada a sua especialização táctil, se torna na protagonista da actividade háptica no contexto dos tópicos da parte final da dissertação. Ao longo destes últimos, procura-se aplicar a informação exposta e inferida anteriormente a campos mais específicos da arquitectura. Assim, exploram-se as implicações da actual “hegemonia da visão” no processo criativo, bem como a influência do consequente desequilíbrio sensorial que pode potenciar o embrutecimento do nosso contacto com o que nos rodeia. Focando os conceitos de tempo, espaço, materialidade, imagem, entre outros, sugerem-se métodos de trabalho que promovam a execução manual e o nosso envolvimento háptico, em oposição a processos mediados por máquinas que tendem a filtrar a nossa capacidade de “auto-projectar” a informação sensorial que arquivamos no corpo ao longo da nossa experiência existencial. Este trabalho tem o propósito de consciencializar sobre o valor expressivo do posicionamento da nossa fisicalidade e sensibilidade perceptiva no cerne da prática da arquitectura potenciando, assim, a optimização do processo criativo. Abstract This dissertation tackles the matter of the perceptual experience within the scope of architecture. Herein is proposed the introduction of the body and the senses as indissociable parts of a system in the architectural discussion and practice. Drawing mainly upon the books The Eyes of the Skin and The Thinking Hand by the architect Juhani Pallasmaa, as well as the writings of other multidisciplinary authors that approach the Phenomenology field in their works, some notes are taken regarding the importance of a multisensory and manual approach to the artistic endeavor. First, the complicity between body and mind is clarified; then, each of our cognitive faculties is presented, emphasizing the tendency to favor sight over the other senses throughout History. Thus, this work seeks to explain the way all senses work together towards our experience of the world. Furthermore, the influence of the human memory in the dynamics of perception is investigated, resorting to Edward Casey’s essay Public Memory in Place and Time in order to distinguish its particularities. Moreover, the matter of verbal and body language as essential communicative abilities of the human condition is introduced, highlighting the hand that, given its tactile specialization, becomes the protagonist of the haptic activity in the context of the last chapters of this dissertation. Subsequently, the inferred information is applied to the field of architecture, in a more specific fashion. The impact of the current “visual supremacy” in the creative process is explored, in addition to the role the resulting sensorial unbalance plays in numbing our contact with the world. Focusing on concepts such as time, space, materiality, and image, work methods that promote manual and haptic engagement are suggested, instead of processes that are mediated by machines which, in a way, filter out part of the natural capacity to project the sensorial information we store in our bodies during the existential experience. The purpose of this work is to create awareness about the expressive value of positioning our physicality and perceptual sensitivity in the center of the architectural practice thus enabling the optimization of the creative process. Sumário 6 Resumo/ Abstract 12 Introdução 16 1. O Corpo e os Sentidos 17 1.1. Corpo, Mente e Meio 23 1.1.1. A visão e a problemática do ocularcentrismo 29 1.1.2. O tacto e as especializações da pele 33 1.1.3. A audição e a importância da oralidade 39 1.1.4. O olfacto e a memória 43 1.1.5. O paladar e a sinestesia 46 2. A Memória e a Linguagem 47 2.1. A Memória 50 2.1.1. Memória individual, social e colectiva 57 2.1.2. Memória pública e lugar 63 71 2.2. A Linguagem 2.2.1. A mão e a linguagem do corpo 74 3. A Percepção e a Arquitectura 75 3.1. Auto-projecção 79 3.2. Corpo, Pensamento e Ferramenta 85 3.2.1. O computador e a manualidade 91 3.3. Tempo e Espaço 95 3.4. Materialidade e Tempo 101 3.5. Arquitectura e Imagem 107 3.6. Executante e Objecto 111 3.7. Arquitectura, Experimentação e Criatividade 121 Considerações Finais 125 Fontes Bibliográficas 131 Fontes das Imagens NOTA PRÉVIA Esta dissertação foi escrita tendo como referência o acordo ortográfico anterior ao actualmente vigente. Nas citações utilizam-se os parêntesis rectos [ ] para introduzir informação complementar ou subentendida ao conteúdo da frase. Do mesmo modo, quando se utilizam aspas duplas, habitualmente, estas introduzem a definição de um conceito ou uma nota de rodapé referente ao esclarecimento do termo. Após a primeira exposição do termo, não se repetem as aspas duplas nas vezes seguintes em que a palavra é utilizada. Ambas as decisões destinam-se a proporcionar uma leitura mais fluída do texto, razão pela qual as citações foram todas traduzidas, livremente, pela autora desta dissertação. 1. Rute Peixoto, “Primeira Fase do Exercício da Cidade”, Projecto I, 2008-09. Introdução Enquanto estudantes, assim que passamos a frequentar o primeiro ano do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, a disciplina de Projecto I confronta-nos, de imediato, com um exercício prático: projectar uma cidade (fig.1). No ano em que frequentei esta disciplina, o enunciado consistia em criar uma composição pensada e reflectida que organizasse cinco praças de configurações geométricas pré-estabelecidas e distintas entre si, integrando-as numa malha urbana regrada, sem que existisse uma preocupação programática de distribuição de funções e infra-estruturas. Não se pretendia que esta cidade fosse concebida para um determinado lugar, ou que os seus volumes possuíssem uma materialidade física específica – a cidade partia de um contexto abstracto. Na verdade, o foco de incidência do exercício destinava-se, por sua vez, a iniciar a descoberta de um processo criativo pessoal através da utilização de instrumentos de trabalho manuais, tais como o desenho e a maquete, que pudessem facilitar a procura pela solução arquitectónica ‘ideal’. Esta abordagem aparentemente ‘livre’ colocava-nos, inconscientemente, perante um exercício de “auto-projecção” e de experimentação constante, estimulando a idealização de lugares imaginados em que o nosso corpo era protagonista na experiência perceptiva do espaço projectado. A abstracção que a tarefa implicava ‘despia-nos’ de preconceitos formais, materiais e programáticos que pudéssemos associar à definição de arquitectura, ensinando-nos, em primeiro lugar, aquilo que esta tem de mais basilar: a organização do espaço para abrigo do corpo. Quando desenhamos uma praça rectangular, para onde queremos direccionar os seus percursos? Se concebermos uma galeria, queremos que seja alta e estreita, ou baixa e larga para que o corpo se sinta protegido quando a percorre? Este tipo de questões que os arquitectos colocam a si próprios no decorrer do processo criativo e que éramos levados a formular constituem o mote inerente à tarefa de projectar a arquitectura. Fazendo uma análise introspectiva sobre os anos em que estudei nesta faculdade acredito que, acima de tudo, a FAUP ensina que para ser um bom organizador do espaço, deve-se pensar e refletir sobre o que nos rodeia e de que modo nos 13 relacionamos individualmente e colectivamente com o meio em que um dia interviremos. Reconhecer a nossa condição humana não só ajuda a compreender o mundo do qual fazemos parte, como também pode propiciar uma relação mais directa com aqueles que irão experienciar as obras que concebemos, pois o que é o arquitecto senão um “(…) criador de felicidade”?1 Deste modo, o que motivou a redacção desta dissertação foi, precisamente, a vontade de tentar perceber o que está por detrás do processo criativo dos arquitectos e aquilo que ulteriormente pode esclarecer a relação do ser humano com o espaço, dado que, segundo as palavras do arquitecto Fernando Távora, “(…) o próprio homem, enquanto forma, isto é na sua realidade física, é um misto de obra da natureza e de obra de si próprio, sendo difícil distinguir o que a uma e a outro cabem (…)”.2 Neste sentido, propõe-se uma reflexão sobre o papel do corpo na experiência perceptiva, e do modo como a arquitectura se relaciona com a condição existencial do ser humano. Para tal recorrem-se a várias premissas e declarações expostas por diversos autores que são mencionados e referenciados ao longo do trabalho, servindo de base para uma indagação mais fundamentada sobre as matérias abordadas. De modo a tornar a investigação mais abrangente, expandiu-se o foco da pesquisa às Ciências Sociais e às Ciências Humanas que, apesar de não estudarem directamente a arquitectura, algumas das suas áreas de interesse estabelecem pontes pertinentes para as questões levantadas ao longo desta dissertação. Se a arquitectura é, inevitavelmente, reflexo da condição humana, é importante considerar o contributo que a multidisciplinaridade pode exercer sobre esta prática. Juhani Pallasmaa é um dos arquitectos da actualidade que associa, frequentemente, áreas como a Fenomenologia, a Filosofia, a Psicologia e a História à prática da arquitectura, razão pela qual alguns dos seus ensaios e estudos, nomeadamente The Eyes of The Skin: Architecture and the Senses e The Thinking Hand: Embodied Wisdom in Architecture foram essenciais para a realização desta dissertação. Relativamente à estrutura, o trabalho divide-se em três partes, sendo que a primeira expõe a problemática da dissociação entre corpo e mente, explicando que estas entidades devem ser entendidas como uma só, de modo a garantir uma experiência sensorial equilibrada do mundo. Aborda-se a questão da primazia da visão sobre os outros sentidos associada à posição histórica e cultural do ser humano, e descreve-se 1 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P.75 2 Idem. P.13 14 a influência que cada um destes exerce no entendimento perceptivo do meio e, consequentemente, da arquitectura. De seguida, no segundo ponto mencionam-se a linguagem e a memória enquanto processos primários intrínsecos à aquisição do conhecimento corpóreo através dos sentidos. Com base no artigo Public Memory in Place and Time do psicólogo Edward Casey e na sua premissa que identifica a memória muscular como vernáculo da nossa capacidade de memorização, descrevem-se os tipos de memória pública definidos pelo autor, explicando de que modo esta contribui para a identificação do lugar e para a formação cultural, afectando a nossa percepção enquanto indivíduos que intervêm e interpretam o espaço. Complementarmente, com base no trabalho de investigação The Hidden Dimension, do antropólogo Edward T. Hall, introduz-se a questão da linguagem verbal e não-verbal, explicando que mais do que um meio de expressão humana individual que interfere no domínio público, esta condiciona o pensamento e, por sua vez, a apreensão sensorial. Retoma-se a temática do corpo enquanto receptáculo destes processos cognitivos, destacando a mão como sendo a sua parte especializada para a acção táctil, sendo que esta potencia a canalização do conhecimento existencial no decorrer do processo criativo dos arquitectos. Por fim, o terceiro ponto fundamenta-se nas premissas lançadas nos tópicos anteriores expondo, assim, um tom mais reflexivo e indagativo sobre o contributo do corpo na actividade projectual. Desenvolve-se a questão da auto-projecção, assim como a manualidade e a ferramenta aliada ao pensamento e à execução; retoma-se a problemática do ocular-centrismo e do desequilíbrio multissensorial associada à imagem, ao tempo e à materialidade; e explica-se de que forma todas estas componentes influenciam o trabalho dos arquitectos. Por último, propõem-se métodos de trabalho que possam auxiliar e estimular a criatividade, contribuindo assim para uma maior consciencialização das nossas capacidades e limitações enquanto organizadores do espaço. 15 2. Theodore Rombouts, “Alegoria dos Cinco Sentidos”, 1632. 1. O Corpo e os Sentidos 1.1. Corpo, Mente e Meio De acordo com a perspectiva do arquitecto Juhani Pallasmaa, a sociedade ocidental de consumo3 tem vindo a assumir uma atitude dual em relação ao corpo humano: por um lado, há um culto estético e quase objectal daquilo que é o corpo e, por outro, as faculdades mentais da inteligência e da criatividade são igualmente valorizadas, ainda que sejam tidas como algo que não está directamente associado ao corpo em si. Em qualquer dos casos, Pallasmaa considera que o corpo e a mente são compreendidos como entidades separadas que não constituem uma unidade integrada. O conceito de corpo é entendido apenas na sua essência física e psicológica, enquanto se desvaloriza e negligencia o seu papel na qualidade de palco principal da nossa existência corpórea, do conhecimento, e do entendimento total da nossa condição humana.4 O arquitecto contemporâneo Peter Zumthor critica esta atitude contemporânea face ao papel do corpo na sociedade, afirmando que “(…) o corpo como refúgio é um mundo que parece estar desfigurado pelos signos artificiais da vida, onde os filósofos reflexionam sobre realidades virtuais”.5/6 Desde o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), que encarava a mente como uma faculdade da alma (fig.3),7 a René Descartes (1596-1650), filósofo, matemático e 3 O termo “sociedade de consumo” refere-se a um tipo de sociedade, numa fase de desenvolvimento industrial avançada, em que se verifica um consumo massivo de serviços e de bens materiais disponíveis, sendo estes produzidos em grandes quantidades. (Thorstein Veblen, The Theory of the Leisure Class: An Economic Study of Institutions, Dover Publications, Mineola, Nova Iorque, 1994.) 4 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009; Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. 5 A palavra “virtual” aparece associada a diversas áreas, nomeadamente a Arte, a Ciência, a Tecnologia, a Filosofia e a Arquitectura. No livro Qu’est-ce que le virtuel?, Éditions la Découverte, Paris, 1995, P. 15, Pierre Lévy expõe que “(…) a palavra virtual vem do latim medieval virtualis, derivado, por sua vez, de virtus, força, potência”. O autor defende ainda que “O virtual tende a actualizar-se, sem ter passado, no entanto, à concretização efetiva ou formal”. Complementarmente, em The Architecture of Virtual Space, University of Ljubljana, Faculty of Architecture, 2008, P.34, Or Ettlinger define o termo “virtual” como algo que pertence ao mundo imaterial mas que não é necessariamente irreal: “(…) espaço virtual é o mundo visível das imagens pictóricas (…) dos dispositivos físicos que nos permitem experienciar através de si próprios algo que não está fisicamente presente”. No contexto deste trabalho, para além de se usar o termo “virtual” com a conotação sugerida por Or Ettlinger, também se designa de espaço virtual o espaço mental, uma vez que através do ‘dispositivo’ da mente (como acontece com os meios da fotografia, do cinema, da pintura ou o do computador), podemos percepcionar lugares virtualmente reais, embora estes não pertençam ao domínio físico. 6 Peter Zumthor, Pensar la Arquitectura, GG, Barcelona, 2010. P.58 7 Aristóteles, De Anima ii 1, 412b6-9. 350 A.C. 17 3. Robert Fludd, “De triplici animae in corpore visione”, 1619. Fludd apresenta, aqui, um diagrama da mente, representando-a como algo imaterial associado à espiritualidade, que recolhe os estímulos do mundo sensível captados pelos sentidos e lhes dá significado no mundo inteligível, na sequência do pensamento de Platão e Aristóteles. 4. René Descartes, “Traité de l’Homme”, 1664. Esta ilustração expressa a separação cartesiana entre corpo e mente. No entendimento do filósofo, os estímulos eram recebidos pelos sentidos e transmitidos à glândula pineal que, por sua vez, estabelecia uma ligação imaterial à mente e ao espírito, sendo o corpo comandado por esta dinâmica. físico, crente que a mente exercia controlo sobre o cérebro através da glândula pineal (fig.4),8 ao biólogo Thomas H. Huxley (1825-1895), que elaborou o conceito de “epifenómeno”,9 a divisão entre corpo e mente tem sido alvo de estudo ao longo da História. Actualmente, certos métodos pedagógicos e práticas educacionais tendem a fomentar a separação entre as capacidades intelectuais e físicas do corpo, assim como as múltiplas dimensões da tangibilidade humana. Exemplificando, o treino físico do corpo é habitualmente associado a actividades como desporto ou dança; em oposição, o intelecto é mais frequentemente associado ao pensamento racional, às áreas científicas e à conceptualização artística. Na verdade, “(…) o cérebro não vive dentro da cabeça, apesar de esta ser o seu habitat formal. Estende-se ao corpo, e através do corpo, estende-se ao mundo”.10 Esta premissa do neurologista contemporâneo Frank R. Wilson indica que a mente é parte integrante do corpo, operando em função deste, sendo continuamente provocada por estímulos exteriores que são captados pelo nosso sistema perceptivo. O filósofo Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) reforçava esta ideia, afirmando que “(…) mais do que uma mente e um corpo, o homem é uma mente com um corpo (…)”.11 Apesar de tudo, em certos cursos ligados às áreas técnicas das manualidades (carpintaria, desenho e escultura, por exemplo), treina-se a relação entre o corpo e a mente de modo equilibrado: estes processos são, precisamente, uma das respostas à problemática da dissociação entre a mente e o corpo. Em paralelo, Pallasmaa realça que o papel integral do corpo na evolução e manifestação da inteligência humana não é particularmente reconhecido pela sociedade actual e que, nos primórdios da nossa existência, o modo de apropriação do meio circundante providenciava uma relação sensorial mais abrangente com o “eu”:12 8 Descartes separa os termos “mente” e “cérebro”, pois associa a mente à alma e ao mundo das ideias, e o cérebro aos restantes órgãos físicos do corpo. (René Descartes, Traité de l’Homme, 1664.) 9 A teoria de Thomas Henry Huxley encara a mente consciente como um sub-produto do cérebro que não produz influência sobre este. (William Robinson, Epiphenomenalism, The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2003) 10 Frank R. Wilson, The Hand: How Its Use Shapes the Brain, Language and Human Culture, Pantheon Books, 1998. P.307 11 Maurice Merleau-Ponty, World of Perception, Routledge, Nova Iorque, 2004. P.56 12 O conceito de “Eu” é utilizado em diversas áreas, tais como a Religião, a Filosofia ou a Psicologia e, tem sido extensivamente estudado ao longo da História. Apesar de existirem várias definições do termo, no contexto deste trabalho interessa-nos, apenas, designar por “eu” um ser individual, cognitivo e com identidade própria, no sentido holístico. (Max De Gaynesford, I: The Meaning of the First Person Term, Oxford University Press, Oxford, 2006.) 19 5. Las Vegas, Nevada, EUA, estado actual. O movimento fervilhante e a estimulação visual intensiva são claramente identificáveis em grandes cidades como Las Vegas, aspectos que desequilibram o processo de identificação da existência corpórea enquanto base do nosso contacto com o mundo. Nos primeiros modos de vida, o contacto íntimo com o trabalho, a produção, os materiais, o clima e as variações dos fenómenos da natureza, providenciou uma ampla interacção sensorial com o mundo das causalidades físicas.13 O autor sugere ainda que a existência corpórea raramente é identificada como a verdadeira base da nossa interacção e integração com o mundo em redor, ou da consciência e da auto-compreensão (fig.5). Podemos considerar que, inconscientemente, habitamos os nossos corpos como habitamos as nossas casas – encaramo-los como invólucros independentes do nosso eu, quando estes, na verdade, nos incorporam. Tal como o autor defende, enquanto seres humanos o eu é mais do que uma soma de partes e a nossa existência é, fundamentalmente, uma condição corpórea. Do ponto de vista fenomenológico,14 os nossos sentidos medeiam a relação do corpo com o meio, transformando a informação sensorial que nos rodeia em conhecimento “inconsciente”15 ou “consciente”.16 Se considerarmos que os sentidos nos ligam ao mundo, deixamos de os encarar como receptores passivos dos estímulos que recebemos. Assim, o corpo passa a ser mais do que uma forma centralizada de contactar com o mundo: O corpo humano é uma entidade conhecedora. No mundo, a totalidade da nossa existência é um modo de ser sensível e consubstanciado, e esta mesma essência do ser é a base do conhecimento existencial.17 13 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.3 14 No contexto da Psicologia (o que nos interessa mencionar aqui), “Fenomenologia” diz respeito ao estudo filosófico das estruturas da experiência e da consciência. A palavra tem origem no Grego phainómenon (aquilo que aparece) e logos (estudo). Destacam-se dois autores que contribuíram para a designação deste termo: Georg Hegel (1770-1831) e Edmund Husserl (859-1938). O primeiro, defendia que a fenomenologia é um abordagem à filosofia que começa com a exploração de fenómenos como um meio para alcançar o espírito absoluto, lógico, ontológico e metafísico que existe por trás do fenómeno. O segundo retratava a fenomenologia como o “estudo reflexivo da essência da consciência, tal como é experienciado do ponto de vista da primeira pessoa”. (David Smith, Husserl, Routledge, Londres, Nova Iorque, 2007.) 15 O termo “Conhecimento Inconsciente” está associado ao conceito de “Conhecimento Tácito”, teorizado por Michael Polanyi (1891-1976) em 1958. O autor declara que existe um tipo de conhecimento que não pode ser articulado verbalmente, e que tudo o que apreendemos ao longo da vida se baseia no conhecimento tácito, apenas transmissível através da interacção pessoal. (Michael Polanyi, The Tacit Dimension, The University of Chicago Press, EUA, 1966.) 16 Em oposição ao “Conhecimento Inconsciente”, o “Conhecimento Consciente” ou “Conhecimento Explícito”, pode ser verbalizado, articulado, codificado e acedido com perfeita noção da informação que está a ser transmitida. (Sebastien Helie, Ron Sun, “Incubation, Insight and Creative Problem Solving: A Unified Theory and a Connectionist Model” in Psychology Review 117 (3): 994-1024. 2010.) 17 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.3 21 6. Jan Brueghel, o Velho, e Peter Paul Rubens, “Alegoria da Visão”, 1617. Os dois pintores decidiram ilustrar o sentido da visão representando Cupido a mostrar à figura feminina sentada um quadro da cena bíblica em que Jesus Cristo cura um homem cego. A visão é, aqui, associada ao conhecimento e à sabedoria com a introdução de diversos instrumentos científicos e de navegação na pintura, como globos e astrolábios. Sobre os sentidos, Pallasmaa ainda critica que, actualmente, estes instrumentos de mediação são alvo de manipulação e exploração comercial. A aparência da beleza física, a força, a juventude e a virilidade são estandartes de valorização social. As nossas capacidades hápticas são estimuladas de modo desequilibrado – na sua maioria, estes estímulos são dirigidos à visão, em detrimento dos restantes sentidos – transmitindo estes valores que prejudicam a multissensorialidade enquanto prérequisito da nossa condição existencial. A problemática da dissociação entre corpo e mente parece, assim, prevalecer em muitas práticas culturais, educacionais e sociais.18 Seguem-se, então, alguns apontamentos relativamente a cada uma das capacidades cognitivas, de modo a clarificar o papel de cada uma no processo perceptivo. 1.1.1. A visão e a problemática do ocularcentrismo No livro Modernity and the Hegemony of Vision (1993), o filósofo contemporâneo David Michael Levin compilou uma série de ensaios que analisam as ligações históricas entre a visão e o conhecimento, a visão e a ontologia, a visão e o poder, e a visão e a ética, defendendo que a cultura ocidental tem vindo a ser dominada por um paradigma ocularcentrista. Na história da cultura ocidental, a visão foi sempre considerada o mais nobre dos cinco sentidos, e o pensamento encarado como sendo sua consequência directa.19 Durante o Classicismo Grego, a certeza baseava-se no visível: para o filósofo e matemático Platão (428-348 a.C.), a visão era o maior dom da humanidade;20 para o filósofo Heráclito de Éfeso (535-475 a.C.), os olhos eram testemunhas mais fiáveis do que os ouvidos;21 para Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, a condição de imaterialidade do conhecimento, adquirida através da visão, aproximava este sentido do intelecto.22 O filósofo contemporâneo Peter Sloterdijk afirma que “os 18 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. 19 Martin Jay, “The Rise of Hermeneutics and the Crisis of Ocularcentrism”, in Poetics Today: The Rhetoric of Interpretation and the Interpretation of Rhetoric, Paul Hernadi, Vol. 9, No. 2, The Porter Institute for Poetics and Semiotics, EUA, 1989. P.55 20 Platão, in Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought, Martin Jay, University of California Press, Berkley, L.A., Londres. 1993. P.27 21 Heráclito de Éfeso, Fragmento 101a, in Modernity and the Hegemony of Vision, David Michael Levin, University of California Press, Berkley, L.A., 1993. P.274 22 Aristóteles, in Modernity and the Hegemony of Vision, Levin, 1993. P.274 23 olhos (…) não só conseguem ver, como também conseguem ver-se a eles próprios a olhar. Esta característica atribui-lhes proeminência em relação aos outros órgãos cognitivos do corpo”.23 Durante o Renascimento, os cinco sentidos eram compreendidos como um sistema hierárquico que decrescia da visão para o toque. Este princípio filiava-se na relação com a “imagem”24 do corpo cósmico – a visão era associada ao fogo e à luz, a audição ao ar, o olfacto ao vapor, o paladar à água, e o toque à terra.25 Podemos, então, constatar que, ao longo da História, grande parte das metáforas oculares se associavam muito ao conceito de conhecimento, ao ponto deste ser análogo à clareza da visão, enquanto a luz era análoga à descoberta da verdade. Porém, existem também autores que têm vindo a contra-argumentar o paradigma ocularcentrista, e que consideram os outros sentidos (ou pelo menos alguns deles), como sendo tão ou mais importantes do que a visão. Descartes, por exemplo, à semelhança dos Gregos Clássicos, apesar de encarar a visão como o mais nobre dos sentidos, também atribuía ao toque uma importância significativa, dado que “(…) é mais certo e menos vulnerável ao erro do que a visão”,26 apontando para a ideia do tacto enquanto instrumento de confirmação. O poeta e filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) tentou subverter a autoridade do pensamento ocular na sua filosofia criticando o “olho fora do tempo e da história”,27 e acusando alguns filósofos de “traição e hostilidade cega em relação aos sentidos”.28 Seguindo o mesmo princípio crítico, o filósofo Max Scheler (1874-1828) designava esta atitude de “ódio pelo corpo”.29 O existencialista Jean-Paul Sartre (19051980), por sua vez, preocupava-se com “o olhar objectivado dos outros”, e com o 23 Peter Sloterdijk, Critique of Cynical Reason, University of Minnesota Press, 1987. P.21 24 “Imagem” deriva do Latim imago, -inis, cujo significado descreve representação, forma, imitação ou aparência. É interessante verificar que a definição de “imagem” tem mais que ver com o significado etimológico da palavra “visual” do que com o da palavra “visível”. 25 Steven Pack, “Discovering (Through) the Dark Interstice of Touch”, in History and Theory Graduate Studio 1992-1994, McGill School of Architecture, Montreal, 1994. 26 Dalia Judovitz, “Vision, Representation and Technology in Descartes”, in Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought, Martin Jay, University of California Press, Berkley, L.A., Londres. 1993. P.71 27 David Michael Levin, Modernity and the Hegemony of Vision, University of California Press, Berkley, L.A., 1993. P.4 28 Friedrich Nietzsche, The Will to Power, Livro II, tradução de Walter Kaufmann, Random House, Nova Iorque, 1968. Nota 461, P.253 29 Max Scheler in The Body’s Recollection of Being, David Michael Levin, Routledge & Kegan Paul, Londres, Boston, Melbourne, Henley, 1985. P.57 24 “vislumbre de medusa” que petrificava tudo aquilo que via directamente.30 Na sua perspectiva, o ocularcentrismo fez com que o espaço tenha dominado o tempo na consciência humana, congelando-o. Merleau-Ponty criticava profundamente o “regime escópico Cartesiano”31 e o privilégio que este atribuía ao sujeito “fora do mundo”, desinteressado e sem fundamento histórico.32 Na perspectiva do autor, o sentido da visão deveria integrar o observador no mundo tornando-o parte do espaço que o rodeia, em vez de o colocar à margem: O nosso corpo é, em simultâneo, um objecto entre objectos e aquele que os vê e toca. (…) A minha percepção não é uma soma de dados visuais, tácteis e auditivos: eu percepciono tudo com a totalidade do meu ser (…).33 Do ponto de vista fisiológico, o nosso campo de visão revela um espaço limitado, vagamente circular, que não se estende muito para a esquerda ou direita, ou para cima e para baixo. Se forçarmos a direcção de cada olho para o centro, conseguimos ver a ponta do nosso nariz, e se subirmos ou baixarmos as retinas vemos que existe o ‘em cima’ e o ‘em baixo’. Se virarmos a cabeça numa direcção e depois noutra, não conseguimos ver, completamente, tudo o que nos rodeia – só conseguimos obter a imagem do que está atrás de nós se rodarmos o corpo. Porém, mesmo sem ver continuamente, temos uma noção háptica daquilo que nos rodeia após uma primeira fase de contacto sensorial. Podemos, então, considerar que a visão per se não é suficiente para nos providenciar a informação necessária que nos contextualiza no meio. Levin aponta, ainda, para a sua tendência supremacista: A vontade de poder é muito forte na visão. A visão tem uma grande tendência para alcançar e fixar [o olhar], para materializar e totalizar: tem tendência para dominar, segurar, e controlar (…).34 30 Richard Kearney, “Jean-Paul Sartre”, in Modern Movements in European Philosophy, Kearney, Manchester University Press, 1986. P.63 31 No séc. XVII, René Descartes inventou o Sistema Cartesiano, um sistema de coordenadas que especifica cada ponto num plano através de referências numéricas que são medidas com base no mesmo ponto, em duas linhas perpendiculares (y e z). Esta forma de representação espacial revolucionou a Matemática, criando uma ligação sistemática entre a Geometria Euclideana e a Álgebra. 32 Martin Jay, “Scopic Regimes of Modernity”, in Vision and Visuality, ed. Hal Foster, Bay Press, Seattle, 1988. P.10 33 Maurice Merleau-Ponty, Sense and Non-Sense, Northwestern University Press, Evanston, 1964. P.XII 34 David Michael Levin, “Decline and Fall – Occularcentrism in Heidegger’s Reading of the History of Metaphysics”, in Modernity and the Hegemony of Vision, Levin, 1993. P.212 25 7. Michelangelo Caravaggio, “Narciso”, 1594-96. Esta famosa pintura pode ser entendida como uma alegoria do ocular-centrismo, representando uma devoção obsessiva à imagem e ao lado superficial das coisas, desligado do seu conteúdo. Tal como afirma o arquitecto e historiador contemporâneo Alberto Peréz-Gómez, “(…) contemplamos o espaço e reconhecemos a profundidade, uma dimensão primária que, ao contrário de todas as outras, não é redutível apenas à largura e altura”.35 O autor considera que a profundidade não é análoga à perspectiva porque pertence à dimensão humana emotiva. Em Timaeus (360 a.C.), Platão utilizava o termo chora para caracterizar tanto o espaço como aquilo que considera ser a “substância primordial”. Este conceito define o modo da realidade através do qual as ideias integradas em coisas concretas aparecem na nossa experiência visual.36 Interpretando a premissa de Platão, podemos considerar que quando contemplamos e nada fixa o nosso olhar, procuramos alguma espécie de referência visual. O espaço em si é essa referência; é a substância e o obstáculo que contém o ‘ponto de fuga’, é o limite. Peréz-Gómez defende que o espaço humano é tudo o que é necessário para se dar o encontro de duas linhas paralelas no infinito – não é o espaço Cartesiano que nos faz percepcionar este tipo de informação. O autor critica ainda que a civilização contemporânea, móvel e digitalmente omnipresente, tende a encarar o espaço percepcionado como sendo puramente Cartesiano, e imagens de cariz fotográfico como representações imparciais da verdade perceptível, quando qualquer imagem fabricada pelo ser humano consiste numa interpretação do meio existente. Em suma, ter consciência da problemática da supremacia da visão pode ajudar a promover uma experiência existencial mais susceptível à multissensorialidade, algo que pode ter um impacto considerável no processo de projectar arquitectura, ou em qualquer acto de criação artística, bem como na nossa apreciação cognitiva do mundo que nos rodeia. Apesar desta exposição crítica, explícita ou implícita, relativamente ao tópico do ocularcentrismo, o objectivo não é defender uma posição niilista face ao sentido do olhar. A visão tem vindo a ser privilegiada, embora inconscientemente, sobre os outros sentidos, mas isso não significa que se deva negligenciar a sua existência e a suprimir as suas qualidades cognitivas no processo sensorial. Pretende-se, então, indagar de que modo é que o tacto, o palato, a audição, o olfacto e a visão, integram um sistema unitário cujos constituintes não devem ser dissociados: 35 Alberto Pérez-Gómez, “Chapter 29: Architecture and The Body”, in Art and The Senses, Francesca Bacci, David Melcher, Oxford University Press, Nova Iorque, 2011. P.571 36 Platão, The Timaeus of Plato, editado e traduzido por John Warrington, J.M. Dent, Reino Unido, 1965. P.66 27 8. Jan Brueghel, o Velho, e Peter Paul Rubens, “Alegoria do Tacto”, 1618. Para aludir ao sentido táctil, os pintores representaram uma figura feminina e Cupido num momento de contacto físico, numa cena em que os corpos desnudados contrastam, fortemente, com as inúmeras armaduras em redor, enaltecendo a sensibilidade da pele. O nosso corpo está para o mundo como o coração está para o organismo: mantém o espectáculo visível constantemente vivo, transmite-lhe vida e sustém-na no seu interior, formando assim um sistema.37 Considerar que as partes integrantes do sistema cognitivo têm um papel igualmente importante entre si, é o primeiro passo para responder ao problema levantado por Pallasmaa relativamente à arquitectura ‘inumana’ que se tende a praticar actualmente, dado que “(…) a experiência [do espaço] (...) envolve a integração de todos os sentidos (não apenas a visão) e combina estes com sentimento, imaginação e intelecto”.38 1.1.2. O tacto e as especializações da pele A pele é o invólucro físico que confina o eu, o nosso mundo interior, do mundo circundante, intermediando ambos os domínios através da sua capacidade sensorial: o tacto. Este órgão que cobre totalmente o nosso corpo “(…) lê a textura, o peso, a densidade e a temperatura da matéria”39 e, a visão, a audição, o olfacto e o paladar, são especializações da sua capacidade cognitiva.40 Com base nesta condição, incorre-se que todas as experiências sensoriais são modos diferentes de tocar: O tacto é o pai dos nossos olhos, ouvidos, nariz e boca (…) a pele é o mais antigo e sensível dos nossos órgãos, o nosso primeiro meio de comunicação, e o nosso protector mais eficaz… Mesmo a córnea transparente do nosso olho está coberta por uma camada modificada de pele.41 Depreende-se, então, que o tacto tem uma atitude dual no processo perceptivo – esta faculdade não só integra as nossas experiências do mundo e do eu holisticamente, como combina os estímulos individuais recebidos pelas várias especializações da pele. Todos os sentidos desempenham um papel diferente no processo perceptivo mas, naturalmente, todos trabalham em conjunto: 37 Maurice Merleau-Ponty, Phenomenology of Perception, Routledge, Londres, 2002. P.235 38 Juhani Pallasmaa, How Do We Grasp Space and Place?, Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, Nova Iorque, 2011. 39 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.56 40 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.3 41 Ashley Montagu, Touching: The Human Significance of the Skin, Harper & Row, Nova Iorque, 1986. P.3 29 9. Greta Garbo em “Queen Christina” de Rouben Mamoulian, 1933. A dada altura deste filme, a personagem interpretada por Greta Garbo procede a tocar e a abraçar os vários elementos que povoam o quarto de que se quer lembrar, vivamente, no futuro. Note-se que, no decorrer desta acção, cerra os olhos e limita-se a apreender as características dos objectos tactilmente. A visão necessita do apoio do tacto, que transmite sensações de solidez, resistência (…) a visão, separada do tacto, é incapaz de discernir distâncias, saliências, profundidade, e consequentemente, espaço e corpo.42 Dando continuidade à lógica da citação de Pallasmaa, podemos discernir que ver é um modo inconsciente de tocar, logo, quando vemos, o olho toca e, antes de compreender o objecto, já avaliamos as suas dimensões, a textura da superfície, o peso e a temperatura. Devido à relação presencial que a pele estabelece com a totalidade do nosso corpo, podemos considerar que ambos os termos “pele” e “corpo”, pertencem ao mesmo conceito háptico - o corpo estabelece contacto com o mundo que nos rodeia através da pele (fig.9). A mão, sendo a extremidade do corpo mais optimizada, fisiologicamente, para a acção do toque, adquire um papel especial nesta narrativa sensorial que é a nossa interpretação do mundo. O olho e a mão colaboram sistematicamente, sendo que o olho transporta a mão até longas distâncias, e a mão informa o olho a uma escala mais íntima e fisicamente aproximada ao corpo humano.43 Podemos, então, considerar que esta experiência táctil determina as qualidades sensoriais do objecto percepcionado: O sentido óptico sozinho não chega para nos conferir uma verdadeira noção de forma. A visão é incapaz de penetrar objectos; (...) o olho não percepciona a forma a três dimensões, mas sim uma superfície bidimensional; vê altura e largura mas não profundidade. Para nos convencermos da realidade da profundidade, temos que evocar (...) o sentido do toque, o sentido táctil.44 O historiador de arte Bernard Berenson (1865-1959) afirmava que “(…) quando experienciamos uma verdadeira obra de arte, imaginamos um encontro físico genuíno através de sensações idealizadas”.45 Se transpusermos esta citação para o domínio da arquitectura, podemos pensar que, idealmente, deve-se procurar que esta gere um conjunto indivisível de impressões e sensações imaginadas, através do movimento, do peso, da tensão, da dinâmica estrutural, do ritmo e da composição. A totalidade destas características dar-nos-ia a noção de medida física no espaço, fazendo-nos compreender a nossa relação com o meio: 42 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.42 43 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.93 44 Alois Riegl, Historical Grammar of the Visual Arts, Zone Books, Nova Iorque, 2004. P.396 45 Bernard Berenson, Aesthetics and History, Panteon Books, New York, 1948. P.66-70 31 10. Jan Brueghel, o Velho, e Peter Paul Rubens, “Alegoria da Audição”, 1617-18. O sentido da audição é, aqui, directamente associado à música, através da representação de diversos instrumentos de cordas e de sopro, entre outros. O meu corpo é verdadeiramente o leme do meu mundo, não no sentido de ponto de vista de perspectiva central, mas sim como o meio principal de referência, memória, imaginação e integração.46 Como Pallasmaa afirma, “(…) a maçaneta da porta é o aperto de mão do edifício (…)”,47 providenciando, assim, a oportunidade ideal para um contacto físico simbólico entre a mão do arquitecto e a mão do ocupante através da mediação deste objecto. Um edifício hapticamente sugestivo convida o visitante a experienciá-lo: Uma ressonância e interacção tomam lugar entre o espaço e a pessoa que o experiencia; eu coloco-me no espaço e o espaço coloca-se em mim.48 1.1.3. A audição e a importância da oralidade Alguns cientistas identificam a audição como o sentido primordial do sistema cognitivo, sobretudo no que toca ao seu papel na cultura oral, afirmando que este foi gradualmente substituído pela faculdade da visão ao longo da evolução antropológica.49 Edward T. Hall (1914-2009), antropólogo, corroborava esta observação em The Hidden Dimension (1966), um estudo sobre o papel dos sentidos na apropriação do espaço pessoal e colectivo em culturas distintas.50 O historiador e filósofo Walter J. Ong (1912-2003) também estudou o impacto da alteração da cultura oral na consciência e memória humanas, assim como a questão do entendimento do espaço, salientando que “(…) a mudança do discurso oral para o discurso escrito foi, essencialmente, uma mudança do espaço sonoro para o espaço visual (…)”.51 46 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.47 47 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.61 48 Peter Osborne, Benjamin Andrew. Walter Benjamin’s Philosophy: Destruction and Experience, Routledge, Londres, Nova Iorque, 1994. P.23 49 George Thomas White Patrick, “The Rivalry of the Higher Senses”, in Popular Science Monthly, Vol. 39, 1891. P. 761-771 50 Edward T. Hall, A Dimensão Oculta, Antropos - Relógio d’Água, Lisboa, 1986. 51 Walter J. Ong, Orality & Literacy – The Technologizing of The World, Routledge, Londres e Nova Iorque, 1991. P.117 33 11. Centro Comercial Colombo, Lisboa, Portugal, estado actual. Edifícios comerciais como shoppings constituem, habitualmente, espaços em que música de fundo constante nos priva de captar sons e ecos mais directamente relacionados com a materialidade do lugar, gerando uma espécie de atmosfera artificial que confunde a nossa capacidade auditiva. O autor afirmava, ainda, que a escrita foi o catalisador desta alteração.52 Lucien Febvre (1878-1956), também historiador, opinava que a perda da cultura oral foi uma consequência da evolução da ciência no final do séc. XVI: O século XVI não viu à primeira: ouviu e cheirou, inalou o ar e assimilou sons. Foi só mais tarde que se tornou seriamente e activamente embrenhado na geometria, prestando atenção ao mundo das formas com Kepler (1571-1630) e Desargues de Lyon (1593-1662).53 O também historiador Robert Mandrou (1921-1984) deu continuidade à premissa de Febvre, argumentando que o olho não era o órgão mais favorecido do século XVI, época que valorizava a audição acima dos outros sentidos: A hierarquia [dos sentidos] não era a mesma [do século XX], porque o olho que governa hoje em dia encontrava-se em terceiro lugar, atrás da audição e do tacto (…).54 Estes exemplos históricos sugerem o reposicionamento da audição a par com os outros sentidos, revelando que a hierarquização do sistema cognitivo tem vindo a ser reflexo do contexto cultural. Antes da racionalização do processo perceptivo e do impacto do olho Cartesiano, a multissensorialidade era mais presente na experiência existencial. Deste modo, atribuir ao sentido da audição a mesma importância que temos vindo a atribuir ao sentido da visão, ajuda a articular a nossa experiência corpórea com a compreensão global do espaço: A vista isola, enquanto o som incorpora; a visão é direcional, enquanto o som é omnidireccional. O sentido da visão implica exterioridade, mas o som cria uma experiência de interioridade.55 Esta citação do autor leva-nos de encontro à posição de Zumthor face à importância da audição em Atmospheres (2006), convidando o leitor a interpretar o espaço de acordo com a sua opinião intuída. O autor estabelece um paralelismo entre a 52 Idem. P.121 53 Martin Jay, Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought, University of California Press, Berkley, L.A., Londres. 1993. P.34 54 Robert Mandrou, Introduction to Modern France, 1500-1640: An Essay in Historical Psychology, Holmes & Meier, Nova Iorque, 1976. 55 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.49 35 12. Le Corbusier e Iannis Xenakis, “Convento de Santa Maria de La Tourette”, 1956-60. O arquitecto e compositor Iannis Xenakis baseou o ritmo vertical do alçado de La Tourette nas suas deduções matemáticas de relação compositiva entre as áreas da música e da arquitectura. O alçado é análogo aos crescendos e diminuendos que caracterizam uma pauta musical, criando uma cadência harmoniosa na sua composição global. interioridade dos espaços e o som dos instrumentos, afirmando que ambos têm a capacidade de recolher, amplificar e redireccionar o som.56 Tal acontece devido às formas e às superfícies particulares dos materiais que dão corpo aos espaços. Se reflectirmos sobre esta ideia, podemos concluir que existem sons que a nossa memória associa a certos espaços e que, consequentemente, associamos a emoções e sensações específicas. Idealizemos, por exemplo, uma casa totalmente desprovida de objectos: a experiência acústica pode ser considerada áspera, induzindo-nos, até, algum desconforto que não sugere a ideia de lar. Já o espaço mobilado e rodeado de objectos referentes à nossa vida pessoal refracta e amacia o som, transmitindo-nos uma sensação háptica de maior conforto. Se formos ainda mais longe, podemos até considerar, hipoteticamente, que um edifício ou um espaço urbano que conheçamos pode perder carácter e identidade própria se o dissociarmos da sua sonoridade. Imagine-se, por exemplo, os sons quotidianos característicos da Avenida dos Aliados (Porto), dentro do nosso quarto de dormir, na nossa habitação privada – a identificação holística do espaço seria, provavelmente, bastante diferente daquilo que seria de esperar, uma vez que não nos encontramos em contacto físico e directo com o espaço imaginado. Deste modo, o som não só nos ajuda a reconhecer e a identificarmo-nos no espaço, como também “(…) mede o espaço e torna a sua escala compreensível”.57 Se estabelecermos um paralelismo entre a música e a arquitectura, à semelhança de um compositor, um arquitecto tem a possibilidade de compor o espaço, criando harmonias, ritmos, melodias, fragmentações e sequências (fig.12).58 Tal como afirma Pallasmaa, “(…) o som providencia, frequentemente, o continuum temporal em que se incorporam as impressões visuais (…) um espaço é compreendido e apreciado tanto através do seu eco como da sua forma visual, mas a percepção acústica permanece, habitualmente como uma experiência de fundo inconsciente”.59 Uma das críticas que Pallasmaa enumera acerca das cidades contemporâneas em geral é, precisamente, a falta de ‘eco’. A sua ausência é preenchida, habitualmente, pelo ruído desenfreado consequente das ruas largas e abertas, desenhadas a uma escala quase não-humana, optimizada para receber a velocidade do quotidiano 56 Peter Zumthor, Atmospheres: Architectural Environments, Surrounding Objects, Birkhäuser, 2006. P.30|31 57 Ibid. P.51 58 Peter Zumthor, Pensar la Arquitectura, GG, Barcelona, 2010. P.11 59 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.49 37 13. Jan Brueghel, o Velho, e Peter Paul Rubens, “Alegoria do Olfacto”, 1617-18. Brueghel e Rubens aludiram ao olfato ilustrando uma figura feminina e Cupido num jardim repleto de flores, captando as fragrâncias naturais das plantas na proximidade de uma destilaria de perfumes, visível à esquerda. marcada, em parte, pelo trânsito automóvel. Segundo a premissa do autor, poderíamos, então, considerar que a arquitectura tem também a missão de reflectir os sons que emitimos, providenciando espaço para ouvir o silêncio e a ausência deste, mediante o nosso contacto sensorial com a obra construída, dado que “(…) a arquitectura é a arte do silêncio petrificado”.60 Podemos, inclusive, considerar que o silêncio na arquitectura está ligado à memória dos espaços e que, em função deste, até se torne possível escutar melhor o silêncio da nossa própria interioridade. O silêncio e a tranquilidade são qualidades importantes do conjunto que caracteriza a experiência espacial. Atribuir um espaço de silêncio ao visitante é uma das funções mais hapticamente sugestivas que um edifício pode desempenhar. Paralelamente, a arquitectura ajuda-nos a “medir as distâncias”61 através do som; silencia o barulho que não lhe diz respeito e direcciona a nossa atenção para a experiência existencial com o mundo. 1.1.4. O olfacto e a memória A ensaísta contemporânea Diane Ackerman, autora de A Natural History of the Senses (1990), explica que os cheiros podem influenciar-nos biologicamente, afectando o nosso entendimento sensorial do mundo que nos rodeia. A autora também expõe que não só conseguimos captar cerca de 10.000 odores distintos, como bastam oito moléculas de uma determinada substância atingirem o término de um nervo para que o sentido olfactivo seja activado.62 Esta informação permite-nos relativizar a importância do olfacto, se considerarmos que é uma competência cognitiva bastante sensível, capaz e diversificada. O próprio acto de respirar, que é essencial à nossa condição física existencial, confronta-nos constantemente com esta capacidade sensorial, pelo que não será desadequando pensar que “(…) a memória mais persistente de qualquer espaço é, normalmente, o seu cheiro”.63 Cheirar é uma acção ininterrupta e contínua da nossa experiência existencial. Alguns estudos constatam que existe uma relação íntima entre o olfacto 60 Ibid. P.51 61 Manuel Botelho, Aula de Projecto I, FAUP, 2008-09. 62 Diane Ackerman, A Natural History of the Senses, Vintage Books, Nova Iorque, 1991. P.13 63 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.54 39 14. Gastão de Brito e Silva, “Bairro das Fontaínhas”, 2011. e a memória,64 sendo que a percepção olfactiva gera, muitas vezes, consciente ou inconscientemente, imagens mentais relativas ao nosso passado, experiências empíricas emotivas, ou sensações abstractas difíceis de classificar: Um cheiro particular, sem sabermos, faz-nos reentrar um espaço completamente esquecido pela memória da retina; as narinas acordam uma imagem esquecida e somos levados a entrar num sonho vívido acordado. O nariz faz os olhos recordarem.65 Esta “imagem esquecida”, que nos conduz à experiência do “sonho vívido”, não só reforça a ideia de interdependência entre o sentido olfactivo e a memória individual, como também introduz o tema da imaginação, salientado pelo filósofo Gaston Bachelard (1884-1962) - “(...) a memória e a imaginação permanecem associadas”.66 Um caso na arquitectura que relaciona bem estes três domínios – olfacto, memória, imaginação – é a ruína. Segundo Ackerman, a escritora Helen Keller (1880-1968), identificava de imediato uma casa abandonada através das várias camadas odoríferas deixadas pelas famílias que nela habitaram, assim como os pertences que outrora a integraram (fig.14).67 Note-se que a condição de cegueira de Keller levou a que os seus sentidos se desenvolvessem mais do que o habitual, em comparação a pessoas que não carecem de visão. Em condições normais, as pessoas que possuem todas as faculdades cognitivas apenas seriam capazes de captar uma fracção da informação sensorial obtida por Keller. Pallasmaa também reconhece, por experiência própria, que as casas abandonadas possuem sempre o mesmo “cheiro oco”,68 talvez porque este odor em particular é estimulado pelo vazio observado pelo olho. Em The Notebook of Malte Laurids Brigge (1910), o poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) descrevia a sua imagética olfactiva acerca de uma casa demolida, imaginando as experiências passadas que nela foram vividas.69 64 Donald A. Wilson, Richard J. Stevenson, Learning to Smell: Olfactory Perception from Neurobiology to Behaviour, Johns Hopkins University Press, Baltimore, 2006; Frank R. Schab, Robert G. Crowder, Memory for Odors, Lawrence Erlbaum Associates, Inc., Mahwah, 1995. 65 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.54 66 Dominique Lecourt, L’épistémologie historique de Gaston Bachelard, Vrin, Paris, 1969. P.13 67 Diane Ackerman, A Natural History of the Senses, Vintage Books, Nova Iorque, 1991. P.45 68 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.55 69 Rainer Maria Rilke, The Notebook of Malte Laurids Brigge, trad. Herter Norton, WW Norton & Co., Nova Iorque, Londres, 1992. P.47-48 41 15. Jan Brueghel, o Velho, e Peter Paul Rubens, “Alegoria do Paladar”, 1618. O paladar é, nesta peça, associado à opulência, através da representação de um banquete, no qual uma figura feminina come ostras e bebe vinho, símbolos de uma refeição de gosto requintado. Se os arquitectos tiverem consciência do impacto que a faculdade olfactiva possui a par dos restantes sentidos do corpo humano, a arquitectura resultante poderá ser sensorialmente apelativa, tendo em conta que o olfacto é um tema da actividade projectual habitualmente negligenciado, apesar do seu impacto na caracterização da ambiência do lugar. Deste modo, a arquitectura pode oferecer aos seus experienciadores a possibilidade de se enraizarem nos espaços, apreendendo a sua atmosfera de um modo mais completo. 1.1.5. O paladar e a sinestesia Apesar de se ter vindo a defender a ideia de que todos os sentidos integram um sistema cognitivo indissociável que não hierarquiza nenhum sentido sobre o outro, é de salientar que o paladar e o olfacto possuem uma ligação anatómica e neurológica especial entre si. Cerca de 75% daquilo que percepcionamos gustativamente advém do nosso sentido olfactivo.70 Anatomicamente, a cavidade oral e a cavidade nasal estão ligadas (fig.16). Assim sendo, faz sentido pensar que os receptores sensoriais possam ser dualmente estimulados num único espaço.71 A Neurociência explica que estes dois sentidos, olfacto e paladar, são processados pelo cérebro na mesma parte do córtex órbito-frontal.72 Como consequência desta condição física e neurológica, quando comemos alguma coisa, as partes do nosso cérebro não são estimuladas individualmente: vários centros do cérebro são simultaneamente activados, criando uma memória cognitiva integrada que fica associada àquela comida específica. Quanto à relação directa que o tacto e o olfacto estabelecem entre si, esta reforça a ideia de que os agentes perceptivos que utilizamos para interpretar o meio funcionam com cumplicidade. De facto, um exemplo extremo desta realidade é a condição neurológica da “sinestesia”: a palavra deriva do Grego Antigo syn (junto), e aisthēsis (sensação).73 A sinestesia é um fenómeno neurológico que ocorre quando o estímulo de um sentido cognitivo provoca, involuntariamente, experiências 70 John J. Ratey, A User’s Guide to the Brain: Perception, Attention, and the Four Theatres of the Brain, Vintage Books, Nova Iorque, Toronto, 2002. P.70 71 Ivan E.T. de Araujo, Edmund T. Rolls, Morten L. Kringelbach, Francis McGlone, Nicola Phillips, “Tasteolfactory convergence, and the representation of the pleasantness of flavour, in the human brain”, in European Journal of Neuroscience, Vol. 18, P.2059-2068, 2003. 72 Idem. 73 Richard E. Cytowic, Synesthesia: A Union of the Senses, MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 2002. 43 16. Modelo anatómico de secção da cabeça humana. Esta representação clarifica a ligação anatómica entre a cavidade oral e a nasal, circunstância que permite uma estimulação sensorial dual das duas faculdades cognitivas associadas num único espaço. 17. Verona, Itália, estado actual. A cidade de Verona apresenta uma materialidade e ambiência sensorialmente sugestivas, que podem estimular, por via do toque ou de outros sentidos, o paladar de quem percorre as suas ruas e espaços. sensoriais num sentido cognitivo diferente daquele que recebe a informação.74 Por exemplo, ao ouvir o som de um trompete, um sinestésico pode ver, de imediato, uma forma cor de laranja no espaço, ou pensar automaticamente que escuta o som cor de laranja. Em Oxford Handbook of Synesthesia (2013), os investigadores Julia Simner e Edward M. Hubbard estabelecem uma relação entre a sinestesia e a criatividade, afirmando que “(…) os sinestéticos são excelentes a gerar ideias criativas, e seguem mais as vias artísticas do que os não-sinestéticos (…)”.75 Não obstante, o termo “sinestesia” também é utilizado em contextos menos científicos, ou seja, mencionar esta terminologia não implica sempre que se fale de uma condição neurológica:76 A visão é também transferida para o paladar; certas cores e detalhes delicados evocam sensações orais (...). A nossa experiência sensorial do mundo tem origem nas sensações interiores da boca e o mundo tende a regressar às suas origens orais.77 No contexto da arquitectura, podemos projectar espaços indutores de experiências sinestésicas nos utilizadores, como forma de estimular, equilibradamente, todos os agentes da percepção humana, promovendo a sua parceria. Sentindo-se incapaz de preservar as sensações tácteis das suas vivências pessoais apenas com base no sentido do olhar, o crítico de arte Adrian Stokes (1902-1972) servia-se do sentido gustativo para descrever a cidade italiana de Verona (fig.17): [Existe um] convite oral por parte do mármore veronês (…) Gostava de comer esta Verona toque a toque.78 A consciencialização para este tipo de experiências orais decorrentes da materialidade da arquitectura fez-se notar nas aulas práticas de História da Arquitectura Antiga e Medieval (2009/10), leccionadas pelo Professor Rui Tavares, na FAUP, quando o docente citava o professor e escultor Alberto Carneiro, afirmando que “é preciso lamber as pedras”79 para conhecermos, plenamente, o mundo. 74 Richard E. Cytowic, The Man Who Tasted Shapes, MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 2003. 75 Julia Simner, Edward M. Hubbard, Oxford Handbook of Synesthesia, Oxford University Press, Reino Unido, 2013. P.621 76 Julia Simner, “Defining Synaesthesia”, in British Journal of Psychology, No. 103 (6), 2012. P.1-15 77 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.60 78 Adrian Stokes in Building Ruskin’s Italy: Watching Architecture, Ashgate Publishing, Stephen Kite, Surrey, Burlington, 2012. P.182 79 Rui Tavares, Aula de História da Arquitectura Antiga e Medieval, FAUP, 2009/10, cit. Alberto Carneiro. 45 18. Kate Winslet e Jim Carrey em “Eternal Sunshine of the Spotless Mind” de Michel Gondry, 2004. O argumento deste filme desenrola-se em torno da memória individual dos dois protagonistas, que procuram apagar as recordações que têm um do outro. Porém, acabam por reviver, no processo, momentos enraizados nas suas memórias que os levam a questionar as suas motivações. Grande parte da acção do filme decorre no “mundo interior” das personagens. 2. A Memória e a Linguagem 2.1. A Memória Segundo Pallasmaa, “(…) o corpo não é meramente uma entidade física; é enriquecido pela memória e pelo sonho, pelo passado e pelo futuro”.80 Na verdade, a nossa capacidade perceptiva estaria incompleta sem o processo da memória. No fundo, procuramos, constantemente, relembrar as experiências que vivemos, sendo que as memórias que arquivamos nunca constituem um retrato completamente fiel daquilo que experienciamos. Ao percepcionar, armazenamos informação sensorial, logo armazenamos memória. Independentemente dos intervenientes que contribuam para a formação das novas memórias, estas são sempre individuais e sujeitas a alterações, pois o “eu que experiencia” não é o “eu que recorda”.81 Deste modo, interessa-nos compreender como é que a memória actua no processo perceptivo, no âmbito da arquitectura, dado que esta é dualmente criada e interpretada por quem a projecta. Assim, é importante introduzir o conceito de “memória pública” estabelecido pelo filósofo contemporâneo Edward Casey, com base no seu ensaio Public Memory in Place and Time (2004), uma vez que esta define a relação do indivíduo, enquanto elemento de um colectivo, com o lugar. De um modo geral, a memória é um processo mental que lida, essencialmente, com o tempo passado. Casey estabelece que o reconhecimento, por sua vez, introduz o passado no presente imediato, e a relembrança projecta-nos para um evento futuro sobre o qual nos queremos voltar a lembrar. A memória pública, por sua vez, é dualmente passado e presente, uma vez que origina um determinado evento que será lembrado futuramente: [Tornar-se parte da memória pública] (…) apenas minimamente significará chegar ao conhecimento do público (leitor ou contemplador), e ser observado por este. (…) Significa, sim, ser imediatamente compreendido, sem hesitação ou interpretação, no seu significado basilar (…).82 80 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.45 81 Elizabeth Loftus, The Fiction of Memory, TED Talks, 2003; Daniel Kahneman, The Riddle of Experience VS Memory, TED Talks, 2010. 82 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.19 47 19. João Andresen, Barata Feyo e Júlio Resende, “Padrão dos Descobrimentos” (reconstrução), 1958-60. Possíveis casos práticos deste tipo de memória são os monumentos. Por exemplo, a dimensão e imponência do Padrão dos Descobrimentos remete-nos para as conquistas portuguesas dos séculos XV e XVI (fig.19), prolongando este simbolismo no futuro, honrando e enaltecendo o passado através dos seus traços figurativos (a pose de D. Henrique e os panos da caravela, por exemplo). Tal como será abordado no tópico 3.3. Tempo e Espaço desta dissertação, Pallasmaa considera que a arquitectura pode ser capaz de relatar a história do nosso envelhecimento cultural, funcionando como um “museu do tempo”.83 O monumento, devido à sua qualidade simbólica, pode ser entendido como algo que não se limita a incorporar e a representar um evento, preservando a sua memória até tempos cujos contornos são impossíveis de determinar: Em casos como este, a perdurabilidade da construção em si age de forma a garantir o elo íntimo entre passado e futuro.84 Com base no artigo de Casey, procurou-se delinear os três tipos de memória humana que integram a memória pública: memória individual, memória social e memória colectiva, que se expõem de seguida. Compreender as suas diferenças e implicações é essencial no contexto do processo perceptivo, dado que tudo aquilo que interpretamos no mundo circundante é arquivado na memória, consciente ou inconscientemente.85 Tal realidade é relevante para os arquitectos, uma vez que é a memória que alimenta o nosso modo de criar, sobretudo as categorias individual e social. Consequentemente, estes dois tipos de memória condicionam os edifícios que materializamos, directa ou indirectamente. Estes, por sua vez, intervirão na formação da memória colectiva das cidades em que se integram. Assim, podemos considerar que a memória é um dos protagonistas mais importantes da actividade perceptiva, e um tema de projecto a ter em conta na prática da arquitectura. 83 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.52 84 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.17 85 Bruno Munari, Fantasia, Arte & Comunicação, Lisboa, 1997. P.21 49 2.1.1. Memória individual, social e colectiva Memória individual O primeiro tipo, a memória individual, refere-se à pessoa que experiencia a memória numa determinada ocasião. Apenas este indivíduo a constrói; invariavelmente, independentemente do seu tipo, uma memória é sempre de cariz pessoal, “(…) lembrar é sempre je meines (em cada caso, meu)”.86 Este tipo de memória recorda de duas formas: recolhe a informação relativa a um determinado conjunto de circunstâncias (lembra que algo aconteceu), ou lembra especificamente como é que os eventos decorreram.87 Individualmente, as pessoas lembram-se de todo o tipo de coisas – não só das coisas per se, mas da ambiência e do contexto em que os acontecimentos se processaram na sua totalidade. Muitas vezes recordamos ao sermos lembrados através do reconhecimento de algo, bem como através de momentos de reminiscência com os outros. Os “outros” (os indivíduos para além de nós) são, na verdade, representações primárias da memória social e, introduzem o factor crucial da linguagem na memória, a par da narrativa e da história.88 Quando consideramos que existe uma diferença entre a memória do corpo e a memória do lugar, estamos para além de qualquer modelo de memória que se confine à mente do indivíduo e das suas representações. A memória individual pode ser despoletada consciente ou inconscientemente. Acontece com e através dos outros – são dimensões distintas, porém não podem ser dissociadas da mesma actividade básica. Independentemente de quão idiossincrático e pessoal possa ser o acto de lembrar e, apesar de este ter sempre lugar na mente de um determinado indivíduo, possui dimensões formais que excedem a contribuição de quem o recorda. Casey afirma que todos os modos de memória individual, estão intrinsecamente ligados ao meio que nos rodeia: O local primário da memória encontra-se não só no corpo ou na mente (nem apenas no cérebro, o elemento psicológico homólogo da mente) mas sim num nexo intersubjectivo que é, simultaneamente, social e colectivo, cultural e público.89 86 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.25 87 Idem. P.20 88 Edward T. Hall, A Dimensão Oculta, Antropos - Relógio d’Água, Lisboa, 1986. P.11-17 89 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.20 50 Com base nesta citação, se considerarmos que a arquitectura está constantemente presente no mundo em que vivemos, na sua qualidade de expressão material da criatividade humana, não é, de todo, desadequado pensar que esta interfere constantemente com a fabricação individual de memórias relativas aos diferentes aspectos da nossa vida. Tal como foi exposto no sub-tópico 1.1.4. O olfacto e a memória da presente dissertação, o sentido do olfacto, em particular, pode ajudar a identificar espaços que tenham sido relevantes nas nossas experiências corpóreas da arquitectura. Podemos encarar que a arquitectura é, dualmente, catalisadora de criação de memórias e reflexo das memórias do seu criador. Memória social O segundo tipo de memória humana aglomera as recordações comuns a indivíduos que partilham laços familiares ou de amizade, proximidade geográfica em bairros, cidades e regiões, ou participam num projecto em comum. É um tipo de memória partilhada por aqueles que já têm relações entre si. Neste caso, a memória pressupõe a pré-existência destas relações e aparece associada a aspectos destas ligações. Podem, no entanto, existir memórias sociais de eventos que uma determinada pessoa não experienciou, mas que são do conhecimento daqueles que mantêm laços com essa pessoa. Por exemplo, a história de como um familiar nosso construiu o seu negócio antes de termos nascido, memória à qual podem mesmo estar associadas noções hápticas de espaços, sensações e emoções que percepcionamos na nossa mente, através da imaginação, sem termos, de facto, experienciado tais acontecimentos. Sobre esta questão, na conferência How do We Grasp Space and Place? (2011), Pallasmaa refere que a “(…) percepção e a imaginação têm lugar na mesma parte do cérebro (…)” e que, tal como os sonhos, estas memórias “(…) não são meras imagens, mas sim espaços que experienciamos sensorialmente; existem na nossa imaginação”.90 Memória social não é necessariamente memória pública – as famílias possuem memórias privadas que só a elas dizem respeito. Só quando acontece uma celebração ou um reconhecimento social a um membro da família, é que essas memórias podem passar a pertencer ao domínio público (...).91 90 Juhani Pallasmaa, How do We Grasp Space and Place?, Graduate School of Architecture, Planning and Preservation, Nova Iorque, 2011. 91 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.22 51 20. “11 de Setembro”, 2001, Nova Iorque, EUA. Dentro da memória social existe, ainda, uma ramificação, como indica Casey: a memória partilhada.92 Esta designa a situação em que aqueles que viveram a mesma história, enquanto grupo ou que vivem no mesmo lugar, recordam o que aconteceu a esse grupo naquele lugar. Viver a mesma história não é sinónimo de ter a mesma experiência de memória, esta última é sempre idiossincrática de um modo ou de outro, tal como mencionamos anteriormente. Memória colectiva O terceiro tipo de memória humana abrange circunstâncias nas quais pessoas diferentes que não se conhecem, necessariamente, entre si, recordam o mesmo evento individualmente. Estas memórias nem são completamente isoladas dos outros indivíduos, nem são totalmente dependentes da companhia daqueles que conhecemos – resultam de ambas as situações. A memória colectiva resulta, sim, de uma lembrança conjunta acerca de um determinado evento, independentemente das relações pessoais dos indivíduos que a partilham - o essencial é o conteúdo coincidente dessa mesma ocorrência. Por exemplo, no caso do desastre do 11 de Setembro, em 2001 (fig.20), a maioria das pessoas, americanas ou não, contemporâneas a esta data, recordam as circunstâncias em que ouviram as notícias do ataque, apesar de nem todas terem presenciado fisicamente a queda das duas torres do World Trade Center: Estou ligado a todos os outros que se lembram, precisamente, onde se encontravam quando ouviram falar dessas duas emergências. Lembramo-nos do ocorrido colectivamente, a partir das nossas várias posturas.93 Enquanto que a memória social deriva de uma base de experiências, histórias e projectos partilhados, a memória colectiva, em oposição, não possui esse fundamento, mas é distribuída sobre uma determinada população ou conjunto de lugares. As relações entre os indivíduos que experienciam este tipo de memória são completamente irrelevantes; uns não têm necessariamente que estar ligados aos outros. Os membros desta colectividade momentânea estão apenas ligados ao fenómeno sobre o qual recaem as suas atenções. O grupo de pessoas que se constitui é espontâneo e involuntário, e a sua razão de ser é um foco convergente 92 Ibid. P.22 93 Ibid. P.23 53 21. Balonas e Menano, “Passeio dos Clérigos”, Porto, Portugal, estado actual. A relação entre a expressão e materialidade dos alçados do novo edifício da Praça de Lisboa e o casario circundante é bastante contrastante. sobre um determinado tópico. Não obstante, este tópico pode chegar aos receptores em tempos diferentes e derivar de fontes diferentes, isto é, a memória colectiva não é, necessariamente, simultânea a todos os seus experienciadores: Lembrança colectiva é persistentemente plural – tão plural que entidades individuais ou de grupo não contam; o que é importante é apenas o simples facto de que todos os que se lembram, lembram-se da mesma coisa (…).94 Colectivamente, neste tipo de memória, as relações entre os indivíduos são tão externas que a intimidade não só é irrelevante, como também chega a ser intrusiva. De acordo com o sociólogo e historiador contemporâneo Richard Sennet, “(…) a cidade deve ser um lugar onde as pessoas se podem reunir com outras pessoas sem a compulsão de as conhecerem como indivíduos”.95 Deste modo, quando os habitantes de uma determinada cidade recordam um certo evento, relevante ou trivial, podem permanecer anónimos na sua pluralidade. Extrapolando para a arquitectura, um caso sonante na cidade do Porto que passou a integrar a memória colectiva dos seus habitantes e visitantes, trata-se do novo edifício comercial do Passeio dos Clérigos, na Praça de Lisboa (fig.21). A sua presença passou a marcar, profundamente, a identidade daquele lugar e, dado o contraste visual entre as suas superfícies com as fachadas históricas em redor, quem experiencia tal espaço constrói, automaticamente, uma memória que faz parte de um colectivo. O conteúdo essencial desta memória colectiva é, precisamente, esta nova dinâmica do lugar; é este ponto em comum que une a memória das pessoas. Deste modo, os edifícios que projectamos para a cidade podem ter um impacto difícil de prever na fabricação da memória colectiva, pelo que se deve procurar “(…) encontrar a forma justa, a forma correcta, a forma que realiza com eficiência e beleza a síntese entre o necessário e o possível, tendo em atenção que essa forma vai ter uma vida, vai constituir circunstância”.96 94 Ibid. P.24 95 Richard Sennet, The Fall of Public Man: On the Social Psychology of Capitalism, Vintage, Nova Iorque, 1977. P. 338-9 96 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P.74 55 22. “Revolução de 25 de Abril”, Salgueiro Maia dirige-se à população, 1974. 2.1.2. Memória pública e lugar Como foi referido anteriormente, tanto a memória individual, como a social e a colectiva integram a memória pública. Esta manifesta-se de dois modos: enquanto processo espontâneo ou construído. O primeiro refere-se a eventos públicos muito marcantes que não são possíveis de premeditar ou que podem tomar de surpresa parte do público, como por exemplo o desastre de Fukushima, em 2011, ou o 25 de Abril, em 1974 (fig.22). Acontecimentos deste tipo, que podem afectar milhares de pessoas, directa ou indirectamente, nacional ou internacionalmente, têm um impacto tão forte no seu presente que a sua futuridade é garantida logo à partida. Estes eventos não perduram apenas na memória individual dos seus contemporâneos: prolongam-se, virtualmente, na cultura que afectam e, por consequência, nos indivíduos futuros ligados ao meio a que dizem respeito. Apesar de o 25 de Abril se ter passado em 1974, os indivíduos da posteridade continuam a ouvir relatos dessa mesma data, através de pessoas que a experienciaram directamente ou de livros e textos históricos que a registaram. A espontaneidade desse evento marcou o curso político de Portugal, afectando profundamente a sua futuridade cultural. Com base nesta informação, obtida indirectamente, estes indivíduos fabricam recordações de eventos que não experienciaram pessoalmente: é nisto que consiste, segundo Casey, a memória pública construída.97 A memória individual e a memória social são os dois círculos interiores da memória pública, sendo a memória colectiva o seu círculo exterior, aquele em que os eventos são lembrados em isolamento comparativo. A memória pública contrasta com qualquer coisa que aconteça no domínio privado. A memória pública é o vernáculo das discussões actuais – estas falam e partem dela. É também um contínuo que serve para estabilizar qualquer direcção dos eventos públicos: Uma memória pública, estabelecida e recebida, serve como presença circundante, em tempos de calma (…) É um horizonte contínuo em redor da arena pública, segurando-a no lugar.98 Com base nesta citação, podemos incorrer que a memória pública, enquanto horizonte do domínio público, não é distante e indiferente, mas sim algo que contribui para o entendimento sensorial daquilo que é o espaço circundante. Este “horizonte 97 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.17 98 Idem. P.26 57 externo”99 não delimita apenas aquilo que é interpretado dentro do seu espaço; é o que ajuda a construir a identidade geral do meio que nos rodeia. Segundo o autor, um horizonte memorial não se limita a circunscrever o assunto a que se refere, vai de encontro a este dando-lhe forma, carácter, expressão e ‘fisionomia’. Acima de tudo, permite que os vários conteúdos do meio percepcionado coexistam de modo viável, tornando-se partes da gestalt que é o mundo em que vivemos. Apesar de ser possível armazenar informação virtual acerca de um determinado evento ocorrido num certo lugar (a tecnologia100 permite guardar uma imensidão de imagens e textos), a memória pública é incerta e falível, pois tal como afirma a psicóloga Elizabeth Loftus, “(…) a memória representa a identidade, mas também tem uma veracidade muito frágil (…)”.101 Caracterizá-la como pública não garante estabilidade ao longo do tempo; na verdade, esta é constantemente revista e posta em causa. Tende-se a considerar que a memória pública está sempre presente para reafirmar a identidade da sociedade a que pertencemos e, enquanto horizonte externo, desempenha, de facto, este papel – existe para ser evocada. Porém, apesar de ser aparentemente retórica, algumas nuances nesta evocação impedem a transmissão de informação consistente e repetível de uns indivíduos para os outros.102 Independentemente das vezes que uma determinada memória pública é revista e/ ou substituída, esta permanece sempre de algum modo. A circunstância do presente e do futuro põe sempre em causa a ‘tradição’ do que já foi, no entanto, existe um passado histórico que perdura – esse passado é o horizonte da memória pública, construído sobre um legado que pode ser passado de geração em geração. É precisamente por causa desta relação inquisitiva entre o presente e o passado que se torna possível o diálogo que reescreve ou rejeita o horizonte memorial. A memória pública providencia as condições para o diálogo aberto, podendo caracterizar-se como o núcleo do domínio público: 99 Ibid. P.26 100 É interessante verificar que o filósofo José Ortega y Gasset estabelecia uma relação entre o termo “Tecnologia” e a execução de uma determinada técnica, considerando a origem Grega da sua formação enquanto palavra: techne significa arte, habilidade e astúcia da mão; logos significa palavra, razão e discurso. No livro Meditación de la Técnica, Alianza Editorial, Madrid, 1982, o autor menciona as várias fases da técnica, atentando para a relação entre a concepção e a execução, relembrando que lidar com o que é desnecessário é um traço característico da condição humana. 101 Elizabeth Loftus, The Fiction of Memory, TED Talks, 2003. 102 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004.P.29 58 Neste aspecto, é o equivalente ao corpo habitual, que funciona como uma segunda condição básica de todo o discurso produtivo – uma espécie de horizonte interior que é guarnecida pelos corpos gesticuladores, perceptivos e em movimento dos interlocutores no decorrer da discussão. Este corpo tem a sua própria história e a sua própria memória (…).103 Casey sugere que o lugar não é, de todo, uma condicionante neutra na criação de memórias. O lugar ‘empresta-se’ e facilita o lembrar, incorporando, por vezes, a própria memória na sua materialização. Por exemplo, os cemitérios são espaços especialmente dedicados ao exercício da recordação, ou os monumentos memoriais que evocam odes a eventos passados. Mais do que uma questão de ‘onde’, é uma questão de ‘o quê’: a materialidade do lugar e a disposição dos elementos no espaço induzem as memórias associadas à sua existência: Isto é mais do que um caso de localização; é uma questão de indução material activa que parte do lugar – o seu poder em extrair as memórias apropriadas do local.104 Podemos, assim, incorrer que o lugar providencia a subestrutura vital da memória, não só pelo potencial das suas características que incorporam e induzem recordações partilhadas, mas também pela condição prática de oferecer um espaço em que os corpos se aproximam fisicamente. Esta proximidade não é consequente da intimidade, mas sim da presença pública que é conseguida quando as pessoas se reúnem devido a um propósito comum. Esta relação pode ser uma co-presença física de um indivíduo para o outro, dentro dos limites do alcance háptico: Atravessar um lugar público no qual toda a gente está co-implicada é algo que transcende o próprio lugar, a sua presença, a discussão que levanta e os tópicos assim abordados.105 A prática da memória pública é, primariamente, discursiva. Mesmo quando a informação sensorial que retemos parece descrever claramente a memória que se está a interpretar, a linguagem verbal é um complemento que ajuda a descobrir um conhecimento mais aprofundado.106 Não obstante, os edifícios não comunicam 103 Ibid. P.31 104 Ibid. P.32 105 Ibid. P.35 106 Ibid. P.34 59 verbalmente, mas são parte da discussão pública – daí a importância de se reconhecer a memória enquanto factor determinante na prática projectual. Segundo a filósofa política Hannah Arendt (1906-1975): Tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos e tem a mais ampla publicidade possível. (…) A presença de outros que vêem o que nós vemos e que ouvem o que nós ouvimos convence-nos da realidade do mundo e de nós mesmos.107 Evocando o filósofo Martin Heidegger (1889-1976), Casey indica que a “circularidade do meio” é partilhada pelo lugar e pela memória pública, sendo estes últimos os epicentros que ligam, através da linguagem, a privacidade do pensamento e da emoção à abertura das matérias partilhadas. O autor explica, ainda, que a memória pública constitui-se por identidades de muitos tipos: nacionais e regionais, certamente, mas também sociais e pessoais. A maioria dos nossos eventos pessoais foram influenciados pela memória pública. Muitas vezes, esta traduz-se como um conhecimento empírico e inconsciente. Tematizada ou não, contudo, permanece como uma presença vernacular: inclui, em simultâneo, vários tipos de coisas, tornando-se tacitamente presente até ser destacada como tal. Parte do poder da memória pública deve-se ao facto de esta se localizar no limite das nossas vidas, ‘a pairar’, sempre pronta para ser evocada ou revisada, actuada sobre ou contemplada; pode ser inspiradora ou ‘aborrecida’. Em qualquer dos casos, a memória pública é integral àquilo que Casey designa de “presença pública”.108 É precisamente por ser uma presença tão implícita que a memória pública pode contribuir, fortemente, para a formação da vida e do pensamento públicos. Deste modo, é análoga à memória muscular, que nos conduz, fisicamente, através da indução de informação somática e cultural no nosso corpo, dado que, na verdade, “(…) a nossa capacidade de memorizar seria impossível sem a memória corporal”.109 Tanto o corpo como a mente influenciam o passado e o presente do indivíduo, carregando estas influências literais para um futuro de acção pessoal e interpessoal. O mesmo acontece com a memória pública, que prevalece tanto no senso individual 107 Hannah Arendt. The Human Condition. The University of Chicago Press. 1998. P.50 108 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004.P.37 109 Edward Casey, Remembering: A Phenomenological Study, Idiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 2000. P.172 60 como no senso partilhado daquilo que é a identidade pública. Esta identidade especifica que tipos de indivíduos somos, enquanto ‘cidadãos do mundo’ e não só de uma cultura particularmente contextualizada – identifica-nos como membros pensantes e sencientes da nossa espécie. Assim como já foi mencionado, a memória pública precisa de um palco de acontecimento, por duas razões: está constantemente sujeita a revisão, e a sua temporalidade é posta em causa, não só pela concepção ou interpretação pessoal, mas também pelo próprio conteúdo da informação que representa. A memória pública é contada e recontada ao longo de gerações, e transmitida e recebida com grandes alterações ao longo do tempo. Estas duas formas de mutabilidade demonstram a capacidade comunicativa da memória de era para era, independentemente do idioma ou da linguagem simbólica usada para representar as suas mensagens. Casey considera que, sem esta elasticidade, a memória pública não sobreviveria como a presença efectiva que é. O seu conteúdo não é maleável enquanto conjunto, do ponto de vista holístico – se fosse, não teria a força necessária para durar através das mudanças históricas e geracionais.110 Aquilo que impede a desintegração total da memória pública é o que os Romanos denominavam de stabilitas loci – estabilidade de lugar.111 Os lugares mantêm e abrigam memórias de muitos tipos, tanto pessoais como interpessoais, e uma vez que estes são o ‘palco’ de trabalho dos arquitectos, a relação entre memória e lugar é uma matéria de discussão importante para a interpretação, concepção e consequente materialização da arquitectura. Os lugares cultivam e coleccionam tanto memórias sociais como colectivas – “(…) o espaço é uma realidade que perdura (…)”.112 Podemos, então, inferir que sem implantações espaciais concretas, as memórias não seriam referenciadas no mundo perceptível, ou por outro lado, seriam a sua própria referência. Não obstante, os lugares não são imunes à reinterpretação e à reestruturação física. Apesar de estarem sujeitos a grandes alterações físicas ou transformações hermenêuticas, os lugares com alguma durabilidade serão sempre albergadores da constituição e continuação da memória pública. 110 Edward Casey, “Public Memory in Place and Time” in Public Memory, Alabama University Press, 2004. P.38-39 111 Idem. P.39 112 Idem, cit. Maurice Halbwachs, The Collective Memory, Harper, Nova Iorque, 1980. P.156 61 23. Antoni Gaudí, “Casa Batlló”, 1877-1906. Os parâmetros espaciais da memória pública não são secundários aos parâmetros temporais da mesma – são ambos centrais, ou mesmo basilares. Deste modo, devem ser reconhecidos como parte integrante do fenómeno da memória pública em toda a sua amplitude. Se o lugar subtende qualquer tipo de tempo, subtende qualquer tipo de memória – individual, social e colectiva. Por um lado, o lugar é parte da memória pública durante o processo em que esta é fabricada, por outro, permanece central a uma memória pública mais consolidada que já se transformou num horizonte para o lembrar futuro de muitos outros, para além daqueles que se encontravam presentes na sua criação. 2.2. A Linguagem Em The Hidden Dimension (1966), Edward Hall explicava que para existir comunicação entre os seres humanos, a experiência tem que estar associada à linguagem, e consequentemente, à cultura.113 Franz Boas (1858-1942), também antropólogo, defendia que a “(…) comunicação constitui o fundamento da cultura e, mais do que isso, da própria vida”.114 Com base nas suas investigações, Benjamin Lee Whorf (1897-1941), linguista, reforçou esta premissa, defendendo que mais do que um meio de expressão do pensamento, a linguagem é uma condicionante elementar da formação deste: (…) a própria percepção que o homem possui do meio circundante é programada pela língua que fala, exactamente como um computador. (…) o espírito do homem regista e estrutura a realidade exterior estritamente de acordo com o programa.115 De acordo com este princípio, dois arquitectos de culturas e escolas diferentes, por exemplo, nunca poderiam apreender cognitivamente a Casa Batlló (fig.23), obra do arquitecto Antoni Gaudí (1852-1926), de igual modo, uma vez que habitam mundos sensoriais distintos. Como já foi exposto no tópico 1.1. Corpo, Mente e Meio, o corpo e a mente são indissociáveis, funcionando como um todo. Assim, podemos incorrer que o pensamento é um processo corporal que participa na apreensão do “conhecimento 113 Edward T. Hall, A Dimensão Oculta, Antropos - Relógio d’Água, Lisboa, 1986. P.8-9 114 Idem. P.11 115 Idem. P.12 63 24. Pieter Brueghel, o Velho, “Torre de Babel”, 1563. A história da Torre de Babel, contada no Antigo Testamento, relaciona-se, alegoricamente, com a linguagem. Segundo a lenda, a humanidade falava uma língua comum e, assim unida pela linguagem, propôs-se a erguer uma altíssima torre, projecto demasiado ambicioso e orgulhoso para Deus, que decidiu intervir. Confundiu os idiomas dos discursos dos humanos e impossibilitou-os de comunicarem uns com os outros, tornando o projecto irrealizável. existencial”116 no decorrer da experiência perceptiva, do qual faz parte a linguagem. No fundo, podemos considerar que percepcionar é pensar com o corpo na sua totalidade. Por “conhecimento existencial” entende-se algo que não é conceptualizado ou racionalizável, e que não pode ser compreendido ou definido através da comunicação verbal, mas sim adquirido empiricamente por via da nossa experiência do mundo. Apreendemos e arquivamos a informação sensorial, incorporando-a holisticamente. Também a forma como aprendemos a desenvolver uma determinada competência consiste numa sistematização física de um certo ‘modo de fazer’: Mesmo no caso da aprendizagem das habilidades, a sequência complexa dos movimentos e das relações espaciais e temporais na execução da tarefa, é internalizada inconscientemente e incorporada, em vez de ser compreendida e lembrada intelectualmente.117 Esta aquisição de conhecimento processa-se, em grande parte, por uma via nãoverbal. O psicólogo Albert Mehrabian, autor de Silent Messages (1981), conduziu vários estudos sobre a comunicação não-verbal, estimando que na interacção humana 80% da comunicação ocorre fora do canal verbal e conceptual.118 Hall defendia que o conhecimento119 e as capacidades das sociedades tradicionais transmitem-se geneticamente de umas gerações para as outras através da codificação háptica do corpo. O conhecimento empírico é arquivado no corpo, na sua memória muscular, por via dos sentidos, sendo que estes funcionam como mediadores na sua aquisição. Este é, directamente e constantemente, incorporado nas situações do nosso quotidiano.120 De modo semelhante, o filósofo e cientista cognitivo 116 Presume-se que o autor faz uma ponte para o “Existencialismo”, corrente filosófica desenvolvida nos finais do séc. XIX. Estes estudiosos acreditavam que o pensamento filosófico começa com o sujeito humano – não é só o pensamento que deve ser considerado: as emoções, os actos, e a própria individualidade do ser, são igualmente relevantes. A premissa geral desta corrente defende que a “existência precede a essência”, ideia estabelecida por Sartre, no livro L’Existentialisme est un humanisme. (Juhani Pallasmaa, Landscapes of Architectural Education: Architecture, Knowledge and Existential Wisdom, New School of Architecture and Design, San Diego, 2014). 117 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.7 118 Albert Mehrabian, Silent Messages: Implicit Communication of Emotions and Attitudes, Wadsworth Publishing Company, 1981. 119 Etimologicamente, a palavra “Conhecimento” deriva do Latim sapere (conhecer, saber, sentir gosto), cognoscere (conhecer, saber. com mais gnoscere = obter conhecimento, chegar a saber), intelligentia (compreensão, capacidade de entender. De intelligere, inter (entre) mais legere (escolher, separar, o que interessa, ler). 120 Edward T. Hall, A Dimensão Oculta, Antropos - Relógio d’Água, Lisboa, 1986. P.55-77 65 contemporâneo Noam Chomsky, apresenta a ideia de que os princípios que servem de base estrutural à linguagem são biologicamente determinados na mente humana e, consequentemente, geneticamente transmissíveis.121 Com base na teoria do epistemólogo Jean Piaget (1896-1980),122 Pallasmaa afirma que o meio que nos rodeia é a base da nossa formação: (...) nascemos no mundo que é, em si, a fonte de conhecimento mais importante para nós.123 Christoph Wulf, professor de antropologia e educação da Universidade de Berlim, afirma que a aprendizagem de uma determinada prática manual não é primariamente efectuada através da compreensão verbal, mas sim da mimética muscular do corpo.124 Paralelamente, existem teorias contemporâneas125 que defendem que a linguagem nasceu como consequência do fabrico e do uso colectivo dos primeiros instrumentos criados pelo Homo Sapiens. Se assim for, podemos considerar que o desenvolvimento da linguagem está ligado à evolução da mão (enquanto parte do corpo especializada para o exercício táctil) e do cérebro. Frank R. Wilson não só associa a evolução da linguagem ao fabrico manual de instrumentos, como menciona também que a estrutura social é consequente desta evolução: É uma certeza virtual que as estruturas complexas do social e da linguagem foram gradualmente desenvolvidas em associação à propagação do design mais elaborado das ferramentas, da manufatura e do uso.126 121 John Lyons, Noam Chomsky, Penguin Books, Harmondsworth, 1978. P.4 122 Piaget desenvolveu a teoria da “Epistemologia Genética”, sintetizando as teorias filosóficas do “Apriorismo” (o conhecimento é inerente ao ser humano) e do “Empirismo” (o conhecimento provém unicamente do mundo que rodeia o sujeito). O epistemólogo defendia que o conhecimento é gerado atavés da interacção entre o sujeito e o meio em que este se insere, dependendo igualmente das estruturas cognitivas do indivíduo e da sua relação com os elementos que integram o meio. (Jean Piaget, Play, Dreams and Imitation in Childhood, Heinemann, Londres, 1945.) 123 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.8 124 Christoph Wulf. “Mimetic Learning” in Designs for Learning, Vol. 1, Nº 1, Freie Universitat Berlin, Alemanha, 2008. 125 Michael Corballis. “Did Language Evolve From Manual Gestures?” in The Transition To Language, A. Wray, Oxford University Press, Oxford, 2002. P.161-179; Thomas Wynn, Frederick L. Coolidge. How to Think Like a Neanderthal. Oxford University Press. New York. 2012 126 Frank R. Wilson, The Hand: How Its Use Shapes the Brain, Language and Human Culture, Pantheon Books, 1998. P.30 66 Podemos, então, considerar que o desenvolvimento da utilização de ferramentas está relacionado com a emergência do pensamento subjectivo. Deste modo, antes do discurso verbal, aparece a acção enquanto propósito consciente, associada ao uso das ferramentas. A acção não tem que ser, assim, o objecto de pensamento. Sobre a relação entre acção e pensamento, Wilson afirma que: Inicialmente, o pensamento é não-verbal e o discurso é não-intelectual (...) [Mas, nos humanos] o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelas ferramentas linguísticas do pensamento e pela experiência sociocultural da criança.127 Na sequência da lógica de Wilson, a arte e a arquitectura podem ser encaradas como meios de revisitação dos primórdios da linguagem, suscitando a curiosidade primária e inadvertida do confronto com o desconhecido. Estes dois domínios criativos expõem-nos a experiências cuja informação é incorporada e racionalizada antes de ter sido processada pela linguagem. Podemos tocar nas coisas e captar a sua essência antes de sermos capazes de falar sobre elas. Porém, a linguagem determina o nível de compreensão pessoal decorrente de cada momento perceptivo; uma experiência sensorial completa envolve apreensão cognitiva e compreensão, sendo que esta última é dependente da linguagem. Os arquitectos que se preocupam em comunicar com o utilizador dos espaços que projectam, procuram colocá-lo no ponto central da experiência com o mundo. Se esta intenção for bem-sucedida, a experiência resultante pode condensar espaço, tempo e conhecimento existencial, na sua configuração pré-verbal. Relativamente à relação entre o corpo e a linguagem, Pallasmaa estabelece um paralelismo entre a enunciação linguística e os gestos físicos, considerando que as categorias da linguagem são criadas por acções intencionais das mãos. Evocando as palavras de Sennet, o autor infere que os verbos derivam dos seus movimentos e os adjectivos modificam os objectos com que interagimos, associando-lhes características humanas: O foco, aqui, incide particularmente na forma como as experiências do toque e do agarrar (...) atribuem à linguagem o seu poder directivo.128 127 Ibid. P.194 128 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009, cit. Richard Sennet, The Craftsman, Yale University Press, New Haven, Connecticut, Londres, 2008. P.180 67 25. John Bulwer, “Chirograma”, 1644. Com o seu livro “Chirologia”, o médico e físico Bulwer contribuiu para o desenvolvimento da linguagem própria da mão, à semelhança de Richard Paget, apresentando diversos gestos manuais associados a letras para facilitar a sua memorização. Existem teorias que consideram que o gesto humano foi o primeiro passo evolucionista da linguagem verbal e escrita.129 Partindo deste princípio, podemos pensar que o poder emocional, o imediatismo e a natureza articulada da expressão gestual reflectem a integridade da constituição humana, assim como a ligação íntima entre o corpo e a mente. Em Silent Language (1975), o neurologista MacDonald Critchley (1900-1997) teorizava sobre a mão enquanto extensão do pensamento: A mão é o vassalo perfeito da mente, e quando, através da idade ou da doença, a conexão entre ambos é interrompida, passam a existir mais alguns testemunhos afectivos da decadência humana.130 Não obstante, em relação à opinião de Critchley, Pallasmaa também encara a mão como extensão do pensamento, porém reforça o seu protagonismo, afirmando que “(...) a mão não é apenas um fiel executor passivo das intenções do cérebro, sendo sim detentora da sua própria intencionalidade, conhecimento e habilidades”.131 Habitualmente, antes de aprenderem os fundamentos e as técnicas básicas da comunicação linguística, as crianças reagem cognitivamente a gestos básicos de ameaça ou carinho. Mesmo os indivíduos que nascem sem o sentido da visão conseguem captar, hapticamente, esta informação dos outros; são capazes de usar expressões faciais e manuais para expressarem os seus sentimentos. Na década de 30, o investigador Sir Richard Paget (1869-1955) desenvolveu uma linguagem baseada em sinais gestuais. Através da combinação de vários posicionamentos do antebraço, braço, pulso e dedos, estimou que se podiam representar cerca de 700.000 sinais distintos. Esta estimativa faz da totalidade do corpo humano uma ferramenta comunicativa mais versátil do que a própria boca, dada a sua relativa parcialidade (fig.25) – a língua inglesa, por exemplo, só tem cerca de 170.000 palavras.132 Evidentemente, não podemos deixar de considerar que a expressão física de um sentimento é mais do que mimética – pode ser algo inerente à nossa condição 129 Influenciado por Darwin, Richard Paget (1869-1955) desenvolveu a “Teoria Ta-Ta”: fundamentalmente, defende que a linguagem começa por ser uma imitação vocal dos movimentos do corpo, ou seja, a acção física precede a fala. Ver também Brian Hare, 60 Minutes – The Smartest Dog in The World, CBS News, 2014. 130 MacDonald Critchley, Silent Language, Butterworth, Londres, 1975. P.22 131 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.12 132 Richard Paget, Human Speech, Routledge e Kegan Paul Ltd, Reino Unido, 1930. 69 26. Pintura rupestre, Caverna de Chauvet, 30.000 a.C. 27. Giotto di Bondone, “Santo Estêvão”, 132025, pormenor. 28. Michelangelo, “Criação de Adão”, 1512, pormenor. 29. Pablo Picasso, “Estudo Guernica”, 1937. humana, transmitindo-se através do código genético,133 ou através de reacções instintivas.134 De qualquer forma, o movimento corporal encontra sempre forma de suprimir as barreiras linguísticas. Este idioma, que é domínio inconsciente do inteligível, pode estar na base da comunicação arquitectónica. 2.2.1. A mão e a linguagem do corpo Como já foi abordado anteriormente, a mão desempenha um papel significativo na experiência perceptiva: não só trabalha enquanto instrumento de aquisição de conhecimento háptico, como também canaliza a expressão das práticas inerentes à acção do corpo. No âmbito da arquitectura, podemos considerar que o exercício de projecto também é o resultado do conhecimento da mão que concebe e desenha. A mão, no decorrer da acção, condensa a fisicalidade e a materialidade do pensamento, vinculando-os a espaços concretos e dando ‘corpo’ às ideias. Segundo Gaston Bachelard, “(…) até a mão tem os seus sonhos e suposições. Ajuda-nos a compreender intimamente a essência da matéria. É por isso que também nos ajuda a imaginar [formas de] matéria”.135 Como será desenvolvido, o instrumento de desenho, na mão dos arquitectos, permite maximizar o potencial comunicativo do corpo. A mão, enquanto extremidade física do corpo, ao desenvolver a competência do desenho, faz do lápis (caneta, pincel, entre outros) uma extensão táctil do seu gesto – o produto resultante da acção da mão sobre a superfície do desenho aparece como uma projecção da mente imaginativa, pois de acordo com Heidegger: Cada movimento da mão carrega-se a si próprio, em cada um dos seus trabalhos, através do elemento do pensamento (...).136 133 A “Teoria Ding-Dong”, desenvolvida pelo linguista Max Müller (1823-1900), declara que todas as coisas têm uma ressonância natural. Nas suas primeiras palavras, o Homem imitou estas vibrações, transformandoas em palavras. (Roy Harris, Origin of Language, Thoemmes Press, Bristol, 1996. P. viii) 134 O linguista contemporâneo Edward Vadja considera a possibilidade da involuntariedade do discurso humano – “Teoria Pooh-Pooh”. Defende que a linguagem e o discurso desenvolveram-se com a interacção humana e as reacções emocionais primitivas. (Roy Harris, Origin of Language, Thoemmes Press, Bristol, 1996. P. 83-115) 135 Gaston Bachelard, Water and Dreams: An Essay on The Imagination of Matter, The Pegasus Foundation, Dallas, Texas, 1982. P.107 136 Martin Heidegger, What Calls for Thinking?, Basic Writings, Harper & Row, Nova Iorque, 1977. P.357 71 Como foi mencionado anteriormente, todos os nossos sentidos ‘pensam’ e estruturam a nossa relação com o mundo, apesar de não estarmos constantemente conscientes desta actividade contínua. Qualquer marca ou reacção provocada por um determinado fenómeno na nossa vida pode ser considerada como aquisição de conhecimento, e este não tem que ser unicamente verbal ou compreensível no domínio do explícito. Tendemos a encarar as nossas mãos como lugares comuns do corpo, quando na verdade se tratam de instrumentos de precisão altamente especializados, cujos movimentos e gestos revelam tanto do carácter de uma pessoa como as suas expressões faciais: As mãos são órgãos genéricos característicos do Homo Sapiens, mas são ao mesmo tempo indivíduos únicos.137 A mão tem o seu papel no comportamento social. Pode actuar de modo hostil e agressivo ou, por outro lado, pode exprimir atitudes graciosas e delicadas. Pode gesticular a rejeição ou a aceitação, bem como a amizade ou a animosidade. Apesar da sua auto-suficiência expressiva, a mão pode, porém, perder momentaneamente a sua independência e individualidade, ao ‘fundir-se’ com um outro corpo que não aquele a que pertence, como Rainer Maria Rilke observou: Uma mão pousada no ombro ou na coxa de outro corpo já não pertence completamente àquele de onde veio: uma nova coisa emerge dele e do objecto que toca ou agarra, uma coisa que não tem nome e não pertence a ninguém, e é esta nova coisa, que tem os seus próprios limites definidos, que interessa desse ponto em diante.138 Segundo Pallasmaa, alguns estudos antropológicos e médicos recentes teorizam que a mão tem vindo a exercer um papel fundamental na evolução da inteligência humana, na linguagem e no pensamento simbólico.139 Se assim for, a versatilidade móvel, a capacidade de aprendizagem e a funcionalidade aparentemente independente da mão, podem não ser resultado do desenvolvimento das capacidades cerebrais humanas. Coloca-se, então, a possibilidade de que a evolução do nosso cérebro pode bem ser consequência da evolução da mão. 137 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.10 138 Rainer Maria Rilke, Auguste Rodin, Archipelago Books, Nova Iorque, 2004, P.44 139 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P..32 72 Pallasmaa defende que, de um modo geral, cada época e cada cultura tem a sua interpretação particular do que é a mão, enquanto símbolo ou ícone. Um exemplo prático consiste na variedade de tipos de mãos que aparecem na pintura figurativa ao longo da História. Não é por acaso que a mão é a parte do corpo humano que aparece ilustrada com mais frequência na simbolização. Desde o Paleolítico que as mãos são representadas nas pinturas rupestres como elementos significativos (figs.26-29). A mão pode ter múltiplos significados no simbolismo colectivo de cada sociedade ou sub-cultura. Geralmente, um aperto de mãos entre dois indivíduos representa uma atitude de concordância, aceitação ou um cumprimento. Por outro lado, elevar verticalmente a mão pode exprimir duas atitudes opostas: na cultura portuguesa, por exemplo, é sinónimo de agradecimento ou de saudação; já na cultura italiana, implica agressividade ou constitui uma atitude insultuosa. No entanto, a individualidade pessoal de cada ser humano também faz com que muitos dos gestos que exprimimos sejam reflexo da nossa personalidade, independentemente da cultura em que crescemos. É verdade que “(…) a mão é uma tabuleta da personalidade; expressa classe social, riqueza, fidelidade, ocupação e associação (…)”,140 mas também “(…) a mão é o único discurso que é natural ao Homem [...] pode bem ser designada de Língua e de linguagem geral da Natureza Humana (...)”.141 140 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.17 141 McDonald Critchley, Silent Language, Butterworth, Londres, 1975. P.14, cit. John Bulwer, Chironomia, 1644. P.14 73 30. Egon Schiele, “Klosterneuburg, Bare Trees and Houses”, 1907. Nas pinturas de Schiele é legível, habitualmente, o efeito da sua auto-projecção. As suas paisagens não só registam as características do lugar por ele percepcionado, como também incorporam o carácter da sua personalidade conturbada. Aqui, Schiele terá projectado nas casas, nas ruas e nas árvores as suas emoções e memórias, sobrecarregando a peça de tons escuros, ocres e cores frias. O resultado final transmite uma certa sensação de decadência, algo muito presente na generalidade da sua obra. 3. A Percepção e a Arquitectura 3.1. Auto-projecção Como expusemos anteriormente, a actividade perceptiva faz-nos acumular, constantemente, conhecimento existencial. Isto implica que tudo aquilo que experienciamos ao longo da vida contribui para a nossa formação enquanto indivíduos, logo, uma prática criativa como a arquitectura não se pode dissociar das vivências inerentes ao seu criador, sendo que estas se manifestam conscientemente ou inconscientemente. A actividade artística envolve a canalização desta informação sensorial no decorrer do acto corporal da criação que materializa a ideia. Assim, o trabalho do arquitecto envolve, inevitavelmente, um processo de auto-projecção. O escritor Jorge Luís Borges (1899-1986) descrevia bem esta condição: Um homem propõe-se à tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.142 Os arquitectos são tanto criadores como experienciadores do espaço, passivamente ou activamente. Quando um arquitecto concebe um projecto, não consegue dissociarse, tacitamente, das suas experiências físicas, mesmo que esteja a idealizar um espaço para outros indivíduos. Por exemplo, Zumthor reconhece o efeito prático que a auto-projecção exerce na sua prática projectual, reflectindo sobre os espaços da sua casa de infância: Naquela cozinha, tudo era como deve ser nas cozinhas tradicionais. Não tinha nada de especial. Mas quem sabe, precisamente por ser, de uma forma quase natural, uma cozinha comum, ficou tão presente na minha memória como símbolo do que é uma cozinha. A atmosfera daquele espaço fundiu-se para sempre com a minha representação do que deve ser uma cozinha.143 Deste modo, podemos considerar que a personalidade e o corpo de quem projecta tornam-se o palco da tarefa projectual, e esta passa a ser vivida em vez de ser 142 Jorge Luís Borges, Obras Completas: 1952 - 1972, Vol.2, Editorial Teorema, Lisboa, 1999. P.231 143 Peter Zumthor, Pensar la Arquitectura, GG, Barcelona, 2010. P.7 75 intelectualmente compreendida. Assim, as ideias emergem, primordialmente, do conhecimento existencial não-conceptualizado, não provindo só da análise intelectual consciente. Em suma, projectamo-nos a nós próprios no trabalho que produzimos: O trabalho (...) em arquitectura (...) é mais um trabalho no eu. Um trabalho na própria interpretação de cada um.144 Pallasmaa defende que as obras de arte e de arquitectura estendem-se na mão humana através do tempo e do espaço. Uma obra particularmente comunicativa pode convidar o visitante a evocar a presença do arquitecto e da sua mão projectista. O espaço arquitectónico, a escala e o detalhe são, inevitavelmente, resultados da auto-projecção do corpo e das mãos do arquitecto: Não estou meramente presente no meu corpo como um marinheiro está presente num navio, mas (...) estou muito próximo da união, e entremeado com este, formamos uma só entidade.145 Do ponto de vista do experienciador do espaço, o fenómeno perceptivo pode implicar, por vezes, a fusão entre o seu eu e o do criador. Nesse momento, o acto artístico é recriado e o visitante apropria-se, inconscientemente, da criação que interpreta hapticamente – esta é a ambivalência da auto-projecção. Projectamonos ao criar e ao experienciar o que outros criaram. Uma obra que potencie esta dinâmica existencial pode apelar à nossa condição humana, reafirmando a nossa posição no mundo que nos rodeia: Ao experienciarmos uma obra de arte, [como um edifício significativo de arquitectura,] sucede-se uma troca curiosa; a obra projecta a sua aura, e nós projectamos as nossas emoções e construções perceptivas na obra. (...) Enigmaticamente, encontramo-nos a nós mesmos no trabalho.146 144 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005, cit. Ludwig Wittgenstein, Culture and Value, University of Chicago Press, 1984. P.24 145 Descartes, 1984–91b, Meditation VI, p. 56 (tradução adaptada): “(…) me non tantum adesse meo corpori ut nauta adest navigio, sed illi arctissime esse conjunctum et quasi permixtum, adeo ut unum quid cum illo componam.” 146 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.68 76 Se pensarmos que a experiência artística relata o contacto entre o indivíduo e o meio em que este se insere, podemos considerar que esta conexão funde o mundo com o eu, assim como o objecto com o sujeito. O trabalho criativo implica uma perspectiva dual, pois foca-se, simultaneamente, no mundo onde intervém e em si próprio. Neste sentido, a comunicação artística redefine o contorno da nossa consciência, sendo uma verdadeira externalização da nossa corporalidade. Intervimos na paisagem assim como a paisagem intervém em nós. Os edifícios potencialmente insensíveis aos sentidos poderão resultar da ausência de reflexão sobre a nossa condição humana, e a forma como nos relacionamos com o espaço. O arquitecto Fernando Távora (1923-2005) incutia esta responsabilidade aos arquitectos em geral, no livro Da Organização do Espaço (1962): A obtenção da harmonia do espaço organizado, resultante afinal da harmonia do homem consigo próprio (…).147 Tal como será abordado no tópico 3.5. Arquitectura e Imagem da presente dissertação, actualmente existe uma vontade de criar edifícios singulares e de excepção – Pallasmaa considera que esta obsessão desviou o nosso discernimento do significado do fenómeno artístico. Os statements arquitectónicos tendem a aparecer como rupturas ou descontinuidades da convenção, sem que exista um entendimento claro e aprofundado de que “(…) das coisas nascem as coisas”, 148 sendo que “(…) os arquitectos não inventam nada, apenas transformam a realidade”.149 Estas duas observações são corroboradas por Pallasmaa, quando explica que a arquitectura pode contribuir para a compreensão da História e da continuidade temporal da condição cultural humana. O autor reforça ainda que a educação tem o dever de cultivar e apoiar as capacidades humanas da imaginação e da empatia. Independentemente do campo criativo, a educação pode instigar o questionamento dos absolutismos do mundo em que vivemos e sensibilizar-nos para a consciencialização dos nossos limites, tal como afirmava Távora: 147 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P.46 148 Bruno Munari, Da Cosa Nasce Cosa, Lisboa, Edições 70, 1981. 149 Álvaro Siza, Architecture Writings, Milão, Skira, 1997. P.34 77 31. Alberto Giacometti a trabalhar, 1958. 32. Jackson Pollock a trabalhar, 1950. (…) apresenta-se a educação como um dos meios que hoje se oferecem para integrar, para unificar, para reestruturar o caos em que o homem e a sua sociedade se encontram (…) a educação «não é apenas uma parte integrante do sistema social», mas «a grande fonte da sua força ou da sua fraqueza».150 3.2. Corpo, Pensamento e Ferramenta Retomando a questão da ferramenta funcionar como uma extensão da mão que altera as suas capacidades naturais, quando esta segura, por exemplo, um martelo e o corpo inicia o acto de martelar, pode-se supor que a mão se torna o martelo em si; a distinção entre as duas partes (objecto e corpo) dissolve-se na acção. É como se a mão e o pensamento unissem as suas determinações próprias em prol da tarefa em curso. Merleau-Ponty descrevia esta relação do seguinte modo: As coisas são anexos ou prolongamentos (...) [do corpo]; estão encrustados na sua carne, e fazem parte da sua definição completa; o mundo é feito do mesmo material que o corpo.151 A complexidade do desempenho das ferramentas pode variar de acordo com o tipo de objectos utilizados por uma mão, duas mãos, ou o corpo na sua totalidade. Do mesmo modo que a barreira entre mão e martelo se dissolve na acção de martelar, um instrumento musical pode fundir-se com o corpo do seu instrumentista, bem como um pincel pode expressar a intenção corporal do pintor que o utiliza. Se assim for, estes instrumentos tornam-se algo mais do que objectos puramente físicos e neutros (figs.31-32). Adicionalmente, tal como já foi mencionado, a ferramenta está associada a um legado histórico, e cada utilização comporta esta característica. Como sugere Pallasmaa, as “(...) ferramentas não são inocentes (...). Afirmar que os propósitos de desenhar um projecto arquitectónico com carvão, lápis, caneta ou rato de computador são iguais, é não compreender, completamente, a essência da união da mão, ferramenta e mente”.152 150 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006, cit. H. C. Dent, Education in Transition, Londres, 1944. P. IX 151 Maurice Merleau-Ponty, Basic Writtings, Taylor & Francis, Londres, 2003. P.295 152 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.39 79 À semelhança da mão humana, a ferramenta é genérica e específica em simultâneo. O desempenho e a configuração da ferramenta reflectem, inevitavelmente, uma determinada atitude cultural relativamente ao trabalho e ao seu valor social, sendo que o contexto em que esta surge é relevante para a sua caracterização.153 Comparativamente, à semelhança da ferramenta, a arquitectura também é profundamente influenciada pelo contexto em que se insere e não deve ser dissociada deste: Os edifícios (...) perfeitamente adaptados aos seus contextos e requerimentos funcionais, e precisamente expressivos das condições climatéricas e da sua essência estrutural e material, sem qualquer intenção estetizante arbitrária – tornam-se numa espécie de ferramenta arquitectónica com a mesma inevitabilidade e beleza das ferramentas dos ofícios.154 Segundo Pallasmaa, é possível notar-se que a procura pela tradição da manualidade artesanal tem vindo a aumentar, adquirindo mais valor e apreciação no mundo actual, marcado pela produção mecanizada. Isto implica que começa a existir um interesse comercial nos produtos artesanais, por estes incorporarem uma qualidade inerente à produção manual. O autor incorre que “(…) em culturas tradicionais, o mundo inteiro da vida é produto de mãos humanas, e a esfera diária do trabalho e da vida significa uma passagem interminável de habilidades manuais e dos seus produtos para os outros (...)”.155 Embora a produção standard ainda prevaleça, a perda lamentável do toque da mão humana nos produtos produzidos em massa começa a ser socialmente reconhecida. Existe uma grande quantidade de habilidades e de armazenamento de conhecimento não verbalizado no mundo, no âmbito de culturas distintas que devem ser mantidas e preservadas, de acordo com Pallasmaa. As práticas tradicionais cumulativas da mão humana, inerentes a estas culturas, acarretam o legado das capacidades primordiais de sobrevivência do ser humano.156 Esta realidade informa-nos relativamente ao potencial da manualidade. Richard Sennet afirma que qualquer ofício manual ou actividade física especializados 153 Idem. P.48-49 154 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.49 155 Idem. P.55 156 Idem. P.52 80 requerem cerca de dez mil horas de prática, de modo a que o indivíduo que as executa seja capaz de o fazer com mestria: Em estudos de compositores, jogadores de basquetebol, escritores de ficção, patinadores do gelo (…) este número surge constantemente.157 Incorre-se, então, que a competência manual desenvolve-se por via do treino físico e mental, da experiência, do empenho pessoal e da auto- crítica, dado que “(…) nós somos o que repetidamente fazemos, por isso excelência não é um acto, mas um hábito”.158 Isto implica que a prática regular de uma determinada actividade treina a nossa memória háptica e muscular. Um artesão experiente pode aprimorar a capacidade de conduzir um diálogo entre a prática concreta do fazer e do pensamento, por força do hábito e da disciplina. Assim, o diálogo pode evoluir para um processo de trabalho optimizado que estabeleça um ritmo entre a solução e a procura de problemas. Em adição ao uso da ferramenta, o treino manual envolve a imaginação, pois “(…) projecta uma intencionalidade determinada e uma visão imaginada da tarefa concluída”.159 Sennet explica a ponte entre gesto e pensamento: Primeiro, todas as habilidades, mesmo as mais abstractas, começam como práticas corporais; segundo, a compreensão técnica desenvolve-se através dos poderes da imaginação (…).160 A optimização do trabalho do artesão pode passar pelo desenvolvimento das relações específicas entre o pensamento e a acção, a ideia e a execução, a realização e a matéria, a aprendizagem e o desempenho, a identidade pessoal e o trabalho, o orgulho e a humildade. Podemos, então, supor que o artesanato envolve a internalização da natureza da ferramenta utilizada; o próprio artesão pode tornar-se, assim, no seu produto final: Cada confirmação ou negação leva-nos mais perto do objecto, até que, finalmente, nos encontramos dentro dele: os contornos desenhados já não marcam os limites do que vimos, mas sim os limites daquilo em que nos tornámos.161 157 Richard Sennett, The Craftsman, Yale University Press, New Haven, Conneticut, Londres, 2008. P.172 158 Will Durant, The Story of Philosophy: The Lives and Opinions of the World’s Greatest Philosophers, Simon & Schuster, Pocket Books, Nova Iorque, 1991. P.11 159 Juhani Pallasmaa, Is Drawing Dead? – The Voice of Drawing: History, Meaning and Resistance, Pt.2, Simpósio, Yale, 2011. 160 Richard Sennett, The Craftsman, Yale University Press, New Haven, Conneticut, Londres, 2008. P.35 161 John Berger, Berger on Drawing, Occasional Press, Aghabullogue Co. Cork, Irelanda, 2007. P.3 81 33. Le Corbusier, “Igreja de Santa Maria de La Tourette”, 1956-60. A espacialidade e materialidade desta obra expressam tranquilidade e inspiram momentos de reflexão, convidando o corpo a um contacto multissensorial com a sua dimensão física. Nos dias de hoje, a produção em série implica um planeamento prévio e mecanizado que, geralmente, não permite o mesmo empirismo e plasticidade da produção manual, dado que a sua eficiência depende de um certo automatismo de execução. Isto implica que assim que se inicia o fabrico de um produto, é difícil alterar as suas configurações premeditadas. Por outro lado, a vantagem do processo de trabalho inerente ao artesanato permite que se comande e se sinta o material em todas as fases da execução do objecto, havendo maior liberdade de controlo e edição sobre este. Podemos supor que o trabalho dos arquitectos se enquadra entre estes dois domínios, equilibrando um processo mais mecanizado e técnico, para dar resposta eficiente às necessidades construtivas e das especialidades intervenientes na obra, com uma abordagem que promova mais a manualidade e a auto-projecção, procurando não descurar a relação sensorial que a arquitectura consegue estabelecer com o ser humano e o mundo que o rodeia (fig.33). Encontrar um equilíbrio entre razão e emoção durante a execução manual de uma determinada tarefa pode ser, na verdade, o objectivo mais difícil de cumprir para o executante. Dedicarmo-nos, intensivamente, a um determinado ofício pode ser o caminho natural para ir de encontro à relação ideal entre executante e execução. Porém, tal como indica Pallasmaa, a falta de reflexão ao longo deste percurso pode conduzir-nos a resultados falaciosos. O conhecimento háptico implica uma prática decorrente do nosso percurso existencial, mas também exige pausa e reflexão, caso contrário a prática corre o risco de se tornar demasiado mecanizada e sensorialmente inexpressiva. Segundo o autor, experienciar ‘momentos de aborrecimento’ nos primeiros anos da infância, pode instigar a imaginação e a observação independente e auto-motivada. O autor descreve a sua experiência pessoal face a este assunto, afirmando: Tornei-me grato pelo sentido de curiosidade e de fome por observação evocados pela ausência de estímulos precoces, deliberadamente programados e dirigidos a mim por terceiros.162 O físico David Bohm (1917-1992) e o filósofo Jiddu Krishnamurti (1895-1986), também abordaram esta questão nas suas discussões amigáveis, registadas no livro The Limits of Thought (1999), afirmando que a condição de reflexão, abordada 162 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.37 83 34. Superbrothers, “Sword & Sworcery EP”, 2011. Tanto este videojogo como o representado na figura 35 permitem-nos visitar mundos virtuais sensorialmente sugestivos, em que a materialidade dos objectos e a ambiência dos lugares apelam aos nossos sentidos. Ambos levam o visitante a evocar as memórias hápticas arquivadas no corpo para os poder experienciar na totalidade. 35. Ustwo, “Monument Valley”, 2014. por Pallasmaa, também faz com que os indivíduos se apercebam de causalidades essenciais entre aquilo que os rodeia.163 A estimulação ocular em excesso a que somos sujeitos desde que nascemos pode restringir, precocemente, a nossa capacidade imaginativa e inventiva, condicionando a procura da nossa identidade. Na vida quotidiana, actividades que não impliquem um envolvimento do corpo podem produzir reacções hapticamente pobres, não apelando, tendencialmente, à multissensorialidade. Um exemplo disso, é a interacção excessiva com o computador, que apesar das suas vantagens operativas, não deixa de ser um instrumento que se interpõe entre o corpo e a fisicalidade das coisas no decorrer da acção. Não se quer com isto dizer que certas representações artísticas existentes no domínio virtual não possam estimular os nossos sentidos. De um modo geral, estimulam a visão e, potencialmente, os outros sentidos por sinestesia. A transmissão visual de imagens em movimento, através de filmes, videojogos e renderizações de espaços arquitectónicos projectados com sensibilidade, também pode apelar aos nossos sentidos, levando-nos à reflexão e à indagação (figs.3435). Podemos, então, constatar que estamos fisicamente equipados para captar informação sensorial a partir das mais variadas fontes, inclusive do domínio virtual. Porém, é importante não perder o nosso enraizamento natural com a fisicalidade do mundo em que nos inserimos. 3.2.1. O computador e a manualidade Actualmente, o uso do computador é praticamente imprescindível não só no campo da arquitectura, mas também em muitas práticas profissionais e não profissionais do nosso quotidiano. É impossível negar os benefícios e a praticabilidade que as ‘novas’ tecnologias nos trouxeram e têm vindo a trazer, podendo destacar a velocidade de cálculo, o rigor e a precisão matemática. No entanto, da mesma forma que reconhecemos as vantagens dos meios digitais enquanto ferramentas, temos também que considerar as suas limitações. Identificar as condicionantes que a tecnologia pode implicar no processo perceptivo e na dinâmica sensorial, no âmbito da prática da arquitectura, é fundamental. 163 David Bohm, Jiddu Krishnamurti, The Limits of Thought: Discussions, Routledge, Nova Iorque, 1999. P.7 85 O computador é, de facto, uma ferramenta de precisão e rapidez, na medida em que “(…) tem sido bem usada em análises, testes e em protótipos virtuais que precedem a construção do edifício”.164 Também auxilia na produção de desenhos rigorosos para a execução física das obras, na transmissão de informação através de ficheiros digitais, e nos cálculos técnicos de engenharia inerentes ao projecto, bem como noutras situações. Este instrumento tem vindo a permitir que os arquitectos possam superar os seus limites operativos. A inclusão da modelação 3D e de CAD165 tem influenciado, significativamente, o processo de conceptualização e de produção projectual, facilitando o imediatismo da modulação e do desenho das formas, assim como a rapidez da execução. Porém, quando utilizamos o computador como ferramenta de extensão do pensamento não existe, habitualmente, ligação háptica entre a mão, o meio utilizado e o objecto criado. A imagética induzida pelas operações executadas por computador ocorrem num mundo matematizado, abstracto e imaterial: [O] uso do computador quebrou a conexão sensual e táctil entre imaginação e desenho do objecto.166 Pallasmaa afirma que é importante ter em conta que a precisão e abstracção virtuais, próprias do computador, se opõem à hesitação inata da mão pensante que, através da tentativa e do erro e da conquista gradual pela certeza, atinge uma solução potencialmente satisfatória. O autor considera que o confronto entre o incerto, o vago e o rigor do pensamento e da emoção, é fundamental para o processo criativo dos arquitectos. Procurar promover a consciencialização da importância da dúvida e da incerteza no desenvolvimento do projecto, pode fortalecer a relação entre a actividade projectual e a nossa condição humana: Em qualquer campo criativo, o processo de desaprender é tão importante quanto aprender, esquecer tão importante quanto lembrar, incerteza tão importante quanto certeza.167 164 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.84 165 Computer Aided Design. 166 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.54 167 Idem. P.12 86 Projectos de arquitectura em que o uso do computador dita o rumo do trabalho por inteiro, podem resultar em objectos que seduzem o olhar e aparentam uma superfície atraente. Porém, devemos ter em conta que as suas qualidades existem num mundo em que o observador não tem pele, mãos ou corpo, o mundo no qual foi projectado. Ou seja, no processo de concepção, o arquitecto pode perder a relação com a fisicalidade da obra que desenvolve, pois como sugere Pallasmaa, os “(…) desenhos de computador são instrumentos para um observador sem corpo”.168 Tal como foi mencionado anteriormente, o computador pode ser encarado como uma ferramenta de exposição e comunicação rigorosa da informação e de auxílio à concepção projectual mas, no entanto, este não deverá toldar a imaginação e a idealização criativa. Utilizar, a priori, a mão como receptáculo do pensamento e catalisadora do conhecimento corpóreo, especialmente nas primeiras fases do projecto de arquitectura, pode ajudar a garantir um envolvimento holístico da nossa fisicalidade e facilitar o processo de auto-projecção. Por conseguinte, é importante evitar que a obra concebida resulte numa viagem exclusiva da retina em que o arquitecto e o visitante sejam meros observadores não participantes na experiência do espaço. Complementarmente ao uso do computador, podemos apresentar o “desenho de concepção” (figs.36-37)169 e a “maqueta” (fig.38)170 enquanto instrumentos que promovem a manualidade. Estes têm a vantagem de serem moldados no mesmo mundo físico que o objecto material e os arquitectos integram. Esta fisicalidade comum, se considerada, pode potenciar um desenvolvimento projectual mais multissensorial. Pallasmaa estabelece uma relação directa entre a materialização da arquitectura e a maqueta física, explicando que este instrumento de trabalho comunica com a mão e com o olhar de modo equilibrado, e o próprio processo da sua construção evoca, de certo modo, o processo de construção da obra em contexto real. 168 Ibid. P.46 169 Por “Desenho de Concepção”, no contexto desta dissertação, entende-se o processo de registo gráfico manual de concepção utilizado no âmbito de trabalho do arquitecto, em oposição ao “Desenho de Comunicação”, destinado a apresentar e a comunicar a informação relativa ao projecto. O primeiro tipo de desenho é um instrumento de auxílio para o próprio arquitecto, cujo resultado gráfico não tem, necessariamente, que ser compreendido por outros; já o segundo tipo pressupõe, especialmente, uma comunicação clara com terceiros. 170 No contexto desta dissertação, o termo “Maqueta” refere-se à reprodução tridimensional de um determinado projecto de arquitectura, ou parte deste, que se traduz num modelo físico que pode ser executado a diferentes escalas. 87 36. Álvaro Siza, “Edifício da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto”, 2003. O “desenho de concepção” é um instrumento recorrente no processo de trabalho de Siza, que o usa para explorar graficamente formas, volumetrias e configurações espaciais. Nas suas folhas de projecto é habitual encontrar esquissos de obras em desenvolvimento intercalados com registos de outras temáticas, como rostos ou animais, demonstrando a potencialidade do desenho enquanto instrumento de projecção da informação sensorial arquivada no corpo por via da mão. 37. Frank Lloyd Wright, “Casa Hollyhock”, 1919-21. Em oposição ao “desenho de concepção”, o “desenho de comunicação” é destinado a transmitir, clara e rigorosamente, informação projectual relativa à obra a terceiros. 38. Frank Gehry em “Sketches of Frank Gehry” de Sydney Pollack, 2006. O computador desempenha um papel importante na actividade projectual de Gehry, mas o arquitecto mantém o seu processo de trabalho enraizado no mundo físico através do uso frequente de maquetas e de desenho, garantindo, assim, a influência da sensibilidade manual na sua arquitectura. As maquetas são utilizadas para diversos propósitos: podem ser uma representação esquemática ou analítica da essência de uma ideia ou de um conceito; podem ser um meio de pensamento e um instrumento de trabalho para concretizar ou clarificar ideias; podem ser, também, uma ferramenta de apresentação ao cliente ou aos indivíduos das outras especializações envolvidos no projecto. As maquetas também são usadas para estudar aspectos específicos do projecto de arquitectura, tais como a iluminação, a acústica e a pormenorização. A maqueta concretiza e materializa ideias, tais como a diminuição da escala e a externalização do observador, convidando e permitindo a identificação e a crítica de aspectos que poderiam deixar de ser observados se o modelo físico não existisse. Segundo Pallasmaa, quando um determinado arquitecto produz um desenho consequente da sua imaginação, não se concentra nas linhas do desenho em si; visiona o objecto no espaço, ocupando a própria estrutura que as linhas do desenho representam. Como consequência da transferência do conceito para o domínio físico e material, através do desenho e da maqueta, as imagens que o arquitecto vai editando e conceptualizando são mais do que visualizações virtuais – estas imagens constituem uma realidade inteiramente háptica e multissensorial da imaginação. Um arquitecto pode desenvolver, assim, a capacidade de se mover livremente no espaço imaginado, independentemente da sua complexidade ou tamanho, e de compreender sensivelmente a sua materialidade e textura. Em geral, as simulações assistidas por computador não requerem a afinação desta competência imaginativa - que implica experienciar hapticamente os espaços que conceptualizamos - já que tendem a visualizar por nós: [As] imagens do computador tendem a achatar a magnífica, multissensorial e sincrónica capacidade da imaginação, ao tornarem o processo projectual numa manipulação visual passiva, num estudo da retina.171 Pressupõe-se, então, que quando desenhamos à mão, é como se esta seguisse os contornos, as formas e os padrões do objecto idealizado. Em contrapartida, quando usamos a mão para desenhar no computador, esta selecciona as linhas a partir de um grupo de símbolos que não têm qualquer relação analógica com o objecto desenhado. Com um lápis (ou um meio riscador semelhante), a mão pode moldar, 171 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.86 89 39. Salvador Dalí, “A Persistência da Memória”, 1931. O pintor surrealista representa, neste trabalho, a passagem do tempo nos lugares percepcionáveis nos sonhos. Os relógios moles simbolizam o tempo a arrastar-se, a deter-se, perdendo a sua habitual linearidade aparente. Podemos fazer uma ponte para a arquitectura, aludindo à potencialidade do espaço para influenciar a nossa experiência do tempo. por mimésis, as linhas, as sombras e os tons; com um rato de computador, o desenho torna-se uma construção mediada: O computador cria distância entre o criador e o objecto, enquanto o desenho à mão ou a construção de uma maqueta colocam o desenhador em contacto háptico com o objecto ou espaço.172 O processo mecanizado do desenho tende, também, a induzir uma observação fragmentada e descontínua sobre a totalidade do objecto produzido. A utilização do zoom, ferramenta própria do manuseamento de software 3D e CAD, pode fazer-nos perder a noção de escala muito facilmente. O nível de detalhe deve ser consequente da fase de desenvolvimento do projecto, e não o contrário; o zoom pode tendenciar um nível de detalhe excessivo, ou mesmo propiciar um processo que parte do particular para o geral, algo que pode prejudicar a coesão do produto final. Devemos ainda considerar, que quem executa e constrói o projecto idealizado pelos arquitectos são, habitualmente, peritos de outras especialidades. Consequentemente, é importante que os arquitectos compreendam as possibilidades e as limitações dos materiais, e os procedimentos relativos a cada ofício, comunicando claramente as suas ideias e intenções àqueles cujas mãos serão a extensão da intenção do projectista na execução do trabalho. Dominar um ofício pode ajudar os arquitectos a apreender as nuances de outros modos de operar e, mais do que isso, fazer com que respeitem a habilidade e a experiência daqueles que executam os seus projectos. 3.3. Tempo e Espaço Partindo do princípio, exposto nos pontos anteriores, de que os sentidos são a nossa porta de contacto com o mundo a que pertencemos, podemos estabelecer uma ponte para a arquitectura, considerando que esta é fruto da intervenção interpretativa do ser humano no meio. A experiência perceptiva protagoniza esta dinâmica. No domínio artístico, a arquitectura assume um compromisso com as questões metafísicas do eu e do mundo, da interioridade e da exterioridade, do tempo e do espaço, assim como da vida e da morte: “(…) expressa e relaciona a condição existencial do 172 Ibid. 91 40. Dubai, Emirados Árabes Unidos, 1990. O óbvio contraste entre esta figura e a 41 testemunha a velocidade de crescimento de uma cidade em que a estimulação ocular e o impacto visual desempenharam, e continuam a desempenhar, um papel dominador na materialização de muitos dos seus edifícios. 41. Dubai, Emirados Árabes Unidos, estado actual. homem no mundo”.173 Por esta mesma razão, Pallasmaa defende que a arquitectura é o instrumento primário que nos permite relacionar, hapticamente, com o espaço e com o tempo, atribuindo a estas dimensões uma escala humana. No livro The Condition of Postmodernity (1992), o antropólogo David Harvey salienta que “(…) as práticas estéticas e culturais são particularmente susceptíveis à experiência da alteração do tempo e do espaço, precisamente porque vinculam a construção das representações espaciais e dos artefactos à fluência da experiência humana”.174 Se encararmos a arquitectura como uma espécie de enraizamento cultural na continuidade do tempo, podemos então considerar que esta “(…) domestica o espaço sem limites e permite-nos habitá-lo, mas também deve, da mesma forma, domesticar a infinitude do tempo, permitindo-nos habitar a sua continuidade”.175 Deste modo, podemos discernir que, como consequência da interdependência entre o espaço e o tempo, as dialécticas entre espaço externo e interno, material e mental, consciente e inconsciente, são prioridades relativas aos sentidos, tendo um impacto essencial na concepção da arte e da arquitectura. A arquitectura tem, por isso, a capacidade de nos emancipar do presente, caso consiga retratar o envelhecimento cultural através dos “(…) edifícios e cidades que são instrumentos e museus do tempo”:176 O tempo da arquitectura é um tempo detido; no mais grandioso dos edifícios o tempo permanece firmemente quieto.177 Paul Virilio, filósofo e arquitecto, afirma que as máquinas e a tecnologia, desde o automóvel ao computador, transformaram a nossa relação visual com o mundo circundante, impondo a sua própria espacialidade e temporalidade. Segundo o autor, esta nova condição tem consequências no acto perceptivo.178 Retomando o 173 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.16 174 David Harvey, The Condition of Postmodernity: An Enquiry Into the Origins of Cultural Change, Blackwell, Cambridge, 1992. P.327 175 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.32 176 Idem. P.52 177 Idem. 178 Paul Virilio, Speed and Politics, Semiotext(e), Cambridge, Massachusetts, Londres, 2006. 93 42. San Gimignano, Itália, estado actual. Em cidades como San Gimignano e Siena (fig.43), a expressividade das superfícies que configuram os espaços e que comportam a história e o efeito da passagem do tempo nos materiais contribui para uma ambiência sensorialmente sugestiva, apelando a um contacto multissensorial. 43. Siena, Itália, estado actual. tópico da crítica à hegemonia da visão, exposto anteriormente, Pallasmaa defende que as cidades contemporâneas revelam uma certa inumanidade arquitectónica que pode ser compreendida como consequência da negligência do corpo e dos sentidos por parte de quem as projecta. Podemos, inclusive, pensar que, hoje em dia, as experiências do espaço e do tempo tendem a confundir-se entre si como consequência da velocidade a que a informação se processa, bem como do ritmo acelerado com que vivemos o quotidiano, auxiliados por equipamentos tecnológicos. Com base nesta premissa, podemos incorrer que a vida acelerada pode despertar a necessidade de provocar e estimular o olho através da imagem instantânea, apelando ao destaque pela diferença, em vez de dar continuidade à criação de edifícios que exprimam o envelhecimento da humanidade e que permitam a fruição pausada do seu tempo. A visão é, por sinal, o sentido humano que melhor acompanha o mundo actual da comunicação instantânea, da rapidez e da mobilidade (figs.40-41). Deste modo, é lógico pressupor que a estrutura sensorial do nosso corpo se altere para se adequar a esta realidade, gerando um impacto na concepção e interpretação da arquitectura. No ensaio Architecture and the Body (2011), Pérez-Gómez faz uma observação crítica ao diálogo entre espaço-tempo-corpo, explicando que as velocidades a que somos capazes de deslocar os nossos corpos físicos e mentais transformam, de facto, o entendimento pessoal do mundo, mas é graças à nossa consciência incorporada que compreendemos o domínio virtual.179 O compromisso da nossa existência física num mundo regido pelas leis da gravidade faz-nos compreender a nossa posição no espaço através da consciência incorporada. No fundo, esta caracteriza a nossa capacidade de armazenar informação sensorial, fazendo do corpo uma entidade conhecedora. 3.4. Materialidade e Tempo De modo a compreendermos melhor a questão da influência do tempo na percepção cognitiva, devemos reflectir também sobre a questão da materialidade, pois é esta que erige o corpo físico da arquitectura. No livro The Eyes of the Skin (1996), Pallasmaa critica a ‘insipidez’ da construção standard actual, afirmando que esta 179 Alberto Pérez-Gómez, “Chapter 29: Architecture and The Body”, in Art and The Senses, Francesca Bacci, David Melcher, Oxford University Press, Nova Iorque, 2011. P.575 95 44. Andrea Palladio, “Igreja de San Giorgio Maggiore”, 1566-1610. 45. Andrea Palladio, “Igreja de San Giorgio Maggiore”, 1566-1610. carece de um “sentido de materialidade”.180 Segundo a sua perspectiva, a superfície dos materiais provenientes da Natureza (tais como a pedra, a madeira e o tijolo), possui uma textura aliciante à nossa sensibilidade háptica que dá verosimilidade à matéria percepcionada. Os materiais naturais não só reflectem a sua idade e história inerente como também expressam a sua origem e a forma como o ser humano os tem vindo a utilizar (figs.42-43). As superfícies e os volumes dos edifícios construídos de acordo com estes princípios reflectem, potencialmente, a nossa humanidade. O autor critica, paralelamente, a expressão física dos edifícios contemporâneos que são construídos com matérias não naturais ou artificializadas, afirmando que “(…) as folhas de vidro sem escala, os metais esmaltados e os plásticos sintéticos – tendem a apresentar ao olho as suas superfícies inflexíveis, sem transmitir a sua essência material ou idade”.181 Como consequência desta materialidade característica da nossa era transformada pela tecnologia e pela pré-fabricação, o autor incorre também que este tipo de construção “(…) não incorpora a dimensão do tempo, ou o inevitável e mentalmente significativo processo do envelhecimento”.182 Afirma, ainda, que “(…) este receio dos traços do uso e da idade está relacionado com o nosso medo da morte”.183 Deste modo, pode-se considerar que a pátina do uso faz com que a experiência do tempo aplicada aos materiais de construção da arquitectura seja, na verdade, enriquecedora e apelativa aos sentidos. Um dos arquitectos da actualidade que explora a aplicabilidade prática dos materiais utilizados na conceptualização física da arquitectura é Peter Zumthor. No livro Atmospheres (2006), o autor explica de que modo podemos tirar partido da plasticidade da matéria, e como é que esta pode ser variadamente combinada se conhecermos as suas propriedades e características: Os materiais reagem entre si e possuem radiância; assim, a sua combinação dá origem a algo único. O material é infinito. Peguem numa pedra: podem vê-la, moê-la, furá-la, dividi-la, ou poli-la – tornar-se-á uma coisa diferente em cada uma das vezes.184 180 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.31 181 Idem. P.32 182 Idem. 183 Idem. 184 Peter Zumthor, Atmospheres: Architectural Environments, Surrounding Objects, Birkhäuser, 2006. P.26|27 97 46. Moradavaga, “Torre Vira-lata”, 2015. 47. Moradavaga, “Torre Vira-lata”, 2015. A título de exemplo, Zumthor menciona, ainda, Andrea Palladio (1508-1580) como um arquitecto exemplar no que diz respeito ao conhecimento do peso e da presença dos materiais. A sensibilidade de Palladio relativamente às características da matéria era tal que, segundo Zumthor, as suas obras possuem uma “energia atmosférica” única e singular (figs.44-45). Contrariamente à atitude de Zumthor, o escultor, pintor e fotógrafo Constantin Brâncuși (1876-1957), considerava que os materiais não são manipuláveis com base na nossa vontade própria, mas corrobora o princípio de respeito que devemos ter para com estes, dado que nos ajudam a compreender o mundo táctil que nos rodeia, e já que apenas compreendendo as suas dinâmicas próprias podemos aprender a maximizar o seu potencial expressivo: Não conseguimos fazer o que queremos fazer, mas sim o que o material nos permite fazer (…) não devemos tentar forçar os materiais a falar a nossa linguagem, devemos acompanhá-los até ao ponto em que outros entenderão a sua linguagem própria.185 Brâncuși acreditava que os materiais possuíam a sua linguagem própria e, por isso, o minimalismo figurativo da sua arte procurava dar protagonismo à ideia mental comunicada através da expressividade material na obra artística. Podemos, então, inferir que os materiais são o idioma mais sensorialmente eloquente e sugestivo que os arquitectos têm ao seu alcance para comunicar com aqueles que vão percepcionar as suas obras construídas. Por isso mesmo, é importante reflectir sobre a forma como os utilizamos na arquitectura e em que ponto de situação nos encontramos, actualmente, face a esta condição, uma vez que os materiais não são neutros na experiência perceptiva. Não obstante as observações mencionadas, não devemos desconsiderar que também existem arquitectos contemporâneos bem-sucedidos na criação de obras que comunicam hapticamente com os nossos sentidos através da utilização de materiais que Pallasmaa, habitualmente, indicaria como sendo inexpressivos, por não envelhecerem com o tempo do mesmo modo que os materiais naturais. Um exemplo prático deste tipo de abordagem é a Torre Vira-Lata (2015), dos Moradavaga, colectiva dos arquitectos Manfred Eccli e Pedro Cavaco Leitão (figs.46-47). Integrado num projecto de requalificação urbana que pretende converter um antigo 185 Constantin Brâncuși in Eric Shanes, Constantin Brancusi, Abbeville Press, Nova Iorque, 1989. P.106 99 48. Pirâmides de Gizé, Cairo, Egipto, estado actual. As fotografias consistem sempre em registos pessoais e interpretativos da verdade perceptível, e as imagens resultantes apenas transmitem uma parte desta. O confronto entre esta figura e a 49 transmite-nos noções completamente distintas relativamente ao lugar fotografado, e nenhuma das duas substitui a experiência presencial do mesmo. 49. Pirâmides de Gizé, Cairo, Egipto, estado actual. parque de estacionamento de camionetas, numa praça cultural adjudicada à estação de comboios de São Bento (Porto, Portugal), os autores propuseram um elemento vertical que ligasse o nível da nova praça à rua que passa acima desta, projectando uma torre “lúdica e funcional”.186 Segundo a descrição do projecto, criaram uma obra interactiva, através de “(…) um sistema de duas cores diferentes – o amarelo das carruagens de comboio e a cor das latas de metal (…)”, dando aos transeuntes “(…) a possibilidade de criar mensagens e imagens pessoais e originais – ao virar cada lata como se se tratasse de um ecrã massivo de pixéis (…) os utilizadores podem participar activamente na constante mutação da imagem da praça”.187 3.5. Arquitectura e Imagem Como abordamos anteriormente, a hegemonia da visão influencia, significativamente, o processo perceptivo, colocando-o sob o domínio da imagem. Bohm e Krishnamurti discutiram a relação entre os conceitos de “realidade” e de “verdade”, concluindo que ambos dizem respeito a domínios distintos. Para os autores, a realidade referese àquilo que inferimos da verdade, sendo que a primeira envolve o processo perceptivo, individual e subjectivo, enquanto a segunda compreende o mundo físico que nos rodeia, tal como é.188 Bohm explica que “(…) o observador e o observado não podem ser dissociados, pois a sua relação é necessária para o entendimento fundamental das leis da matéria em geral”.189 Se associarmos estes conceitos à ideia de “visual” e de “visível”,190 podemos sugerir uma relação entre a “realidade” e o “visual”, e a “verdade” e o “visível”. Assim, podemos considerar que a hegemonia da visão tem mais que ver com o domínio da realidade e do visual, ou seja, da nossa interpretação da verdade das coisas visíveis. Segundo este raciocínio, a “imagem”191 surge como o produto deste processo pessoal de escrutínio do mundo, sendo resultado de uma determinada realidade que ao ser visualizada por outros, pode produzir, respectivamente, diferentes realidades singulares (figs.48-49). 186 Manfred Eccli, Pedro Cavaco Leitão, descrição do projecto Vira-Lata, em moradavaga.com/VIRA-LATA 187 Idem. 188 David Bohm, Jiddu Krishnamurti, The Limits of Thought: Discussions, Routledge, Nova Iorque, 1999. P.10-38 189 Idem. P.6 190 “Visual” deriva do Latim visualis, referindo-se à visão e à imagem exterior de algo; “Visível”, por sua vez, deriva do Latim visibilis, e diz respeito a algo que é perceptível e que pode ser visto sem admissão de dúvida. 191 Ver nota de rodapé 24. 101 Talvez uma experiência multissensorial eficaz permita que a realidade formada no nosso entendimento se aproxime mais da verdade, já que um processo puramente visual dificilmente nos informará sobre o visível. No seguimento desta lógica, a arquitectura, por sua vez, quando materializada e dada a sua componente física, poderá passar a pertencer ao domínio do visível e verdadeiro: [O] poder da obra pode tornar-se tão forte que deixe de ser simplesmente um alvo excêntrico. Pode assumir-se como centro principal, aparentemente governando a sua própria estrutura, independente do observador, que ficou imerso no objecto, esquecido da sua própria existência como entidade exterior.192 Segundo Pallasmaa, a invenção da representação perspéctica fez do olho o ponto central do mundo percepcionado e, consequentemente, centralizou a nossa noção de “eu”.193 Deste modo, a representação da perspectiva transformou-se numa forma simbólica que é mais do que descritiva, condicionando a percepção individual. Segundo o autor, a dominância do olho e a supressão dos outros sentidos tende a desligar-nos do mundo e a ceder ao isolamento e à exterioridade: O design modernista albergou o intelecto e o olho, porém, deixou o corpo e os outros sentidos, assim como as nossas memórias, imaginação e sonhos, sem casa.194 O trabalho dos filósofos Martin Heidegger (1889-1976), Michel Foucault (19261984) e Jacques Derrida (1930-2004) é mencionado por Pallasmaa para sustentar que o pensamento e a cultura moderna não só privilegiaram historicamente a visão, como reforçaram as suas influências tendenciosas e subjectivas.195 Evocando as palavras de Heidegger, podemos considerar que o ocularcentrismo é actualmente agravado pela multitude de invenções tecnológicas, assim como a produção excessiva de imagens: O evento fundamental da era moderna é a conquista do mundo enquanto imagem.196 192 Rudolf Arnheim, O Poder do Centro. Um Estudo da Composição nas Artes Visuais, Edições 70, Lisboa, 1988. P.60 193 Ver nota de rodapé 12. 194 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.30 195 Idem. P.21 196 Martin Heidegger, “The Age of the World Picture”, in Martin Heidegger, The Questions Concerning Technology and Other Essays, Harper & Row, Nova Iorque, 1977. P.134 102 De acordo com Pallasmaa, actualmente, o poder do olho, com o auxílio da tecnologia, é expandido e embrutecido: penetra profundamente a matéria e o espaço, possibilitando o visionamento simultâneo dos dois lados do planeta. No entendimento do autor, tornamo-nos, assim, uma espécie de prisioneiros do mundo ocular, estagnados, cada vez mais, num presente perpétuo e insípido, dada a rapidez e a simultaneidade dos fenómenos que visionamos artificialmente. Sobre o efeito da imagem na contemporaneidade, o antropólogo David Harvey salienta que: Uma precipitação de imagens de espaços diferentes colapsam, quase simultaneamente, os espaços do mundo numa série de visualizações no ecrã da televisão… As imagens dos lugares e espaços tornam-se tão abertas à produção e ao efémero como quaisquer outras.197 A tendência ocularcentrista, anteriormente mencionada, também se manifesta na arquitectura. Actualmente é comum conceber edifícios direccionados para serem visionados em velocidade, objectivo que conduz à necessidade de apelar e seduzir o nosso olhar. A arquitectura parece tentar adaptar-se ao ritmo acelerado do quotidiano, por vezes impondo a sua presença para causar impacto instantâneo: Em vez de uma experiência espacial plástica, existencial e fundamentada, a arquitectura adoptou a estratégia psicológica de publicidade e persuasão imediatas. Os edifícios transformaram-se em produtos de imagem afastados da profundidade existencial e da sinceridade.198 Face a esta problemática, o arquitecto contemporâneo Steven Holl afirma que a arquitectura deveria relacionar, mediar e projectar significados em vez de criar meros objectos de sedução visual.199 Do mesmo modo, o arquitecto Eduardo Souto de Moura acrescenta que “(...) a imagem tem que se tornar coisa e, portanto, deve ser contradita como imagem, deve ser destruída (...)”.200 A facilidade de transmissão e acesso à informação presente nos dias de hoje manifesta-se, por exemplo, nas revistas de arquitectura. Estas tendenciam o nosso entendimento do espaço das obras que visualizamos nas imagens das suas páginas, 197 David Harvey, The Condition of Postmodernity, Blackwell, Cambridge, 1992. P.293 198 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin: Architecture and The Senses, Wiley Academy, Reino Unido, 2005. P.30 199 Steven Holl, Juhani Pallasmaa, Alberto Pérez-Gómez, Questions of Perception - Phenomenology of Architecture, A+U, Japão, Julho 1994. P.39-61 200 Eduardo Souto de Moura, Eduardo Souto de Moura, Gustavo Gili, Milão, 2003. P.24 103 50. Frank Lloyd Wright, “Casa da Cascata”, 1936. e podem conduzir à ilusão de conhecer os projectos em questão sem experienciar fisicamente o lugar. Fernando Távora sugeria que as revistas de arquitectura “(…) são perfeitamente ilusórias e jogam com dois factores terríveis e enganosos: (…) o fotógrafo escolhe os bocadinhos mais belos do edifício (…) e porque se aceita como possível a descontinuidade do espaço, escolhe-se o melhor edifício (...) como se se tratasse de um protótipo, quando em verdade se trata apenas de uma excepção”.201 Esta situação origina uma certa generalização da expressão pessoal de determinados arquitectos, comunicando superficialmente os seus trabalhos, limitando a experiência sensorial inerente à obra. Estas imagens correm o risco de serem lidas, inconscientemente, como modelos visuais a emular, como referia Távora. Tal como refere Pallasmaa, a experiência arquitectónica é mais do que puramente visual, e “(…) uma obra de arquitectura não é experienciada como uma série de imagens isoladas da retina: é tocada e vivida na sua completa e integrada essência material, corpórea e espiritual”.202 Embora o instrumento da fotografia, no âmbito da arquitectura, seja útil para documentar e registar informação, não devemos desconsiderar que as imagens fotográficas constituem, em si mesmas, objectos de interpretação individual da verdade perceptível. Podemos, então, inferir que conhecer uma obra no contexto de um lugar requer a nossa presença física, e um conjunto de fotografias não é suficiente para condensar todas as componentes inerentes à experiência sensorial do visitante. Um exemplo desta problemática é o ponto de vista célebre, habitualmente captado, da Casa da Cascata (fig.50), do arquitecto Frank Lloyd Wright (1867-1959). A imagem resultante tornou-se tão difundida que ‘congelou’ a obra, reduzindo a experiência empírica da mesma a um ícone visual da arquitectura. 201 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P. 43 202 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.116 105 51. Claude Monet, “Impressão, Nascer do Sol”, 1872. O conhecimento adquirido ao longo da sua experiência existencial influenciou Monet no processo de captar os estímulos do momento, registando, de modo irrepetível, a sua interpretação perceptiva deste nascer do sol. As pinceladas transmitem mais do que a sua impressão visual, sendo que a pintura resultou do diálogo multissensorial do seu corpo com o mundo. 52. Marc Davis, Eyvind Earle, Joshua Meador e Walt Peregoy em “Four Artists Paint One Tree: A Walt Disney Adventure in Art” de Wilfred Jackson e Charles Nichols, 1958. Neste documentário quatro artistas dos estúdios Walt Disney dedicam-se a pintar a mesma árvore. Embora o objecto percepcionado seja o mesmo, os resultados finais são completamente distintos, traduzindo a análise interpretativa de cada um. 3.6. Executante e Objecto Com base no que temos vindo a abordar ao longo desta dissertação, podemos sugerir que as práticas que envolvem manualidade e auto-projecção implicam uma colaboração entre olho, mão e mente. Podemos, também, considerar que à medida que o desempenho é gradualmente aperfeiçoado, a percepção, a acção da mão, e o pensamento perdem a sua independência e passam a integrar um sistema coordenado de acção e resposta, sendo que, através da incorporação da tarefa, a existência do executante pode extravasar a performance. Pallasmaa declara que esta relação íntima entre o executante e o trabalho, que deriva da fluidez mental e material, é a essência da experiência multissensorial.203 Merleau-Ponty evocava o pintor Paul Cézanne (1839-1906), que descrevendo a sua relação com o lugar, afirmava que “(…) a própria paisagem pensa-se em mim, e eu sou a sua consciência”.204 O artista memorizava no seu trabalho aquilo que o mundo revela, apenas a ele próprio, já que cada um percepciona de forma única e irreproduzível e que cada representação é uma interpretação pessoal e sensorial de determinada realidade, virtual ou física (figs.51-52), pois à semelhança dos desenhadores e dos arquitectos “(…) como poderia o pintor ou o poeta expressar outra coisa que não o seu encontro com o mundo”?205 Assim, quando um artista procura representar aquilo que percepciona, a mão não se limita a duplicar ou mimetizar o que o olho vê ou o que a mente projecta, mesmo que seja essa a intenção consciente do sujeito que executa a acção. Uma actividade artística manual implica um acto singular integrativo em que, de um modo aparentemente paradoxal, “(…) a mão vê, o olho executa, e a mente tacteia (…)”,206 recorrendo ao conhecimento corpóreo adquirido na experiência do mundo. Incorre-se, então, que a intenção, a percepção e o trabalho da mão aglutinam-se no processo de execução de uma determinada tarefa artística. O acto de pintar ou desenhar e a sua fisicalidade e materialidade podem ser tanto meios como fins. A mesma fusão entre o interno e o externo, o material e o mental, o pensamento e 203 Ibid. P.70-87 204 Maurice Merleau-Ponty, Sense and Non-Sense, Northwestern University Press, Evanston, Illinois, 1991, cit. Paul Cézanne. P.17 205 Richard Kearney, “Maurice Merleau-Ponty” in Modern Movements in European Philosophy: Phenomenology, Critical Theory, Structuralism, Manchester University Press, 1994. P.82 206 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P. 84 107 a execução, pode ocorrer durante o processo criativo do arquitecto. Porém, não devemos negligenciar que a concepção integral de uma obra do início ao fim possui, também, fases menos criativas e mais burocráticas ou técnicas. Uma das maiores exigências da prática do arquitecto é, precisamente, a capacidade de manter uma abordagem criativa e inovadora ao longo de vários anos no mesmo projecto, ou em vários projectos em simultâneo, enquanto lida com estas situações mais pragmáticas: (…) Independentemente da infinitude ou da impossibilidade lógica da tarefa do artista, as obras-primas conseguem recriar, com sucesso, não apenas a existência de um objecto singular, mas também a própria essência do nosso mundo vivido.207 Quando desenhamos um objecto fisicamente palpável, evocamos o conhecimento táctil e sentimos a superfície daquilo que nos capta a atenção, internalizando as suas características inconscientemente. No decorrer desta relação entre observador e objecto, mimetizamos o ritmo da forma com os nossos músculos, e a nossa interpretação do mundo físico fica, eventualmente, gravada na nossa memória muscular. Segundo Pallasmaa, cada acto de desenho produz três tipos de imagem: o desenho que surge no papel, a imagem gravada na nossa memória mental e a memória muscular do acto de desenho em si.208 O autor explica que estas três imagens integram um processo temporal de percepção sucessiva, de medida, de avaliação, de correcção e de reavaliação. Por fim, o acto de desenhar resulta numa imagem única que condensa todo este processo. Um esquisso, por exemplo, seja a partir de um contexto físico ou virtual, à vista ou de imaginação, pode ser entendido como o congelamento de uma imagem temporária que apalpa um resultado final incerto, sendo assim, uma acção cinemática que se traduz numa imagem gráfica. Sobre a relação entre o executante e o objecto de percepção, o pintor contemporâneo John Berger afirma: Cada linha que desenho reforma a figura no papel e, ao mesmo tempo, redesenha a imagem na minha mente. Além disso, a linha desenhada redesenha o modelo, já que muda a minha capacidade de percepcionar.209 207 Ibid. P.40 208 Juhani Pallasmaa, Is Drawing Dead? – The Voice of Drawing: History, Meaning and Resistance, Pt.2, Simpósio, Yale, 2011. 209 John Berger, Berger on Drawing, Occasional Press, Aghabullogue Co. Cork, Irelanda, 2007. P.112 108 Desenhar pode, então, ser entendido como um processo de observação e expressão, assim como de recepção e oferta, sendo resultado de uma perspectiva dupla – um desenho vira-se, em simultâneo, para fora e para dentro, para o mundo observado ou imaginado, e para o mundo mental e pessoal de quem o produz. Complementarmente, um desenho ou esquisso pode conter uma parte da persona mental do seu criador e uma parte do que realmente existe no mundo físico. Berger acrescenta ainda que cada desenho é, também, uma expedição ao passado e à memória do seu executante: É o próprio acto de desenhar que força o artista a ver o objecto à sua frente, a dissecá-lo no olho da sua mente e a montá-lo de novo; ou, se estiver a desenhar de memória, isso força-o a explorar a sua própria mente, assim descobrindo o conteúdo do seu arquivo de observações passadas.210 Note-se, também, que quando desenhamos algo que percepcionamos, muitas vezes temos tendência a desenhar os objectos como pensamos, conscientemente, que estes são, registando um preconceito, e não necessariamente aquilo que interpretamos, directamente, do mundo físico. Evocando as palavras de Roland Fréat de Chambray (1606-1676), citado pelo arquitecto Manfredo Massironi (1937-2011): Todas as vezes que o pintor afirma pintar as coisas como as vê, está a errar. Representá-las-á segundo a sua defeituosa imaginação e realizará um mau quadro. (...) Porque às vezes seria um grave erro pintar exactamente como os olhos veem, por mais paradoxal que isto possa parecer.211 Em suma, um desenho exprime mais do que aquilo que o constitui graficamente. Exemplificando, um desenho de uma casa não representa a casa em si, o elemento físico existente no mundo percepcionado – representa sim, a ilação perceptiva do observador que a interpreta. Esta “(…) casa, assim criada, preserva toda a ambiguidade das casas reais”.212 Incorre-se, então, que o desenho eternaliza a forma como a casa é experienciada. A imagem mental inicial pode emergir como uma entidade visual, mas pode também ser uma impressão táctil ou muscular que a mão projecta através de uma série de linhas ou manchas que resultam numa forma ou estrutura. A mão sente o estímulo informe e invisível, transportando-o para o 210 John Berger, Berger on Drawing, Occasional Press, Aghabullogue Co. Cork, Irelanda, 2007. P.3 211 Manfredo Massironi, Ver pelo Desenho - Apectos Técnicos, Cognitivos, Comunicativos, Edições 70, Brasil, 1982. cit. Roland Fréat de Chambray. P.20 212 Jean-Paul Sartre, What is Literature?, Philosophical Library, Nova Iorque, 1950. P.10 109 53. Eduardo Souto de Moura, “Desenhos de Estudo para Casa na Serra da Arrábida”, 1994-2002. A dúvida e a incerteza têm um papel importante no trabalho do arquitecto Souto de Moura, que as incorpora no seu processo criativo. É habitual que desenvolva mais do que uma solução projectual em simultânio, permitindo que cada uma evolua naturalmente até que se convença da hipótese ideal para o problema em questão. 54. Renzo Piano e Richard Rogers, “Centro Georges Pompidou”, 1977. Situado na cidade de Paris, é interessante verificar que, apesar de recorrer a uma expressão high-tech, este edifício estabelece um diálogo forte com o lugar, não sendo alheio a este. O centro Pompidou não só reflecte uma arquitectura do seu tempo, como dá continuidade ao espaço urbano, reinterpretando-o. mundo do espaço e da matéria dando-lhe forma. De acordo com Pallasmaa, este acto tácito de apalpar os objectos observados no mundo físico ou no mundo das ideias é a base do processo criativo. Sobre o pintor Vincent van Gogh (1853-1890), Berger escreve: O gesto vem da sua mão, do seu pulso, do seu braço e ombro, talvez até dos músculos do seu pescoço, porém, os traços que ele faz no papel seguem correntes de energia que não lhe pertencem fisicamente, e que apenas se tornam visíveis quando ele as desenha.213 Na sequência da descrição de Berger, torna-se evidente, que encarar a arte do desenho ou da pintura como empreendimentos puramente visuais, constitui um entendimento incompleto destas práticas. Do mesmo modo, a irrefutabilidade da existência corpórea da arquitectura faz com que esta também não possa ser inteiramente apreendida como algo meramente visual. Távora subentendia esta ideia: Visualmente, portanto, podemos considerar que as formas animam o espaço e dele vivem, mas não deverá nunca esquecer-se que, num conceito mais real, o mesmo espaço constitui igualmente forma, até porque aquilo a que chamamos espaço é constituído por matéria e não apenas as formas que nele existem e o ocupam, como os nossos olhos deixam supor.214 3.7. Arquitectura, Experimentação e Criatividade No período Clássico, a arquitectura envolvia uma prática mais abrangente em relação aos dias de hoje, aglutinando várias disciplinas e especialidades. Um exemplo por excelência é Marcos Vitrúvio Polião (80 a.C.-15 d.C.), por vezes considerado como o primeiro arquitecto da História, e o primeiro arquitecto Romano a teorizar sobre esta prática cujo material escrito sobreviveu até à actualidade. Para Vitrúvio, a arquitectura deveria combinar gestão construtiva, engenharia, conhecimento químico, físico, material e mecânico, assim como arte, paisagismo e manufactura.215 213 John Berger, Berger on Drawing, Occasional Press, Aghabullogue Co. Cork, Irelanda, 2007. P.71 214 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P. 12 215 Barry Baldwin, “The Date, Identity and Career of Vitruvius”, in Latomus 49, 1990. P.425-434 111 Segundo Pallasmaa, esta abordagem tinha a vantagem de ligar o processo construtivo ao lugar de um modo mais íntimo, promovendo a conexão entre o corpo dos arquitectos à essência material do mundo vivido, envolvendo directamente a manualidade no processo de concepção e de execução. O autor indica ainda que a chegada do Modernismo, veio pôr, de certo modo, um fim a esta multidisciplinaridade que até então caracterizava a prática da arquitectura, enfatizando a especialização, resultando numa separação entre o arquitecto e o mundo físico da construção. Até então, a arquitectura também era considerada uma ocupação manual, a par das práticas da pintura e da escultura.216 Aprender no local de construção era um passo obrigatório na formação do arquitecto, assim como a prática manual do desenho como meio de descobrir e concluir experiências espaciais e materiais.217 Podemos, então, considerar que esta relação reforçava a ligação entre ideia e matéria, forma e execução prática. Com a introdução do Modernismo, começou a enfatizar-se, sobretudo, o papel do intelecto na educação do arquitecto, dando início a uma espécie de distanciamento mental entre o ‘estúdio’ – lugar de concepção das ideias – e o local de construção físico do projecto.218 De facto, podemos constatar que, actualmente, é frequente que os arquitectos trabalhem à distância, através de desenhos e directrizes verbais que são transmitidas às entidades relacionadas com a execução da obra, potencialmente descurando os processos materiais e físicos da criação. Adicionalmente, o aumento das profissões especializadas pode contribuir para a fragmentação da identidade dos arquitectos e, por vezes, para um resultado final menos empírico e sensorialmente expressivo. Habitualmente, os estúdios de arquitectura de pequena dimensão tendem a manter uma ligação mais táctil e íntima com o trabalho, ao contrário das grandes construtoras que, potencialmente, apostam na standardização e na pré-fabricação, negligenciando a atenção ao detalhe e a qualidade manual de execução, e privilegiando o geral em detrimento do particular. Em contrapartida, existem arquitectos que equilibram o melhor destes dois mundos, preocupando-se em manter uma abordagem que enaltece a manualidade no decorrer do processo criativo, recorrendo a instrumentos de trabalho como a maqueta ou o desenho, e visitando o local como é o caso de Renzo Piano (fig.54): 216 Cammy Brothers, Michelangelo, Drawing and the Invention of Architecture, Yale University Press, New Haven, Londres, 2008. P.9 217 Idem. 218 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.65 112 Começa-se por esboçar, depois faz-se um desenho, depois uma maqueta, e depois vai-se à realidade - ao local - para depois se voltar ao desenho. Cria-se, assim, uma espécie de circularidade entre desenhar e criar.219 Richard Sennet evoca Piano para explicar que, como consequência deste processo complexo e árduo, o edifício existe como uma construção mental imaterial muito antes de se iniciar a sua construção física. Assim, é como se o edifício fosse construído, reconstruído, e testado mentalmente diversas vezes, explorando-se várias alternativas que, eventualmente, darão origem a determinado resultado final. O autor acrescenta ainda que: Isto é muito típico da abordagem do artesão. Pensa-se e faz-se ao mesmo tempo. Desenha-se e cria-se. Desenhar (…) é revisitado. Desenha-se, redesenha-se e volta-se a desenhar.220 A manufactura, enquanto termo que designa o trabalho resultante da manualidade, como já foi exposto, estava profundamente vinculada à prática da arquitectura. O designer David Pye (1914-1993) distinguiu dois tipos de atitude de mão-de-obra, relativamente à manufactura: a “mão-de-obra de risco” e a “mão-de-obra de certeza”. Na primeira atitude, de carácter mais permissivo e inconsciente, o executante é passível de experimentar e errar. A falta de experiência, o acidente ou a distracção são características que podem estar associadas a este tipo de prática. Em oposição, a segunda atitude implica que a qualidade do resultado seja pré-determinada, estando fora do controlo de quem desempenha a acção.221 Depreende-se que o primeiro tipo cria mais condições para a experimentação e a criatividade. Se transpusermos esta categorização para a disciplina da arquitectura, percebemos que a maioria das práticas tende a aplicar métodos e soluções-tipo que já foram testados previamente, assumindo uma atitude que minimiza o risco. Porém, tal posição pode restringir, paralelamente, o lado experimental do processo criativo. O arquitecto Alvar Aalto (1898-1976) adoptava uma atitude mais livre e permissiva no seu método de trabalho, descrevendo-o do seguinte modo: 219 Richard Sennett, The Craftsman, Yale University Press, New Haven, Conneticut, Londres, 2008, cit. Renzo Piano. P.40 220 Idem. 221 David Pye, The Nature and Art of Workmanship, The Herbert Press, Londres, 1995. P.9 113 55. Álvaro Siza, “FAUP”, 1988-92. A forma como Siza concebeu a coluna representada na imagem demonstra uma grande versatilidade para ‘jogar’ com a forma. Este elemento vertical aparenta desempenhar a função habitual de suporte, embora a sua posição e configuração geométrica sugiram, subtilmente, que não é estrutural. O arquitecto parece, ainda, elevar o elemento à qualidade de escultura, talhando-o. 56. Alvar Aalto, “Casa de Muuratsalo”, 1952-53. A Casa de Muuratsalo reflecte a experimentação que Aalto aplicava no seu processo criativo. 57. Anton Ehrenzweig, “The Hidden Order of Art”, 1967. Este diagrama ilustra o labirinto da procura criativa. Segundo o advogado Ehrenzweig, é importante que o criador desenvolva o seu trabalho garantindo espaço para hipóteses alternativas e, simultaneamente, procurando obter uma visão clara da estrutura de opções que se vão abrindo, sem se perder numa das suas particularidades. Isto é o que faço (…) Esqueço todo o labirinto de problemas por momentos (…) Adopto, então, um método de trabalho que se assemelha imenso a arte abstracta. Desenho simplesmente por instinto, e não por síntese arquitectónica, resultando isto, por vezes, em composições bastante infantis (…).222 A abordagem aqui referida por Aalto implica que, no trabalho criativo, a concentração deve ser, por vezes, substituída por um método mental mais inconsciente e corpóreo, através do afastamento, ainda que temporário, relativamente a trivialidades como as exigências programáticas inerentes à construção da arquitectura, as imposições dos clientes, entre outras. De modo semelhante, o arquitecto Álvaro Siza previne que potenciais vícios e preconceitos conduzam o processo projectual, procurando aliar algo que designa de “semi-adormecimento da consciência”, às dúvidas e incertezas próprias da condição humana, incorporando-as no seu trabalho (fig.55). O autor refere-se a este estado de equilíbrio do seguinte modo: A ignorância total não existe, não se pode evitar que a mente esteja carregada de conhecimentos. Entendo que seja pouco claro isto que digo, considerando a formação do arquitecto, mas acho que se deve manter uma espécie de nebulosa que não é ignorância nem ingenuidade, para escapar à inevitável aplicação de supostos conhecimentos sólidos.223 Voltando ao trabalho de Aalto, no contexto da Casa de Muuratsalo (fig.56), o arquitecto reconhece a importância da experimentação no seu método criativo, enfatizando o sentido de responsabilidade que devemos ter enquanto arquitectos: (…) no âmbito da nossa trabalhadora, calculista e utilitária era, devemos continuar a acreditar no significado crucial do jogo no processo de contruir uma sociedade para os seres humanos, essas crianças crescidas. A mesma ideia (…) vive, com certeza, na mente de todos os arquitectos responsáveis.224 Com base na citação exposta, podemos sugerir que a primazia da experimentação permite “(…) brincar com as formas e com as estruturas (…)”225 apelando, 222 Alvar Aalto, “Trout and The Mountain Stream” in Goran Schildt, Alvar Aalto in His own Words, Otava Publishing Company, Helsínquia, 1997. P.108 223 Álvaro Siza, “Salvando las Turbulencias: Entrevista con Álvaro Siza” in El Croquis, Nº 68/69, 2000. P.13 224 Alvar Aalto, “Experimental House at Muuratsalo: project description”, in Arkkitehti Nº 9/10, Helsínquia, 1953. 225 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.77 115 eventualmente, ao conhecimento existencial daqueles que experienciam os espaços que os arquitectos projectam. Não obstante, a componente construtiva da arquitectura exige que este lado lúdico seja ‘domesticado’. Para mantermos a consciência do nosso trabalho enquanto arquitectos, Aalto defendia que: (…) devemos combinar o trabalho laboral sério com a mentalidade do jogo, ou vice-versa. Apenas quando as partes construtivas de um edifício, as formas logicamente derivadas destas, e o nosso conhecimento empírico é colorido com o que podemos chamar de arte do jogo; só então nos encontramos no caminho certo.226 Podemos, então, inferir que uma criação de carácter introspectivo não é, habitualmente, uma descoberta intelectual instantânea que se traduz num processo linear de lógica dedutiva, pois como Pallasmaa sugere, “(…) os problemas arquitectónicos são, com certeza, demasiado complexos e profundamente existenciais para serem resolvidos de uma forma puramente conceptualizada e racional”.227 Para o autor, na arquitectura, o processo de trabalho ideal é aquele que parte de uma ideia inicial que é desenvolvida durante algum tempo, e que se ramifica, a posteriori, em vários caminhos possíveis, sendo que este padrão de cruzamento de possibilidades se adensa ao longo do próprio processo criativo (fig.57). Projectar traduz-se, assim, num acto mutável que exige avançar e recuar ideias com frequência. Testam-se, em simultâneo, soluções parciais e gerais, de modo a equilibrar a relação entre as ideias pessoais e as exigências técnicas inerentes à materialização do produto em desenvolvimento. Um projecto de arquitectura pode ser mais do que uma solução para um problema, podendo constituir, também, uma proposta multissensorial que expressa o mundo mental do seu criador, assim como o entendimento pessoal daquilo que o rodeia. Deste modo, o processo criativo pode expressar, como resultado final, o cruzamento entre estas duas realidades. Pallasmaa expõe a incerteza como catalisadora da procura da solução arquitectónica para um determinado projecto, afirmando que “(…) Enquanto se evita que o sentido de incerteza se torne desespero e depressão, este é uma força diligente e 226 Alvar Aalto, “Experimental House at Muuratsalo: project description”, in Arkkitehti Nº 9/10, Helsínquia, 1953. 227 Juhani Pallasmaa, The Thinking Hand: Existential and Embodied Wisdom in Architecture, John Wiley & Sons Ltd, Reino Unido, 2009. P.6 116 fonte de motivação no processo criativo (…)”,228 sendo que a certeza subjectiva é gradualmente conquistada através do processo laborioso da procura em si. A par de solucionar problemas racionais e funcionais, a arquitectura multissensorial pode evocar valores experienciais, existenciais e humanos, recolocando o ser humano no mundo que o rodeia, e levando-nos a indagar sobre o enigma do propósito existencial. Para Távora, os arquitectos devem contribuir para que “(…) o espaço reencontre a sua harmonia, condição «sine qua non» da felicidade (…)”,229 dado que “(…) a forma criada pelo homem é prolongamento dele – com as suas qualidades e com os seus defeitos”.230 O acto de projectar pode, portanto, constituir uma acção existencial que integre o conhecimento profissional de cada arquitecto, a par das suas experiências de vida, da sua sensibilidade ética e estética, do seu corpo e mente, do seu olho e mão, bem como a totalidade da sua persona. Podemos, inclusive, sugerir que, tendencialmente, o pensamento criativo deriva mais do hábito do trabalho do que da inspiração espontânea, inesperada e sem esforço. Projectar pode traduzir-se numa procura por algo que é desconhecido a priori e, nesse caso, o processo criativo expressa a essência desta jornada corpórea. Se estabelecermos um paralelismo com o domínio da poesia, podemos adaptar as seguintes afirmações do poeta Joseph Brodsky (1940-1996) à prática do arquitecto: Na questão da escrita, não se acumula competência, mas sim incertezas (…)231 Poesia – tanto escrevê-la como lê-la – ensina humildade (…) especialmente se a escrevermos e lermos.232 Podemos, então, incorrer que, tanto na escrita como no desenho, o texto e a imagem precisam de se emancipar do preconceito da atribuição de um propósito, caminho e objectivo. Em vez de ditar um pensamento determinante, o processo criativo pode transformar-se num acto de paciência, colaboração e diálogo. Através da maturação da capacidade de tolerar a incerteza e o vago, o criador permite que o trabalho faça as suas próprias sugestões, seguindo o seu rumo inesperado. Esta procura pode 228 Idem. P.99 229 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P. 72 230 Idem. P.73 231 Joseph Brodsky, Less Than One, Farrar, Straus & Giroux, Nova Iorque, 1997. P.17 232 Joseph Brodsky, In memory of Stephen Spencler – On Grief and Reason, Farrar, Straus & Giroux, Nova Iorque, 1997. P.473-4 117 58. Adolf Loos, “Casa de Tristan Tzara”, 1925. 59. Álvaro Siza, “FAUP”, 1988-92. De modo a enraizar a sua solução arquitectónica no legado deixado por arquitectos que admira e a domesticar as suas incertezas estudando a forma como outros resolveram problemas semelhantes, Siza, por vezes, reforça o seu trabalho com referências que o auxiliam no processo criativo. Um exemplo disso é a semelhança de alçado entre esta torre e a casa de Tristan Tzara, projectada por Loos, na figura 58. traduzir-se numa tentativa de ‘desaprender’ dogmas e certezas, como sugere o historiador de arte Andrew Graham-Dixon, evocando as palavras do pintor Pablo Picasso (1881-1973): Quando eu era jovem, era capaz de desenhar como o Rafael, mas levei toda a minha vida para aprender novamente a desenhar como uma criança de 5 anos.233 Complementarmente, os limites e as restrições são igualmente importantes no processo criativo inerente a todos os tipos de arte. Ao rejeitar o legado da tradição, a arquitectura tendencia-se a uma uniformidade empobrecida, e a um tipo de expressão que não joga com o conceito de memória do lugar. Do mesmo modo, a experimentação criativa implica, de uma maneira ou de outra, um trabalho rigoroso de controlo para que a ideia seja exequível construtivamente. Citando as palavras do músico e compositor Ígor Stravinski (1882-1971), evocado pelo filósofo Paul Valéry (1871-1945), é importante não esquecer que “(…) a maior liberdade nasce do maior rigor”.234 233 Andrew Graham-Dixon, “The Secret of Drawing” in All in the Mind, Episódio 3, Oxford Film and Television Production, BBC, Reino Unido, 2005. 234 Paul Valéry, Eupalinos, or the Architect, Oxford University Press, H. Milford, 1932, cit. Ígor Stravinski, P.131 119 Considerações Finais Quando me propus a reflectir sobre o tema da percepção ligado ao exercício da arquitectura com o intuito de perceber de que modo é que esta dialética podia contribuir para o desenvolvimento da actividade projectual, confesso que não tinha a noção do quão presentes e basilares são estas questões para a formação e criativa dos arquitectos. O exercício da cidade realizado na disciplina de Projecto I foi, no fundo, o ponto de partida para o desenvolvimento desta dissertação, e as motivações primordiais que levaram à reflexão sobre este tema residem, fundamentalmente, na soma dos conteúdos que apreendi ao longo destes anos enquanto aluna da FAUP. Adicionalmente, iniciei este trabalho durante o período de intercâmbio Erasmus, no contexto académico da Faculdade de Arquitectura de Ljubljana, na Eslovénia e, posteriormente, tive a oportunidade de iniciar a vida profissional na arquitectura enquanto me deparava com as problemáticas que foram aqui expostas. Tais acontecimentos não foram inócuos para o desenvolvimento desta dissertação. Aquilo que seria, a priori, uma investigação imparcial sobre a fenomenologia na arquitectura, passou a ser, também, uma reflexão crítica sobre os modos de a projectar, algo que pude experienciar e observar fora do contexto escolar que me era familiar. Estas experiências contribuíram para aprofundar a curiosidade sobre a problemática da relação que a arquitectura estabelece com o meio, instigando, cada vez mais, a vontade de perceber o que está por detrás do “verdadeiro” e do “real”, e de que modo os arquitectos e os estudantes lidam com estas questões no dia-a-dia. Retomando os tópicos que foram abordados ao longo deste trabalho, procurar compreender aquilo que, ulteriormente, motiva a evolução do projecto de arquitectura, desde a ideia imaginada até à sua materialização física, pode garantir uma relação mais consciente e estimulante entre o espaço e o eu, potenciando, assim, o desenvolvimento da criatividade e do sentido crítico perante aquilo que nos rodeia, dado que “(…) as imagens mentais são construídas pelo que conhecemos e sabemos – real e irreal – consciente e inconsciente”.235 Deste modo, inteirarmonos do papel do corpo enquanto mediador de experiências multissensoriais pode evitar a emergência de edifícios e espaços mudos e embrutecidos. Projectar, como 235 Joaquim Vieira, “A Necessidade da Representação. Representação. Abstracção. Apresentação” in Psiax, Nº2, FAUP, UM, Porto, 2003. P. 16 121 qualquer actividade artística, expõe, consequentemente, a interioridade daquele que concebe uma determinada obra. Assim, torna-se importante dominar e conhecer as ferramentas necessárias para conduzir o criador nesta jornada de auto-projecção. Certamente, a velocidade de transformação e de produção mecanizada que possa caraterizar a sociedade em que vivemos, afectando-a culturalmente, não deve ser alheia à condição da arquitectura emergente. De facto, se considerarmos que o termo “cultura” descreve “(…) todo e qualquer complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem com membro da sociedade (…)”,236 e que “sociedade” caracteriza um “conjunto de seres que convivem de forma amistosa”,237 é evidente que tudo o que ambas reflectem são prolongamentos indissociáveis da condição humana. Quando se critica o ocular-centrismo e o recurso excessivo às ferramentas digitais na prática projectual, não se pretende assumir uma posição dogmática da abolição do computador, da mecanização ou do “visual” – pretende-se, apenas, incutir a necessidade de consciencialização para a tendência do desequilíbrio sensorial, e do modo como este pode afectar tanto o processo criativo como a experiência perceptiva. O computador e a mecanização contribuem, fortemente, para a optimização do projecto de arquitectura no sentido operativo, não só em termos de responsividade imediata como também para o facilitismo da execução de determinadas tarefas que antes não seriam tão viáveis. Por exemplo, desenhar um determinado alçado com uma centena de janelas iguais, é um acto ‘mecânico’ que em nada contribui para o aperfeiçoamento da concepção projectual; o recurso a software CAD faz com que esta tarefa seja executada em muito menos tempo comparativamente a um processo puramente manual. O mesmo acontece com o cálculo de fórmulas matemáticas associadas às medições do projecto de execução, ou a troca de informação entre as várias especialidades que intervêm na obra de arquitectura. Igualmente, o computador pode auxiliar o arquitecto enquanto ferramenta de concepção e de experimentação, já que permite gerar protótipos com eficácia, rigor e rapidez. Porém, se o avanço tecnológico for dissociado da prática manual, sobrepondo-se ao uso do corpo enquanto mediador absortivo de conhecimento existencial, pode 236 Edward B. Tylor, Primitive Culture: Researches Into the Development of Mythology, Philosophy, Religion, Art and Custom, John Murray, Londres, 1871. P.29 237 Ayodhya Prasad, The Basis of Society, Popular Prakashan Bombay, 1967. P.6 122 dar-se um desequilíbrio sensorial que não só condiciona o nosso processo criativo, como também a relação com o mundo através do espaço que organizamos e das formas que projectamos enquanto arquitectos. Pessoalmente, pude verificar nas duas experiências que tive, a de Erasmus e a profissional, que existe a tendência para perder o hábito da manualidade com o passar do tempo, deixando de recorrer a ferramentas como o desenho de concepção e a maqueta de trabalho na actividade projectual. Em paralelo, pude constatar que se formam, por vezes, juízos de valor acerca de determinadas obras de arquitectura apenas com base em reportagens fotográficas, sem que os intervenientes da discussão tenham experienciado a obra fisicamente. Tal denota uma forte influência da imagem e do olho no modo de pensar a arquitectura. Assim, o principal objectivo deste trabalho consistiu numa tomada de consciência, procurando, simultaneamente, transmitir a informação inferida de modo a sensibilizar o leitor para a importância de desenvolver o espírito indagativo e reflexivo relativamente à prática da arquitectura, questionando a posição que os organizadores do espaço devem tomar perante esta actividade. Podemos, então, considerar que os arquitectos não devem distanciar-se da transformação do actual, mas sim acompanhá-la de modo consciente e crítico. Enquanto criadores, os arquitectos envolvem-se, continuamente, na experiência com o mundo e consigo próprios, mantendo uma posição permanente de “alunos e educadores”,238 como afirmava Távora. Por essa mesma razão, encontrar o equilíbrio entre o paradoxo do individual e do colectivo pode aproximar o corpo, não só do arquitecto mas também do visitante, à verdade física que o envolve. Evocando as palavras de Merleau-Ponty: Toda a consciência é perceptiva (...) O mundo percepcionado é a sempre pressuposta fundação de toda a racionalidade, todo o valor e existência.239 238 Fernando Távora, Da Organização do Espaço, FAUP Publicações, Porto, 2006. P.74 239 Maurice Merleau-Ponty, Structure of Behavior, Beacon Press, Boston, 1963. P.75 123 Fontes Bibliográficas Livros, Revistas e Artigos ACKERMAN, Diane. 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