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Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau Jaime Ginzburg 13 Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau Jaime Ginzburg Colección Avances de I nvestigación CI HAC • Sección CALAS › Segunda época ‹ •13• Colección › Segunda época ‹ Comité editorial: Dr. Ronny Viales Hurtado Dr. Anthony Goebel Dr. David Díaz Arias Sub-comité CALAS- Laboratorio Visiones de paz: Dra. Carmen Chinas Dr. David Díaz Arias Dra. Christine Hatzky Dr. Werner Mackenbach Dr. Joachim Michael CIHAC.SIDBI.UCR CIP03 Nombre: Título: Descripción: Ginzburg, Jaime Violência e paz. Notas sobre Heli e Bacurau / Jaime Ginzburg. Primera edición | Costa Rica : Universidad de Costa Rica. Centro de Investigaciones Históricas de América Central. 2023. | 54 páginas | Identificadores: ISBN 978 -9930-9793-1-0 (digital) Serie: Colección Avances de Investigación CIHAC. Sección CALAS Segunda época N.13 Materias: LEMB: Violencia – Prevención. | Cultura de paz. | Paz – América Latina. | Clasificación: CDD 363.320 -23.ed Corrección filológica: Mariela Mata • Diseño y Diagramación: Melissa González Villalobos. Imagen: Eneas De Troya / https://www.flickr.com/photos/eneas/8596261691 Índice CONSIDERAÇÕES INICIAIS ...................................................................................................................ix CAPíTUlO 1 VIOlêNCIA E PAz: DESAfIOS CONCEITUAIS ................................ 1 VARIAÇÕES CONCEITUAIS ....................................................................... 1 SOCIEDADES E VIOlêNCIAS ...........................................................9 CAPíTUlO 2 AléM DO BINARISMO ................................................................................13 TEORIAS DA NARRATIVA (CONTOS MARAVIlHOSOS)..........13 ANTROPOlOgIA E fIlOSOfIA.................................................... 16 CAPíTUlO 3 NOTAS SOBRE CINEMA .............................................................................21 HElI, DE AMAT ESCAlANTE ..................................................................21 ANTAgONISMOS fORMAIS ....................................................................21 PRESENÇA E AUSêNCIA DE ESTElA ..................................................26 AS IMAgENS DE TORTURA .....................................................................30 BACURAU, DE KlEBER MENDONÇA fIlHO E JUlIANO DORNEllESI ....................................................................................................35 A COMUNIDADE E OS INVASORES .....................................................35 CONTRASTES ENTRE CENAS ....................................................... 38 CAPíTUlO 4 REfERENCIAS CONSIDERAÇÕES fINAIS .........................................................................41 ............................................................................................................ 42 Considerações iniciais Este trabalho integra um conjunto de atividades desenvolvidas dentro do Maria Sibylla Merian Center for Advanced Latin American Studies (CALAS), no âmbito do Laboratorio de Conocimiento - “Visiones de paz: transiciones entre la violencia y la paz en América Latina”. O texto expõe resultados parciais do projeto de pesquisa “Representações da violência no cinema: Brasil e México”. Agradeço muito ao CALAS, pelas oportunidades de interlocução abertas. Ao longo do período, pela generosidade dos responsáveis, pude aprender muito sobre temas variados referentes à América Latina, acompanhando reflexões apresentadas por investigadores caracterizados pela excelência e pela abertura à discussão interdisciplinar. Tive o privilégio de participar de diversas atividades, incluindo eventos com convidados internacionais, debates de trabalhos acadêmicos, e reuniões com pesquisadores de diversos países, além de receber um importante apoio para viabilizar a pesquisa. Neste estudo, pretendo explorar dois desafios acadêmicos. O primeiro consiste em uma aproximação da variação histórica de definições do conceito de paz, verificando mudanças e permanências, e refletir criticamente sobre o fato de que, em estudos sobre o tema, constantemente as abordagens se voltam para o conceito de violência. Uma hipótese a ser examinada consiste em que estudos da paz nos quais a centralidade cabe não a ela mesma, mas à violência, podem ser interpretados levando em conta essa variação histórica. O segundo consiste em estudar dois filmes, o mexicano Heli (Amat Escalante, 2013) e o brasileiro Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019). Em ambos os casos, críticos apontaram a violência como um elemento fundamental em suas configurações. A esse respeito, cabe indagar se, em articulação com essa violência, seria possível falar em uma presença de paz nessas narrativas. Entre esses dois desafios, foi construída uma mediação acadêmica, composta de elementos oriundos da antropologia, da filosofia e da teoria da narrativa. Essa mediação tem o propósito de acolher os dois desafios em uma convergência, para confrontar uma dúvida, para a qual este trabalho não tem uma solução conclusiva: como narrar estórias de paz? Agradeço muito a Carmen Chinas, Christine Hatzky, Héctor M. Leyva, Ileana Rodriguez, Jochen Kemner, José Vicente Tavares dos Santos, Juan Pablo Gómez, Vittoria Borsò e Werner Mackenbach, pela ótima convivência, e por tudo que pude aprender. Sou grato também porque, mesmo com a ocorrência da pandemia de Covid 19, que impediu uma viagem para um período de pesquisa na Universidad de Guadalajara, os coordenadores do Laboratório acolheram a minha presença, incentivando a realizar pesquisas e integrar atividades em casa, em São Paulo. Agradeço também ao CNPq, que apoiou as atividades de pesquisa do projeto “Literatura e Cinema no Brasil contemporâneo”, com uma bolsa de produtividade de pesquisa; aos amigos Ana Cecília Olmos e Marcos Piason Natali, da Universidade de São Paulo, pelos incentivos para realizar este trabalho; e em especial, a Joachim Michael, interlocutor essencial e amigo inestimável. • ix • Capítulo I Violência e paz: desafios conceituais Variações conceituais Em seu ensaio “Images of peace”, Thomas Hippler elabora uma reflexão sobre a história do conceito de paz, entre a Antiguidade Clássica e o Iluminismo. Em uma parte do texto, o autor concentra atenção no período medieval, destacando ideias a respeito da paz elaboradas no contexto do cristianismo. Nesse contexto, aponta Hippler, foi formulada uma distinção entre a paz humana e a paz divina. A primeira seria temporal, enquanto a segunda seria eterna. No âmbito da paz humana, existiria uma constante ameaça motivada pela existência do mal na natureza humana, de maneira que essa paz seria marcada por uma fragilidade1. São Tomás de Aquino, segundo o ensaio, teria proposto uma distinção entre uma paz verdadeira (pax vera) e uma paz aparente (pax apparens). Essa diferenciação residiria em um respeito a Deus, considerado o fundamento da justiça, no primeiro caso, e não na paz aparente. A possibilidade de uma harmonia entre os seres humanos dependeria, em última instância, de um respeito a Deus e às Escrituras2. Essa concepção implicaria em que apenas aos cristãos seria atribuída a possibilidade da paz, pela especificidade de suas crenças. Com isso, entre as ideias cristãs, foram desenvolvidas perspectivas de legitimação de guerras contra aqueles que contrariassem os princípios da fé cristã. A paz, considerada possível sob a condição do respeito às crenças, não seria tomada como contraditória com relação a movimentos destrutivos contra hereges. De acordo com o ensaio, nada impediria ações destrutivas contra aqueles que não partilhassem da fé cristã3. Na Idade Média, ainda segundo Hippler, era utilizado o conceito de “paz interna”, em oposição à “paz externa”. Nesse período histórico, a “paz interna” seria interpretada como 1 2 3 HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.47. HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.49-50 HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.52-53 Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg •1• um estado no qual a alma, moralmente, estaria em acordo com as ordens divinas 4. Dentro das mudanças históricas nas formas de conceituar a paz, é importante dar atenção à transformação do significado atribuído a esse conceito. No século XVII, a noção de “paz interna” se refere a uma “ausência de guerra civil” dentro de um grupo social5. Nesse sentido, o conceito de paz deixa de estar configurado como um elemento da vida individual, passando a ser entendido predominantemente como um atributo coletivo. Ainda conforme o ensaio “Images of peace”, para compreender as significações modernas do termo paz, cabe apontar para a expectativa, por parte das sociedades, de uma garantia de segurança, que caberia ao Estado sustentar6. De acordo com essa concepção, teria sido abandonada a expectativa de uma paz efetiva, constituída por Deus, em favor de um entendimento político de que a obtenção da paz resultaria de uma soberania do Estado. No horizonte desse entendimento, a “paz interna” estaria voltada para práticas dentro de uma sociedade ou um país, e a “paz externa” seria estabelecida entre diferentes sociedades ou países. Para Thomas Hippler, essa transformação conceitual provocou um esvaziamento daquilo que anteriormente se entenderia como o estabelecimento de uma paz no interior de cada indivíduo7 . Com essas transformações na modernidade, ocorreram desdobramentos no que se refere aos debates sobre as premissas necessárias para definir em que consistiriam situações efetivamente pacíficas. Sem que desaparecessem os impactos de ideias tradicionais cristãs, que admitiam atribuir a cada indivíduo uma caracterização moral própria, com o Iluminismo, são elaboradas transformações nas acepções do termo paz. A importância atribuída à paz externa foi historicamente articulada com perspectivas teleológicas de proposições de progresso nas sociedades europeias; esse progresso dependeria das atitudes de governantes, que poderiam ou não (à revelia das necessidades das sociedades que governavam) estabelecer contratos uns com outros, na esfera internacional. É nessa esfera de poder que seriam decididos os rumos políticos inclinados para a violência ou o entendimento entre as diferentes sociedades. Nessas condições, o termo “paz” faria referência a uma determinação, contemplando interesses de diferentes governantes, em comum acordo, de eliminar ações destrutivas. É diante desse quadro histórico que a filosofia propõe discutir a ideia de paz perpétua8. A sustentação de um estado de paz entre diferentes sociedades, em longa duração, dependeria de que governantes não estabelecessem acordos de paz se tivessem intenções veladas, por exemplo, um objetivo tático de preparar condições para uma futura guerra. 4 5 6 7 8 •2• “(...) since the Christian concepts of the Middle Ages, the concept of internal peace referred to the moral individuality: internal meant internal to the Christian soul”. HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.59. HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.54. Com relação a esse ponto, Hippler reflete a respeito de proposições de Thomas Hobbes. HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.57. HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.60. Com relação a esse ponto, Hippler reflete a respeito de proposições de Immanuel Kant. HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.63-64. Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 De acordo com “Para a paz perpétua – um esboço filosófico”, de Immanuel Kant, “o estado de paz entre homens que vivem um ao lado do outro não é um estado de natureza (status naturalis), o qual é bem mais um estado de guerra”9, no qual existem constantes ameaças de hostilidade. Para o autor, as guerras consistem em “tentativas (...) de criar novas relações entre os Estados”, e diante delas é necessário criar legislações “coletivas no âmbito externo” 10 que permitam evitar que as circunstâncias motivadoras de guerras sejam evitadas. Por essas razões, “o estado de paz precisa ser instaurado”11, pois uma ausência de hostilidades em si mesma, conforme o autor, não assegura que conflitos não surjam. A reflexão de Kant é motivada contextualmente, pois o pensador “se situava diante de um amplo debate (...) que confiava a responsabilidade da erradicação definitiva da guerra ao novo ordenamento político que ia se constituindo”12. Uma das posições contrárias às ideias de Kant era encontrada em reflexões de Hegel, para quem “uma união universal dos povos pela paz perpétua seria a senhoria de um povo, ou um só povo; a sua individualidade seria anulada”13. O estabelecimento de uma paz entre nações, nessa perspectiva, seria uma estratégia de dominação por parte de um poder hegemônico. Com o avanço da politização do conceito de paz, os fundamentos religiosos medievais esvaecem historicamente. Com isso, é modificada a própria matéria constitutiva da paz; ela não seria, prioritariamente, um modo de viver ou uma qualidade, mas um trabalho, que precisaria ser atribuído a quem detém o poder14. Junto a essa posição, seria necessário considerar que o termo paz refira a objetivos a serem alcançados15, e não a uma realidade material presente para quem o enuncia. Nessa perspectiva, a palavra paz poderia ser definida como uma ausência de violência, ou seja, como um movimento contrário a uma tendência dominante de destruição; ao invés de representar a paz como uma experiência determinada e delimitada, essa posição estaria voltada para avaliar acontecimentos que impedem a “resolução (ou não)” de práticas de violência16, e nisso consistiria a produção de saber sobre a paz. Como premissa, caberia admitir que frequentemente relações entre países são competitivas e, conforme Barry Buzan, contar com a paz expressaria um interesse em eliminar a violência entre esses 9 10 11 12 13 14 15 16 KANT, Immanuel. Para a paz perpétua. Um esboço filosófico. In: GUINSBURG, Jacó, org. A paz perpétua – um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004. P.37-38 KANT, Immanuel, apud ROSENFELD, Anatol. O problema da paz universal: Kant e as nações unidas. In: GUINSBURG, Jacó, org. A paz perpétua – um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004. P.91. KANT, Immanuel. Para a paz perpétua. Um esboço filosófico. In: GUINSBURG, Jacó, org. A paz perpétua – um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004. P.37-38. LOSURDO, Domenico. Um mundo sem guerras. A ideia de paz das promessas do passado às tragédias do presente. São Paulo: Ed. UNESP, 2018. p.29. HEGEL, apud LOSURDO, Domenico. Um mundo sem guerras. A ideia de paz das promessas do passado às tragédias do presente. São Paulo: Ed. UNESP, 2018. p.162. “(...) it is a duty to establish peace in the international realm.” HIPPLER, Thomas. Images of peace. The New Centennial Review, v.13, n.1. p.66. GALTUNG, Johan. Violence, peace and peace research. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.167. CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ. A conceituação da paz e da violência. In: _____. O estado de paz e a evolução da violência: a situação da América Latina. Campinas: Ed. UNICAMP, 2002. p.23. Nesse texto, a definição está fundamentada em estudos de Johan Galtung. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg •3• países17. Uma tarefa necessária para o estabelecimento de condições sociais favoráveis à paz, seria, de acordo com esse ponto de vista, perceber com detalhamento e clareza a diversidade das práticas de violência em sociedade, sem restringir a atenção a guerras. Conforme as reflexões do Centro Internacional de investigação e formação para a paz, dirigido por Roberto Dominguez, Rafael Sanseviero e Isabel Vázquez, a defesa de direitos humanos estaria associada a um entendimento coletivo dessa diversidade, como se o reconhecimento, por parte de uma sociedade, de práticas violentas específicas motivasse a delimitação de preceitos jurídicos capazes de impedir a realização dessas práticas. A busca por defender um direito humano específico seria, direta ou indiretamente, um empenho por eliminar um tipo específico de prática violenta. De acordo com essa posição, conceitualmente, (...) foi se delineando um novo conceito de paz. Segundo essa nova definição, a paz corresponderia à capacidade de uma sociedade de tornar visível e resolver favoravelmente os tipos de violência nela existentes. (...) Nessa direção, é possível reconstruir a história dos direitos humanos como a história das regulamentações jurídicas das violências até certo ponto encobertas.18 Como implicação dessa formulação conceitual, não caberia utilizar um conceito apriorístico ou ideal de paz, mas examinar a capacidade de uma sociedade reconhecer e superar as formas de violência nela praticadas19. Um desafio importante consiste em refletir sobre o conceito de paz sem que, obrigatoriamente, o parâmetro principal para a sua definição seja a inexistência de violência. Definir uma sociedade como pacífica não significaria, de acordo com essa posição, que nela, por uma expectativa ideal, inexistiria qualquer forma de confronto. Como propõem Joachim Michael, Christine Hatzky, Sebastián Fernandez e Heike Wagner, “la imposibilidad de alcanzar un estado sin ningún tipo de violencia no invalida el concepto de paz, ya que su sentido se revela en la oposición a la violencia, es decir, en las determinaciones y en los esfuerzos de reducirla, no en el hecho de su erradicación”20. Por clareza, seria necessário, diante da conhecida pluralidade de empregos do termo “paz” em espaços públicos, compreender diferenças fundamentais entre como, historicamente, os governantes utilizariam a palavra “paz”, e como pacifistas empregariam o mesmo termo21. Para Takeshi Ishida, é necessário considerar que, no ocidente, a ideia de buscar 17 BUZAN, Barry. Peace, power and security: contending concepts in the study of international relations. Journal of Peace Research, v. 21, 1984. P.112. 18 CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ. A conceituação da paz e da violência. In: _____. O estado de paz e a evolução da violência: a situação da América Latina. Campinas: Ed. UNICAMP, 2002. p.29. 19 CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ. A conceituação da paz e da violência. In: _____. O estado de paz e a evolução da violência: a situação da América Latina. Campinas: Ed. UNICAMP, 2002. p.32. 20 MICHAEL, Joachim; HATZKY, Christine; FERNÁNDEZ, Sebastian & WAGNER, Heike. ¿Latinoamérica y paz? Una introducción. In: HATZKY, Christine; FERNÁNDEZ, Sebastian; MICHAEL, Joachim & WAGNER, Heike, eds. ¿Latinoamérica y paz?: propuestas para pensar y afrontar la crisis de la violencia. Buenos Aires: Teseo, 2021. P.20. 21 ISHIDA, Takeshi. Beyond the traditional concepts of peace in different cultures. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.133. •4• Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 a paz constantemente aponta para a justificação de atos de violência, sendo que, em contraste, existe um desafio em procurar a paz de maneira, em si mesma, destituída de violência. Noutras palavras, cabe refletir sobre como seria possível confrontar injustiças com uma mente calma22, de maneira que a paz não se restringisse a ser um objetivo da sociedade, mas também um princípio de método para atingir esse objetivo23. Logo depois da Guerra Fria, foram estabelecidas linhas de atuação com relação à construção de paz entre diferentes nações. De acordo com essas linhas, a instauração da paz dependeria necessariamente de forças a serviço de uma política liberal em âmbito internacional, e nações ocidentais poderiam intervir, sob a justificativa de reduzir a violência onde julgassem oportuno, implementando ações em acordo com essa mesma política24. Entre as perspectivas desenvolvidas sob essa ótica, uma posição corrente consiste em que as condições para obtenção de paz estariam associadas a princípios liberais em sociedades democráticas, como a obtenção de “prosperidade econômica, riqueza” e ausência de necessidade de trabalho duro25; assim, só seria viável estabelecer paz social com capital financeiro. Leon Miller, por sua vez, defende uma integração entre princípios apresentados por Kant e proposições referentes às negociações econômicas internacionais. Para o autor, reflexões sobre a paz poderiam ser constituídas no âmbito da globalização, na medida em que as operações econômicas fossem realizadas segundo critérios racionais, respeitando as diversidades de formas de vida26. Levando em conta posições como as expostas por Barry Buzan27 e pelo Centro Internacional de investigação e formação para a paz28, as reflexões sobre possibilidades de obtenção de paz em sociedades estariam necessariamente associadas ao reconhecimento da presença de violência nessas sociedades, sendo esse reconhecimento uma premissa exigida. É como se o conceito de paz fosse destituído de autonomia; dessa forma, necessariamente, uma reflexão sobre esse termo obrigatoriamente estaria inserida em uma reflexão a respeito de violência. 22 ISHIDA, Takeshi. Beyond the traditional concepts of peace in different cultures. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.135. 23 “Only by fighting for peace by the non-violent method, can we overcome the contradictions involved in the concept of peace”. ISHIDA, Takeshi. Beyond the traditional concepts of peace in different cultures. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.140. Uma proposição similar é exposta por Kenneth Omeje, na página 19 do texto “Strengthening Peace Research and Peace Education in African Universities” (publicado em African Sociological Review / Revue Africaine de Sociologie , V. 19, 2015. 24 HALISTOPRAK, Burak Toygar. Knowledge production and its politicization within International Relations and Peace Studies. In: JONES, Bryony & LUHE, Ulrik, eds. Knowledge for peace. Transitional Justice and the Politics of Knowledge in Theory and Practice. Cheltenham: Edward Elgar, 2021. p.31. 25 No caso específico, a proposição se refere a ideias de Azar Gat. FOG, Agner. Warlike and peaceful societies. Cambridge: Openbook Publishers, 2017. p.73. 26 MILLER, Leon. Peace research in the digital age. International Journal on World Peace, Vol. 29, 2012. p.18-19. 27 BUZAN, Barry. Peace, power and security: contending concepts in the study of international relations. Journal of Peace Research, v. 21, 1984. P.112. 28 CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ. A conceituação da paz e da violência. In: _____. O estado de paz e a evolução da violência: a situação da América Latina. Campinas: Ed. UNICAMP, 2002. p.32. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg •5• Entre os dois conceitos, não existiria uma simetria simples, em acordo com essas orientações teóricas. O conceito de violência teria centralidade e função prioritária, sendo o conceito de paz uma espécie de recurso contrastivo. De acordo com Mariana Tello, a violência deveria ser examinada sob uma perspectiva positiva, em razão de que ela consistiria em “una forma de relación entre individuos y grupos que provoca fuerzas de fusión e fisión entre los mismos”29. Uma posição como a de Ishida, para quem a construção de estados de paz deveria ocorrer com recursos pacíficos30, se distinguiria das posições de Buzan, Tello e do Centro, pois Ishida desenvolve uma argumentação procurando manter a paz como protagonista das transformações sociais. Atribuir à violência uma centralidade, e em consequência situar a paz como um recurso contrastivo, seria uma escolha motivada por um princípio recorrente na tradição ocidental, que consiste em defender que não existiria uma possibilidade de vida humana sem antagonismo31. Esse princípio, em parte, se assemelha a uma das ideias expostas por Kant em “Para a paz perpétua – um esboço filosófico”, qual seja, de que “o estado de natureza” se assemelharia a um “estado de guerra”32. Uma reflexão de Frédéric Gros, a respeito do conceito de guerra, aborda, com clareza, esse princípio. Seria a violência em nós essa parte sombria, essa porção selvagem e rebelde em face de qualquer progresso (...) sua natureza incontornável, sua trágica finitude? Assim, a violência é simultaneamente repelida aos confins da humanidade e inscrita em seu núcleo mais inerradicável. Aquilo que no homem seria, ao mesmo tempo, o mais essencial e o mais remoto. (...) A história do mundo e dos povos é pontuada pelas guerras: foram elas que fizeram e desfizeram impérios, que traçaram as atuais fronteiras dos Estados. As grandes datas da história política são datas de batalhas, como tantas testemunhas de rupturas: o encerramento de uma época ou o surgimento de uma nova era. As guerras proveram um certo molde cultural e histórico à violência (...)33 De maneira interrogativa e autocrítica, Gros reflete a respeito da historicidade das guerras, diante do desafio referente à “natureza incontornável”, ou seja, à premissa de que a 29 TELLO, Mariana. El “nombre de guerra”. La actividad clandestina y las representaciones sobre la persona em la memoria de las experiencias de la lucha armada en los ’70. Estudios, n.16, 2005. P.111. 30 “Only by fighting for peace by the non-violent method, can we overcome the contradictions involved in the concept of peace”. ISHIDA, Takeshi. Beyond the traditional concepts of peace in different cultures. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.140. 31 Em contraste, se fosse estabelecido que sociedades fossem pacífica por princípio, a violência seria considerada, para Mariana Tello, um fenômeno “anormal”. TELLO, Mariana. El “nombre de guerra”. La actividad clandestina y las representaciones sobre la persona em la memoria de las experiencias de la lucha armada en los ’70. Estudios, n.16, 2005. P.111. 32 KANT, Immanuel. Para a paz perpétua. Um esboço filosófico. In: GUINSBURG, Jacó, org. A paz perpétua – um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004. P.37-38. 33 GROS, Frédéric. Fim da guerra clássica – novos estados de violência. In: NOVAES, Adauto, org. Novas configurações do mundo. São Paulo: Ed. SESC, 2017. P. 228. •6• Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 violência seria inerente, em geral, à humanidade. A argumentação utiliza o procedimento de delimitar uma aporia, entre a ideia de uma violência inerente ao humano (“essencial”) e a perspectiva de observar a violência à distância (“o mais remoto”). Como analisa Yves Michaud, esse princípio se estende na história da filosofia pelo menos entre o século XVIII e o século XX, aparecendo em textos de pensadores diversos34. É possível aceitar ou divergir da premissa de que, sem exceções, seres humanos seriam constituídos como voltados para a agressividade e o conflito, porém, essa premissa não poderia ser tomada como um argumento absoluto e excludente; como reflete Diana Francis, se olharmos para a história e encontrarmos séculos de guerra e crueldade, verificaremos também manifestações de sentido oposto – “(...) human resources can provide the basis for curbing and transforming our destructive capacities”35. Para Renato Janine Ribeiro, “Não é preciso predicar nenhuma violência constitutiva da psique humana, para produzir a guerra. É inteiramente desnecessário, e equivocado como hipótese, supor que haja assassinos por natureza”36. Diana Francis, por sua vez, questiona critérios socialmente aceitos para defender a violência, e elabora criticamente perspectivas de ruptura com esses critérios, como horizontes educacionais voltados para problematizar fundamentos de argumentações que defendem que guerras são eficazes e expor publicamente ações políticas favoráveis à destruição37. É importante observar que, historicamente, planejamentos de ações violentas, em guerras, genocídios e massacres, são realizados levando em conta decisões racionais e princípios científicos. Seria inconsistente ou ingênuo assumir uma premissa de que ações violentas ocorreriam apenas como resultados de impulsos irracionais ou como eventualidades descontroladas. De acordo com Joachim Michael, La violencia como sinónimo de la barbarie es la obsesión del pensamiento político moderno. Desde Thomas Hobbes, el Estado tenía la función de reprimir – violentamente – la violência (de todos contra todos). Esta auto-imagen de la modernidad como combate a la barbarie entró en crisis en el siglo XX cuando los horrores de las guerras mundiales y de los totalitarismos sólo permitían concluir que la civilización misma era origen de la barbarie (Reemtsma, 1996). El materialismo histórico ya establecía que la historia era una historia de explotación y de luchas de clases. En este sentido, Walter Benjamin advertía que, desde siempre, civilización y barbarie se confunden: No hay documento de la cultura que no sea a la vez documento de la barbarie 38 Os debates teóricos a respeito das causas da violência abrangem esforços de várias áreas de conhecimento. Michaud realiza, no livro A violência, um mapeamento de teses a respeito das definições de causas, em uma reflexão interdisciplinar, sem chegar a escolher 34 MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989. p.104 35 FRANCIS, Diana. Rethinking War and Peace. London: Pluto, 2004. P.61. 36 RIBEIRO, Renato Janine. Civilização sem guerra. In: NOVAES, Adauto, org. Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. P.212. 37 FRANCIS, Diana. Rethinking War and Peace. London: Pluto, 2004. P.155-158 38 MICHAEL, Joachim. Narco-literatura y violencia en México. Sociologias, n.34, 2013. p.54. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg •7• uma delas de maneira conclusiva. Em uma parte do livro, abordando contribuições da Sociologia, o autor escreve, como generalização, que “até um certo ponto a violência pode ser considerada como um instrumento legítimo de gestão pragmática dos conflitos”, e que “a violência é um aspecto inevitável da história”39. Essas observações expressam uma perspectiva para a qual a violência seria normalizada, pela sua constância e pelas funções a ela atribuídas. Seguir essa premissa resultaria em que a paz seria uma exceção, ou seja, uma vivência eventual e efêmera. Afirma Michaud: Como mostram as pesquisas sociológicas, um alto nível de violência constitui o aspecto normal da vida de muitos grupos sociais. (...) Podemos falar de culturas da violência, como foi a dos pioneiros da fronteira do Oeste americano, no século XIX. (...) Do mesmo modo, a violência e a permanente perspectiva da morte parecem fazer parte dos valores da sociedade mestiça mexicana. O México tem uma das maiores taxas de homicídio do mundo.40 Uma perspectiva teórica contemporânea, construída por Roberto Esposito, aponta para a necessidade de transformar os conceitos referentes aos estudos sobre violência, em razão de desafios lançados por especificidades de processos históricos das últimas décadas. No livro Bios. Biopolítica e filosofia, com base em processos sociais ocorridos em diversos países, como a França, a Rússia e a China, o filósofo discute relações entre corpo e sociedade na contemporaneidade, em uma perspectiva que acentua o caráter liminal da posição do corpo com relação à política e ao direito, questionando as maneiras como governos lidam com o valor de uma vida. Ao comentar um dos casos (os estupros étnicos em Ruanda), Esposito afirma que “estamos diante de uma espécie de indecidível, de um fenômeno de dupla face, no qual vida e política se unem num vínculo cuja interpretação requer uma nova linguagem conceitual”41. As reflexões sobre processos históricos violentos, por parte do autor, motivaram o reconhecimento de um desafio epistemológico. Levando em conta esse ponto de vista, seria necessário, reconhecendo a importância de ampliar o campo de estudos da paz, considerar que os estudos de violência também precisam de transformações substanciais, deixando de lado formas de pensar que reduzissem ou simplificassem excessivamente o assunto. Outro estudioso dedicado ao conceito de violência, Xavier Crettiez, ao abordar o tema da paz, apresenta uma formulação esquemática, segundo a qual caberia distinguir entre uma paz negativa e uma paz positiva. A primeira consistiria na ausência de guerras; a segunda, por sua vez, seria obtida com uma eliminação de uma violência estrutural na sociedade42. Essa posição diverge da opinião de Vittoria Borsò, para quem “la relación de paz y violencia ya no se puede configurar desde un concepto de paz entendido como “simple” ausencia de guerra”43. 39 40 41 42 MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989. p.94 e p.96. MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989. p.38. ESPOSITO, Roberto. Bios. Biopolítica e filosofia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2017. P.12. CRETTIEZ, Xavier. Las formas de la violencia. Buenos Aires: Waldhuter, 2009. P.15. Nesse trecho do texto, a formulação está fundamentada em estudos de Johan Galtung. 43 BORSÒ, Vittoria. Violencia de la paz y resistencia de las vidas en México. In: HATZKY, Christine; FERNÁNDEZ, Sebastian; MICHAEL, Joachim & WAGNER, Heike, eds. ¿Latinoamérica y paz?: •8• Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 Cabe observar, com relação a esse tema, que diversos trabalhos acadêmicos voltados para a compreensão da paz dedicam grande parte de suas argumentações para analisar formas de violência. Isso ocorre, por exemplo, em um periódico como Journal of Peace Research, cujo título delimita claramente seu foco prioritário de interesses acadêmicos. Em “Violence, peace and peace research”, um trabalho publicado nesse periódico, Johan Galtung elabora uma minuciosa e extensa tipologia de formas de violência, utilizando diversos critérios (latente ou manifesta, intencional ou não intencional, f ísica ou psicológica, entre outros)44. Um leitor interessado em estudar a paz, ao estudar esse texto, certamente ampliaria seus conhecimentos sobre violência. De acordo com Leon Miller, pesquisas a respeito de paz foram alvo de críticas por falta de suficiente fundamentação teórica45. Historicamente, estudos sobre o tema exigem lidar com desafios, tanto disciplinares como interdisciplinares. No Brasil, especificamente, ainda está por ser mapeado e consolidado um campo de estudos acadêmicos sobre a paz. Sociedades e violências A história da América Latina foi constantemente marcada por diferentes formas de violência; a complexidade dessa história seria constituída por entrelaçamentos de conflitos políticos, sociais e econômicos, cujos impactos, segundo Caroline Moser e Fiona Clark, ocorrem em quatro âmbitos – individual, interpessoal, institucional e estrutural46. Constantes episódios de violência política fragilizam, em diversos países, a sustentação de instituições estáveis47. Entre os fatores para essa constância, são encontrados o tráfico de drogas48, a extensa presença da pobreza49 e o fortalecimento do poder por parte de militares50. De acordo com Gustavo Ellenbogen, a história da América Latina, na segunda metade do século XX, foi constantemente marcada por conflitos ocorridos nos âmbitos de diversos países, incluindo Guatemala, El Salvador, Peru e Colômbia51. propuestas para pensar y afrontar la crisis de la violencia. Buenos Aires: Teseo, 2021. P. 449. 44 GALTUNG, Johan. Violence, peace and peace research. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.173. 45 MILLER, Leon. Peace research in the digital age. International Journal on World Peace, Vol. 29, 2012. P.14. 46 MOSER, Caroline & CLARK, Fiona. Gender, Conflict, and Building Sustainable Peace: Recent Lessons from Latin America. Gender and development, v.9, n.3, 2001. P.29. 47 HAKIM, Peter & LOWENTHAL, Abraham. Latin America’s Fragile Democracies. Journal of Democracy, V. 2, N. 3, 1991. p.19. 48 HAKIM, Peter & LOWENTHAL, Abraham. Latin America’s Fragile Democracies. Journal of Democracy, V. 2, N. 3, 1991. p.21. 49 HAKIM, Peter & LOWENTHAL, Abraham. Latin America’s Fragile Democracies. Journal of Democracy, V. 2, N. 3, 1991. p.24. 50 HAKIM, Peter & LOWENTHAL, Abraham. Latin America’s Fragile Democracies. Journal of Democracy, V. 2, N. 3, 1991. p.26. 51 ELLENBOGEN, Gustavo. Latin America’s internal wars. Journal of Democracy, V.2, 1991. Uma reflexão Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg •9• Em países da América Latina, em casos nos quais foram estabelecidas negociações de paz (Nicaragua, El Salvador e Guatemala), a economia neoliberal, sem estabelecimento de prioridades sociais, impediu a realização de planos de paz52. Para Marilena Chauí, esse tipo de economia sustenta, historicamente, o incentivo à desumanização e à violência: (...) o alargamento do espaço privado (o mercado), a recusa (...) da instância da lei e dos direitos, a ideia de soberania do mercado e da competição sem peias e sem tréguas, a percepção dos seres humanos como instrumentos descartáveis, a obtenção da maximização dos lucros a qualquer preço e os recursos tecnológicos “desregulados” e “flexíveis” criam as condições para o exercício ilimitado da violência, transformando-se em terreno fértil para o crescimento do crime organizado transnacional (...) com capacidade para aterrorizar, paralisar e corromper o aparelho judiciário e político, infiltrando-se nos governos (...)53 O neoliberalismo, como política governamental, no caso do México, estaria associado à violência do país. Para Vittoria Borsò, (...) la violencia latente y manifiesta en la historia contemporánea de México requiere un giro biopolítico que proporcione métodos para a) arrojar luz respecto a la captura de la vida por regímenes políticos y por la violencia implícita de “artes de gobiernos” que administran el cuerpo social, incluso liberalismo y neoliberalismo, (...) y b) métodos capaces de hacer emerger o instaurar fuerzas vitales que resisten a la violencia.54 Na história contemporânea do México, podem ser observados processos políticos impregnados pela política neoliberal, como a privatização de empresas públicas e a expansão de fluxos comerciais55. Nesse contexto, são encontradas múltiplas formas de práticas violentas, incluindo uma intensa “ola criminal”, efeitos de “ligas entre los delincuentes e la policia” e assassinatos de indígenas56. Para Samuel Schmidt, a democratização no país “es formalista, de carácter legal, y se lleva a cabo por decreto gubernamental (...)”, sem incluir elementos esperados em um regime democrático, como “transparencia en el juego político, tolerancia a la dissidencia y respeto a los 52 53 54 55 56 afim foi desenvolvida por Claudia Wasserman, em “A formação do Estado Nacional na América Latina: as emancipações políticas e o intrincado ordenamento dos novos países” (em WASSERMAN, Claudia, org. História da América Latina: cinco séculos. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1996. AUCHTER, Craig. Review. Canadian Journal of Latin American and Caribbean Studies, V. 26, No. 51, 2001. P.122 CHAUÍ, Marilena. A violência neoliberal. In:___. Sobre a violência. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. P.196-197. BORSÒ, Vittoria. Violencia de la paz y resistencia de las vidas en México. In: HATZKY, Christine; FERNÁNDEZ, Sebastian; MICHAEL, Joachim & WAGNER, Heike, eds. ¿Latinoamérica y paz?: propuestas para pensar y afrontar la crisis de la violencia. Buenos Aires: Teseo, 2021. P. 450. MÁRQUEZ, Graciela & MEYER, Lorenzo. Expansión del neoliberalismo económico, endurecimento del presidencialismo y crisis del autoritarismo. In: GARCIA, Erik et alii. Nueva historia general de México. Ciudad de México: El Colegio de México, 2010. P.756-757. MÁRQUEZ, Graciela & MEYER, Lorenzo. Expansión del neoliberalismo económico, endurecimento del presidencialismo y crisis del autoritarismo. In: GARCIA, Erik et alii. Nueva historia general de México. Ciudad de México: El Colegio de México, 2010. P.763-764. • 10 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 resultados electorales”57. Na opinião de Jorge Castañeda, na história recente do país, muitas leis foram criadas, mas não foram efetivamente aplicadas; a Constituição teria sido “infinitamente emendada”, os endossos a convenções internacionais não resultavam em soluções para os problemas do México, e existiam “artimanhas (...) para driblar as regras e regulações”58. No caso do Brasil, vários estudos em história e ciências sociais abordaram a extensa e complexa presença de práticas violentas na formação do país59. Um passado marcado pela colonização e pela escravidão tem ramificações e repercussões que se disseminam até o momento presente60. A história do país, segundo Antonio Candido, é marcada por sangue61. Genocídios, chacinas e massacres precisam ser lembrados. Durante dois períodos de regimes ditatoriais, o Estado Novo e a Ditadura Militar, a violência foi exercida pelo Estado de maneiras variadas e cruéis. Entre 2019 e 2022, o país foi atravessado, no governo federal, em diversas instituições e grupos sociais, por ideias autoritárias e ideologias de extrema direita. O Brasil, encampado por forças do neoliberalismo, assistiu a uma multiplicação de registros de posse de armas pela população, a manifestações em favor da volta da ditadura, e a tributos prestados a torturadores. Universidades foram atingidas com cortes opressivos de orçamentos, e foram muito reduzidos os apoios a pesquisas em Humanidades. Foi nesse contexto, hostil à educação e à cultura, que este trabalho foi realizado. Os filmes Heli e Bacurau, que serão comentados mais adiante, foram recebidos por críticos como narrativas caracterizadas por violência. O primeiro sugere, com algumas de suas cenas, que viver no México pode representar um risco constante, pela intensidade e pela diversidade de formas de violência. O protagonista Heli não traficou nem consumiu drogas, e no entanto, foi submetido a espancamento e confinamento, além de ver seu pai morto. O filme mostra uma convergência entre inocência e violência arbitrária. A comunidade de moradores, no segundo filme, depois de ver dois homens e um menino assassinados, se prepara, em nome da sobrevivência, para resistir ao ataque brutal e cruel de invasores, cujo exercício de violência provoca satisfação e prazer. Em nenhum dos casos, a ultrapassagem de dificuldades ocorre exclusivamente de forma pacífica, o que contraria as expectativas de Takeshi Ishida62, que defendeu a busca 57 SCHMIDT, Samuel. Lo tortuoso de la democratización mexicana. Estudios Interdisciplinarios de America Latina y Caribe, v.4, 1993. P.109. 58 CASTAÑEDA, Jorge. Uma espécie especial de leis. In:___. Amanhã para sempre. O México contemporâneo e seus desafios. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. P.264-267. 59 Entre outros, cabe lembrar dos seguintes. DA MATTA, Roberto. As raízes da violência no Brasil. In: ___ et alii. Violência brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. ZALUAR, Alba. O crime e a não-cidadania: os males do Brasil são. In: BIRMAN, Patrícia et alii. O mal à brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, 1997. PEDROSO, Regina Célia. Violência e cidadania no Brasil. São Paulo: Ática, 1999. CANCELLI, Elizabeth. A organização do sistema e as normas jurídicas: os primeiros tempos da República. In: SANTOS, José Vicente T, org. Violência em tempo de globalização. São Paulo: Hucitec, 1999. 60 RIBEIRO, Renato Janine. A dor e a injustiça. In: COSTA, Jurandir Freire. Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. 61 CANDIDO, Antonio. Censura-violência. In: ___. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 62 “Only by fighting for peace by the non-violent method, can we overcome the contradictions involved in Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 11 • da paz por meios pacíficos. Em termos metonímicos, ambos os filmes referem a seus países de origem como espaços opressivos, nos quais as condições de vida são precárias. Tanto Heli, ao encontrar um homem no local em que a irmã tinha sido confinada, como moradores de Bacurau, ao confrontarem os invasores armados, realizam ações violentas. the concept of peace”. ISHIDA, Takeshi. Beyond the traditional concepts of peace in different cultures. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.140. • 12 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 Capítulo 2 Além do binarismo Levando em conta que, frequentemente, estudos dedicados a compreender a paz são constituídos, em parte ou no todo, por reflexões sobre a violência, pode ser necessário refletir sobre quais as condições adequadas para produzir conhecimentos sobre a paz. Cabe pensar a respeito da constante inclinação, entre intelectuais, para atribuir, no âmbito de pesquisas acadêmicas sobre paz, centralidade ao tema da violência. Uma hipótese de reflexão pode ser proposta levando em conta um tema fundamental para diversas áreas, incluindo estudos de cinema e literatura – a construção de narrativas. Para compor essa hipótese, cabe lembrar algumas contribuições para o campo de estudos teóricos sobre narrativas. Teorias da narrativa (contos maravilhosos) O livro Morfologia do conto maravilhoso, de Vladimir Propp, consiste em um estudo tipológico de relatos russos. Com base em um amplo estudo de narrativas, procurando verificar o que esses relatos teriam em comum, o autor observou padrões reiteradamente encontrados em seu corpus de pesquisa. Embora esse trabalho tenha recortes específicos (narrativas breves, em circulação no contexto russo), ele se tornou referência, em termos conceituais, para diversas reflexões posteriores, com variados recortes. Nesse livro, estão expostas categorias gerais de análise, que podem ser utilizadas como referências; pode ser destacado, entre essas categorias, o conceito de “funções dos personagens”, com o qual Propp elenca e organiza padrões recorrentes de formas narrativas. Entre as funções apresentadas, cabe destacar duas funções, indicadas com os números VIII e XIX. VIII. O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família (definição: dano; designação: A) Esta função é extremamente importante porque é ela na realidade que dá movimento ao conto maravilhoso. O afastamento, a infração ao interdito, a informação, o êxito do embuste preparam esta função, tornam-na possível ou simplesmente a facilitam. (...) Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 13 • 1)O antagonista rapta uma pessoa. (...) 3)Ele saqueia ou destrói o que foi semeado. (...) 6)Ele inflinge danos corporais (A6). A criada, com uma faca, arranca os olhos de sua ama (127). A princesa corta os pés de Katomá (195). (...) 7)Ele provoca um desaparecimento repentino. (...) As irmãs colocam facas e agulhas na janela da jovem por onde Finist deveria entrar voando; ele fere as asas e desaparece para sempre (...) 14)Ele comete um assassínio (...) A princesa rouba a camisa mágica do marido e o mata (...) Os irmãos matam o mais novo e raptam sua noiva (...) A irmãzinha rouba as frutas do irmão e o mata (...) 18)Ele atormenta alguém à noite (...) 19)Ele declara guerra (A19). O czar vizinho declara guerra (161). Analogamente, o dragão devasta o reino (137).63 (...) XIX. O dano inicial ou a carência são reparados (definição: reparação de dano ou carência; designação: K) Esta função forma uma parelha com o momento em que aconteceu o dano ou a carência dentro do nó da intriga (A). Com esta função o conto atinge o ápice. (...) 4)A obtenção do objeto de busca é o resultado imediato das ações precedentes (K4). Se Ivan, por exemplo, matou o dragão e em seguida se casa com a princesa libertada (...) 9) O morto ressuscita (K9). Tira-se da sua cabeça o alfinete ou o dente da morte (202, 206). Borrifa-se no herói a água da vida e da morte. (...) 10)O prisioneiro é libertado. (...)64 As dinâmicas das narrativas, em acordo com essa teorização, dependeriam da eficácia obtida pela articulação das funções VIII e XIX. Para que inicie uma transformação, capaz de propiciar a um relato uma movimentação, com episódios transformadores, é fundamental que ocorra um dano; e para que o relato atinja um auge, no que se refere ao impacto dos acontecimentos, está indicado que seja esperado um reparo a cada dano. Essa articulação sustentaria uma lógica para o encadeamento do relato. O detalhamento das funções de Propp mostra que, entre o dano e o reparo, podem ocorrer diversas formas de transformação, com episódios de combates (função XVI) nos quais pode ser derrotado o seuantagonista (função XVIII), deslocamentos (função XV), provas (função XII) e outros processos. Pode ocorrer de “o herói e seu antagonista” se defrontarem, por exemplo, em uma luta “em campo aberto”, e o antagonista terminaria a luta “vencido” nesse local65. 63 PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P.35-38. 64 PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P.51-53. 65 PROPP, Vladimir. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P.50 • 14 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 De acordo com essa configuração teórica, o dano seria um componente imprescindível para sustentar uma narrativa. Em outras palavras, é como se os relatos, por padrões reiterados, tivessem um núcleo composto por um estado inicial (que pode ser, por exemplo, de harmonia ou estabilidade) e uma ruptura, estabelecida pela ocorrência do dano. Para esses padrões, o reparo significaria o retorno a uma estabilidade, que teria existido inicialmente, e perdida por ação de um antagonismo. Dentro dessa perspectiva teórica, é possível formular que, considerando a ampla circulação de contos populares, seja na tradição oral ou em registros escritos, a reiteração de padrões estabeleceria parâmetros regulares para a recepção por parte dos ouvintes ou leitores. Isso significaria que hábitos culturais podem motivar pessoas a acompanharem relatos sobre assassinatos, raptos, destruições, guerras, esfaqueamentos, mutilações, roubos, torturas e devastações. Com esses hábitos, as expectativas de recepção ficariam, ao menos parcialmente, moldadas pela admissão desses temas, como formas de obter satisfação. Claude Bremond, tendo como base as reflexões de Vladimir Propp, elaborou uma reflexão teórica acentuando a importância de elementos binários – degradação e melhoria; mérito e recompensa; demérito e castigo66. Esses elementos corresponderiam, em termos formais, a uma “sequência elementar”, potencialmente reiterada na tradição oral e impregnada em diversas obras literárias. Essa sequência incluiria: “uma situação que “abre” a possibilidade de um comportamento ou de um acontecimento (...) a passagem ao ato desta virtualidade (...) o resultado desta ação, que “encerra” o processo por um êxito ou fracasso”67. A elaboração de Bremond está ligada aos conceitos de dano e reparo em Propp, sendo acrescido um componente que, oposto ao reparo, representaria a ausência de superação do dano, o “fracasso”. Assim como Propp, em suas funções, empregou as categorias de “herói” e “antagonista”, Bremond organiza sua reflexão sobre matrizes canônicas das narrativas levando em conta expectativas, reiteradas por tradições, induzidas para resultarem em reações de satisfação ou frustração, por parte do público leitor68. O primeiro par de elementos – degradação e melhoria – equivale, em termos formais, às funções VIII e XIX designadas por Propp. Bremond, refletindo sobre esse par de categorias, expõe que essa configuração não seria um padrão absoluto, e seria necessário considerar relatos diferentes; ele se refere a contos “eticamente menos otimistas”69. Para sua avaliação, esses relatos perverteriam 66 BREMOND, Claude. Os Bons recompensados e os Maus punidos: morfologia do conto maravilhoso francês. In: CHABROL, Claude et alii. Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix, 1977. P.108. 67 BREMOND, Claude. A mensagem narrative. In: BARTHES, Roland et alii. Literatura e semiologia. Petrópolis: Vozes, 1971. P.128. 68 BREMOND, Claude. Os Bons recompensados e os Maus punidos: morfologia do conto maravilhoso francês. In: CHABROL, Claude et alii. Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix, 1977. P.135-136 69 Um exemplo apresentado pelo autor consiste em um relato, extraído de “As Mil e uma noites”, sobre um ladrão que rouba as economias de um cego e dois mendigos, ocorrendo uma briga na qual o vilão leva vantagem; com a chegada da polícia, o ladrão finge ser cego e mendigo, indica que os três homens seriam os transgressores, e o chefe de polícia manda espancá-los. BREMOND, Claude. Os Bons recompensados e os Maus punidos: morfologia do conto maravilhoso francês. In: CHABROL, Claude et alii. Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix, 1977. P.132 – 134. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 15 • a “matriz inicial” dos contos, deixando de prover satisfação ao público. Nesses casos, as estórias seriam “pessimistas” ou injustas; instauradas as degradações, não ocorreriam melhorias; heróis não seriam reconhecidos, e antagonistas não seriam punidos. Como afirma o autor, “o estado degradado que resulta” do dano “pode marcar, para a vítima, o fim da narrativa.”70 Ao enfatizar a importância desses casos, Bremond demonstra que o amplo interesse de ouvintes ou leitores por contos, além de admitir enredos marcados por assassinatos, destruições, guerras e outros tipos de “dano”, para os quais estariam reservados espaços para os respectivos “reparos”, sustentando interesse por casos em que não ocorre melhoria alguma, nos quais os efeitos do dano prevaleceriam até o final. O campo dos estudos teóricos acadêmicos sobre narrativas se desenvolveu muito desde o início do século XX. Os modelos de análise propostos por Propp e Bremond foram objetos de reflexões e divergências. Eles não são dominantes, nem hegemônicos, na atualidade, para o campo. Além disso, seus recortes são delimitados, os dois autores estavam interessados em contos tradicionais, e não em estudar todos os gêneros narrativos existentes. Cabe observar que os dois filmes comentados neste trabalho mais adiante, Heli e Bacurau, consistem em narrativas recentes, ambas com elevada complexidade nos recursos formais e nos temas; como não são contos populares de tradição oral, não cabe assumir, por generalização, uma expectativa de que os comentários sobre esses filmes fossem fundamentados nos modelos de Propp e Bremond e restritos a eles, embora a consideração de alguns de seus conceitos possa ser útil para examinar pontos específicos. Independentemente dessas especificações, esses modelos, sendo examinados academicamente com rigor e consciência crítica, podem ser úteis para organizar ideias a respeito de desafios do presente. É possível formular a hipótese de que as teorias de contos desses dois pesquisadores estejam convergindo para um horizonte epistemológico comum. Entre as afinidades, de acordo com esse horizonte, chama a atenção um interesse por categorias binárias. Esse tópico, para além da área de teorias da narrativa, é muito importante em outras áreas do saber, incluindo estudos de Antropologia. Antropologia e filosofia Mircea Eliade, em suas reflexões sobre fundamentos de tradições religiosas e culturais, observa o seguinte: As sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo que as cerca como um microcosmo. Nos limites desse mundo fechado começa o domínio do desconhecido, do não-formado. De um lado, existe um espaço cosmicizado, uma vez que habitado e organizado. Do outro lado, fora desse espaço familiar, existe a região desconhecida 70 BREMOND, Claude. A lógica dos possíveis narrativos. In: BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971. P.132. • 16 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 e terrível dos demônios, das larvas, dos mortos, dos estranhos – ou seja, o caos, a morte, a noite. (...) A destruição de uma ordem estabelecida, a abolição de uma imagem arquetípica equivalia a uma regressão ao caos, ao pré-formal, ao estado não diferenciado que precedia a cosmogonia. Notemos que as mesmas imagens ainda são utilizadas atualmente quando se trata de definir os perigos que ameaçam um determinado tipo de civilização: falamos, particularmente, do “caos”, da “desordem”, das “trevas”, que afundarão “nosso mundo”.71 A argumentação de Eliade trabalha com uma oposição entre “familiar” e “estranho”, na qual o primeiro termo corresponde a uma organização, e o segundo a um caos; e também com uma oposição entre “nós” e os “outros”, sendo o “nosso mundo” potencialmente ameaçado por quem seja diferente de “nós”. Nos contextos das sociedades tradicionais, nessa perspectiva, o binarismo estaria diretamente condicionado pelo ponto de vista de quem pensasse ou falasse, ou seja, um sujeito elaboraria um conhecimento do mundo, com base no que está próximo ou no que vivenciasse, e consideraria negativo qualquer elemento externo que causasse ruptura na ordem em que acreditasse viver. O esquema segundo o qual cosmos e caos são opostos, tem afinidades com os conceitos de Propp: um dano estabeleceria uma ruptura na ordem do mundo (criando um caos), e um reparo restabeleceria, de maneira simétrica, uma estabilidade anterior ao dano (reintegrando o cosmos). Claude Lévi-Strauss, em seu estudo sobre a cura xamânica, “A eficácia simbólica”, analisa um canto que, na tribo Cuna, no Panamá, um xamã entoa para uma mulher que não consegue parir. A eficácia da canção, apresentando um relato de confronto entre espíritos, estaria enraizada no fato de que a mulher conhece o sistema mitológico que fundamenta a “concepção indígena do universo”; nessa concepção, existiriam “espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais mágicos”. O xamã remove a estranheza perturbadora das dores, tornando-as, pela linguagem, uma parte desse sistema. É como se o sofrimento deixasse de ser um fenômeno estranho (caótico) para ser familiar (cósmico), conectado com os saberes da comunidade indígena .72 Em uma análise de formas de organização de tribos australianas, por parte de Emile Durkheim, é observado que, nessas tribos, as relações humanas são constituídas “como os dois termos de uma antítese”73, pois membros de um grupo ficariam em oposição aos de outro grupo. Essas referências, entre outras possíveis, apontam para a atribuição de importância, em situações de produção de saberes sobre o mundo, em tradições religiosas e culturais, da utilização de categorias binárias. É como se dentro dessas tradições, reiteradamente, a validação e a legitimação de um saber dependessem, epistemologicamente, de procedimentos comparativos; a produção de conhecimentos resultaria de observações sobre similaridades ou contrastes entre fenômenos; em especial, de distinções entre o que é familiar, e o que é estranho. 71 ELIADE, Mircea. A imagem do mundo. In:___. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 72 LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In:___. Antropologia estrutural. São Paulo: Cultrix, 1989. 73 DURKHEIM, Emile. Algumas formas primitivas de classificação. In: ___. Sociologia. São Paulo: Ática, 2000. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 17 • Para além de considerar essas tradições, é possível expandir a importância dessas distinções. Uma linha de raciocínio que pode ser encadeada com as observações antropológicas vem da filosofia, e diz respeito à função conservadora da produção de conhecimentos. Em uma reflexão epistemológica de Franklin Leopoldo e Silva, o tema da sustentação de ideias é prescrutado sob a perspectiva de uma crítica do conservadorismo. Trata-se de compreender por que a produção contínua de conhecimentos, em sociedades, não atua (como poderia ser esperado) como um fator para a solução de problemas sociais e de transformações coletivas. De acordo com o autor, de maneira geral, é possível crer que a produção de saberes pode ser destinada a cumprir uma função conservadora. Quando essa função se apresenta, de acordo com o filósofo, o entendimento não quebraria o ritmo racional da vida, porque sua função é justificar a conservação; assim, a promoção da mudança não provém do entendimento, mas da emoção; e a aceitação de outro valor também não passa pelo crivo do entendimento, mas depende diretamente da emoção. Com efeito, onde um sujeito singular encontraria o novo valor que o inspira se não fora dos hábitos que sustentam o status quo? E como essa inspiração poderia tocar outros sujeitos se não fosse apelando para a liberdade, isto é, para a suspensão dos hábitos consolidados? É desta forma que se dá o rompimento com o constituído e se revelam os atos ou o movimento constituinte de novos modos de vida.74 De acordo com a perspectiva adotada, o empreendimento de transformações em práticas humanas dependeria de rupturas com valores estabelecidos e consolidados; em condições habituais, destituídas de rupturas, o entendimento representaria um reforço (cognitivo, conceitual ou intelectual) de saberes previamente instituídos. Para construir conhecimentos novos, capazes de sustentar ações novas, seria necessário confrontar o status quo, tanto no que se refere a formas de produzir saber, como a formas de agir. A promoção de um encontro entre antropologia, epistemologia e teoria da narrativa poderia resultar em hipóteses de pesquisa. É possível elaborar reflexões em que sejam estabelecidas interlocuções produtivas entre as diferentes áreas de conhecimento. No presente caso, a hipótese de reflexão a ser exposta consiste em articular as dificuldades referentes à conceituação da paz com elementos trazidos de outras disciplinas. Não é possível perder de vista as especificidades de cada contribuição teórica, pois isso resultaria em tratar como homogêneo um conjunto heterogêneo de ideias, cujas circunstâncias históricas de produção são diversificadas. Respeitando essa heterogeneidade, é viável refletir sobre a paz com base nessas interlocuções. Ao desenvolver essa reflexão, cabe ponderar o seguinte. a)A teoria das funções de personagens, em Vladimir Propp, associa diretamente a movimentação de narrativas à ocorrência de danos no interior destas. Nas múltiplas situações, ao longo de tradições, em que ouvintes ou leitores se dedicaram ao acompanhamento de relatos, eram esperados confrontos entre figuras em oposição (um herói e um antagonista); além disso, como foi mencionado anteriormente, 74 SILVA, Franklin Leopoldo e. Crença, mística e saber oculto. In: NOVAES, Adauto, org. A invenção das crenças. São Paulo: SESC, 2011. P.129-130. • 18 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 assassinatos, guerras, esfaqueamentos e torturas faziam parte do repertório constantemente reiterado de episódios em narrativas tradicionais. A violência, portanto, é um elemento que pode ser considerado constitutivo de muitas dessas narrativas, desempenhando a função de dano, pois, sem ocorrer dano, não ocorreria movimentação nos relatos. Com essa premissa, cabe questionar como, ao longo da tradição, teriam sido elaboradas configurações de narrativas de paz. Com efeito, pelos parâmetros desse modelo teórico, a paz poderia estar representada na estabilidade inicial, antes do dano, e/ou no clímax que sustenta o encerramento, ou seja, no reparo. Tanto a harmonia inicial como a final contrastariam com o andamento do relato, encadeado a partir de um dano. É possível inferir que a paz, nas narrativas tradicionais, consiste em uma premissa e/ou um modo de encerrar uma narrativa, mas o andamento, que pode despertar interesse por parte do público, e que efetivamente pode motivar o interesse por formas narrativas, não corresponderia à estabilidade. A pesquisa de Propp sugere que os contos maravilhosos reservam à paz uma condição de ponto de partida narrativo e/ou de chegada, e não de centro de interesse para quem acompanha o relato. É nas dificuldades do herói, nas injustiças e nos sofrimentos, que reside o campo de interesse principal. Por homologia, seria possível inferir que, assim como nos casos das conceituações elaboradas por Barry Buzan75 e pelo Centro Internacional de investigação e formação para a paz76, no âmbito de uma teoria de contos populares, a violência também teria função prioritária e centralidade, e a paz apareceria como um recurso contrastivo. b) As contribuições de Claude Bremond, além de retomar ideias de Propp, trazem uma especificidade importante, que consiste em distinguir relatos populares entre otimistas e pessimistas. Sua pesquisa esteve voltada para compreender contos nos quais não existe reparo, ou seja, o fim de uma narrativa corresponderia, em seus termos, a um estado de degradação77. Essa teorização sobre contos pessimistas sugere que, nesse tipo de narrativa, o mundo não encontra superação de seus problemas, e a destruição é vitoriosa perante a expectativa de harmonização. Esses relatos apresentariam guerras e assassinatos sem que ocorressem punições para os antagonistas. Por homologia, essa configuração teórica remete às posições de intelectuais que consideram a violência como uma determinação constitutiva da história humana, da qual não se poderia escapar; essas posições defendem proposições gerais como “a violência é um aspecto inevitável da história”78 e “A história do mundo e dos povos é pontuada pelas guerras”79. c) As proposições conceituais que delimitam o estudo do conceito de paz de maneira necessariamente colada ao estudo do conceito de violência, como ocorre em Johan Galtung80, estariam alinhadas, ao menos em parte, por homologia, com 75 BUZAN, Barry. Peace, power and security: contending concepts in the study of international relations. Journal of Peace Research, v. 21, 1984. P.112 76 CENTRO INTERNACIONAL DE INVESTIGAÇÃO E INFORMAÇÃO PARA A PAZ. A conceituação da paz e da violência. In: _____. O estado de paz e a evolução da violência: a situação da América Latina. Campinas: Ed. UNICAMP, 2002. p.32. 77 BREMOND, Claude. A lógica dos possíveis narrativos. In: BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971. P.132 78 MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989. p.94 e p.96. 79 GROS, Frédéric. Fim da guerra clássica – novos estados de violência. In: NOVAES, Adauto, org. Novas configurações do mundo. São Paulo: Ed. SESC, 2017. P. 228. 80 GALTUNG, Johan. Violence, peace and peace research. Journal of Peace Research, v.6, 1969. P.173. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 19 • as concepções de mundo regidas por binarismos, estudadas pela Antropologia. As oposições entre cosmos e caos, ordem e desordem (por Mircea Eliade81), benfazejo e malfazejo, estranho e familiar (por Lévi-Strauss82), assim como a percepção geral de que a vida humana seria organizada em antíteses (conforme Durkheim83), expressam crenças nos efeitos de significação produzidos por categorias binárias. De diferentes formas, e em variados graus, como sugere Eliade, é possível observar na contemporaneidade empregos, circulações e atualizações dessas maneiras de referir ao mundo à volta. Não surpreende, tendo em vista a força das tradições, que o pensamento binário continue atuando como chave para produção de conhecimento. Por hipótese, cabe questionar se a necessidade de equacionar paz com violência seria, de alguma maneira indireta e mediada, uma espécie de alinhamento mental com os termos explorados pelos antropólogos. Nessa perspectiva, compreender o que é a paz dependeria de compreender, necessariamente, o que ela não é. d) Retomando os termos de Franklin Leopoldo e Silva sobre a produção de conhecimento, em contextos conservadores, essa produção pode servir para a continuidade de modos de viver e de pensar. Em hipótese, e levando em conta novamente as ideias de que a violência é incontornável na história84 e de que a história do mundo é marcada pelas guerras85, o conservadorismo corresponderia a sustentar o prolongamento dessas formas de vida. Portanto, com teorias e posições intelectuais conservadoras, estudos da paz podem reiterar a legitimação da violência. Como diz o autor, é por emoções que a rotina pode ser rompida e o status quo pode ser confrontado. Em hipótese, por exemplo, uma emoção emoção a considerar seria a empatia; em outras palavras, uma capacidade de reconhecer, respeitar e se solidarizar com sofrimentos de outros. Se e quando a empatia ganhasse força e extensão, nessa perspectiva, a ruptura com um status quo social violento poderia ser estimulada. Utilizando os termos do autor, os “hábitos consolidados”86 de práticas de violência seriam então reavaliados; a paz representaria, para esse raciocínio, uma ruptura, e uma instauração de formas de vida renovadas. 81 ELIADE, Mircea. A imagem do mundo. In:___. Imagens e símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. 82 LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In:___. Antropologia estrutural. São Paulo: Cultrix, 1989. 83 DURKHEIM, Emile. Algumas formas primitivas de classificação. In: ___. Sociologia. São Paulo: Ática, 2000. 84 MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989. p.94 e p.96 85 GROS, Frédéric. Fim da guerra clássica – novos estados de violência. In: NOVAES, Adauto, org. Novas configurações do mundo. São Paulo: Ed. SESC, 2017. P. 228 86 SILVA, Franklin Leopoldo e. Crença, mística e saber oculto. In: NOVAES, Adauto, org. A invenção das crenças. São Paulo: SESC, 2011. P.129-130. • 20 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 Capítulo 3 Notas sobre cinema Heli, de Amat Escalante Antagonismos formais A primeira cena de Heli, um filme dirigido por Amat Escalante, expõe, lado a lado, um rosto de um homem, e a parte inferior do corpo de outro. Os recursos sonoros indicam que eles estão em um veículo em movimento. O rosto apresenta marcas de sangue, e está sob uma bota que o pressiona agressivamente, como chama a atenção Juan Carlos Reyes-Vázquez87. Aos poucos, a câmara se move de maneira a contemplar os corpos dos dois homens em sua extensão. Alternadamente, o espectador é apresentado ao percurso do veículo na estrada. Em alguns momentos, a câmara se posiciona atrás do motorista e dentro do veículo. O efeito é de que o espectador poderia contemplar os acontecimentos no interior da cena, junto aos homens estendidos. Esse trajeto inicial é interrompido, e esses dois são carregados por outros homens para uma ponte. Um deles é amarrado e jogado, ficando pendurado nessa ponte. O outro é deixado no local. Os outros voltam ao veículo e partem, deixando a cena (00:03:30). A câmara mostra um movimento de distanciamento da ponte, como se o olhar estivesse sendo sustentado no interior do veículo. Ilse Mayté Murillo Tenorio e José Salvador Arellano Rodriguez realizaram a seguinte descrição do trecho: La primera secuencia inicia con un close up al rostro ensangrentado de un joven. A la par se ven los pies de otro joven. Los cuerpos son transportados en la parte 87 REYES-VÁZQUEZ, Juan Carlos. Usos de la violencia en el cine de Amat Escalante. La Colmena, 111, 2021, p.87. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 21 • trasera de una camioneta blanca tipo pick up. (…) La camioneta hace parada a la altura de un puente peatonal. Los hombres se bajan con premura de la camioneta para después ayudarse unos con otros a cargar los cuerpos de las víctimas. Con pasos acelerados suben el puente para colgar uno de los cuerpos ya inerte. La cámara queda fijada en el cuerpo que cuelga del puente por unos segundos, con los pantalones corridos hasta los talones y cubierto sólo por su ropa interior se mueve frente a la cámara cual péndulo88. Cabe destacar, nesta paráfrase, a presença dos termos “premura” e “acelerados”. O ritmo das ações sugere que elas não deveriam ser testemunhadas, e que os responsáveis pela situação não queriam ser vistos. Efetivamente o cenário é de um espaço aberto, e a imagem do rapaz pendurado foi composta para ser vista, ostensivamente, por quem eventualmente transitasse naquele local, como uma execução exemplar, que despertasse insegurança e medo na população. Naquele momento, nesse espaço, não são vistos sinais de presenças de outras pessoas, o que permite que os responsáveis não sejam identificados e permaneçam impunes. Pela escolha dos ângulos de filmagem, a focalização e a montagem contribuem para que os espectadores não tenham clareza sobre quem são aqueles homens. Em poucos minutos, o público é apresentado a uma sucessão de imagens inquietantes. A mancha de sangue no rosto, de imediato, sinaliza um sofrimento corporal. O estado f ísico dos corpos dos dois homens, exposto durante o deslocamento para a ponte, indica que eles se encontram sob o controle dos demais. Quando é mostrado o corpo de um rapaz sendo jogado da ponte, amarrado em uma corda, a imagem evoca o que poderia ser um enforcamento; de imediato, não é possível que os espectadores tenham certeza se o rapaz ali suspenso teria sido morto anteriormente, ou se teria morrido ao ser lançado da ponte. O impacto da cena pode sugerir que se trata de um assassinato, mas o público não é informado a respeito da razão pela qual um dos homens sobrevive, e outro não. O sofrimento corporal, o lançamento do rapaz amarrado e o abandono da cena pelos outros homens não recebem, neste início de filme, explicações causais ou justificativas. Ocorre um corte, e a câmara passa a mostrar um rapaz e uma moça (00:05:00), em uma aproximação que sinaliza um envolvimento. São Beto e Estela. A montagem expressa uma descontinuidade temporal, que será devidamente percebida posteriormente, quando os acontecimentos das cenas iniciais são retomados, mais de cinquenta minutos depois. A imagem do casal de jovens corresponde, em termos de localização temporal, a um período anterior às ocorrências na ponte. A ordem na qual os acontecimentos são expostos ao público não coincide com a sucessão cronológica de acordo com a qual eles teriam ocorrido. Para organizar este raciocínio sobre as imagens da ponte, as cenas iniciais serão referidas como a primeira inserção dessas imagens, e um trecho posterior do filme (em aproximadamente 01:02:00), no qual os acontecimentos das cenas iniciais são retomados, será referido como a segunda inserção. Ao assistir a esse segundo trecho, os espectadores 88 TENORIO, Ilse Mayté Murillo & RODRIGUEZ, José Salvador Arellano. Apuntes sobre la violencia en el cine mexicano contemporáneo. Una reflexión ético-moral en torno a Heli (Amat Escalante, 2013). Dilemata, Revista Internacional de Éticas aplicadas, n.30, 2009, p.204 • 22 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 já teriam sido expostos a eventos narrativos que podem permitir uma percepção diferente das ocorrências naquele local. No momento em que ocorre a segunda aparição da ponte, o espectador estaria ciente de que os dois homens levados no veículo são Heli, o protagonista do filme, e Beto, o rapaz com quem Estela, irmã de Heli, se envolveu; nos termos de Tenorio e Rodriguez, “caemos en cuenta que Beto es el cuerpo que cuelga de la puente y que Heli fue abandonado a su suerte ahí mismo”89. Cabe observar que, na segunda inserção, o diretor retoma eventos das cenas iniciais, mas não reproduz a exibição das mesmas imagens da primeira. No veículo, desta vez, a imagem do rosto de um personagem ao lado da parte inferior do corpo de outro é exposta pelo avesso. No início, o rosto de Heli estava à direita no enquadramento, e na segunda inserção, ele aparece à esquerda. O movimento dos outros homens carregando os dois para a ponte não reaparece. Na parte inicial do filme, o público assiste ao momento em que Beto é jogado da ponte amarrado em uma corda, vendo o corpo do rapaz de frente. Na segunda inserção, a câmara escolhe um ângulo a partir do qual o corpo é visto de costas. Os primeiros minutos do filme são suficientes para reconhecer que essa obra de Escalante, lançada em 2013, propõe desafios. O público, deliberadamente, é como que chamado a acompanhar uma narrativa in media res, observar as ações em andamento e, diante delas, apresentar reações, mesmo sem saber os motivos pelas quais as ações ocorrem, ou quem são os personagens em cena. A ausência dessas definições pode ser compreendida como um recurso formal. Para descrever os primeiros minutos da obra, é necessário considerar que essa ausência tem uma função importante, a saber, propor aos espectadores um conjunto de dúvidas. Essa função é acentuada pelo ritmo da narrativa: entre a retirada do veículo dos dois homens que estavam estendidos e o momento no qual Beto é lançado com uma corda, o tempo de projeção é inferior a um minuto. A movimentação na ponte é observada à distância, sem que ocorra nenhum close que permitisse examinar os rostos dos indivíduos que ali deixam Heli e Beto. As indeterminações que marcam a situação (quem seriam os dois homens estendidos, quem seriam os outros que os levam à ponte, quais poderiam ser as causas dos acontecimentos, o que teria ocorrido antes) são importantes. Na segunda inserção dessas ocorrências, como foi mencionado, o público estaria ciente de que esses dois homens são Heli e Beto, e poderia retrospectivamente entender as cenas iniciais como antecipações. No entanto, formalmente, a posição da câmara se modifica, da primeira para a segunda inserção, para mostrar os corpos estendidos no veículo, e o ângulo escolhido para expor o corpo de Beto pendurado é diferente daquele utilizado anteriormente. A narrativa, de maneira ambígua, sugere uma identificação entre as cenas iniciais (logo após os créditos 89 TENORIO, Ilse Mayté Murillo & RODRIGUEZ, José Salvador Arellano. Apuntes sobre la violencia en el cine mexicano contemporáneo. Una reflexión ético-moral en torno a Heli (Amat Escalante, 2013). Dilemata, Revista Internacional de Éticas aplicadas, n.30, 2009, p.206. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 23 • de abertura e a exibição do título) e o trecho imediatamente anterior ao retorno de Heli para sua casa; porém, a escolha do diretor por não repetir os mesmos registros, mas apresentar as ocorrências por ângulos diferentes, demonstra a existência de uma variação de pontos de vista diante dos episódios narrados. Com isso, a segunda inserção das ocorrências na ponte, ao mesmo tempo em que permite ao público situar temporalmente o que foi mostrado nos primeiros minutos (o que contribuiria para ordenar a compreensão do relato), expõe o público a ângulos diferentes de percepção, o que contribuiria para um distanciamento crítico, capaz de suscitar questionamentos sobre as escolhas de ângulos de percepção ao longo de todo o filme, ou sobre os critérios adotados para realizar essas escolhas. Os procedimentos observados valorizam o recurso da variação da distância estética. Theodor Adorno, em seu ensaio “Posição do narrador no romance contemporâneo”, refletindo sobre obras de Marcel Proust e Franz Kafka, analisa a relação entre o narrador e o leitor de textos literários, propondo que, em romances tradicionais, a distância entre eles era “fixa”, enquanto que em Proust ela é variável. Adorno afirma: “(...) ela varia como as posições da câmara no cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas”90. Entre os argumentos para compreender a importância dessa variação, de acordo com o filósofo, está a ruptura com uma “atitude contemplativa” por parte do leitor91. Levanto em conta que, para refletir sobre narrativas literárias, o autor se refere diretamente ao cinema, a análise de Heli pode ser beneficiada por um diálogo com esse ensaio. Para retomar os fatores de variação da distância estética, cabe insistir em que Amat Escalante realizou duas inversões: o ângulo da câmara, no início da segunda inserção, está em uma posição inversa ao que é mostrado no início da primeira inserção; e o espectador está de frente para a imagem do corpo pendurado na ponte, na primeira, enquanto, na segunda, o corpo é visto de costas. Portanto, o espectador é reapresentado ao episódio das cenas iniciais, mas na segunda inserção o seu acesso ao que ocorreu é diferente. Com isso, o público poderia ser motivado a lembrar, por analogia visual, da primeira inserção, quando acompanhasse a segunda; mas uma inquietação poderia ocorrer, caso o mesmo público reconhecesse com precisão que os ângulos de câmara foram modificados. Essas inversões podem provocar “choques” estéticos, para empregar uma expressão de Adorno92; elas podem resultar em impactos nas condições de percepção. Podemos considerar esses procedimentos à luz do conceito de antagonismo, tendo como referência reflexões de Theodor Adorno sobre antagonismos e formas artísticas, em sua Teoria Estética93. Com a mediação desse conceito, é possível caracterizar dois recursos de construção: 90 91 92 93 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2003. P.61 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2003. P.61. ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2003. P.61. ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Lisboa: Martins Fontes, 1988. P.16. • 24 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 (a) Um antagonismo entre delimitações referentes ao que pode ser visto: entre a exposição de ocorrências na ponte, nas cenas iniciais, e a segunda inserção dessas ocorrências, antes do retorno de Heli para casa, existe uma conexão temática, pois ambos os trechos fazem referência a um mesmo episódio na vida de Heli; mas os ângulos utilizados se distinguem, e alguns elementos (como o movimento de carregar os homens na ponte) estão presentes nas cenas iniciais, mas não reaparecem na segunda inserção do episódio. Embora duas partes do filme estejam efetivamente se voltando para um mesmo episódio, cada uma delas se reporta a ele de modo formalmente específico. É constituído um antagonismo, impregnado sob a aparência de uma reiteração; quando o episódio da ponte é evocado pela segunda vez, as condições para atribuir significação a ele são muito diferentes, de maneira que não se trata apenas de uma repetição. (b) Um antagonismo entre indicações referentes a percepções sobre os acontecimentos: as indeterminações, mencionadas anteriormente, podem dificultar a compreensão do que se passa, e essa dificuldade pode motivar o público a ter um distanciamento reflexivo a respeito do que vê; por outro lado, a escolha por posicionar a câmara, em alguns momentos, dentro do veículo, atrás do motorista, propõe uma sugestão imersiva, como se o espectador tivesse condições de observar aquilo que veria se estivesse no veículo, participando diretamente das ações. De acordo com essa premissa, o olhar delimitado pela câmara, que observa a estrada, não poderia ser de Beto ou Heli, mas teria de ser atribuído a um dos outros homens envolvidos nos acontecimentos. Esse olhar realiza um movimento, partindo do enquadramento do rosto de Heli, observando os corpos estendidos, até se posicionar próximo do motorista, visto de costas. Ainda que de maneira muito breve, é através desse olhar que o espectador estaria observando o que ocorre à volta. Os modelos de Propp e Bremond, comentados anteriormente, são conceitualmente insuficientes para uma análise formal apropriada desse filme; o conceito proposto por Theodor Adorno, a variação da distância estética, por outro lado, é pertinente. Essa insuficiência não impede, no entanto, de propor uma observação específica. Em hipótese, seria possível especular que o filme Heli teria uma harmonia inicial (a vida em família), um dano (a devastação da família, incluindo a morte do pai, o desaparecimento de Estela e a tortura de Heli), e um reparo (Heli se reconcilia com a esposa e Estela, libertada, está novamente em casa). Essa especulação, no entanto, é inconsistente e simplifica excessivamente o objeto de estudo. O início do filme, em media res, não mostra uma harmonia familiar, mas o rosto manchado com sangue de Heli, que se encontra estendido, sendo levado pelo grupo de torturadores para a ponte. O roteiro não cria o que Propp considerava uma situação inicial adequada, ele estabelece de imediato choque estético com a imagem de abertura. O final não pode ser considerado um reparo; o pai, além de ter morrido, teve o corpo removido, de modo que Heli não pôde realizar o seu enterro; Estela, embora libertada, termina calada, sem poder elaborar em palavras o impacto traumático de seu período de desaparecimento; Heli, pouco antes do final, agride um homem encontrado no local em que Estela teria sido aprisionada, e as imagens não permitem saber se esse homem teria ficado ou Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 25 • não vivo. Portanto, o filme se afasta, minuciosamente e de várias formas, da lógica ordenadora atribuída a contos maravilhosos tradicionais. Na construção do espaço da cidade, predominantemente, considerando os eventos ocorridos, é sugerido um efeito claustrofóbico de que não existe oportunidade de escape para repouso. Desde a casa da família de Heli, ao espaço em que Beto realiza seu treinamento militar, incluindo o local em que Heli dialoga com os policiais, e o espaço em que Beto tem o corpo exposto ao fogo na tortura, os espaços narrativos acolhem imagens de destruição, repressão, controle, violência, hostilidade, ou vários desses elementos em integração. A cidade não mostra oportunidades de socialização integradora ou solidária entre grupos diferentes; é como se fosse praticamente impossível para o protagonista e seus familiares ficarem seguros e tranquilos. Assistir à televisão consiste em uma vivência perturbadora, pela forma como a violência se apresenta na transmissão de notícias; as cenas de namoro entre Beto e Estela na parte inicial do filme, em cenários abertos e com pouca movimentação, ainda que impregnadas pela imaturidade de ambos, expõem a dominação invasiva da segunda pelo primeiro; quando Estela cuida do bebê, na parte final da narrativa, a aparência de tranquilidade silenciosa não elimina o impacto perturbador do efeito traumático dos acontecimentos sobre a menina. A cidade, ao final do filme, não reserva nenhuma chance de estabelecer um contexto de paz para os que nela vivem. Presença e ausência de Estela A construção da personagem Estela é elaborada com duas caracterizações fundamentais. A primeira consiste em salientar traços infantis, o que é elaborado principalmente com a configuração do seu quarto. Em 00:33:10, a personagem aparece dormindo envolta em bichos de pelúcia, com travesseiros cor-de-rosa e um cobertor com desenhos de flores. A segunda consiste em situar a menina no ambiente escolar. Em uma das cenas, ela aparece estudando na mesa de sua casa, e em outra aparece na própria escola. Em 00:43:40, a câmara apresenta Estela deitada em sua cama, e os brinquedos ganham nitidez, assim como os travesseiros. Na parede, são encontradas imagens de jogadores de futebol. Essas duas caracterizações ajudam a sugerir um despreparo da menina para lidar com os acontecimentos decorrentes de sua aproximação de Beto. Ela demonstra dificuldade para expor seu corpo diante do avanço do rapaz, não comenta com os familiares a respeito de seu interesse por ele, e coloca a cabeça junto ao ombro deste quando os dois tomam sorvetes. Na convivência entre Estela e Beto, na parte inicial do filme, é o rapaz que toma iniciativas com relação à aproximação. Oferece o cachorrinho como presente, expressa interesse f ísico, e a procura no meio da noite para esconder as drogas. Como salientam Tenorio e Rodriguez, • 26 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 Estela está muy enamorada de Beto, pero no quiere tener relaciones sexuales con él por miedo a quedar embarazada a tan corta edad. Sin embargo, Estela le demuestra su amor aceptando guardar en el tinaco de su casa unos paquetes de cocaína que Beto se ha robado del cargamento de narcóticos confiscado por el cuerpo policiaco al que él pertenece; a cambio Beto le promete llevársela lejos y casarse con ella tras vender la mercancía (…)94 O rapaz propõe para Estela um plano de viagem, querendo sair da cidade, levando-a com ele, e ela concorda. Uma imagem particularmente significativa do relacionamento está em 00:15:10, quando Beto usa o corpo da menina para um exercício f ísico, como se ela cumprisse a função correspondente a pesos e halteres. A imagem sugere uma dominação do corpo da menina. Esse exercício o leva a um cansaço, e Beto a deixa no chão. É como se ele estivesse querendo expor força muscular, por vaidade masculina, mas desistisse por exaustão. O uso do corpo da menina para esse fim sugere um envolvimento f ísico entre os dois, ainda que não inclua nudez ou órgãos genitais. A imagem antecipa a postura submissa de Estela que aparece, posteriormente, no momento em que as drogas são escondidas por Beto na casa da família de Heli. Uma combinação entre imaturidade e despreparo para lidar com Beto favorece uma disposição para que, quando este aparece à noite para guardar drogas roubadas na casa onde ela mora, ela concorde sem hesitar. Quando Heli volta para casa (00:35:20) e percebe o vulto de Estela junto da caixa d’água, corre para encontrá-la e falar com ela, mas a menina não conta nada. Heli, ansioso, bate em seu rosto; seu pai aparece com uma lanterna e interrompe o conflito. Naquele momento, Estela não expressa nenhuma consciência de consequências que poderiam resultar de sua aceitação do que Beto fez, e nenhuma disposição para explicar para seus familiares o que estava ocorrendo. Ela tem consciência, no entanto, de que, por alguma razão, suas ações deveriam ficar ocultas da família, o que é demonstrado quando, antes de ir para a caixa d’água, verifica se está sendo observada. Essa situação torna visível uma cisão da menina, entre uma vida regrada em família, e um conjunto de vivências ao lado de Beto. Com relação a essa divisão, o desejo de Estela se direciona para os interesses de Beto, de uma maneira transgressora. Pouco antes da invasão da casa, Heli decide deixar a irmã de castigo; empurra-a para o quarto e fecha a porta. A menina resiste e mostra indignação. A razão da punição consiste no comportamento dela, que ajudou Beto a esconder as drogas e disse ao irmão, quando questionada, que não tinha feito nada. Quando Heli tranca a porta por fora (00:42:22), é escutada a voz da menina inquieta. As principais transformações na narrativa se desencadeiam a partir dessa situação específica. O roubo é descoberto, e a casa de Heli é invadida por militares (00:44:10), em busca do produto. Fica pressuposto que Beto confessou onde escondeu as drogas. 94 TENORIO, Ilse Mayté Murillo & RODRIGUEZ, José Salvador Arellano. Apuntes sobre la violencia en el cine mexicano contemporáneo. Una reflexión ético-moral en torno a Heli (Amat Escalante, 2013). Dilemata, Revista Internacional de Éticas aplicadas, n.30, 2009, p.205. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 27 • Porém, entre a cena em que Estela é confrontada por Heli e o momento do filme no qual a invasão ocorre, o protagonista vive uma situação agonística. Ele descobre as drogas na caixa d’água (00:38:40), e decide, individualmente e sem contar a ninguém, se desfazer do produto. Caminha muito, localiza um poço no qual se encontra uma vaca, e ali lança as drogas (00:40:43), abrindo embalagem por embalagem. Em razão disso, quando os militares se empenham em procurar o produto, ele não está mais lá. Embora Beto tenha sido o autor do roubo, os militares se voltam também contra a família – o pai é assassinado, Heli e Estela são levados embora. A esposa de Heli, Sabrina, e seu bebê, por estarem durante a invasão noutro local, não são agredidos nessa cena. Depois de saírem da casa, os militares, levando no carro Heli, Estela e Beto, vão ao local onde se encontra o poço. Ali verificam que as drogas foram perdidas (00:47:25). O carro segue então para um local onde são deixados Heli e Beto (00:54:11); Estela é mantida no veículo. Nesse trecho é escutada a voz de Estela, gritando o nome do irmão. A câmara se posiciona como se alguém observasse por trás o que ocorre, olhando para janela. Em um momento, o rosto da menina aparece de perfil, nítido, e ela grita “Heli” (00:54:49). O veículo começa a se movimentar novamente; a voz da menina ainda é escutada cinco vezes, sempre chamando o irmão pelo nome. Os dois rapazes ficam ali confinados. Naquele espaço são realizados atos de tortura, que serão abordados mais adiante neste trabalho. Por mais de trinta minutos de projeção, entre o momento em que o carro se desloca e aproximadamente 01:28:15, a menina permanece desaparecida. Isso exige refletir a respeito do impacto dessa ausência, e tentar atribuir significado ao que não é visto. Heli, depois de passar por tortura, ser deixado na ponte, e retornar para casa, como explica Boleslaw Racieski, procura encontrar a jovem irmã, com a ajuda da polícia local 95. A narrativa não permite compreender de maneira clara o quanto essa ajuda poderia levar a obter um resultado. Efetivamente, quando a menina reaparece no filme, está caminhando sozinha, com uma aparência absorta. Ela é abraçada por Sabrina, e depois, efusivamente, por Heli. Na cena seguinte (01:29:51), a câmara mostra que Sabrina dá um banho em Estela, sendo que, do corpo da menina, está visível apenas um fragmento, uma parte de suas pernas. Pouco depois, outro fragmento, o rosto. Estela permanece em silêncio, desse momento até o final do filme. A atuação contida da atriz Andrea Vergara sugere intensamente um estado pós-traumático, em que existem dificuldades de estabilização emocional. Uma médica examina Estela; Sabrina pergunta por que esta não fala, e a profissional especula que teria passado por um grande trauma (01:31:30). Depois disso, Heli pergunta para a irmã onde ela tinha sido detida. Embora não se expresse verbalmente, ela desenha um mapa, com lápis de cor. Utilizando o mapa, Heli encontra o lugar, e nele um homem. Reagindo a esse encontro com uma força inesperada, Heli o persegue e o agride com convicção (01:44:40). A câmara observa a violência à distância, a partir de um ponto no interior desse lugar, onde é escutada 95 RACIESKI, Boleslaw. Mexican Minimalist Cinema: Articulating the (Trans)national. Transmissions: The Journal of Film and Media Studies, v.1., n.2, 2016, p. 127. • 28 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 uma voz, vindo de um rádio, que fala a respeito de Deus escutar orações. A violência é interrompida, e Heli é visto curvado no chão; embora não fique claro, é possível que o outro homem esteja morto, e essa possibilidade, em si mesma, representaria uma inversão para o protagonista. Exposto anteriormente como vítima de tortura, nessa cena o personagem emprega a violência contra um responsável pelo que ocorreu com a irmã. A vulnerabilidade de Estela é especialmente nítida na cena em que os militares invadem a casa em busca dos pacotes de drogas. Depois de o grupo que se anuncia como “Polícia” derrubar a porta, matar o pai de Heli e agredir o protagonista, um dos militares entra no quarto da menina, que estava escondida embaixo de sua cama segurando seu pequeno cachorrinho. O militar a puxa com os braços, toma o animal de suas mãos, e o mata com insuspeita rapidez, com um golpe no pescoço (00:45:05). É possível escutar um uivo quando ele é arrancado das mãos da menina. Essa ação desperta horror por duas razões – pela facilidade com que o homem destrói o cachorro, que não representava nenhuma ameaça; e pelo efeito metonímico da atitude, que prenuncia a crueldade que poderia ser dirigida à própria menina. O cãozinho tinha sido um presente de Beto, de maneira que Estela tinha uma relação afetiva com ele. Os dois irmãos são empurrados para fora de casa por um homem mascarado, deixando para trás o corpo do pai caído. O período de ausência da Estela pode ser objeto de variadas especulações. A cena na qual o animal de estimação é morto poderia ser uma sinalização antecipatória de que a menina seria também brutalmente destruída. A situação de tortura pela qual passam Beto e Heli poderia ser considerada como uma referência para, em hipótese, o que ocorreria também com a menina, ou seja, ela pode também ter sido entregue para a tortura. Para além disso, a especulação poderia avançar em direções improváveis. No entanto, os espectadores, ao final da projeção, não têm condições suficientes para definir o que teria ocorrido com a moça. É importante perceber a gravidade do silêncio de Estela na parte final do filme. A personagem se comporta como se estivesse em um mundo no qual a linguagem não pode ser mais utilizada. O que ocorreu com a menina, aquilo que a médica supõe ter sido um grande trauma, não foi exposto diretamente na tela de cinema; não há indicações concretas que permitam delimitar o que aconteceu com ela. Essa falta de delimitação resulta em uma desmedida, um transbordamento de dor para o qual a menina não está preparada. Mesmo que pareça paradoxal, e ainda que não configure uma representação que possa ser imediatamente decifrada por outros, o silêncio é uma expressão eloquente e eficaz da dor. A situação lembra Investigações filosóficas, de Ludwig Wittgenstein, livro no qual são elaboradas reflexões sobre as relações entre dor e linguagem. No aforismo 302 da obra, o filósofo examina a dificuldade de comunicar uma dor, em razão das especificidades dos sujeitos – “se precisamos representar-nos a dor dos outros segundo o modelo de nossa própria dor, então isto não é uma coisa fácil”96. O silêncio resguarda a singularidade de Estela, de maneira que os outros não podem concluir a natureza ou a intensidade do sofrimento da menina. 96 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural,1975. P.110. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 29 • A menina manifesta sua dor sem usar palavras para afirmar seu sofrimento diante dos outros; se pudesse e quisesse usar, poderia levar seus interlocutores a tentarem reconhecer nas palavras aquilo que já conhecem, por suas próprias vivências. Por mais que seus interlocutores (como é o caso de Heli e Sabrina) demonstrem empatia, esse uso não ocorre. O uso de palavras, com o risco de simplificação e de mal-entendido, poderia resultar em desconsiderar a singularidade e especificidade do sofrimento da menina. Wittgenstein escreve: “Digo a alguém que tenho dores. Sua atitude para comigo será de credulidade, incredulidade, desconfiança, etc. Suponhamos que ele diga: “Não deve ser tão grave””97. Expressar a dor a um outro poderia resultar em uma conversão de um sofrimento estranho em conceitos familiares; em um deslocamento do âmbito específico da individualidade privada para o campo das palavras socializadas. O sofrimento de Estela permanece preservado das possibilidades de que outros o simplifiquem, o desconsiderem, ou que nele projetem expectativas externas. O rosto absorto da menina, na cena do banho (01:30:15), expressa “uma vivência específica e indefinível”, diante da qual o espectador pode elaborar um questionamento – nos termos de Wittgenstein, “o que estabelecemos como critério de identidade dos acontecimentos?” 98. Amat Escalante conseguiu, na construção visual dessa personagem, propor um enigma. Se a menina falasse, em uma linguagem comunicativa e explicativa, em hipótese, contaria o que fizeram com ela - se foi agredida, se foi torturada ou ameaçada de morte, se acompanhou mortes de outros, ou se passou por outras formas de sofrimento. Estela, nessa perspectiva, poderia partilhar com seus interlocutores as causas de sua dor. Como ela não fala, é constituído e mantido, até o final, um enigma. A estória dessa criança, principalmente a partir da cena em que Beto e Heli são deixados no local das torturas, é caracterizada por opacidade. O filme não explica o que ocorreu com ela, nem as razões pelas quais foi libertada99. A expressão facial da atriz, na cena do banho, está marcada por um esvaziamento de foco, como se o olhar estivesse voltado para processos interiores ou lembranças. Não há sinal de alívio por ter voltado para casa, não há traços de emoções resultantes do afeto que recebe de Heli e Sabrina. As imagens de tortura Imediatamente após Estela ser levada pelo carro dos militares, chamando diversas vezes o nome do irmão, a câmara mostra o interior do local no qual ocorrem práticas de tortura (00:55:03). A primeira imagem desse espaço apresenta meninos jogando 97 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural,1975. P.112. 98 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Abril Cultural,1975. P.114. 99 RACIESKI, Boleslaw. Mexican Minimalist Cinema: Articulating the (Trans)national. Transmissions: The Journal of Film and Media Studies, v.1., n.2, 2016, p. 128. • 30 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 um videogame. Na tela da televisão, o jogo expõe um personagem masculino atacando alguém com uma espada. Jovens rapazes trazem para dentro Heli e Beto detidos, os mantêm amarrados e colocam uma fita adesiva sobre suas bocas. Podem ser vistos um colchão e algumas imagens na parede. Beto fica caído, enquanto Heli observa atento o que se passa. Enquanto uma mulher aparece na cozinha, sem dizer nada, e crianças continuam jogando, a configuração da prática violenta inicia. Beto é levado por dois rapazes para ser pendurado, com as mãos amarradas, por um gancho suspenso no teto. Um deles, sem camisa, começa a bater com uma tábua de madeira (00:56:26). Beto reage gemendo de dor. A câmara mostra Heli, sensível ao que ocorre, com perturbação em seu olhar. Depois, são mostrados juntos uma das crianças, bebendo um produto alcoólico diretamente da garrafa, e um outro rapaz consumindo uma droga ilegal. Nesse trecho, o efeito da montagem é de um contraste desconcertante, com o sofrimento de Beto sendo percebido com empatia (por Heli), e com apatia (pelo menino e pelo outro rapaz). A câmara então expõe um grupo, no qual estão os dois meninos que jogavam videogame, e mais um terceiro. Um dos meninos está com o celular na mão, sem que seja possível saber se está filmando a cena ou se distraindo com alguma outra coisa. A imagem grupal contribui para um estranhamento diante da cena. Não há explicação interna, nos termos de elementos prévios do enredo, para que a tortura seja aplicada por jovens sem uniforme, sem identificação prévia, e que seja partilhada com um grupo de menores de idade. Logo depois, o jovem passa a tábua para um menino, que pega o objeto e começa a bater nas costas de Beto. O enquadramento inclui a tela de televisão; indicando que o videogame permanece ligado, a tela mostra o personagem animado com a espada na mão, e em pelo menos um momento ocorre sincronia entre o ato, por parte do menino, de bater com a tábua, com o movimento, por parte do personagem, de jogar a espada para a frente. Por mais breve que seja a sincronia, é criada uma continuidade grotesca entre a agressão interna ao jogo e a violência exercida concretamente. É como se para esse menino não existisse qualquer surpresa ou estranhamento em assumir uma prática de agressão contra um ser humano. O jovem que estava sentado consumindo droga se levanta, se aproxima de Beto, abre o cinto, de modo que caem a calça e a cueca, deixando os genitais à mostra (00:58:38). O menino que estava batendo fica parado, como se esperasse um sinal para continuar. O jovem lança um líquido sobre o órgão sexual de Beto e, imediatamente, usa um isqueiro para nele atear fogo. Beto grita com intensidade, movendo o corpo sem poder se liberar. A câmara mostra Heli, perturbado pelo que vê, fechando os olhos, enquanto é escutada a voz de Beto reagindo à dor. Mais uma vez são mostrados os meninos, e novamente um deles utiliza o celular, como se estivesse filmando Beto. A câmara se move vagarosamente para encontrar o jovem torturador consumindo droga novamente e um menino examinando uma arma. Ocorre um corte, e então o ângulo através do qual a cena se desenvolve expõe, do lado esquerdo da tela, uma parte do corpo de Beto, incluindo a região genital, fora de foco, e do lado direito, mais ao fundo, Heli sentado, encolhido junto a uma parede. Sob Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 31 • esse ângulo vemos dois jovens removerem Beto para deixa-lo no chão, junto ao colchão, e buscarem Heli. Este tenta resistir, mas não consegue evitar ser pendurado. O jovem sem camisa repete o procedimento anterior, e começa a bater nas costas de Heli com a tábua de madeira (01:01:00). Enquanto o protagonista grita de dor, com o som sufocado pela fita adesiva em sua boca, é possível ver na cozinha, ao fundo, a mulher mexendo em uma panela. De modo similar à tela de videogame, a imagem dessa mulher contribui para dar uma impressão de que, naquele espaço, o que está ocorrendo faz parte de uma normalidade. Então, o outro jovem se aproxima com o líquido na mão e começa a abrir o cinto de Heli. Considerando a ordem dos procedimentos de tortura exibidos minutos antes, por analogia, o público é colocado diante da perspectiva de que Heli também terá os genitais incendiados. No entanto, o jovem sem camisa interrompe a ação. Sem que o público receba informações suficientes a respeito do que se passa, a narrativa passa então a expor a segunda inserção, mencionada anteriormente, ou seja, o rosto de Heli, sob a pressão de uma bota, junto aos pés de Beto, dentro de um veículo. Em seguida, é exposto o corpo de Beto, pendurado na ponte. A recepção crítica do filme de Escalante incluiu uma controvérsia a respeito da cena de tortura de Heli e Beto. O crítico Manohla Dargis, do New York Times, destacou esse tópico, e avaliou severamente a obra. Após a exibição de Heli no Festival de Cannes em 2013, o crítico escreveu: And when the first film in competition also includes a scene of someone lighting a man’s crotch on fire, well, let’s just say it can make the critics a tad cranky. This particular and thoroughly unnecessary set piece takes place in the Mexican movie “Heli,” one of those exploitation films that sells its violent goods with art cinema pretension. (…) Presumably Mr. Escalante is trying to say something meaningful about the ghastly war on drugs in his country, yet “Heli” manages only to offer up one gory reminder after another of how easily filmmakers can lose control of screen violence100. O episódio foi abordado criticamente por Juan Llamas-Rodriguez, para quem Dargis e outros entenderam o filme como sendo voltado para a espetacularização da violência101. Em um horizonte de leitura diferente, Boleslaw Racieski escreveu a respeito dessa cena: “A scene in which Heli and Beto (the protagonist’s sister’s love interest) are being tortured is the most haunting departure from mainstream cinema conventions. Escalante abandons any ellipses (…)”102. Lucero Fragoso Lugo, por sua vez, defendeu que o espectador acompanha esses acontecimentos “desde la perspectiva de los personajes”, que corresponde, nesse caso, a “de la víctima que no tiene escapatoria”103. 100 DARGIS, Manohla. 2013. Ducking Rain and competition in Cannes. New York Times, May 16, s.p. Website: https://www.nytimes.com/2013/05/17/movies/at-cannes-film-festival-ducking-rain-andcompetition.html. Acesso em 18/2/2022. 101 LLAMAS-RODRIGUEZ, Juan. 2018. Toward a cinema of slow violence. Film Quarterly, v.71, n.3, p.27. 102 RACIESKI, Boleslaw. Mexican Minimalist Cinema: Articulating the (Trans)national. Transmissions: The Journal of Film and Media Studies, v.1., n.2, 2016, p. 128. 103 LUGO, Lucero Fragoso. Heli: la insoportable mirada de la violencia. En: ZAVALA, Lauro, Ed. Miradas • 32 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 No filme, antes dessas cenas serem apresentadas para o público, é exposta uma situação na qual Beto é torturado. O filme apresenta o rapaz em atividades de treinamento militar. De acordo com Juan Llamas-Rodriguez, esse treinamento é destinado a que ele integre uma milícia anti-cartel da polícia federal104. Em 00:19:10, a condução das atividades é partilhada por um militar falando em espanhol, e outro em inglês. Isso sugere uma colaboração dos Estados Unidos nessas práticas. Ambos os homens mostram insatisfação com o desempenho do rapaz, que tinha vomitado por exaustão, e forçam-no a rolar no chão sobre seu próprio vômito105. A câmara mostra outro rapaz, erguendo-se de cima de um buraco e arrumando suas calças, indicando que tinha evacuado no local. Beto é carregado, sob o comando do militar que conduzia o treinamento, e é posicionado com o rosto acima do mesmo buraco, com os olhos vendados. O encadeamento de cenas permite compreender que se trata de uma punição f ísica pelo desempenho avaliado como insatisfatório. O rosto é movido para cima e o militar jorra um líquido em seu rosto, perguntando, de maneira irônica, “querés más aguita?” (00:21:10). Enquanto nesse caso a execução de um procedimento agressivo está claramente atribuída a uma liderança militar, na cena mencionada anteriormente, a atribuição de responsabilidade carece de clareza. O grupo responsável pela tortura é composto de dois jovens que aparentam estar entre a adolescência e o início da vida adulta, e um grupo de quatro meninos com idades variadas entre a infância e a adolescência. Junto a eles, apenas a mulher silenciosa, na cozinha, ao fundo. Pela falta de uniformes, não é possível definir que os jovens sejam militares ou que pertençam a qualquer outra instituição. O contexto narrativo no qual a cena se constitui desperta dúvidas a respeito da configuração da estrutura de poder que legitima essa situação. De acordo com a sequência de cenas, o grupo que invadiu a casa de Heli se apresentou como “polícia”; suas vestimentas indicam serem militares, que estão encapuzados; esses homens levam Heli, Estela e Beto ao poço, em busca de drogas; e depois, levam os rapazes para o local de tortura, e partem com Estela sem um rumo claro. Em 00:27:40, o filme mostra um evento no qual um líder militar, junto a um pódio com microfone, celebra a descoberta de maconha, cocaína, cds, dvds e outros objetos, e ao fundo aparecem chamas, indicando que os materiais estão sendo queimados. Esta cena consiste em uma imagem metonímica, referente às práticas executadas pelo governo. Para realizar seu discurso para um público pequeno que o aplaude, o líder está cercado de homens com vestimentas militares e rostos encapuzados, com o mesmo perfil daqueles que invadem a casa de Heli. Um cartaz indica “Quema de 22 toneladas de marijuana”, e “Quema de 7 toneladas de cocaína”. No discurso, é afirmado que o interesse do governo federal é pelo “respeito” aos direitos e pela “preservação” do patrimônio. Um dos homens que aparece aplaudindo panorámicas al cine mexicano. Aguas Calientes: Universidad Autonoma de Aguas Calientes, 2020. P.43. 104 LLAMAS-RODRIGUEZ, Juan. 2018. Toward a cinema of slow violence. Film Quarterly, v.71, n.3, p.29. 105 LLAMAS-RODRIGUEZ, Juan. 2018. Toward a cinema of slow violence. Film Quarterly, v.71, n.3, p.31 Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 33 • o discurso é o militar que tinha punido Beto pelo desempenho no treinamento. Cabe observar que as ações na invasão da casa de Heli contradizem visualmente, de maneira ostensiva, esses princípios abstratos, expondo a rapidez e a facilidade com que os militares desordenam o espaço doméstico, agridem e matam. O evento com o líder militar é filmado (como uma filmagem dentro da filmagem de Heli), uma banda militar toca, e cadetes são vistos em posição de sentido. Ocorre um corte, e então a câmara se movimenta para observar o processo, realizado pelos jovens, de deslocar os pacotes de droga, para que sejam queimados; a câmara se detém sobre Beto, sugerindo que é relevante atentar para a participação dele na atividade. O filme não mostra um roubo de pacotes, não explica quem teria roubado ou como, mas posteriormente expõe que Beto busca drogas que ficaram escondidas em um alçapão. Logo depois ele procura Estela para esconder os pacotes na casa dela. Depois do discurso, um menino vai até o pódio, e se posiciona como se fosse falar; brinca se movendo de um lado para o outro, sorri, e a cena acaba. Essa breve presença tem um efeito desmistificador com relação à configuração do poder no discurso; desta vez, quem ocupa um pódio oficial, no qual está apresentada uma imagem oficial do governo federal, é a criança. A imagem tem potencial, por sua polissemia, para despertar reflexões sobre a encenação do poder; entre outros elementos, cabe considerar a arbitrariedade circunstancial da exposição midiática do poder (que poderia ser ocupado por uma pessoa ou outra, dependendo do momento); a espontaneidade da criança, que independe de qualquer formalidade ou hierarquia; e a hipótese de que a criança poderia, de alguma maneira, realizar o que militares realizam. Esse trecho do filme condensa relações entre forças que atuam na constituição da violência exercida contra o protagonista Heli, embora ele esteja ausente do cenário. Beto aparece no trecho tendo acesso aos pacotes de drogas, o que teria criado condições para que ele se aproprie de alguns desses pacotes; os militares encapuzados aparecem ali, de maneira que, quando invadem a casa, estariam subordinados ao poder governamental, e defendendo seus interesses; aparece no local o militar responsável pelo treinamento de Beto, e pela tortura dele após os exercícios, o que pode sugerir (embora isso não fique inteiramente demonstrado) que esse militar esteja de algum modo vinculado com a submissão de Beto à tortura após a descoberta do roubo; se a cena com o menino no pódio for articulada com a cena da tortura de Beto e Heli, há uma repercussão visual sinistra no fato de que um menino bate com uma tábua de maneira no corpo de Beto, indicando que, assim como o poder militar seria responsável pelas ações de tortura, as crianças estariam envolvidas diretamente em práticas de violência. Uma das cenas mais perturbadoras do filme é muito breve e não apresenta nenhum diálogo. A câmara, conforme sugerem os sons, está situada dentro de um veículo que se aproxima da casa de Heli; este passa pela porta e sai de casa. O protagonista olha diretamente para esse veículo. Em seguida, a câmara observa o veículo, que é um carro militar, de lado, frente a Heli, também de lado. O carro é blindado, não é possível enxergar quem está em seu interior dirigindo. No lado esquerdo da tela, sobre o carro, um militar uniformizado tem as mãos sobre uma arma potente, que mira a casa de Heli. • 34 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 O protagonista não se intimida, e não demonstra nenhum medo; ao contrário, toma a iniciativa de ir ao encontro dos militares. Diante do movimento do rapaz, de imediato, o carro recua, deixa o local e vai embora. A cena manifesta uma potência de ameaça de violência, por parte do Estado, e uma resistência de Heli contra isso. Bacurau, de Kleber Mendonça filho e Juliano Dornelles A comunidade e os invasores Em 2019, foi lançado o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. A obra apresenta uma comunidade vivendo em um local no interior do país, chamado de Bacurau, tendo como governante um prefeito irresponsável. Essa comunidade se torna alvo de um grupo de estrangeiros, liderados por um homem chamado Michael, que possui armas; esse grupo tem como propósito destruir os moradores, em práticas semelhantes às de um jogo competitivo, com tarefas e pontuações. Peter Bradshaw os descreve nos seguintes termos: The disquieting thing is that a bunch of foreign tourists have holed up in a hunting lodge near Bacurau, armed to the teeth with extremely hi-tech gear. They are evidently on some kind of safari package, under the guidance of Michael, an ageing German played by Udo Kier. (...) He is presiding over what is effectively a recreational slaughter militia: a pack of extremely wealthy Americans, Brits and others who are putting their money into Brazil.106 A preparação da invasão, composta com tecnologia e muitas armas, inclui eliminar as redes de comunicação no local, interferindo no sinal dos celulares, e vigiar o que se passa através de uso de drone. Para os invasores, os membros da comunidade se restringem a alvos a serem atingidos. Como explica Ivana Bentes, “Estamos sob ataque”, percebem os moradores. A chave não está apenas no grupo de gringos predadores da água e assassinos, do prefeito corrupto, mas também na dupla de brasileiros sulistas (em oposição aos moradores nordestinos) que se identifica com esses grupos ultra conservadores.107 106 BRADSHAW, Peter. Bacurau review - ultraviolent freakout in Brazil’s outback. The Guardian. Disponível em: https://www.theguardian.com/film/2019/may/15/bacurau-review-brazil-outback-western-cannes Acesso em 12.11.2022. 107 BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/ Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 35 • Contra o grupo de estrangeiros que realiza ações violentas, tendo sua invasão da comunidade apoiada pelo prefeito corrupto, a comunidade organiza, de modo a manter sua sobrevivência, uma resistência armada aos invasores. Nessa comunidade, “todos trabalham em função do bem-estar da comunidade, em nenhum momento há uma demonstração de autoridade entre os moradores e as decisões são tomadas em conjunto, mesmo a de recorrer a Lunga e enfrentar os invasores”108. A violência aparece como uma dinâmica de reciprocidade entre as posições em conflito. Os moradores precisam confrontar elementos hostis no contexto em que vivem – a ausência de água potável, a precariedade de disponibilidade de medicamentos, um comportamento desrespeitoso e oportunista por parte do prefeito Tony Junior; esse desrespeito é comprovado, na parte final do filme, quando Michael, em público, manifesta que, em um acerto corrupto, deu dinheiro ao prefeito, de forma a viabilizar a invasão planejada (02:01:20). Em uma cena na parte inicial do filme, Tony Junior traz a Bacurau um caminhão com livros. O caminhão despeja esses livros (00:29:40), muitos deles sem capa ou danificados, na areia do chão. A forma de entregá-los para a comunidade, sem qualquer organização ou cuidado, expressa o fato de que o governante não atribui valor aos livros, nem à educação em Bacurau. Numa cena apresentada alguns minutos depois, ao ar livre e à noite, a comunidade se reúne (00:35:20) para falar sobre os materiais trazidos pelo prefeito Tony Junior. Muitos alimentos estão vencidos. Dos livros, a comunidade vai decidir quais poderá aproveitar. Sobre os medicamentos, a personagem Domingas comenta o fato de que muitos remédios estão vencidos. Ela faz uma ressalva: Teresa, a personagem que voltou de uma viagem trazendo água potável para a comunidade, trouxe vacinas. Nesse local, o governo não propicia vacinação, é a própria comunidade que, por sua conta e com seu esforço, consegue se vacinar. Bacurau sinaliza em seu roteiro, ainda que de modo breve, a dissociação entre o abastecimento de vacinas e a atuação do poder político vigente (tema prioritário de debates sobre a política brasileira, durante a pandemia de Covid-19). Os diretores utilizaram recursos que remontam a diversos gêneros cinematográficos, incluindo o horror, a ficção científica, a ação e o drama109. Tanto o roteiro como a direção apontam para uma combinação de recursos formais encontrados em diversos gêneros cinematográficos. Está presente a configuração de uma distopia, constituída com elementos de ficção científica e horror. O enredo é situado em um momento no futuro com relação ao presente do espectador, e a cena inicial, na qual um caminhão traz água potável para a comunidade, indica que, nesse futuro, ocorrem dificuldades para a sobrevivência. Os posicionamentos de câmera home/bacurau-kleber-mendonca-filho/. Acesso em 12.11.2022. 108 GOMES, Thiago & CORAÇÃO, Cláudio. Violência e Necropolítica em Bacurau: processos de descolonização e ecos da contracultura. Zanzalá, v.8, 2021, P.40. 109 Para Ivana Bentes, trata-se de um “filme em que os gêneros faroeste, ficção científica, filme de terror, filmes de ação hollywoodianos, rambos e exterminadores se encontram com um rural contemporâneo (...)” BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/ home/bacurau-kleber-mendonca-filho/. Acesso em 12.11.2022. • 36 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 variam ao longo do filme, de maneira que, através de deslocamentos, o espectador é motivado a perceber acontecimentos sob diferentes ângulos. Em uma construção meticulosa de variação da distância estética110, ora a câmara subjetiva expõe o que um morador da comunidade está vendo, ora ela mostra o que um dos invasores assassinos observa; a montagem propõe ainda um acesso ao que a câmara inserida em um drone pode registrar, como se o olhar do espectador fosse identificado, ainda que brevemente, com um procedimento eletrônico. Os invasores estrangeiros praticam violência para obter satisfação e gozo. Como observam Gomes e Coração, eles “têm o intuito de matar como uma ação prazerosa, mesmo libidinosa, como sugere a cena em que dois personagens têm relações sexuais logo após atacarem com brutalidade um carro em fuga.”111 O filme inclui em sua construção referências a estados alterados de consciência, que estariam associados a comprimidos ingeridos por moradores de Bacurau (as sementinhas de Damiano). Por exemplo, na cena do funeral de Carmelita, Teresa tem uma percepção de que, do caixão em que está a falecida, estaria transbordando água (00:17:40)112. Essa abertura a efeitos alucinatórios impregna formalmente o filme, no qual são encontrados recursos próprios do cinema onírico113. As variações entre as perspectivas de observação dos acontecimentos são fundamentais para a atribuição de significação aos eventos narrados. Assim como no caso de Heli, o filme de Mendonça Filho e Dornelles é caracterizado por antagonismos formais, que provocam uma variação, entre surpresas e sugestões de vertigem ou transe, nas condições de percepção dos acontecimentos apresentados. Na parte final da narrativa, como expõe Ivana Bentes, ocorre “Ao final uma luta, um duelo, um acertar de contas entre essa diversidade, esse Brasil, esses personagens insurgentes e disruptivos e o militarismo corporativo, o capitalismo miliciano (...)”114. É possível afirmar que, enquanto em Bacurau o confronto se estabelece entre dois grupos, os invasores e os habitantes, em Heli o protagonista precisa enfrentar ataques da polícia e dos torturadores sem uniforme. Ambos os grupos, em Bacurau, utilizam armas de fogo; o protagonista do filme mexicano, diferentemente, não utiliza armas. 110 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2003. P.61. 111 Essa cena é encontrada em 01:27:55. GOMES, Thiago & CORAÇÃO, Cláudio. Violência e Necropolítica em Bacurau:processos de descolonização e ecos da contracultura. Zanzalá, v.8, 2021, P.40. 112 MENDONÇA FILHO, Kleber & DORNELLES, Juliano. Bacurau. In: MENDONÇA FILHO, Kleber. Três roteiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.292-293. 113 XAVIER, Ismail. O modelo onírico. In:__. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2008 114 BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/ home/bacurau-kleber-mendonca-filho/. Acesso em 12.11.2022. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 37 • Contrastes entre cenas Em Bacurau, uma cena importante é a reunião da comunidade por ocasião dos atos fúnebres dedicados a Dona Carmelita, que ali residia (a partir de 00:16:00). Essa cena expõe o grupo de maneira integrada, partilhando o respeito pela mulher. Como uma prática ritual, a movimentação dos moradores expressa um entendimento coletivo da perda, quando moradores, seguindo um carro que expõe uma fotografia do rosto da falecida, cantam e acenam com panos brancos (00:17:20)115. A integração dessa comunidade, nítida desde a cena do rito fúnebre, se desenvolve em favor da sobrevivência, diante das ameaças. Para Ivana Bentes, “Em Bacurau, o mais importante é a comunidade e o comum. As lideranças são múltiplas, descentralizadas: a cangaceira trans, a médica Domingas, o professor, as lideranças espirituais. (...)”116. Outras cenas da obra estabelecem contrastes com relação a esse trecho. A partir do ponto no qual o grupo de invasores inicia suas ações contra os moradores, a montagem propõe cortes abruptos e deslocamentos súbitos de ângulos de câmara. Um trecho do roteiro apresenta o seguinte: “165. Ext. cabana de Damiano – dia (...) Cuidadosamente, Willy e Kate aproximam-se da cabana, pistolas em punho. Willy tem um cigarro por acender na boca. Ao chegar junto da cabana, ele tira um isqueiro Zippo, acende e leva o fogo para o telhado de palha do casebre (que começa a queimar). Ele logo depois usa o mesmo fogo para acender o cigarro. Ele guarda o isqueiro. Kate diz: KATE Go,go... Ele movimenta-se tranquilamente em direção à porta da frente do casebre, enquanto Kate aguarda ao lado para dar sequência ao ataque. CORTA PARA: 166. INT. CABANA DE DAMIANO – DIA Num piscar de olhos, Damiano nu atira com um bacamarte, cujo coice é extraordinário, a explosão, assustadora, e o estouro, ensurdecedor. 167. INT. CABANA DE DAMIANO – CONTRACAMPO – DIA 115 MENDONÇA FILHO, Kleber & DORNELLES, Juliano. Bacurau. In: MENDONÇA FILHO, Kleber. Três roteiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.231-233. 116 BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/ home/bacurau-kleber-mendonca-filho/. Acesso em 12.11.2022. • 38 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 Willy não tem tempo de entender o que houve. Com a força bruta da explosão e o impacto certeiro, sua cabeça explode num jorro de massa encefálica, as laterais da porta são destroçadas simultaneamente com o tiro de alcance aberto.”117 O roteiro inclui especificamente uma observação sobre o tempo – “Willy não tem tempo de entender o que houve”. Essa observação não consiste em uma instrução sobre imagens a serem constituídas em cena, mas a uma elipse, ou seja, a um elemento que não deve constar na tela. Ela está em oposição a “cuidadosamente” e “tranquilamente”, termos que expressam uma confiança, por parte dos invasores, no resultado obtido pelas ações planejadas. Embora os invasores tenham uma relação preditiva com o tempo, pois planejam ações em acordo com seus propósitos, a narrativa contraria essa lógica antecipatória. Com essa cena, fica exposta a reciprocidade estabelecida pela comunidade, diante do terror da ameaça. A violência dos invasores é tratada com violência, de forma visualmente surpreendente. Enquanto, em sua prática de jogo violento, os invasores se aproximam com o objetivo determinado de matar os moradores de Bacurau, estes, contando com armas, mostram que se prepararam para o risco. Em nome da sobrevivência e em autodefesa, Damiano mata Willy. O fato de que “sua cabeça explode”, que remonta a recursos de filmes de terror, contraria a arrogância prepotente dos invasores, que se consideram superiores aos brasileiros da localidade. A construção do filme inclui, como foi sugerido, elementos ritualizados que integram o grupo, em afinidade com uma concepção mítica do tempo (conforme os termos de Benedito Nunes, existe um “tempo público” no rito fúnebre118); indicações de uma concepção preditiva do tempo, segundo a qual ideias antecipariam ações reais; e também uma indicação (textualmente explicitada) de ausência de tempo, com a morte resultante da explosão. Como um filme centrado em um espaço, a localidade interiorana, a obra propõe configurações diversas de tempo, o que contribui para acentuar indeterminações ao longo do enredo. Os ritos fúnebres por Carmelita encontram ressonância em outras duas passagens do filme. Uma delas consiste em um novo momento fúnebre, com o enterro de duas pessoas que foram assassinadas por membros do grupo de invasores (01:18:10). Nesse caso, as circunstâncias de integração estão perpassadas pelo reconhecimento da ameaça sobre os moradores. Ao final do filme, ocorre um novo momento de socialização; nesse caso, os membros da comunidade observam Michael que, ainda vivo, é enterrado (02:05:10). As ressonâncias elaboram uma articulação entre os momentos, que têm em comum a união ritual das pessoas. Enquanto Carmelita foi celebrada, a comunidade em torno de Michael o observa, ciente de que o enterro do invasor sela a libertação das ameaças de dias anteriores. Em Bacurau, a paz entre seres humanos é encontrada em situações de integração comunitária e, mais particularmente, nas cenas de rituais. 117 MENDONÇA FILHO, Kleber & DORNELLES, Juliano. Bacurau. In: MENDONÇA FILHO, Kleber. Três roteiros. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. p.292-293. 118 NUNES, Benedito. O tempo dividido: cosmos e história. In:__, org. A crise do pensamento. Belém: Ed. UFPA, 1994. p. 127. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 39 • Capítulo 4 Considerações finais Em partes anteriores deste trabalho, foram apontados alguns desafios para estudo. Entre eles, cabe relembrar: a) em diversos estudos sobre a paz, a centralidade conceitual e o interesse investigativo priorizam a violência; b) ao longo do tempo, as formas de definir o conceito de paz apresentam variações; c) levando em conta elementos de teoria da narrativa, é possível afirmar que, em tradições culturais e religiosas, é esperado que relatos (não apenas contos, mas relatos em variados gêneros e formas de construção) priorizem danos (incluindo ações violentas), e não situações harmoniosas; d) levando em conta elementos de antropologia, pode ser compreendida a importância atribuída, em tradições, de formas binárias de conhecer o mundo, o que tem implicações para a persistência, verificada em bibliografia, em tratar a paz como um recurso contrastivo para o objetivo de estudar academicamente a violência; e) nos filmes Heli e Bacurau, nos quais existem diversas cenas de violência, personagens enfrentam perdas; f ) ambos os filmes podem despertar reflexões sobre condições de sobrevivência em contextos hostis. Esses desafios são mantidos, neste ponto do trabalho, como horizontes para próximas atividades de escrita. A pesquisa, no âmbito da rede de pesquisas CALAS e do de Conocimiento - “Visiones de paz: transiciones entre la violencia y la paz en América Latina”, que motivou a redação deste trabalho, esteve centrada em imagens de violência no cinema. É verdade que, em diversos filmes brasileiros e mexicanos, a violência tem importância central. Em um outro período de tempo, mais adiante, será possível escrever sobre Las Elegidas, Y tu mamá también, Amores perros, Estamos juntos, Uma história de amor e fúria, Cidade de Deus e outros. Não é possível responder de modo unitário, conclusivo e sintético a pergunta lançada no início deste trabalho – como narrar estórias de paz? Ao concluir este período de estudo, prevalece a impressão de que é fundamental avançar no estudo de relações entre paz e linguagem, e entre paz e narrativa; é preciso sair, ou pelo menos, tentar sair das perspectivas dominantes segundo as quais um estudo de paz precisaria ter como interesse prioritário o estudo da violência. As reflexões de antropologia citadas anteriormente (em especial as ideias de Mircea Eliade) ajudam a entender a inclinação constante, desde tradições arcaicas, a interpretar o mundo por binarismos, e ainda há muito a refletir sobre a dinâmica e a dialética específicas na interdependência entre os conceitos de violência e de paz. Narrar estórias centradas em paz, e não em violência, poderia significar romper com a recorrência tradicional de expectativas, por parte de ouvintes e leitores, de que os relatos • 40 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13 que não incluem “danos” podem ser relevantes e importantes, e que no futuro, saber como contar estórias de paz poderá ser uma prioridade. Esse saber, para os contextos acadêmicos, está em construção. São Paulo, 12 de novembro de 2022. Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 41 • Referencias bibliográficas ADORNO, THEODOR W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34/Duas Cidades, 2003. ADORNO, THEODOR W. Teoria Estética. Lisboa: Martins Fontes, 1998. AUCHTER, Craig. Review. Canadian Journal of Latin American and Caribbean Studies, V. 26, No. 51, 2001. BENTES, Ivana. Bacurau e a síntese do Brasil brutal. Disponível em: https://revistacult.uol.com. br/home/bacurau-kleber-mendonca-filho/. Acesso em 12.11.2022. 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Violência e paz – notas sobre Heli e Bacurau • Jaime Ginzburg • 45 • Colección de Avances de Investigación CIHAC Sección Calas Laboratorio de Conocimiento “Visiones de paz: Transiciones entre la violencia y la paz en América Latina. El Centro Regional de Centroamérica y el Caribe de CALAS y el Laboratorio del Conocimiento “Visiones de paz: Transiciones entre la violencia y la paz en América Latina” adscritos al CIHAC, publican, en el marco de esta serie, working papers de sus investigadoras e investigadores asociados. Los working papers pretenden contribuir a la divulgación de investigaciones novedosas e innovadoras, que tienen como base el concepto teórico-metodológico de la relacionalidad entre paz y violencia en alguno de los cuatro ejes del laboratorio: estudio conceptual de la relacionalidad entre paz y violencia; estudio de visiones y discursos paradigmáticos de paz, violencia y guerra, así como de sus expresiones culturales y artísticas; estudio de los procesos , iniciativas y estrategias de paz, y estudio de los procesos transicionales que amenazan la paz, incluyendo los medios y herramientas para mantenerla y fortalecerla. El propósito principal del Maria Sibylla Merian Center for Advanced Latin American Studies (CALAS) es el fomento, realización y circulación de proyectos novedosos e innovadores de investigación entre América Latina y Alemania en el área de las Ciencias Sociales y Humanidades, en relación con problemáticas vinculadas a la temática general del programa “Afrontar las crisis: Perspectivas transdisciplinarias desde América Latina”. • 46 • Colecciones de Avances de Investigación CIHAC • CALAS • Volumen 13