A comunicação espacial e sua materialização nas
artes visuais brasileira
Miguel Gally, Universidade de Brasília (Unb), Brasil
Resumo: Reflexões sobre os fundamentos e desenvolvimento de uma tradição nas artes visuais brasileira: a materialização de uma comunicação espacial não discursiva a partir de algumas obras de Hélio Oiticica (1937-1980), Ernesto Neto
(1964-) e Maurício Panella (1973-).
Palavras chave: comunicação espacial, Brasil, materialização
Abstract: Reflections on the foundations and development of a tradition in Brazilian visual arts: the materialization of a
non discursive spatial communication through some artworks from Hélio Oiticica (1937-1980), Ernesto Neto (1964-),
and Maurício Panella (1973-).
Keywords: Spatial Communication, Brazil, Materialization
P
artindo de um contexto em que a produção das artes visuais depende de um processo
colaborativo, participativo ou relacional entre espectador e artista, enquanto
desdobramento de uma crítica histórica à arte do gênio, propomos explorar um espaço
coletivo de criação enquanto gerador de uma tradição no contexto brasileiro. A tese a ser
defendida é a de que a materialidade das artes visuais enquanto resultado da espacialização
(tridimensional) da pintura pressupõe a invenção de uma comunicação especial: a comunicação
espacial. Este artigo problematizará tal processo de espacialização em sua forma inaugural com
Hélio Oiticica (Parangolés, 1965), na medida em que tal espacialidade criada é vista como
resultado coletivo do contágio dos corpos (entre si ou com objetos), tendo na música e no ritmo a
metáfora mais apropriada. Em Ernesto Neto (Eu e minhas partes, 2008), na medida em que tal
espacialidade comunicativa pode se dar num nível igualmente corporal, mas onde os espaços
criados se materializam, sobretudo, em atmosferas olfativas. E, por fim, com Maurício Panella
(De fora adentro, 2010-2013), no qual se observa o desenvolvimento de relações táteis com
mapas gigantes que redimensionam a condição representativa própria das cartografias gerando
novos processos educacionais. Nessa tradição brasileira, percorremos o desenvolvimento de uma
comunicação espacial não discursiva, não linguística e não escrita, cujos resultados questionam o
caráter visual da imagem desde uma partilha material e concreta da vida daqueles envolvidos
nesse processo coletivo de criação artística.
Pensada como uma tradição em constituição, a arte visual feita no Brasil a partir dos
trabalhos de Hélio Oiticica e Lygia Clark pode ser entendida como ponto de partida de pelo
menos duas frentes poéticas. Uma aponta para o desenvolvimento das artes eletrônico-digitais
tendo os trabalhos, por exemplo, de Júlio Plaza, Diana Domingues e Eduardo Kac, feitos a partir
dos anos 1980, como centrais para se pensar a arte desde uma comunicabilidade que extrapola
sua condição de transmissão, deixando de lado ainda qualquer pressuposto discursivo; tal
tradição (Gally, 2008) interessa, sobretudo, à construção da(s) história(s) das artes da mídia
(Media Arts). Outra frente poética explora uma materialização dessa mesma comunicabilidade,
experimentada menos através de uma representação (ou midiatização) do espaço, e mais no
sentido de construir uma comunicação quando se ocupa as provocações/proposições originadas
das relações de tensão que são criadas nessas zonas alternativas de comunicação próprias das
artes, grosso modo, relacionais. Ou seja, não como uma forma relacional (Bourriaud, 2001)
experimentada nas artes visuais devendo extrapolar seu domínio rumo às relações interpessoais,
por exemplo, mas sim na medida em que se vive a experiência de arte; ou ainda, quando aquela
Revista Internacional de Cultura Visual
Volumen 3, Número 2 <http://www.sobreculturavisual.com> ISSN 2530-4666
© Global Knowledge Academics. Miguel Gally.
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tensão operativa própria da relação espectador-artista no ambiente das artes visuais (GALLY,
2010, 2015) se impõe através de uma atitude ou ação concreta que não se repete. Gostaríamos de
chamar a atenção para essa última frente poética em formação como um esforço de criação de
imagens não necessariamente e unicamente visuais justamente nas artes usualmente classificadas
como visuais. É nesse sentido que percorreremos, a seguir, de maneira mais pormenorizada,
algumas obras de Hélio Oiticica (1937-1980), Ernesto Neto (1964-) e Maurício Panella (1973-).
Hélio Oiticica: sua arte ambiental e a invenção da comunicação espacial
Se partirmos de obras como Núcleos (1960-66), Penetráveis (1961-67) e, sobretudo, Parangolés
(1964-66), todas de Hélio Oiticica, veremos que tais espacialidades criadas entre espectador e
artista são comunicacionais por excelência, ou ainda: que tal relação é o exercício de uma
comunicabilidade espacial. E que tal espacialidade encontra-se numa zona intermediária entre a
arquitetura e a arte visual, algo já identificado de certo modo por Berenstein (2008, pp. 157-158)
quando ela compara as favelas de Kawamata e os Parangolés de Oiticica. A ideia que
gostaríamos de propor é continuar explorando tal zona intermediária, entretanto, como a
construção e vivência de uma “espacialidade comunicativa” pensada agora enquanto a dimensão
coletiva da sua arte. Ou seja, ao perguntarmos, em última instância, pelo que Oiticica entende
como sendo sua autoproclamada arte ambiental, então chegamos à pergunta sobre o que é
“comunicação espacial”.
Retomando isso em outros termos temos que a tese levantada aqui sobre Oiticica é a de que
tal comunicação espacial é uma relação entre espaços distintos dando origem a um novo e imprevisível espaço (Gally, 2010 e 2015). Espectador e artista dão origem, cada um, a uma espacialidade na medida em que se colocam um no lugar do outro. E isso somente é possível porque não
há uma separação entre tais posições, ou seja, o espectador sempre é artista e o artista é sempre
espectador. Assim, através dessas espacialidades, uma relação entre elas surge a partir de uma
tensão que resulta de uma aproximação: provocação por parte do artista que se coloca no lugar
do espectador e a subsequente ação sobre ela realizada pelo espectador desde uma posição criativa inteiramente aberta e ilimitada. Ou seja, a comunicação espacial, aqui, envolve também espacialidades que se comunicam a partir de materialidades, corpos, sons, cheiros, etc. Claramente
influenciado pelas ideias de Oiticica, tais pressupostos teóricos fazem parte daquilo que entendo,
de maneira resumida, como ambiente das artes visuais.
Voltemos, então, a Oiticica: que significaria dizer que o espaço é comunicacional a partir de
suas ideias e práticas artísticas? Que é resultado do encontro de corpos segundo um ritmo; assim
como a dança a dois ou mais cria espaços e a dança solitária que segue o ritmo abre espaço; ou
que pelo gesto improvisado um espaço é criado:
A dança é por excelência a busca do ato expressivo direto, da imanência desse ato; não a dança de
balé, que é excessivamente intelectualizada pela inserção de uma “coreografia” e que busca a
transcendência desse ato, mas a dança “dionisíaca”, que nasce do ritmo interior do coletivo, que se
externa como característica de grupos populares, nações, etc. A improvisação reina aqui [...] na
verdade quanto mais livre a improvisação, melhor [...] em verdade a dança, o ritmo, são o próprio
ato plástico em sua crudeza. (Oiticica, 1986, p. 73)
Nesse texto escrito em 1965, no auge da sua produção mais robusta, o ritmo se impõe como
um elemento decisivo para Oiticica porque a descoberta disso, para ele, foi a descoberta de uma
temporalidade da coletividade. Da temporalidade de um espaço ocupado pela música capaz de
unir as pessoas momentaneamente. Oiticica vê tempo no espaço quando identifica a possibilidade
de conexão dos corpos, mas vê também espaço no tempo, quando percebe que o gestual em
movimento como resultado da dança cria formas espaciais. Trata-se de um esforço enorme de
descrição e tematização de uma experiência vital de liberdade, em que coletividade e indivíduo
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GALLY: A COMUNICAÇÃO ESPACIAL E SUA MATERIALIZAÇÃO NAS ARTES VISUAIS BRASILEIRA
se unem em um “gênio coletivo” (Oiticica Apud Jacques, 2001, p. 32). O gênio anônimo coletivo
é a dissolução da fronteira artista/espectador e passivo/ativo.
Quem ou o que é, portanto, esse gênio anônimo coletivo, a que faz referência Oiticica? É a
coletividade que ele experimentou nos ensaios da escola de samba da favela da Mangueira no
início dos anos 1960, no ritmo recém-descoberto por ele, no seu pertencimento a uma
comunidade que cria junto o carnaval sem prestar atenção a quem faz o quê propriamente, ao
modo de morar em que famílias (e às vezes mais de uma) partilham um mesmo espaço (como em
ocas), à sexualidade e ao corpo experimentados sem tabus e em todo seu vigor carnal. Essa
coletividade a dois, quatro, oito, dezenas ou centenas remexida por dentro influencia a fase em
que a cor da pintura dos seus quadros se transforma em estrutura, em que a pintura, desde as
experiências inovadores presentes já em Bólides, mas, sobretudo, em Núcleos e parcialmente em
projetos para Penetráveis desembocam em um programa ambiental realizado em e a partir de
Parangolés (Jacques, 2001).
É esse processo que culmina na experimentação de uma espacialidade coletiva ou
comunicacional. É desse espaço comunicacional do qual brota uma comunicação espacial. Que
quer dizer uma comunicação pensada espacialmente? Quer dizer que ela é material e corporal;
que o som e a audição deixam de ser compreendidos (momentaneamente, pelo menos) como
meios ou como instrumentos que carregam algo. Daí ser importantíssimo para Oiticica desfazer
as barreiras clássicas e imateriais (algumas ligadas à representação) provocadoras dos mais
profundos dissensos e antagonismos, simplesmente porque essa materialidade precisa ser
experimentada, os corpos precisam interagir, o som precisa se transformar em gesto e dança para
que aconteça arte:
A derrubada de preconceitos sociais, das barreiras de grupos, classes, etc. seria inevitável e essencial na realização dessa experiência vital. Descobri aí a conexão entre coletivo [recepção/gosto] e
a expressão individual [criação/gênio] – o passo mais importante para tal – ou seja, o desconhecimento de níveis abstratos, de “camadas sociais” para uma compreensão de uma totalidade. (Oicitica, 1986, p. 73).
Diferentemente da leitura feita por Julio Plaza (2003) ─ que vê a participação do espectador
como uma das etapas da consolidação de um processo de conquista da interatividade, porque ela
seria conduzida (ou mesmo controladora quando meramente mecânica) e não inter-ativa e livre
propriamente ─ acreditamos que aquela totalidade, para Oiticica, o ritmo, não conduz coisa alguma com sua provocação. São os corpos, livres de suas amarras (e de preconceitos mesquinhos)
que abrem um espaço cuja atividade se comunica com os demais e com a música. A arte ambiental é música por isso, porque espera um espectador capaz de se libertar, e com isso, embora não
pretenda libertar ninguém nem coisa alguma, gera um evento livre, ou para a liberdade. Pressupõe uma chegada total ou aberta dos envolvidos para que ela mesma, como arte que é acontecimento, possa ganhar existência. É nessa medida que se poderia falar de “criação coletiva” a partir
da arte ambiental, por depender de e gerar, ao mesmo tempo, uma comunicação de corpos que
criam sem os preconceitos que estabelecem um lugar e papel prévios a esses corpos. Desse espaço tátil-musical, no qual comunicação espacial é ocupação, observa-se uma passagem interessante para os espaços olfativos, igualmente comunicacionais.
Ernesto Neto e os espaços coletivos olfativos
Na Mostra Paralela // De perto e de longe (São Paulo, 2008), o trabalho de Ernesto Neto, Eu e
minhas partes (2008), reúne elementos interessantes de seu trabalho, sobretudo o modo como as
conhecidas atmosferas aromáticas aparecem. Isso porque na sua trajetória artística, tais
atmosferas se tornaram mais uma de suas marcas. Eu e minhas partes ou Stone Lips, Pepper Tits,
Clove Love, Fog Froge (2008), como foi exposta fora do Brasil, não é a primeira obra sua que
faz esta investida olfativa ou que usa os “pingos”, originalmente de meias de nylon. Nave deusa
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(1998), dentro do projeto das naves, por exemplo, quase dez anos antes já usava tais estratégias.
Nesse período, Ernesto Neto, além de continuar a explorar a construção de espaços olfativos, se
interessa claramente pela criação de espaços táteis de acolhimento (Humanóides, 2001),
mantendo o nylon (poliamida), mas explorando estruturas menos frágeis e que permitam maior
resistência ao tato. Em uma entrevista recente ao Programa Museu Vivo da emissora SESC TV
(2011), Neto diz precisar de obras nas quais o espectador possa agir sem muitas restrições. O
nylon ganha outro tecido: uma espécie de croché; e os espaços inventados por Neto podiam agora
ser pisados sem o risco de rasgar, podiam ser atravessados ou sustentar objetos ou “gotas”
recheadas não apenas com especiarias, mas também com tambores, latas de alumínio vazias,
bolas de plásticos etc.
Talvez Eu e minhas partes, ao inaugurar com mais propriedade e destaque o compensado ou
madeira na sua estrutura, seja, pelo menos indiretamente, uma obra de transição em dois
sentidos: na busca por aquela firmeza e resistência que apareceria claramente na Exposição
Dengo (Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2010), quando a poliamida translúcida do tecido
usado dá lugar a cordas sintéticas que se tornam um croché gigante; seria também uma obra de
transição ou preliminar para aquela que parece ser o desfecho de uma longa trajetória:
Anthropodino, de 2009, exposta em Nova Iorque. Esta última combina as atmosferas olfativas
construidas com as gotas ou estalactites de poliamida, e as estruturas de madeira, que eram um
pequeno lugar em Eu e minhas partes, e se transformam em verdadeiros túneis e salões a serem
percorridos; o croché surge com mais presença, mesmo sem ter ainda aquela função de
sustentação que assumiria pouco tempo depois em Dengo (2012) e nas exposições seguintes que
exploraram esse material e uma estrutura que passa a sustentar além dos objetos já mencionados,
também pessoas, que podem agora andar pelas trilhas de croche suspensas, como acontece com
Bicho suspenso na paisagem (2012, Estação Leopoldina, Rio de Janeiro).
Nosso intuito, entretanto, não é percorrer tais obras procurando as ligações entre elas, um
sentido ou mesmo uma narrativa. Mas sim, aproveitá-las para explorar o alcance desses espaços
olfativos como parte do desenvolvimento de uma tradição que surge na esteira daquilo que estou
chamando de comunicabilidade espacial, como vimos a partir de Hélio Oiticica. A conexão entre
Oiticica e Neto já foi apontada, por exemplo, por Moacir dos Anjos. Nesse contexto de amplos
diálogos com a tradição neoconcretista (Anjos, 2010), gostaria de privilegiar os espaços táteisolfativos, não mais os espaços tátil-musicais dos ritmos, da dança, e do gesto que vimos surgir
com Oiticica, embora o som, o toque e gesto também estejam muito presentes nas instalações ou
esculturas de Neto.
Eu e minhas partes utiliza cravo, pimenta do reino, tecido sintético de poliamida e
compensado recortado. Talvez o diferente dessa instalação olfativa seja o lugar criado a partir das
estruturas de madeira em forma de ossos gigantes, inclusive quando vemos suas partes se
conectarem como o fazem as juntas dos nossos corpos. Tudo isso construindo, com uma fina
camada dupla do tecido sintético, uma cobertura, da qual caem para dentro do espaço criado
gotas ou pequenas estalactites recheadas com os temperos. Essa atmosfera olfativa entra em
conexão com o espaço externo por meio de uma abertura maior, por onde uma pessoa adulta
pode entrar se abaixando um pouco, e por meio de pequenas passagens de ventilação.
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Figura 1: Vista exterior da instalação Eu e minhas partes (2008) de Ernesto Neto, Mostra Paralela
// De perto e de longe 2008 (Liceu de Artes e Ofícios, São Paulo, SP, Brasil).
Fonte: Gally, fotografias inéditas.
Figura 2: No interior da instalação Eu e minhas partes (2008), de Ernesto Neto.
Fonte: Gally, fotografias inéditas.
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Eu e minhas partes, prefiro ainda esse título em português, é primariamente sensitivo, pois
além de caminhar pisando sobre o chão do galpão, isto é, de entrar em uma tenda (metaforicamente o “Eu”), explora-se toda uma espacialidade olfativa, se assim pudermos dizer. Trata-se de
uma ocupação pelos cheiros. Essa relação imediata precisa ser pensada de maneira paralela e
complementar à orientação conceitual, de modo a não se ter de necessariamente reduzir esse
esforço de tematização da orientação espaço-sensível à orientação conceitual, tal como feito
sobre outras obras de Neto em algumas críticas que enfatizaram o discurso que a obra provoca,
por exemplo, com a história da escultura (Volz, 2008).
Figura 3: No interior da instalação Eu e minhas partes (2008). Detalhe do chão coberto por pimenta do reino caída do seu pingo ou estalactite correspondente.
Fonte: Gally, fotografias inéditas.
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Na obra acima, os cheiros do “Eu”, entendidos como sua existência, poderiam ainda ser
reduzidos a outra visão conceitual, na medida em que não simplesmente como coisa que pensa
(numa clara referência ao nascimento da modernidade filosófica com R. Descartes, “penso, logo
sou”), mas como sensitividade, é que se tem consciência da própria existência. Entretanto,
aprofundar esse caminho de interpretação que visa descobrir significados mais gerais nos
distancia do aspecto vital do trabalho de Ernesto Neto, eu suponho. Porque para existir algo
como “ocupação olfativa”, precisa-se da presença, da cheirada, de se respirar tais odores, antes de
qualquer construção discursivo-conceitual, metafórica ou simbólica. Uma leitura estética parece
surgir como contraponto, quando se percebe, ainda, um evidente diálogo das estruturas
construtivas do galpão da exposição e da tenda de ossos, ambas usando madeiras, ambas criando
um espaço vazio, ambas cobertas. Entrando em Eu e minhas partes, depois de entrar no galpão
da exposição, sinto cheiros de cravo-da-índia e pimenta do reino. Vendo de dentro as madeiras
em forma de ossos, me sinto (como corpo feito de carne e ossos e muitos cheiros) uma parte mais
direta daquilo. Parece ser mais um abrigo de mim. Os cheiros constroem uma espacialidade
arcaica, natural de nós mesmos, lembrando que também olfativamente abrigamos ou ocupamos
um lugar. Sobretudo porque, depois que saímos dessa tenda, ficamos impregnados com o
perfume das especiarias, levando conosco mais cheiros, quase que como uma aura olfativa. Essa
experiência imersiva em Eu e minhas partes continua gerando experiências ao longo da
exposição quando outros espectadores percebem tal aura, construindo assim novos espaços
olfativos através dessa comunicação especial.
Evidentemente que isso tudo pode também ser analisado como uma importante contribuição
para a história da estética que passaria a contar, enfim, com uma arte olfativa; e é nesse contexto,
por exemplo, que Shiner (2007) enquadra os trabalhos de Ernesto Neto e Peter Crupere.
Entretanto, manter esses dois níveis distintos de interação (o sensível e o histórico) irredutíveis
um ao outro e claros no processo de construção da obra me parece uma tarefa teórica importante.
As ideias desenvolvidas segundo o Ambiente das Artes Visuais (Gally, 2010 e 2015) apontam
para essa exigência. Nela, a concepção de tensão operativa, desenvolvida como núcleo desse
ambiente, ajuda a pensar a arte visual como acontecimento comunicativo, ou seja, enquanto base
de uma relação especial entre espectador, artista e um conjunto plural de orientações e/ou
direções, dentre elas a conceitual, a sensível, além de outras tantas, como a da memória e a
histórica. Com tais obras de Ernesto Neto, gostaríamos de reforçar que tal acontecimento
comunicativo se materializa espacialmente como um espaço tátil-olfativo coletivo, envolvendo
inicialmente artista e espectador num diálogo mais íntimo, certamente, mas posteriormente
provocando e ampliando o contato (olfativo) entre corpos que tenham se contaminado com os
cheiros. Como desdobramento desse espaço comunicacional materializado olfativamente,
observaremos a seguir uma comunicação tátil-visual.
Maurício Panella e os espaços tátil-visuais
É partir desse contexto amplo de uma tradição em formação que gostaríamos de enfatizar alguns
aspectos do projeto mais recente do pesquisador e artista Maurício Panella: De fora adentro –
Cartografia dos sentidos (2010-2013). Acreditamos que se pretende aí abrir outros espaços
comunicacionais, na medida em que se encara o desconhecimento dos espaços cotidianos das
cidades nas quais habitamos e se amplia o conhecimento e as relações que podemos manter com
nossas cidades. Amplia-se, igualmente, o aspecto essencialmente visual da cartografia,
lembrando a possibilidade da criação de “mapas de ouvir”, “mapas lúdicos”, “mapas tácteis”,
“mapas oníricos”, “mapas de memórias”, “mapas de sentidos” recuperando outra tradição, a das
derivas e da psicogeografia (Debord, 2003).
Essa nova composição de cartografias sensíveis, entretanto, tem um propósito pedagógico.
Utiliza-se de um diálogo da perspectiva macroscópica oferecida pelos mais recentes recursos de
cartografia (mapas gigantes impressos a partir de fotos de satélite) com a perspectiva
microscópica (criações artísticas e oficinas pedagógicas oferecidas e expostas sobre o mapa
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gigante). Com isso, objetiva-se propiciar tanto uma maior compreensão da geografia da cidade
em seu conjunto (sua geopolítica, sua organização intrincada e extensa, etc.), quanto uma
compreensão sobre os territórios subjetivos daqueles envolvidos nas intervenções (oficinas)
artísticas realizadas em escolas públicas e em outros espaços da cidade.
De fora adentro – Cartografia dos sentidos é um projeto artístico pedagógico que aposta na
criação artística e na elaboração de metodologias lúdicas e interativas, e reúne artistas e
pesquisadores multidisciplinares que se debruçam sobre as cidades para captar, registrar, sentir e
perceber as nuances que o dia a dia não permite e não desvenda. É um projeto de divulgação e
democratização do conhecimento científico, na medida em que torna sensível, apreensível e
palpável o mundo da topografia, revela as fragilidades urbanísticas e investiga as intervenções
sociais no espaço e no tempo. Ou seja, é um projeto que convida o público a compor dados novos
para a exposição e a debruçar-se sobre a obra e a encontrar-se nela (Panella, 2015).
Figura 4: Imagens do Projeto De Fora Adentro - Rio de Janeiro lançado na Rio + 20 em 2012.
Fonte: Panella, 2015.
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Esta concepção de que arte pode servir a essa tarefa pedagógica de acesso aos
conhecimentos científicos não é recente e remonta pelo menos a Alexander Baumgarten (século
XVIII) que batizou o termo estética (Amoroso, 2000). Baumgarten pensou na Estética como um
tipo de conhecimento (2007, pp. 11-19), ou como “perfeição do conhecimento sensível”, na
medida em que na Estética se conseguia expor em um domínio acessível a todos, o domínio das
sensações, um conhecimento lógico-discursivo restrito, que hoje reconheceríamos, grosso modo,
como o conhecimento técnico-científico. A Estética, entendida assim como parâmetro para
definição de arte, guarda esse privilégio quando o tema é democratização do conhecimento. Mas
isso quer dizer também que arte pode ser entendida como um conhecimento, como uma maneira
de se relacionar com a realidade capaz de provocar reflexões e, em alguns casos,
esclarecimentos, de uma maneira mais sensível ou tocando em sentimentos. É o caso quando ao
caminhar sobre o mapa gigante nos relacionamos com nossa cidade como se fossemos um
satélite, como se tivéssemos um olho que (sobre)voa, ou seja, como se pudéssemos entender essa
tecnologia nos colocando em seu lugar, e nos relacionando com a cidade de outra perspectiva:
vendo-a como um todo.
Essa é a experiência de se identificar no meio do todo, no meio da grande cidade que parece
maior do que nós. Sobre um mapa gigante, todas as referências básicas de localização
regeneram-se: o indivíduo redimensiona sua relação com a cidade a partir de uma relação direta e
sensível com o mapa sob os pés, pois a noção daquela distância percorrida cotidianamente de
carro ou ônibus, agora é modificada, transposta na escala de um passo. Essa mudança de
referência causa um estranhamento do que antes era óbvio e natural em virtude da relação tátil
com o mapa gigante; e, ao mesmo tempo, constrói-se um reconhecimento crítico e afetuoso sobre
nossos costumes e comportamentos com o que é individual, social, biológico e cósmico.
Assim, o projeto se desenvolve no sentido de provocar, a partir do contato sensível com a
tecnologia, uma experiência de (re)conhecimento e pertencimento entre o indivíduo e sua
localidade, uma experiência de interdependência que impõe ao mesmo tempo um senso maior de
responsabilidade e cuidado no que diz respeito ao espaço urbano onde se vive. Provoca ainda
outras relações com o meio ambiente que compõe a cidade, pois, na medida em que podemos
enxergar o extremo norte e o extremo sul, ver os vários braços de rios, lagos, matas que a
compõe, podemos enxergar as fronteiras entre a natureza e a ocupação humana, podemos
enxergar de modo, literalmente, concreto a atuação humana destrutiva com a diversidade da vida
biológica natural. Isso porque passamos a “ver” com os dedos e com os pés ao se construir um
espaço ao mesmo tempo tátil e visual, materializando assim uma comunicação espacial com a
cidade, isto é, construindo novas relações com seus espaços.
Considerações e especulações finais
Quando Anne Cauquelin (2007) questiona o conceito datado de paisagem enquanto dependente
de técnicas de representação descobertas majoritariamente a partir do Renascimento, ela também
questiona certa compreensão de imagem. Nosso esforço até aqui pode ser enquadrado de uma
perspectiva próxima a essa, pois pensa como a comunicação pode ser entendida enquanto
construção coletiva, enquanto ocupação, seja tátil-musical, seja tátil-olfativa seja, ainda, tátilvisual. Isto é, não como um simples instrumento de mediação ou transmissão de informação, mas
como construção de experiências e reflexões, vimos uma comunicação espacial tornar-se
materializada. Se a imagem dessa ocupação pode ser apenas experimentada tátil-visualmente
(Panella), tátil-olfativamente (Neto) ou tátil-musicalmente (Oiticica), a experiência simplesmente
visual oferecida pelas fotografias que ilustraram este artigo está longe daquela experiência
renovada proposta por essa tradição da materialização da comunicação espacial. Por falta de um
termo mais apropriado, insistir em “imagem” quando pensamos e escrevemos sobre tal ocupação
tátil (ou comunicação espacial) requer, portanto, um cuidado redobrado, porque estamos falando
de uma imagem que não é meramente visual, que o olhar não apreende, embora exista
claramente. A invisibilidade dessa imagem que é (ocup)ação pode ser entendida justamente ao
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lembrarmo-nos do argumento de Cauquelin, porque se as técnicas de representar criam ou
alteram modos de nos relacionarmos com o que é visível e perceptível, então a comunicação
espacial terminaria trazendo desafios tão ou mais complexos nesse sentido também, ajudando,
por exemplo, a especular sobre “imagens” que não são necessariamente visuais. Outro ponto não
menos importante é a investigação que se abre a partir da contaminação de aspectos não
instrumentais dessa comunicação espacial frente aos usos cotidianos da comunicação como meio,
provocando-nos a repensar como nos relacionamos com outros, sejam estes pessoas, máquinas,
objetos, cidades, natureza ou o nosso planeta como um todo.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a Maurício Panella e Mariana Fidelis pelos debates e conversas teóricas, às
preciosas observações e críticas dos pareceristas deste artigo, bem como aos estudantes pesquisadores do Núcleo de Estética, Hermenêutica e Semiótica da Universidade de Brasília
(NEHS/UnB) nos anos 2014-2015 por me provocarem a continuar explorando tais temas.
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REVISTA INTERNACIONAL DE CULTURA VISUAL
SOBRE O AUTOR
Miguel Gally: Dr. Phil, Professor de Estétca, Filosofia da Arte e da Arquitetura. Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília (UnB), Brasil. Líder Grupo de Pesquisas/CNPq:
Núcleo
de
Estética,
Hermenêutica
e
Semiótica
(NEHS),
http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1548523612602315. Produção bibliográfica atualizada e
pesquisas: https://brasilia.academia.edu/gally. E-mail: gally@unb.br
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