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IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 1 Dança contemporânea - o dançarino pode ser apto para tudo? Daniella de Aguiar (UFBA) GT Dança e novas tecnologias Palavras-chave: Dança; treinamento; criação; corpomídia Neste texto pretendo chamar atenção para a relação entre o treinamento do dançarino contemporâneo e o seu caminho estético, buscando uma aproximação entre essas duas instâncias. Ao observar diferentes criações de dança contemporânea é possível destacar uma gama de padrões motores e de organizações estéticas substancialmente diversificadas. Em espetáculos nos quais há uma técnica de movimento reconhecível no universo da dança, como, por exemplo, balé clássico, técnica de Cunningham, técnica de Limón, não se levanta a questão de como os dançarinos realizaram seu treinamento já que é possível identificar as técnicas correspondentes por referências aos seus códigos de movimentos. Entretanto, quando os corpos não demonstram de quais técnicas vieram suas habilidades, por não nos apresentar um código reconhecível, torna-se mais difícil traçarmos uma linha entre a formação desses dançarinos e seus movimentos na cena. Discutir os caminhos entre formação e obra pode trazer reflexões para a dança contemporânea sobre a relação entre as informações de treinamento e de processo criativo, as quais ajudam a construir esses corpos gerando resultados artísticos específicos. A partir disso, é possível questionar os modos de treinar um dançarino contemporâneo com os quais atualmente nos deparamos, propondo um olhar atento para uma conexão estreita entre o treino e o desejo artístico. Nesse estudo apresentarei algumas idéias que possam contribuir para essa discussão. A relação entre o treinamento do dançarino e aquilo que ele realiza no palco se apresentou, durante muito tempo, através de uma causalidade direta: quem quer dançar balé clássico treina balé clássico, quem quer dançar com Martha Graham treina técnica moderna de Graham, e assim por diante. De forma geral, nessas escolhas estéticas que organizam seu treinamento através de técnicas codificadas há uma idéia de separação entre técnica e expressão. Desse modo, há um entendimento, nesses contextos, de que as técnicas precisam ser aprendidas e executadas com maestria durante muitos anos para depois o dançarino poder expressar o seu sentimento, ou aquilo que está velado em seu interior. Esse tipo de separação nos remete a uma doutrina que geralmente é associada ao cientista, matemático e filósofo René Descartes, e que foi nomeada “o fantasma na máquina”. (PINKER 2004) Descartes estava interessado na natureza da mente. Afirmava que ela não poderia operar segundo bases mecânicas por não ser divisível em partes, diferentemente de nossos corpos e outros objetos físicos. O corpo seria uma máquina comandada por uma espécie de fantasma. Determina assim uma separação entre o corpo em sua existência mecânica, física e material, e a mente, imaterial. (PINKER, 2004: 28). Dentro dessa perspectiva, a repetição técnica configurou-se como uma maneira de estabilizar informações motoras, e estéticas, no corpo máquina garantindo uma execução que satisfaça aquele tipo de dança. Nos balés e nas danças modernas, por exemplo, o treinamento esteve imbricado com o resultado estético, entretanto isso ocorreu, e ainda ocorre, de modo que seria necessária uma execução em etapas: IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 2 primeiro o longo treinamento, depois a dança no palco. Na dança contemporânea parece que a relação entre essas instâncias fica um pouco mais complexa. Em peças de dança contemporânea não é possível identificar uma técnica específica comum, um único modo característico de se mover. “Vocabulário” ou padrão de movimento não é necessariamente o ponto de partida da criação, ele pode emergir durante o processo criativo mesmo que não esteja formulado no começo da pesquisa (GREINER, 2005: 78). Assim, criadores organizam o material de movimento da obra durante o processo criativo, de acordo com cada projeto de investigação. Em uma concepção contrastante com a do “fantasma na máquina”, a visão de corpo, então, parece aproximar-se da perspectiva do corpomídia1, na qual o corpo é uma construção permanente que se faz através de trocas incessantes de informações com o ambiente. Meio e corpo se modificam mutuamente no tempo (KATZ & GREINER, 2005: 131). Dessa forma, em cada projeto criativo o movimento se faz das informações que são os corpos que dançam e pensam a dança, que são, além das técnicas e de padrões de movimento, toda a coleção de informações que cada um de nós está trocando com seu contexto. Observando que não há uma técnica de dança em comum nos trabalhos contemporâneos, seria possível preparar a priori o dançarino garantindo aptidão para qualquer demanda criativa? Diante dessa complexidade normalmente observa-se a busca, tanto por quem quer dançar quanto por centros de formação, de duas alternativas: a multiplicidade ou a neutralidade. A primeira seria uma tentativa de diversidade do intérprete alcançada pelo conhecimento de várias técnicas de movimento especificamente de dança ou não. A segunda, de encontrar uma prática que sirva de base para todas as outras. Ambas procuram resolver uma necessidade de um dançarino que supostamente deve estar preparado para qualquer demanda criativa respondendo a uma diversidade estética na dança contemporânea. O corpo múltiplo traz um entendimento do funcionamento do organismo como um computador através da metáfora da “memória guardada em gavetas” (GREINER, 2005: 41). Isso quer dizer que as experiências ficariam armazenadas em arquivos específicos e quando necessário elas seriam retomadas sem que houvesse interferência de outras. Dessa forma, um dançarino poderia acionar uma técnica de movimento específica sem que as outras referências aprendidas se misturassem, garantindo uma aparente diversidade na qual o corpo que possui técnicas específicas pode lançar mão daquela que mais lhe convém em determinado momento. Além disso, nessa perspectiva a ação do tempo teria pouca ou nenhuma interferência naquilo que foi aprendido, como se aprendizagem fosse acumulativa e as informações permanecessem fixas. Se o corpo não é um recipiente onde as informações externas a ele são processadas para serem devolvidas ao mundo tal qual foram armazenadas, seria possível em cada trabalho criativo escolher na prateleira uma técnica corporal disponível? Isso poderia garantir um corpo apto para tudo? A idéia de uma técnica de base, como hipótese da neutralidade, traz como possibilidade algo original do corpo ou da dança que não deixa um rastro estético, mas, por outro lado, trabalha com a preparação do corpo como um todo, tornando-o apto para o aprendizado de qualquer dança. Como se essa técnica ou prática que busca a neutralidade garantisse um corpo tábula rasa2, onde qualquer outra informação pudesse ser 1 Elaboração teórica desenvolvida pelas doutoras Helena Katz e Christine Greiner pautada na Teoria Evolucionista, na Semiótica Peirceana e nas Ciências Cognitivas. 2 Termo utilizado por Pinker (2004) referindo-se a uma doutrina que compreende corpo como uma folha em branco completamente moldável. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 3 escrita. Esse entendimento está presente em uma máxima: “para aprender dança é preciso fazer balé”, idéia disseminada no senso comum e também na ilusão de um corpo neutro através das práticas de educação somática3. Em ambos, de formas diferentes, há uma procura por uma técnica universal que sirva para dançar qualquer coisa. Contribuindo para essa discussão, Márcia Strazzacappa (2006) aborda o uso da educação somática para a preparação do artista cênico chamando atenção para o fato de que “as técnicas de educação somática, no entanto, não fogem à regra [...], isto é, não estão isentas nem do etnocentrismo, nem de uma preocupação estética.”(SATRAZZACAPPA, 2006: 49). Como qualquer outra técnica, as práticas de educação somática privilegiam determinadas relações motoras em detrimento de outras. Esse e muitos outros fatores, nos corpos vivenciadores das práticas, dão prioridade para alguns modos de se mover ao invés de outros. Há nisso um direcionamento das possibilidades de movimento, dessa forma, um modo parecido de organizar o corpo para quem compartilha das mesmas práticas. A autora, então, nos lembra que, apesar do campo da dança usar a educação somática como possibilidade de aproximar o corpo de uma suposta naturalidade, cada uma das técnicas está relacionada ao contexto no qual foi desenvolvida. Se essa construção ocorreu a partir da necessidade de curar lesões de seus criadores, como Strazzacappa nos apresenta nos exemplos de Alexander e Feldenkrais, compreendemos que o corpo criador da técnica, sua coleção própria de informações, faz com que ela seja de um modo específico e não de outro. Por problemas na voz Alexander desenvolve sua técnica dando lugar de destaque para a cabeça, e Feldenkrais, com uma lesão no joelho, acaba valorizando os quadris. Parece não ser possível a construção de corpos dançantes, neutros ou múltiplos, preparados para toda e qualquer demanda criativa, “assim, deve-se conectar o mais estreitamente possível a ambição estética de um corpo à sua ação de treinamento técnico” (KATZ, 2005: 166). Ou talvez o próprio processo criativo possa preparar o corpo para a obra. Num ambiente aonde a linguagem de movimento é construída durante o processo, é no fazer criativo que o corpo, com a sua coleção de informações, desenvolve as capacidades de realizar aquilo que ali emerge. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GREINER, Christine. O corpo: Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. KATZ, Helena. Um, Dois, Três: A dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005. KATZ, Helena & GREINER, Christine. “Por uma teoria do corpomídia”. In: GREINER, Christine. O corpo: Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. PINKER, Steven. Tábula Rasa: A negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. STRAZZACAPPA, Márcia. “O corpo e suas representações: as técnicas de educação somática na preparação do artista cênico”. In: STRAZZACAPPA, Márcia & MORANDI, Carla. Entre a arte e a docência: a formação do artista da dança. Campinas, SP: Papirus, 2006. 3 Educação Somática é um termo atribuído a práticas corporais que buscam reeducar esquemas corporais a fim de um aproveitamento máximo com mínimo esforço muscular. Elas são utilizadas na dança para ampliar possibilidades de movimento e da “expressão”. IV Reunião Científica de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas 4