COMO SE FORJA O MENOR: TRAMAS DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E DA
PROTEÇÃO SOCIAL
Dolores Galindo
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT – Brasil
Flávia Cristina Silveira Lemos
Universidade Federal do Pará – UFPA – Brasil
Leonardo Lemos de Souza
Universidade Estadual Paulista – UNESP – Brasil
Renata Vilela Rodrigues
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT – Brasil
Resumo
Neste ensaio, objetiva-secontribuir para problematizar políticas públicas e diretrizes para
atenção psicossocial, destinadas às crianças, adolescentes e jovens, nas tramas da Proteção
Social. São indagados os modos como a psicologia tem encontrado legitimidade e vem sendo
instada a adquirir legitimidade, prioritariamente, por meio de práticas orientadas por
racionalidades que terminam por se avizinhar das lógicas que governam as dinâmicas de
confinamento e a tutela menorista das quais almejam se distanciar. Mesmo após o advento do
Estatuto da Criança e do Adolescente, documentos e práticas permeados de discursos
igualitários e de promoção de ações que visam à construção de autonomia continuam
referendando dispositivos assistencialistas e tutelares endereçados às populações classificadas
como em risco social, por meio de tecnologias biopolíticas, disciplinares e de segurança.Os
resquícios da lógica menorista compõem uma das barreiras com as quais se enfrentam práticas
em psicologia que visam promover resistências e exercícios ativos de liberdade.
Palavras-chave: Psicologia. Atenção Psicossocial. Proteção Social.
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Introdução
No Brasil, apesar de todas as críticas efetuadas na literatura sobre a história das
políticas públicas voltadas para crianças, adolescentes e jovens, ainda vigoram forças
menoristas, institucionalizadoras, de segregação, assistencialistas e repressivas, na atualidade.
Por isso, vale a pena traçar um mapa das forças em jogo na esfera da proteção dos direitos de
crianças e adolescentes, demarcando suas descontinuidades e continuidades. Por exemplo, a
noção de risco, muito utilizada para internar e encaminhar para espaços específicos, atualiza a
visão de situação irregular, que estava no Código de Menores de 1979, justificando o
encaminhamento para as Fundações Estaduais para o Bem-Estar do Menor (FEBEMS) dos
que eram enquadrados nessa condição pelos olhares e pareceres dos especialistas. Hoje, nem
sempre se interna, mas o fazem sob um sistema outro de nomeação, o de risco. Os que não são
isolados ficarão em suspeita e irão para programas, em meio aberto, de caráter securitário
preventivo-corretivo.
Continuam a proliferar programas que objetivam a prevenção dos riscos sociais e a
integração de crianças e adolescentes com a comunidade, mas que, na prática, reforçam o
lugar de exclusão herdado das práticas de guarda das crianças que hoje nos soam tão
distantes, a exemplo da Roda dos Expostos. Todavia, os programas de cunho caritativo atuais
são agenciados à filantropia empresarial com o nome de responsabilidade social e terceiro
setor, moralizando mais que catequizando corpos de crianças e adolescentes numa lógica
tutelar. O Estado, como articulador político, passa a estabelecer diretrizes para uma atuação
psicossocial minuciosa e individualizada que substituiria os grandes confinamentos, apoiado
por vários grupos, entidades, agências multilaterais, universidades e movimentos sociais, os
quais recorrem ao vocabulário e procedimentos derivados da expertise Psi, definida como
“um tipo particular de autoridade social, caracteristicamente desenvolvida em torno de
problemas, exercendo certo olhar diagnóstico, fundado sobre uma reivindicação de verdade,
afirmando eficácia técnica e reconhecendo virtudes humanas” (ROSE, 2011, p.123).
As instituições atuais não apenas controlam, corrigem e normalizam, mas também
investem nos corpos, produzindo modelos de proteção social e de segurança das populações
que articulam caridade, filantropia e medicina higienista com a lógica de garantia de direitos.
A análise genealógica das práticas dirigidas às crianças e adolescentes, no Brasil, mostra que
as instituições atuais, destinadas a essa população, se apropriam e utilizam técnicas
disciplinares e tecnologias de poder comumente usadas anteriormente à criação do ECA,
todavia, que são diferentes destas, operando reorganizações do diagrama de proteção sem
abandonar completamente o novo e o passado assistencialista e segregativo (LEMOS, 2008).
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Pensar o presente das práticas voltadas aos adolescentes e jovens em medidas
socioeducativas requer visibilizar algumas das linhas coextensivas entre esses campos de
práticas. Como enfatiza Rose (2011, p.125), a Psicologia “encontra seu território social em
todos aqueles conflitos proliferantes em que a conduta humana é problematizada em relação a
padrões éticos, julgamentos sociais ou patologias sociais”. Nesse jogo de forças, são
produzidos os documentos que visam a guiar profissionais nas práticas psicossociais nos
equipamentos sociais da Assistência e Proteção Social. Os documentos mais recentes
derivados da instituição do Sistema Único de Atenção Social (SUAS), como os Centros de
Referências em Atenção Psicossocial (Centros de Referência de Assistência Social – CRAS e
Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS), e os mais antigos
provenientes do modelo da FUNABEM, que, desde 2012, foram integrados ao recentemente
implementado Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas (Sinase).
Ambos os sistemas – SUAS e Sinase – fazem parte do campo de tensionamentos pósPolítica Nacional de Assistência Nacional (PNAS) (BRASIL, 2004). Ativistas de direitos e
pesquisadores, ligados à defesa de a política ser gerida pela Secretaria de Direitos Humanos,
alegam que o Sinase tem ficado comprometido por estar na assistência que ainda carrega
ranços do paradigma da situação irregular. É importante lembrar que, entre o lançamento do
Sinase, a partir da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e do
Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, e a Aprovação da Lei 12.549/12
que o instituiu, foram vividos seis largos anos de enfrentamentos os quais ainda persistem,
inclusive, no que concerne à sua lotação no Sistema de Proteção Social.
Considerando o jogo de forças da proteção social, constituído ao longo do século XX,
a psicologia tecnicista cumpre uma missão liberal de atuar em função da ordem individualista
e seletiva das tensões sociais, filtradas em construções de estigmas e rótulos que sustentam
uma sociedade desigual (CASTEL, 1987). Numa analítica do contexto europeu, Rose (2011)
observa três grandes conexões entre expertises Psi e formas liberais e democráticas: a defesa
de uma base racional para o exercício de poder; um curto-circuito entre governo e
privacidade, com a consequente regulação econômica e política da vida familiar; e, por fim, o
caráter autonomizante das problemáticas liberais democráticas.
As práticas em Psicologia, à medida que estão conectadas com a racionalidade liberal,
sustentam, com base na defesa da liberdade e dos direitos, a preocupação com a disciplina dos
corpos produtivos, a encomenda de governo das desigualdades por explicações de mérito e
esforço. Fornecem, ainda, justificativas, para diferenças ligadas à herança biológica, à
construção da vontade e do desejo como categorias de regulação, à invenção da infância e da
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família burguesa, à busca de controle e ordem social, em nome do fomento do
desenvolvimento e da segurança dos estados modernos. No que tange à segurança, pode-se
descrever endereçamentos específicos às Psicologias na criação das políticas de assistência
social e socioeducativas voltadas aos adolescentes e jovens objetivados como autores de ato
infracional, as quais definem modalidades de prática psicossocial centradas numa justaposição
de normalização, normatização e segregação.
Este texto visa a assinalar que os vestígios reelaborados do paradigma menorista
podem ser visualizados em documentos produzidos pela Fundação Casa e que procuram guiar
a atenção psicossocial sob os auspícios da política de proteção social vigente. As resistências
de estatutistas, de movimentos sociais e de profissionais perduram também e se reorganizam
para fazer valer o sistema da garantia de direitos em meio aberto e com proteção sem lógica
asilar. A partir do trabalho de profissionais no cotidiano da Fundação Casa, são relatadas
práticas que criticam a menoridade e são contrárias à internação e às práticas repressivas,
assistencialistas e tutelares. Busca-se enfatizar que, apesar dessas rupturas, os documentos de
diretrizes para práticas psicossociais na Fundação Casa São Paulo ainda são cúmplices da
máquina de produzir menoridade e, em conjunção com uma rede mais ampla de práticas, até
mesmo terminam por fortalecer a intensa defesa de segregação e punição expressas no
movimento pela redução da idade para a privação de liberdade.
Estatuto da Criança e do Adolescente: quando as FEBEM(S) se tornam insustentáveis
Desde o final da década de 1970, havia denúncias nas mídias e em outros veículos
sobre as violações aos direitos das crianças e adolescentes, frequentes na Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
(FEBEM). Em 1990, estas se agravam e se tornam mais recorrentes, chegando à mídia pela
veiculação das notícias em torno das chamadas rebeliões vistas como causadoras de danos,
não apenas às crianças e jovens (classificados como infratores), mas, também, às equipes
profissionais e à sociedade. Numa resultante das graves violações aos direitos das crianças e
adolescentes denunciadas pela intensa atuação dos movimentos sociais, surgem as frentes de
luta dos Movimentos dos Meninos e Meninas de Rua (GOHN, 2010), do Fórum Nacional dos
Direitos das Crianças e dos Adolescentes (FNDCA). Acirradas pelas pressões de organismos
multilaterais, no Brasil, para a formulação e a aprovação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), o qual foi sancionado em 13 de julho de 1990, pela Lei Federal nº. 8069,
tendo entrado em vigor em 14 de outubro do mesmo ano (SIQUEIRA; DELL'AGLIO, 2006).
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Retomando a trajetória das políticas sociais voltadas à adolescência, Lopes, Silva e
Mafitano (2006) mostram que, durante o período de vigência da FUNABEM e FEBEM, as
crianças e os adolescentes tornaram-se gradativamente alvo de forças políticas que os
investigavam, classificavam e controlavam, em nome de sua proteção e educação. Tornaramse objetos do projeto de sujeito que deveria ser então forjado: “futuro cidadão, trabalhador,
pessoa sadia e útil para a sociedade” (MORELLI, 1996, p.47). Durante a vigência do Código
de Menores, dois tipos distintos de políticas públicas destinadas a essa população coexistiam:
a primeira, destinada a crianças de famílias elitizadas, objetivava prepará-las para dirigir a
sociedade, enquanto a segunda, voltada a crianças pobres, tendia a controlá-las e lhes oferecer
educação elementar e profissionalizante, preparando-as para o mercado de trabalho (LOPES;
SILVA; MAFITANO, 2006).
A política dirigida ao menor tipificava a criança como pertencente às “classes
perigosas”, estigmatizando-a como “menor”, categorização utilizada para designar tanto
crianças quanto adolescentes como infratores, figura usada para designar aqueles que eram
avaliados como em situação irregular, o que justificaria a necessidade de alguma assistência
institucional. A menoridade passou a ser o adjetivo de crianças, adolescentes e jovens,
desqualificando-os e situando-os abaixo de qualquer outra categoria social, durante
praticamente seis décadas do século XX. A partir da década de 1970, foi o Estado quem
passou a cuidar e responsabilizar-se pelas crianças e adolescentes, ainda chamadas de
menores e vistas como advindas de famílias rotuladas como disfuncionais, pobres e com baixa
escolaridade. Ao Estado é delegado construir e investir em um sistema de políticas sociais
para essas pessoas (OLIVEIRA; MILNITSKY-SAPIRO, 2007).
Foi em um contexto de controle de crianças e adolescentes consideradas desviantes
que emergiram, no século XIX, na esfera internacional, as primeiras instituições repressivocorretivas dos chamados menores infratores. E, no âmbito brasileiro, já no século XX,
substituíram-se equipamentos corretivos do Serviço de Assistência ao Menor e outros
correlatos pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FENABEM) e, no estadual, a
Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor (FEBEM). Essas instituições foram
dispositivos governamentais destinados a jovens classificados como menores infratores, cujo
objetivo era reeducar e inseri-los ao contexto social. Porém, o funcionamento e a ação interna
eram semelhantes à do sistema prisional, com presença de atos violentos e organização
interna padronizada (NOGUCHI; LA TAILLE, 2008). Atuavam em uma lógica disciplinar a
qual organizava os corpos no tempo e no espaço, de modo a modelá-los e controlá-los
conforme um ritmo e um contexto social (MARQUES; CZEMARK, 2008).
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No embate em torno das políticas de Assistência Social, duas posições se tornaram
evidentes. De um lado, os menoristas eram opositores dos estatutistas e tentaram, seja na
discussão da Constituição de 1988, seja na formulação do ECA, legitimar as políticas de
tutela do Estado com crianças e adolescentes. De outro, os estatutistas lutavam pela proteção
integral, pela atenção em meio aberto, pelo direito à convivência familiar e comunitária, pelas
medidas de proteção em rede e por abrigamentos e internações provisórias e em caráter
excepcional. Os menoristas perderam algumas batalhas, mas ganharam outras, pois ainda se
pode acompanhar como perdurou a figura da menoridade de outras maneiras, por meio de
atualizações de paradigmas de internação, asilares e estigmatizantes, do período do Código de
Menores, tais como a medida de privação de liberdade; a construção de unidades
socioeducativas em lugares afastados das cidades, em geral, nas rodovias; o esvaziamento do
orçamento que financiasse o sistema de garantia de direitos das crianças e adolescentes; a
terceirização da política de atenção e sucateamento das políticas sociais públicas; o emprego
de veículos midiáticos conservadores para produzir reiteradamente a figura do menor e do
adolescente pobre como risco/perigo para a sociedade.
Depois da aprovação do estatuto, a nova população, até então inexistente (já não eram
menores, embora menorizados), em parte sob a tutela do Estado, sem deixar de ainda estar
sujeita a outras artes de governar ligadas à caridade, à filantropia e à medicina higienista
tutelar, transforma-se em sujeitos de direitos, cujo exercício passa por instituições criadas ou
remodeladas para atender aos emergentes cidadãos. Não se nega a importância do ECA e a
ruptura com a menoridade e com a situação irregular, todavia, destaca-se que, historicamente,
a promulgação de uma lei não finaliza todas as práticas anteriores por decreto. Assim, apesar
de ser uma conquista em termos de Direito garantista, o ECA passou a vigorar em meio à
existência de práticas anteriores, as quais ainda traziam aspectos clientelistas, assistencialistas,
patrimonialistas, caritativos e de segregação, pautados em racismos variados, eugenismos e
higienismos que tornavam crianças e adolescentes menores, de certa forma.
De acordo com Boarini (2003), o eugenismo e o higienismo eram dois movimentos,
criados no final do século XIX e intensamente difundidos no Brasil nas primeiras décadas do
século XX, com ressonâncias na educação, na saúde, na justiça e na assistência social. A
despeito das críticas que sofreram, sobretudo o eugenismo, ainda deixam rastros no presente,
em termos de ideais e programas de governo das condutas. No caso do eugenismo, havia a
preocupação em esterilizar grupos discriminados para não se reproduzirem, defender penas
capitais, internações e prisões perpétuas para populações estigmatizadas. No higienismo
social, havia uma transposição das ideias de higiene e limpeza para o campo da higiene
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urbana e da medicalização da sociedade. Nesse caso, grupos classificados como refugos eram
enviados para asilos e retirados de circulação na cidade, além de campanhas relacionadas ao
risco e perigo serem produzidas como lemas de ordem social e em nome da pureza de uma
sociedade racista.
Obviamente, sabe-se que o eugenismo e o higienismo da atualidade têm
deslocamentos, mas muitos de seus ideários foram disseminados no campo de saberes, de
poderes e de subjetivações, bem como nas práticas de segurança e nas políticas públicas de
modo geral. Rauter (2004) assinala como, na esfera de punições e atendimentos aos
adolescentes autores de ato infracional e de grupos de adultos privados de liberdade, há antes
e depois do cumprimento da responsabilização jurídica uma correlação de práticas vizinhas,
em que os ideários eugenistas e higienistas estão presentes. No caso dos adolescentes, tanto na
antiga FEBEM como na atual Fundação Casa e nas políticas da assistência, no âmbito do
SUAS e Sinase, em termos de proteção básica e especial, há explicitamente práticas
perpassadas por esses ideários.
É preciso entender que os documentos de políticas públicas, mesmo aqueles que visam
a assegurar direitos importantes, como ocorre com o ECA, guardam paradoxos e operam
rearranjos de forças anteriores, bem como podem ser apropriados e lidos conforme as práticas
em disputa, pois, para sua aprovação, concorreram alianças entre campos de saber-poder com
propostas díspares e heterogêneas. Seguindo as pistas de Rose (2011, p.169), sobre a atuação
da Psicologia nos equipamentos de Proteção Social, esta pode ser compreendida “não apenas
como uma forma de conceber o self e suas relações, mas também como um conjunto de
técnicas para inscrevê-los”, na legitimação e materialização do ECA.
O ECA propõe a construção de um modelo de proteção integral às crianças e aos
adolescentes, não só após os direitos serem violados, mas também se antecipando à violação,
doravante não mais passível de ser apoiada, explicitamente, nos discursos de banimento social
e de periculosidade, os quais tornavam aceitáveis medidas extremas de contenção, como
aquelas executadas durante as reivindicações protagonizadas por adolescentes e jovens na
FEBEM, hoje Fundação Casa, em São Paulo, e com outros nomes, em outros Estados do
país.Tratava-se de uma vigilância de características disciplinares que são agenciadas, hoje,
com mecanismos de controle contínuo e modulado, acoplados às práticas de segurança
neoliberais, fundadas na defesa dos direitos e da liberdade de escolha.
Se, com o estatuto, a rede de proteção social se tornou mais coesa, esse efeito
terminou, paradoxalmente, por aumentar a produção de documentos que almejavam orientar
os profissionais na atuação junto aos novos equipamentos criados para proteção social. A
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despeito da relevância das lutas sociais, a implantação do ECA não conseguiu impedir o
surgimento de espaços assistencialistas preocupados em conceder um lugar de socialização e
desenvolvimento a essa população,ainda focados na tutela e na moralização, mesclada com
higienismo medicalizante e com judicializações securitárias. Para o trabalho profissional no
interior das unidades das FEBEMs, foram chamadas as equipes compostas, dentre outros
profissionais, por psicólogos. Como analisava Passetti (1986) nas FEBEMs, vigorava o
chamado modelo biopsicossocial o qual funcionava como anteparo às críticas de que seriam
tão somente grandes prisões corretivas:
As FEBEMs, como instituições corretivas, passavam a se orientar pelo dispositivo
biopsicossocial de identificação, classificação e distribuição dos menores a serem
atendidos, afirmando que o problema deixava de ser patológico para ser encarado
como sócio-psicopedagógico, ou, como queriam, interdisciplinar. Dessa maneira, se
apóia na necessidade de técnicos especializados de nível superior (psicólogos,
assistentes sociais, médicos, administradores, sociólogos, psiquiatras, advogados,
etc.) para atender convenientemente esse contingente, visando sua integração social.
(PASSETI, 1986, p. 02).
A objetificação dos adolescentes como problema social, familiar e de segurança,
simultaneamente, ao lado da sua colocação enquanto sujeito de direitos, está cada vez mais
inserida nos discursos governamentalizados. Diretrizes e normas foram sendo criadas no
plano das relações internacionais, tanto na diplomacia das Nações Unidas quanto na esfera
dos bancos, empresas e organizações não governamentais diversas, de cunho mundial,
visando a metas. Entra em pauta a promoção do cuidado dirigida aos sujeitos definidos como
em risco social, cujo desempenho deve ser calculado para prevenção de possíveis desvios ou
contenção daqueles considerados desviantes, conforme se dá com os adolescentes designados
infratores.
No seio dadivoso das sociedades de controle (DELEUZE, 1992), parcerias e
articulações estratégicas são bem-vindas, são esperadas. Conforme aponta Passetti (2004, p.
156), sociedade de controle “é sociedade de segurança, de confiança nos programas, de
tolerância, veloz e inacabada; consagrando o ideal liberal da razão competente e da sociedade
aberta, o liberalismo conservador pluralista, o comunismo de multidão”. Se a FEBEM
concretamente foi abolida do Sistema de Atenção Psicossocial, a lógica FEBEM, concebida
como uma disposição de saberes, práticas e jogos de forças, persiste.
Centros de Referência em Assistência Social: da reordenação dos discursos
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Os discursos voltados às práticas psicológicas que orientam as políticas dos CRAS e
CREAS diferem, substancialmente, daqueles que eram comuns à FEBEM e FENABEM, bem
como da atual Fundação Casa São Paulo, que as substituiu. Contudo, guardam
desconcertantes semelhanças, uma vez que os primeiros eram dirigidos aos chamados de
menores infratores, enquanto os últimos se dirigem aos jovens nomeados como em situação
de vulnerabilidade social. Entretanto, a concomitância entre defesa de direitos e práticas
normalizadoras se torna patente, e especialmente problemática, nos Centros de Referência de
Assistência Social (CRAS), um dos dispositivos responsáveis pelos adolescentes, na proteção.
Como unidades públicas de proteção social básica, os CRAS oferecem serviços com
finalidade de prevenir a ocorrência de situação de risco social, no território onde estão
instalados. Possuem três objetivos principais: (1) assegurar o acesso e a qualidade dos
serviços para as famílias atendidas; (2) garantir a convivência familiar e comunitária,
contribuindo para o processo de autonomia e emancipação social das famílias, e (3) promover
aquisições sociais e materiais às famílias e o enfrentamento de situações de vulnerabilidade e
risco social (BRASIL, 2004).
Para atingir seus objetivos, o CRAS previne situações de risco social por intermédio
do desenvolvimento de potencialidades, fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários, e da ampliação do acesso aos direitos de cidadania. Impede-se que políticas
voltadas para o estabelecimento de autonomia sejam criadas, e os adolescentes deixam de ser
atores ativos de suas vidas, tornando-se intermediários e assujeitados às encomendas do
Estado, da família e de uma série de outras instituições. As equipes devem conter de dois a
quatro técnicos de nível médio e de dois a quatro técnicos de nível superior, assistentes sociais
e, preferencialmente, um psicólogo (BRASIL, 2009).
Ao serem regulamentados pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do
Sistema Único de Assistência Social –SUAS– NOB-RH/SUAS, os CRAS devem conjugar
número de jovens e famílias atendidas, bem como uma equipe mínima responsável pelos
atendimentos. Scisleski, Caetano e Cogoy (2013), ao discorrerem sobre a atuação em um
CRAS localizado em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, ressaltam que, no cotidiano,
a ênfase numérica se sobrepõe a outras dimensões que deveriam ser prioritárias:
Em relação ao serviço, uma das coisas que nos chama a atenção é a necessidade de
se cumprirem/atingirem metas que mantenham os sujeitos dentro das atividades
“propostas” no local, como oficinas, grupos e cursos. No entanto, essas atividades
não correspondem, necessariamente, à vontade das pessoas, mas sim à efetividade
da norma, à produção de dados numéricos e à adequação aos programas e projetos
propostos. [...] Assim, sob a nossa ótica, parece-nos que a preocupação maior do
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serviço incide sobre os dados numéricos e a formação de uma família baseada ainda
na configuração familiar burguesa e cristã, e não sobre os sujeitos que se apresentam
ali, com suas diversidades e adversidades de viver. (SCISLESKI; CAETANO;
COGOY, 2013, p. 92).
O Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) lançou,
em 2007, a cartilha intitulada Referências Técnicas para atuação do psicólogo no
CRAS/SUAS. De acordo com o documento, o foco da atuação do psicólogo no CRAS deve ser
a prevenção e a promoção da vida, priorizando as potencialidades e a valorização dos aspectos
saudáveis presentes nos sujeitos e promovendo o protagonismo na conquista e afirmação de
direitos, por parte dos usuários da rede, especialmente dos adolescentes. Enfatiza a
necessidade de que as práticas psi não colaborem para patologização e objetificação das
crianças, adolescentes e jovens atendidos:
A Psicologia pode oferecer, para a elaboração e execução de políticas públicas de
Assistência Social – preocupadas em promover a emancipação social das famílias e
fortalecer a cidadania junto a cada um de seus membros –, contribuições no sentido
de considerar e atuar sobre a dimensão subjetiva dos indivíduos, favorecendo o
desenvolvimento da autonomia e cidadania. Dessa maneira, as práticas psicológicas
não devem categorizar, patologizar e objetificar as pessoas atendidas, mas buscar
compreender e intervir sobre os processos e recursos psicossociais, estudando as
particularidades e circunstâncias em que ocorrem. Tais processos e recursos devem
ser compreendidos de forma indissociada aos aspectos histórico-culturais da
sociedade em que se verificam, posto que se constituem mutuamente. (BRASIL,
2007, p.17).
Temos o compromisso de oferecer serviços de qualidade, diminuir sofrimentos,
evitar a cronificação dos quadros de vulnerabilidade, defender o processo
democrático e favorecer a emancipação social. (IBID, p. 19).
A presença do psicólogo entre os profissionais de referência do CRAS é apontada, na
cartilha sobre orientação técnica do Ministério de Desenvolvimento Social – MDS, publicada
em 2009, como fundamental, sendo ele uma peça necessária e indispensável, uma vez que os
processos de exclusão social teriam implicações subjetivas. Nessa cartilha, o Ministério do
Desenvolvimento Social (BRASIL, 2009) faz algumas considerações sobre o que os
profissionais de Psicologia não devem adotar como prática no trabalho no CRAS: o
atendimento psicoterapêutico, a “patologização” ou a categorização dos usuários nos
atendimentos.
Os profissionais devem utilizar seus recursos teóricos e técnicos, com o intuito de: a)
compreender os processos subjetivos que podem gerar ou contribuir para a
incidência de risco social de famílias e indivíduos; b) contribuir para a prevenção de
situações que possam gerar a ruptura dos vínculos familiares e comunitários e c)
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favorecer o desenvolvimento da autonomia dos adolescentes usuários do CRAS.
(BRASIL, 2009, p.65).
Por mais que a atuação do psicólogo esteja orientada por documentos que visam a
assinalar um papel que não seja normalizador (ver: BRASIL, 2009; BRASIL, 2007), as
práticas adjacentes terminam por operar normalizações, na medida em que o lugar do
psicólogo no CRAS está legitimado por metas quantitativas aferidas junto à população
atendida, a exemplo da manutenção da obrigatoriedade de estar na escola, a despeito dos
problemas enfrentados, bem como se encontram em aliança com práticas medicalizantes que
objetivam a assegurar a sua função de proteção social. O CRAS, em sua configuração atual,
continua funcionando em parte como um dispositivo de controle dos corpos o qual estabelece
um processo de homogeneização de técnicas, costumes, linguagens, códigos e modos de
consumo (ANDRADE; ROMAGNOLI, 2010).
O CRAS não é apenas controle, pois também possibilita a criação de paisagens e
modos de relação social para além do território geográfico e dos documentos e protocolos
estipulados para seus trabalhadores. As famílias e os adolescentes não estão apenas
assujeitados aos profissionais; eles se deslocam e rearranjam os modos de organização da
política, por meio de governamentalidades variadas. Não existiriam práticas pautadas em
documentos de referência e em leis que não realizariam alguma normalização social. Toda
prática traz um campo de normas e, por sua vez, de exclusões das normas, já que negocia e
prescreve algum modo de ser e de fazer. Foucault (1999) já destacou que onde há poder há
resistência e que não há poder sem saber, ou seja, as práticas normalizadoras são efeitos de
disputas em meio a um conjunto de forças em agenciamento.
Assim, não se pode asseverar que os adolescentes são responsabilizados
exclusivamente pelo que se pode designar “fracasso” do projeto de sujeito e sociedade
securitário e punitivo, mesmo no campo das políticas de atenção psicossocial. As estratégias e
as táticas empreendidas pelas práticas psi, nesses contextos, criam um emaranhado de
dispositivos e mobilizam encomendas e demandas de modificar e controlar arranjos
familiares, condições de vida (materiais, sociais e afetivas); mais do que apenas modificar
sujeitos, busca-se, a partir do discurso da prevenção e do controle da vida, promover modos
de vida unificados e legitimados como os mais adequados.
A pretensão de controle não passa de um objetivo a atingir que não se concretiza de
fato, quando se entende que os corpos resistem e não são meros joguetes de práticas de
controle social. No espaço entre a chamada proteção básica do CRAS e o cumprimento de
medida socioeducativa de internação na Fundação Casa, há toda uma história, marcada por
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muitas linhas e acontecimentos pregressos às intervenções do CRAS e posteriores às mesmas,
em combinação ou não com estas, até a decisão ou não de encaminhamento de adolescentes
para a Fundação Casa. Rodrigues, Guareschi e Cruz (2013) descrevem o processo burocrático
e normalizador que determina a entrada no CRAS – o CAdúnico – que registra,
principalmente, as condições econômicas e sociais da família:
A “porta de entrada” do CRAS é o Cadúnico, pois é através dele que as famílias
passam a existir para a Política. Trata-se de um instrumento (preenchimento digital)
cujo objetivo é registrar informações que permitam a identificação do domicílio e da
família através de questões estruturadas e distribuídas em 10 blocos distintos:
1)identificação e controle; 2) características do domicílio; 3) família; 4)
identificação da pessoa; 5) documentos; 6) pessoas com deficiência; 7) escolaridade;
8) trabalho e remuneração; 9) responsável pela unidade familiar (RF); 10) marcação
livre para o município (RODRIGUES et al., 2013, p. 12).
A saída do CRAS, em tese, deveria ser a integração social dos jovens e adolescentes,
promovida por uma atuação em redes. Entretanto, no cotidiano, os CRAS/CREAS muitas
vezes se inscrevem como pontos de parada em trajetórias que terminam nos equipamentos do
Sinase. Isso evidencia que há que se pôr em xeque as racionalidades que presidem os
equipamentos do SUAS e Sinase, a fim de que, de fato, adquiram diferenciação com relação
aos serviços que objetivaram substituir, não apenas por uma lógica de substituição
institucional de um equipamento por outro. É necessário um exercício constante voltado à
invenção de novas práticas que emerjam e adquiram continuidade nos, também, recentes
espaços institucionais produzidos em contraponto às instituições anteriores pautadas pelo
confinamento (ROMAGNOLI, 2012).
Centros de Referência Especializados de Assistência Social: liberdade sem xeque na
racionalidade Neoliberal
No Brasil, a implantação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS),
com o objetivo de ofertar a proteção básica, e dos Centros de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS), criado para atender à proteção especial, faz parte de uma
política albergada no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Construir esse sistema foi
importante e demonstrou que o Brasil manteve alguns ideais democráticos no capitalismo
neoliberal, após a reforma de Estado, na década de 1990 do século XX. O neoliberalismo
brasileiro se aproxima do alemão e se afasta mais do norte-americano, nesse aspecto de
políticas sociais.
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O Brasil se baseou em várias práticas alemãs, como o programa economia solidária, o
bolsa-família e projetos de renda mínima, o financiamento de pequenas empresas e uma
política de crédito de moradias populares. Pode-se ver, no SUAS, algo similar, já que este se
apoia numa rede de programas de geração renda e de distribuição de benefícios para grupos
específicos, em mínimos sociais. Vale sinalizar que o Brasil se aproxima do neoliberalismo
norte-americano na encomenda de lei e ordem, no que vem sendo chamado de tolerância zero,
ou seja, aprisionamento em massa de negros, pobres, com baixa escolaridade por pequenos
desvios e crimes de baixo potencial ofensivo, apesar de haver diretrizes legais na Constituição
de 1988, entre outras garantias. O neoliberalismo norte-americano esteve mais voltado para o
mercado, enquanto o alemão ainda manteve políticas sociais financiadas pelo Estado, porém,
com restrição do amplo financiamento anterior (FOUCAULT, 2008a).
No caso dos CREAS, espaço e política do SUAS, que, no âmbito federal, tem sido
responsável pelas medidas em meio aberto, há uma série de fragilidades as quais dificultam
sua efetividade na atenção psicossocial aos adolescentes. Entre elas: profissionais contratados
e poucos concursados, recém-formados, despreparados para lidar com as situações a
enfrentar, à mercê de patrimonialismos e nepotismos, em função de heranças de um período
não liberal no país. Essa situação é agravada pelo uso indevido dessa política pelos
municípios, que deslocam os profissionais para outras ações, destinam baixa verba para
realizar as ações de acompanhamento em meio aberto aos adolescentes. Também contribuem
pressões locais por práticas profissionais que, ainda, trazem uma carga intensa de racismos, os
quais reverberam negativamente nos objetivos de proteger adolescentes que já cometeram
atos infracionais de baixo potencial ofensivo.
Os adolescentes encaminhados ao CREAS, em muitos casos, acabam assinando uma
presença mensal obrigatória para o cumprimento da medida e apenas isso, o que não
configura acompanhamento concreto e cuidado que impeça novas violações de direitos, e que
esse adolescente viole direitos de outras pessoas. Ou, em outras situações, profissionais
esbarram no engessamento de práticas nepotistas e patrimonialistas que dificultam efetivas
transformações ou as restringem a curtos espaços de tempo e a uma alta rotatividade de
profissionais. As práticas psicológicas se tornam, então, cúmplices do que espera esses jovens
e adolescentes, em um futuro breve posterior à medida de privação de liberdade quase como
única saída para a sobrevida à qual estão de certo modo destinados, em um Estado e sociedade
racistas.
O país tem aplicado nas decisões penais e jurídicas uma racionalidade mais retributiva
e de seletividade penal, em uma política criminal vingativa e segregativa. As implicações
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dessa decisão afetam o ECA nas medidas socioeducativas, em meio aberto, tornando letra
morta a exceção de privação de liberdade prevista no mesmo. Adolescentes cumprem medidas
de privação de liberdade e ainda são culpados, bem como suas famílias, por essa realidade. A
partir desse ponto, volta-se para a menoridade e para a atualização da repressão
assistencialista, que isola e oferece um mínimo sem transformar concretamente vidas,
resultando mais em uma noção de segurança social. Em defesa da sociedade, opera-se pela
moralização dos adolescentes que são internados, sob a égide da ressocialização, educação e
Proteção Social, nas unidades como a Fundação Casa, em São Paulo.
Foucault (2008b) enfatiza como as políticas sociais foram sendo deslocadas no
neoliberalismo, desde a década de 70 do século XX, do financiamento de bem-estar social
para o de Estado Mínimo, em que as políticas sociais passaram a ser compensatórias. Ou seja,
voltadas para os segmentos considerados em risco e vulnerabilidade social, e não mais a
ampla cobertura. Assim, não são garantidos direitos fundamentais a todos e, todavia, se
operam recortes em que se atendem e se financiam grupos selecionados como potenciais
problemas de segurança. Há um racismo posto nessa maneira de cuidar e atender, sustentado
pelo mercado e pela punição, mais do que pela garantia de direitos e proteção. Na verdade,
protegem-se alguns, em detrimento do crescimento das desigualdades de muitos outros.
Os direitos fundamentais estão previstos como princípios, no ECA, mas não há
referência aos meios de garanti-los concretamente, o que já traz problemas. Essas leis são
relevantes, contudo, ficaram restritas diante de uma escolha fundamentada em uma economia
política liberal capitalista, em que os direitos vêm depois do que os liberais denominam
interesses de governabilidade, em nome de uma política de lei e ordem, a qual opera por uma
mercantilização dos direitos. Além disso, o próprio documento ECA se sustenta em uma certa
homogeneidade que produz um sujeito de direitos abstrato em vez de sujeitos e subjetivações
atravessadas por intensas desigualdades nos seus modos de viver.
[...] apesar do avanço que o ECA significa para a política de proteção de crianças e
jovens brasileiros, a lógica de igualar juventudes tão desiguais em termos
socioeconômicos, culturais e históricos faz parte dos princípios e modelos
defendidos pelo liberalismo. Ou seja, é uma tentativa de igualar em cima de valores
burgueses modos de vida que continuam desiguais e que tendem, no neoliberalismo,
a se tornar cada vez mais distantes entre si (COIMBRA; NASCIMENTO, 2005, p.
350).
As diretrizes para Atenção Psicossocial se utilizam de discursos que continuam
arraigados aos dispositivos que assinalam aos psicólogos o lugar de policiamento de condutas,
cálculo de riscos e gerenciamento de espaços. Nestas práticas se destaca o emprego da
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avaliação psicológica, que confere aos profissionais de psicologia uma exclusividade de
atuação cuja contrapartida é a recusa, pelo menos documental, de outras práticas de produção
de saberes e práticas psi. Os documentos e práticas não se apoiam apenas em dualidades,
fazem-se atravessar pelos posicionamentos diferenciados presentes nos campos de práticas
psi, sendo defensores de direitos em certos aspectos e demandando restrições em outras.
Tornam visíveis as linhas de força que aproximam os dilemas vividos pela atenção
psicossocial daqueles experimentados no campo da Saúde Mental Pós-Reforma Psiquiátrica
(AMARANTE, 2007).
Até chegar a um CREAS, muitos direitos de adolescentes e jovens são violados, o que
já traz dificuldades para a história de vida dos adolescentes atendidos e para os profissionais
que os atendem. Tais direitos anteriores foram violados por fragilidades na implantação
efetiva da proteção integral, nas medidas de proteção aplicadas às crianças pequenas, por falta
de orçamento que seja compatível com as garantias previstas no ECA e na Constituição de
1988. Além disso, o funcionamento coextensivo CRAS/CREAS parece reafirmar antigas
divisões entre vulneráveis e infames; aos primeiros, o atendimento no CRAS; aos segundos, o
rótulo da demanda especializada no CREAS.
A menorização se materializa na partição CRAS/CREAS e nas vias definidas para sua
integração, porém, curioso é que o foco parece ter pouca incidência na transformação de uma
prática de profecia autorrealizadora, pois os adolescentes atendidos têm ido para a Fundação
Casa, não antes de serem igualmente atendidos em algum Centro de Referência Especializado
de Assistência Social (CREAS). No que tange aos CRAS e à proteção básica, pode-se
destacar que a oferta de vagas tem focado um público antecipadamente tachado de infância
em perigo de se tornar perigosa, de acordo com o que já ressaltou Donzelot (1986). A direção
da política e da verba aos adolescentes pobres, moradores das periferias, advindos de famílias
consideradas disfuncionais, implica uma atualização do paradigma da situação irregular,
presente no Código de Menores de 1979.
Discursos e ações reforçam a concepção de uma adolescência que, ao mesmo tempo,
necessita de cuidado e caridade (ativação da filantropia, dispositivo herdado do século XIX) e
é classificada de maneira enviesada por um conjunto de práticas sociais como um problema
social (dispositivo que vem sendo constituído por meio da legitimação científica, para a qual
concorrem diversas disciplinas e campos de práticas). Toda uma política da vida foi sendo
tecida da segunda metade do século XIX em diante, em que a criança pequena e sua mãe se
tornaram figuras separadas da sociedade mais ampla, como devendo receber atenção especial
dos trabalhadores sociais, na assistência médica e higienista, pautada nos modos de
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normalização
em
interlocução
com
a filantropia dos
beneméritos
moralizadores
(DONZELOT, 1986).
Nos anos de 1990, as violações e o temor securitário em defesa da sociedade
produziram um intenso movimento da sociedade civil em favor dos direitos das crianças e
adolescentes, o qual ganhou impulso e apoio social. Alavanca-se, também, um discurso
securitário, isto é, o de garantir que as crianças e adolescentes banidos do convívio social não
fugiriam dos espaços a eles delimitados, simultaneamente aos discursos de proteção e
cuidado. A par da dimensão caridosa, moral filantrópica, a médico-higienista é solicitada a
compor o dispositivo tutelar por meio da normalização de condutas e regulação medicalizante
arraigadas no temor securitário diante das turbas, rebeliões, infrações.
Não nos espanta que mais e mais lugares sejam destinados à promoção de autonomia,
prevenção de riscos, considerando adolescentes como desprovidos de autocontrole,
potencialmente capazes de condutas que ameaçam o equilíbrio societal (RAUPP;
MILNITSKY-SAPIRO, 2005) e que, por isso, precisam ser controlados e reinseridos
socialmente, trabalho que deve ser realizado, indubitavelmente, por um adulto. Aludimos a
um esquadrinhamento de condutas e quadriculação de espaços que, sob a defesa da paz e da
liberdade, terminam por segregar e limitar o trânsito de adolescentes e jovens no tecido social.
Também não surpreende que as psicologias tenham sido convocadas para atuar visando a
garantir direitos em uma transição que termina por omitir que novas instituições não se
sustentam sem que as racionalidades sejam colocadas em xeque.
Fundação Casa - SP, analisador para intoleráveis que se sustentam
A lógica segregativa que preside a criação da Fundação Casa aponta para a decisão
política de manter a perspectiva repressiva, retributiva, ainda ligada à visão de menoridade,
em contraposição à doutrina de proteção integral e de direito à convivência familiar e
comunitária, que implica oferta de atendimento em meio aberto. Não se está a afirmar que a
Fundação Casa é igual à FEBEM e apenas aumenta o número de vagas em pequenas
unidades, mas chama a atenção que a prioridade foi de gastar a verba na internação, e a aposta
foi menor nos princípios do ECA. A Fundação Casa-SP foi criada, em 2007, para substituir as
FEBEMs e foi vinculada à Secretaria de Estado da Justiça e da Defesa da Cidadania. Nela,
são aplicadas medidas socioeducativas de privação de liberdade e de semiliberdade, no Estado
de São Paulo, para adolescentes entre 12 e 21 anos que cometeram atos infracionais,
conforme determinação judicial. Permitiu a descentralização institucional pelo interior do
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Estado e na sua capital. Todavia, acarretou a proliferação de miniaturas de presídios pelas
rodovias e uma alocação de verba estadual e municipal em unidades fechadas, ou seja,
priorizando medidas de internação, na contramão do ECA, o qual estimula as medidas em
meio aberto, sendo que a privação de liberdade deveria ter caráter excepcional.
A Fundação Casa-SP emitiu, em 2012, um documento para orientar as práticas
psicossociais que se oponham às práticas de confinamento. Essa orientação tem relação com
documentos internacionais, aprovados nas conferências da Organização das Nações Unidas
(ONU); mais diretamente, por meio das articulações do Fundo das Nações Unidas para a
Infância (UNICEF) e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura
(UNESCO). Entretanto, o documento produzido pela Fundação Casa-SP é um analisador de
como as diretrizes que dariam lugar a novos instituintes termina por orientar práticas psi que
não atuam na direção de produção de liberdades, reafirmando a segregação intolerável que já
vigorava no antigo modelo de confinamento.
Apesar de o que pauta a criação da Fundação Casa ser o contraponto ao modelo de
confinamento e de cunho asilar, as diretrizes contemporâneas para atuação psicossocial que
guiam as suas práticas enfatizam tal mudança paradigmática em relação às antigas práticas da
FEBEM – e o que fazem é justamente o oposto. Para o esquadrinhamento ou
acompanhamento minucioso das condutas, à “Pasta do Adolescente” se soma a “agenda do
adolescente”, a qual contempla os horários nos quais é atendido por cada profissional, sendo
enfatizada a adoção de grupos, em vez do atendimento individualizado:
Os psicólogos e assistentes sociais também fazem parte dessa agenda.
Tradicionalmente o atendimento psicossocial é realizado quando o adolescente é
retirado de uma atividade, sem previsão. A diretriz atual é que esse atendimento seja
programado, quer para atendimento individual, quer para atividades em grupo,
lembrando que psicólogos e assistentes sociais podem programar atividades em
conjunto com as áreas para ações em grupos com os adolescentes (BRASIL, 2012,
p.10).
As diretrizes para a Atenção Psicossocial da Fundação Casa instituem, também, uma
compartimentalização de práticas e saberes na qual é reservado ao psicólogo centrar-se no
adolescente e, aos assistentes sociais, dirigir-se às famílias e à rede social. Nessas diretrizes, a
repartição da atenção psicossocial é visível no dispositivo “Pasta do adolescente”, o qual
inscreve cada ação profissional em relação aos adolescentes, no cotidiano da instituição:
Sobre o registro das ações interventivas realizadas pelos profissionais, houve uma
mudança significativa que é a nova Pasta do Adolescente que foi desmembrada, com
a intenção de dar especificidade ao registro de cada área profissional. Dessa forma a
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Psicologia possui a própria pasta, para armazenar os registros de todos os seus
atendimentos com o adolescente. Igualmente o Serviço Social possui também sua
pasta para registrar o seu trabalho em relação ao adolescente, à família e rede de
serviços (BRASIL, 2012, p.9).
As políticas públicas, em particular as de assistência e proteção social, são um dos
principais meios pelos quais o Estado, em acordo com uma série de outros estabelecimentos e
entidades, promove o discurso de que é necessário conhecer para intervir junto a uma
juventude que possui direitos violados, necessitando de atenção psicossocial continuada. Essa
posição é muito clara, por exemplo, no documento da Fundação Casa – São Paulo, o qual
realça como base das ações socioeducativas a avaliação psicológica, em uma nítida operação
na
qual
a
Psicologia
é
interpelada
a
reproduzir
padrões
extrínsecos
de
normalidade/anormalidade baseadas na avaliação psicológica como ponto de partida:
O ponto de partida para ações socioeducativas é a Avaliação Psicológica, na qual se
pode identificar aspectos passíveis de intervenção, entre eles, promoção do
autoconhecimento, autoestima, análise de padrões comportamentais (incluindo ato
infracional), propiciando o aprimoramento e/ou aprendizagem de competências
pessoais e familiares que possibilitem a ressignificação da prática delitiva, bem
como desenvolver habilidades de criar alternativas no manejo das diversas
condições de vulnerabilidade (BRASIL, 2012, p.23).
Movimentos sociais e entidades, conselhos de direitos, profissionais, ativistas,
movimentos religiosos e estudiosos dos direitos de crianças e adolescentes lutaram pela
aprovação do ECA e pela alteração do paradigma de atendimento de crianças e adolescentes,
que passou a ser baseado no modelo socioeducativo, em aspectos psicopedagógicos, médicopsicológicos, nas transformações nas políticas sanitárias e de saúde mental, desembocando em
um certo processo de democratização do cuidado e da maneira de responsabilizar
adolescentes que cometeram atos infracionais. Na contracorrente dessa ampla deriva crítica, o
documento da Fundação Casa, em vigor no Estado de São Paulo, mesmo que não tenha força
da lei, segrega e restringe liberdades tanto dos adolescentes e jovens quanto dos profissionais
da psicologia. No limite, esse documento é um analisador de como o exercício de violências
sucessivas, pautado por uma paradoxal afirmação de direitos, continua a atuar reduzindo o
alcance das transformações nas políticas de atendimento e minimizando as conquistas da
aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Não é excessivo reafirmar que os documentos escritos para orientar práticas de
atenção psicossocial junto aos adolescentes e jovens em medida socioeducativa, atuam em
uma rede mais ampla de instituições e práticas que continuam a inscrever e prescrever o
governo das condutas de adolescentes e jovens à tutela. Endereça-se à Psicologia o papel
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estratégico de legitimação e expansão de práticas e discursos caracterizados pela
normalização e controle, na medida em que esta é capaz de tornar os procedimentos adotados
eticamente plausíveis (ROSE, 2011). Promovem-se práticas de avaliação psicológica que
visam a detectar e “prevenir” atitudes, comportamentos e modos de ser julgados como
inadequados ao projeto de sociedade e de sujeito, que garanta o futuro de uma nação ou,
simplesmente, o melhor funcionamento de uma unidade ou equipamento social. Podem ser
citadas práticas as quais apenas se restringem à aplicação de escalas psicométricas e/ou
projetivas, sem que estas sejam contextualizadas em suas datas e lugares em que foram
criadas; além disso, várias dessas são aplicadas fora de uma visão crítica de seus objetivos, de
suas adaptações para outros países, servindo às padronizações que reiteram estigmas.
A aplicação irrefletida da avaliação psicológica no âmbito da proteção social, em
algumas situações limítrofes, adquire o poder de matar como ocorreu, em 2008, em uma
situação de extrema violência acionada por um laudo psicológico emitido pelo Conselho
Tutelar em São Paulo. Mello e Patto (2008) narram o incidente trágico de dois irmãos com 12
e 13 anos e mostram a força que um laudo psicológico pode vir a ter na vida de crianças e
adolescentes em situação de pobreza:
No dia 07 de setembro último, a imprensa divulgou mais um desses casos. Dois
irmãos, de 12 e 13 anos de idade, foram, dois dias antes, brutalmente assassinados
pelo pai e pela madrasta num município da Grande São Paulo. Depois de nove
meses internados num abrigo por determinação do Conselho Tutelar, que acatou
denúncias de maus-tratos, eles foram devolvidos à família quatro meses antes do
crime, apesar de seu desejo expresso de continuar no abrigo. Poucos dias antes de
sua morte, foram encontrados pela polícia vagando pelas ruas, quando teriam
informado que haviam sido expulsos de casa pela madrasta. Levados ao Conselho
Tutelar, foram novamente devolvidos à família. Dois dias depois, estavam mortos,
esquartejados e queimados pelo casal, que certamente não é monstruoso, como nos
quer fazer crer uma imprensa sensacionalista, autoritária e insensível ao drama
humano subjacente a esses casos, mas feito de duas pessoas que, de algum modo,
foram mutiladas por experiências de vida brutais e que, desamparadas em seu
sofrimento, mutilam.
A saída do abrigo e a volta para casa em maio deste ano foram decisões baseadas em
pareceres de uma equipe de profissionais, entre os quais uma psicóloga. Em
passagem do laudo divulgada pela imprensa (e não contestada pelos responsáveis),
os dois meninos comparecem como pessoas que "manipulam a realidade para
conseguir vantagens." Ou seja, em termos tão altissonantes quanto arbitrários e
vagos (o que será "manipular a realidade"?), uma profissional que deveria ter sido
formada para entender a complexidade e a gravidade de uma dinâmica familiar
como esta e ouvir os envolvidos com ouvidos atentos e comprometidos com o
direito de todos de serem cuidados pelo Estado limitou-se a conclusões sobre a
personalidade das crianças que, embora com palavras pomposas que querem
infundir credibilidade à avaliação, as apresentam como mentirosas, desonestas,
dissimuladas. Mais uma vez, estamos diante de um fato nada raro em laudos
psicológicos: a mera reprodução de estereótipos e de preconceitos de classe e a
ratificação do que estava decidido de antemão: mandá-las de volta para casa
(MELLO; PATTO, 2008, p. 591-592).
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Procedimentos e práticas, tais quais se observa no laudo psicológico emitido pelo
Conselho do Tutelar em São Paulo na situação-limite dos dois meninos assassinados, tornam
visível o intolerável regime de docilização frente aos que emergem como “novos miseráveis”
(PASSETTI, 1994) e a miséria da própria Psicologia enquanto ciência e profissão quando
adere a regimes de atuação tecnicistas (PATTO, 2012). A tutela do Estado junto às crianças,
adolescentes e jovens se coaduna à desproteção dos profissionais psi que buscam espaços para
crítica no interior das instituições a despeito das constrições que orientam suas práticas ou das
diretrizes mais amplas que, em tese, permitiriam escapes. São frequentes os relatos de
profissionais que enfrentam obstáculos para propor práticas divergentes daquelas que forjam
(e continuam a forjar) o menor (ANDRADE; ROMAGNOLI, 2010). Não estão em cena
maniqueísmos simplistas, mas jogos de forças e disputas; dispositivos de controle e
liberdades.
Quando o assunto é a menorização e a garantia de direitos das crianças e adolescentes
em situação de vulnerabilidade social ou delinquência, a Psicologia se divide em grupos com
posições bastante díspares ainda que moduladas pela defesa do ECA. Essa bifurcação nos faz
pensar a respeito das práticas profissionais e da formação na área, e como estas reverberam a
busca e a luta pela garantia de direitos e/ou fazeres e poderes que operam encomendas de
restrição de direitos. Um exemplo dessa tensão na área é a defesa da perda de direitos de
crianças e adolescentes, com base em pequenas alterações no funcionamento institucional que
mantém a lógica de que o espaço fechado representa uma proteção. O esforço é dirigido a
garantir determinadas condições de funcionamento para instituições visando ao seu
aperfeiçoamento. Assim, um abrigo, por exemplo, facilmente, pode ser considerado mais
estável que a vida familiar fora das normas ótimas de higiene e da moralização dos arranjos
parentais. Em contraponto à corrente normalizadora e substitutiva, pesquisas e práticas,
principalmente vinculadas a perspectivas psicossociais e institucionais, vêm buscando afirmar
a possibilidade de transformações e a necessidade de rupturas significativas na lógica
menorista ou nas alianças polidas entre lógica menorista e ocupação do tempo de livre, na
forma do lazer dirigido ao controle das condutas (NASCIMENTO, 2002; SCISLESKI et al.
2013; VICENTIM; GRAMKOW; ROSA, 2010; GONÇALVES; BRANDÃO, 2004). A
Psicologia, em alguns de seus campos e especialidades, contribuiu e ainda contribui para a
construção de conhecimentos e práticas normalizadoras da infância e da família, tornando
sustentável o que seria da ordem dos intoleráveis.
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Considerações finais
Conclui-se assinalando o quanto a racionalidade menorista é atualizada na transição da
FUNABEM e do Código de Menores para o presente, ainda que pareça distante legalmente do
que é apresentado na letra da lei do ECA e da Constituição de 1988 e até mesmo do que foi
previsto nas lutas para construção do SUAS e do Sinase. Mais de um século se passou, por
tantas transformações se lutou e tão pouco foi de fato alterado, quando se acompanha os
documentos que pautam as diretrizes para a atenção psicossocial na Fundação Casa: práticas
de internação assistencialistas moralistas, paternalistas, populistas, patrimonialistas,
nepotistas, menoristas, higienistas, mais voltadas para a ordem do que para garantia de
direitos, acrescida de um viés liberal, da defesa da segurança e com poucos avanços na óptica
de tantas conquistas legais, previstas no ECA e na Constituição de 1988, no Brasil. Afinal,
trata-se de uma democracia muito abstrata e formal e de baixa intensidade, no plano da
cidadania.
Resistências continuam possíveis e vêm sendo operadas, nos planos das ações
cotidianas, tais como: preenchimento incompleto de fichas, descumprimento de alguns
procedimentos que evitam a jurisdicionalização de uma problemática. Todavia, para escapes
contundentes os quais inscrevam sobre os inscritores vigentes de cunho psicométrico e/ou
moralizante, é necessário, principalmente nas instituições que operam a transição dos antigos
modelos de confinamento para a atenção psicossocial – como ocorre na Fundação Casa e nos
equipamentos mais recentes, a exemplo dos CREAS –, tocar no que Foucault (1995) chamou
de dispositivo de dominação, pois ele ressalta que, nas relações de poder-saber e resistência,
havia mais liberdade de negociação e de luta, enquanto, na dominação, havia aspectos de
práticas cristalizadas de longa duração. No caso da assistência psicossocial, grande parte dos
aspectos cristalizados provém da lógica menorista e assistencialista, ambas apoiadas na
crescente judicialização da vida, que empurra as práticas psi para atuar como operadoras de
um direito conservador e punitivo.
Uma questão relevante é que a lógica menorista tem de ser rompida com uma política
garantista e, também, por práticas libertárias distintas daquelas preconizadas hoje nos
documentos de diretrizes e campos de práticas coextensivos produzidos pelo Sistema Único
de Proteção Social, os quais visam a proteger, vigiando; normatizar, conduzindo cada
pequeno desvio; instituir por liberdade as atividades chamadas educativas que quase nada
deixam escapar e que, como observava Passetti, ainda na década de 1980, acerca das
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FEBEMs, quase nunca tomam seriamente as respostas dos adolescentes e jovens para
formulação dos documentos que objetivam orientar o SUAS e o Sinase.
É imperioso persistir na afirmação de que à psicologia não lhe cabe funcionar como
operador acrítico de uma lógica menorista baseada na judicialização da atenção psicossocial
no âmbito das medidas socioeducativas e de assistência social. Há que escavar possibilidades
para pensar e propor “relações entre os sistemas assistenciais, especialmente os psi, e os de
justiça de modo que eles não se coloquem um como fonte de legitimação do outro”
(VICENTIN et al. 2010, p. 68).
Uma das formas de resistir consiste em rastrear – nas reordenações dos discursos, das
práticas e das instituições – como lógicas e práticas de dominação, em nome da segurança e
da defesa de direitos, continuam a ser sustentadas nas sociedades neoliberais, as quais, em
tese, operariam ampliando as margens de liberdades. A analítica documental pode colaborar
nessa direção, contando para isso com o já consistente corpo de pesquisas sobre o cotidiano
das práticas psicossociais, no âmbito das engrenagens dos equipamentos de proteção social.
Os documentos atualizam resquícios menoristas contra os quais psicólogos e psicólogas se
enfrentam no cotidiano.
HOW TO FORGE THE UNDERAGE: WEFTS OF PSYCHOSOCIAL ATTENTION
AND SOCIAL PROTECTION
Abstract
This essay aims to contribute to discuss public policies of social protection and practice
guidelines for psychosocial care. Targeting children and underage adolescents whose
documents, even though permeated with egalitarian discourses and promoted actions aimed at
the construction of autonomy, continue endorsing welfare guardianship and addressed to the
people classified as at-risk through biopolitical, disciplinary and security technologies based
on a minority logic. The essay problematizes the ways in which psychology has found
legitimacy in practices that eventually looms confinement practices which aspire to move
away from, as was evidenced by documents and practices.
Keywords: Psicologia. Psychosocial attention. Social Protection.
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CÓMO SE FORJA AL MENOR: ENTRAMADOS DE LA ATENCIÓN
PSICOSOCIAL Y DE LA PROTECCIÓN SOCIAL
Resumen
El objetivo de este ensayo es contribuir a la problematización de las políticas públicas de
protección social y las directrices para las prácticas de atención psicosocial, dirigidas a
adolescentes y jóvenes. Dichos documentos, aunque permeados de discursos igualitarios y de
promoción de acciones que apuntan a la construcción de autonomía, continúan reforzando
prácticas asistencialistas y tutelares orientadas a las poblaciones clasificadas en riesgo social,
por medio de tecnologías biopolíticas, disciplinares y de seguridad, basadas en
lógicas reduccionista. Problematiza entonces, las formas en que la Psicología ha encontrado
legitimidad en prácticas que terminan aproximándose al confinamiento, prácticas de las cuales
pretende alejarse.
Palabras clave: Psicología. Atención Psicosocial. Protección Social.
[...]menormenormenormenormenor
menormenormenormenormenorenorme.(PAES, 1968, grifo nosso).
Referências
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Adolescente
e
dá
outras
providências.
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dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de
janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho
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Data de recebimento: 21/04/2014
Data de aceite: 25/09/2014
Sobre os autores:
Dolores Galindo é Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP. Docente do Programa de PósGraduação em Estudos de Cultura Contemporânea e do Departamento de Psicologia,
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Endereço
eletrônico: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
Flávia Cristina Silveira Lemos é Doutora em História Cultural pela Universidade Estadual
Paulista (UNESP). Docente do Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Psicologia e do
Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, Pará, Brasil.
Bolsista Produtividade CNPq. Endereço eletrônico: flaviacslemos@gmail.com
Leonardo Lemos de Souza é Pós-doutor pelo Departamento de Psicologia Básica da Facultat
de Psicologia da Universitat de Barcelona- UB e Doutor em Educação pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Docente do Programa de Pós-graduação (mestrado e
doutorado) em Psicologia e do Departamento de Psicologia, Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Assis, São Paulo, Brasil. Endereço eletrônico: leo.lemos.souza@gmail.com
Renata Vilela Rodrigues é Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea e graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), Cuiabá, Mato Grosso, Brasil. Endereço eletrônico: renata_vilelarvr@hotmail.com
Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.41, p.<56-81>, jul./dez. 2014