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32594-Texto Do Artigo-124891-2-10-20191223

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Política Cultural no Brasil:


retrocessos, resistência e
reexistência1

Tárcio Mota2
Osmar Moreira3

1 Trabalho apresentado no 10º Seminário Internacional de Políticas Culturais, da Fundação


Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado
da Bahia (Uneb), especialista em Gestão do Desenvolvimento Territorial pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA) e bacharel em Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo
da Bahia (UFRB). Endereço eletrônico: tarciomota@hotmail.com
3 Doutor em Letras e Linguística pela UFBA (2001) e pós-doutor pela Université Paris 8
(2004). Atualmente é professor pleno e coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Crítica Cultural da Uneb. Endereço eletrônico: osantos@uneb.br

DOI: http://dx.doi.org/10.9771/pcr.v11i2.28706 Pol. Cult. Rev., Salvador, v. 12, n. 2, p. 34-49, jul./dez. 2019 34
Resumo:
A trajetória do Estado brasileiro é marcada por diversos marcos administrativos e
políticos no último século, como a afirmação e a constitucionalização de diversos
direitos – dentre eles, os direitos culturais. A consolidação da cultura como política
pública, no entanto, enfrenta instabilidades e descontinuidades. Este trabalho
apresenta um panorama da Política Cultural no Brasil e, após revisitar teoricamente
conceitos como a priori da dor, propostos pelo filósofo alemão Peter Sloterdijk,
pretende refletir acerca do retrocesso no âmbito das políticas culturais brasileiras, seus
reflexos nas diversas comunidades do país e as formas de resistência encontradas pelos
grupos e coletivos culturais para o enfrentamento deste tempo de descontinuidades.
Palavras-chave: Política Cultural. Retrocesso. Resistência.

Abstract:
The trajectory of the Brazilian State is marked by several administrative and political
milestones in the last century, such as the affirmation and constitutionalization of
various rights – among them, cultural rights. The consolidation of culture as a public
policy, however, currently faces instability and discontinuities. This article presents an
overview of Cultural Policies in Brazil and, after theoretically revisiting concepts such
as “a priori of pain”, proposed by German philosopher Peter Sloterdijk, we intend
to reflect on the setbacks in the context of Brazilian cultural policies, their effects on
the various communities across the country, and the forms of resistance that cultural
groups and collectives found to cope with this time of discontinuity.
Keyword: Cultural Policy. Setback. Resistance.

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Introdução

A
política cultural no Brasil passou por diferentes está-
gios, da subserviência às políticas do setor de Educação
e concentração da participação do Estado na gestão de
algumas instituições, até chegar às leis de incentivo na virada do
século XX. No meio disso, houve experiências locais importantes,
como a criação de fundos e da própria noção de “cidadania cul-
tural”, que ampliou a ideia de cultura. O alargamento do conceito
de “cultura” teve um marco importante com os dois mandatos
do governo Lula e, mais especificamente, na gestão de Gilberto
Gil e Juca Ferreira no Ministério da Cultura, onde foi incluída a
dimensão antropológica (políticas voltadas a negros, mulheres,
LGBT, ciganos etc.).
A partir de 2016, ocorre uma reviravolta na política brasi-
leira, com a decisão do Congresso Nacional de afastar a presi-
denta Dilma Rousseff e a posse do vice como presidente inte-
rino. Uma das primeiras medidas de Michel Temer foi a extinção
do Ministério da Cultura. A Cultura foi recolocada junto da
Educação, retomando o significado inicial da sigla MEC, que
perdurou até o governo João Figueiredo. A mudança foi alvo
de fortes críticas da comunidade cultural, da imprensa e de

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outros setores da sociedade civil. Por exemplo, houve ocupações
em sedes do Ministério da Cultura, do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, da Funarte e de outros equipa-
mentos culturais em pelo menos 24 estados e no Distrito Federal,
além da manifestação de muitos expoentes da cultura nacional.
A pressão fez o então governo interino recuar em menos de duas
semanas, recriando, por meio da Medida Provisória nº 728/2016,
de 23 de maio de 2016, o Ministério da Cultura. Com a ascensão
definitiva de Temer, o status da Cultura não é alterado – os con-
flitos com a comunidade cultural, porém, não são extintos. Para
responder à necessidade de dar um passo adiante na formulação
de políticas para as diversas linguagens e manifestações culturais, a
antiga gestão do Ministério da Cultura lançou em 2015 a construção
de uma Política Nacional das Artes (PNA). Nela, a intenção era
traçar um diagnóstico da situação e propor políticas (houve críticas
a um certo “sombreamento” com as deliberações da Conferência
Nacional de Cultura e dos colegiados setoriais – instâncias com par-
ticipação destacada da sociedade civil). A iniciativa, no entanto, foi
fortemente atingida pelas restrições orçamentárias, corte de pessoal
e, mesmo, pelo clima de instabilidade política.
Os paradigmas que norteiam os rumos da política cultural e que
se refletem também sobre as linguagens artísticas exigem um olhar
qualitativo sobre a política para as artes, que é movida por dife-
rentes concepções de artes e de cultura – e de conflitos vários.
Dentre as distintas visões, cabe destacar: a instrumental, que não
vê na cultura uma política pública efetiva e enxerga nos artistas um
polo de cooptação política; aquela baseada no fomento às manifes-
tações artísticas e culturais mais consagradas; e aquela que amplia o
conceito de cultura para uma dimensão antropológica. Além disso,
outro debate travado é a polarização da cultura enquanto identidade
ou diversidade – esta perspectiva ganhou força na última década.
Recentemente, contudo, cresce no espectro político e em setores da
sociedade uma visão que menospreza a condição do artista como

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trabalhador e da cultura como direito, fazendo que o problema do
tamanho da cultura na administração pública seja presentemente
questionado.
A política cultural brasileira, portanto, é fortemente marcada
por avanços e retrocessos, o que dificulta a construção e o apon-
tamento de perspectivas estáveis, capazes de superar seus gar-
galos. Este artigo, escrito ele mesmo sob um contexto de insta-
bilidade, procura elucidar parte do que já foi feito, ajudando a
iluminar caminhos futuros especialmente para os agentes cul-
turais e os coletivos de artes.

A trajetória da política pública para a cultura no Brasil


A demarcação em torno das condições estruturais de formação
social e cultural no Brasil é necessária quando se olha para a traje-
tória das políticas públicas no país e, particularmente, para aquelas
ligadas à cultura. Essa perspectiva relativiza as visões que dão conta
da fundação de política cultural no Brasil em contextos bastante eli-
tizados, em que a ampla maioria da população seguia completa-
mente à margem. Ao delinear a história das políticas culturais no
Estado brasileiro, Rubim (2007, p. 12) conclui que “até hoje, não
foram desenvolvidas tentativas mais sistemáticas e rigorosas de
compreender toda sua trajetória histórica”.
De maneira enfática, Albino Rubim (2007) desmonta as teorias que
apontam o início da política cultural no Brasil ainda no Segundo
Império, dada a postura “ilustrada” e de mecenas do imperador
D. Pedro II, ou mesmo no Brasil Colônia e na República Velha,
como o fazem outros autores (não citados detidamente). No pri-
meiro caso, era incompatível com os propósitos da monarquia o
“obscurantismo” imposto às populações negras e indígenas e suas
culturas, além da plena falta de democracia. Já na República Velha,
o cenário de oligarquias não permitia o desenvolvimento de polí-
ticas nacionais, ficando a política cultural focada em ações pontuais
e locais, sobretudo na área de patrimônio histórico.

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É durante o governo Getúlio Vargas (1930-1945) que efetiva-
mente surgirá uma política cultural de caráter nacional, segundo
Rubim (2007). A cultura passaria a ser vista, no plano interno,
como um elemento capaz de construir uma “identidade”, supe-
rando a fragmentação regional, e no plano externo, no contexto da
Segunda Guerra Mundial e da ascensão de nacionalismos, como
uma peça-chave para o Brasil se firmar enquanto nação. A música
popular, em especial, exerceria o papel de “arma política de propa-
ganda” – não só no Brasil, mas também em países vizinhos, como
a Argentina e o Uruguai (TINHORÃO, 1998) –, sendo fortemente
apoiada (financiada) pelo governo. É neste período, potencializado
pelo apoio governamental, pelo poder do rádio e da indústria fono-
gráfica, que o samba se consolida como um dos símbolos da cultura
nacional e do ideal de “brasilidade”. Na década de 1930, ainda, sur-
giria na periferia do Rio de Janeiro, então capital federal, um novo
gênero artístico, criado e protagonizado pelos segmentos populares
(e, a partir de 1935, com fomento do poder público): o desfile de
escolas de samba (RAYMUNDO, 2013), que faria do carnaval brasi-
leiro um dos aspectos mais conhecidos de nossa cultura no exterior.
Além do nacionalismo, a harmonia entre as raças era um valor per-
seguido, o que deu visibilidade ao negro como parte da formação
do país – e, para alguns críticos, simbolizou uma “cooptação” ou
um silenciamento das relações de desigualdade e exploração.
Tendo esse norte estratégico de, por meio da cultura, superar a
fragmentação regional e construir uma identidade da “nação bra-
sileira” no exterior, o governo Vargas, tanto no período democrá-
tico quanto no Estado Novo, fundou diversas instituições culturais:
Superintendência de Educação Musical e Artística (1933); Instituto
Nacional de Cinema Educativo (1936); Serviço de Radiodifusão
Educativa (1936); Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (1937); Serviço Nacional de Teatro (1937); Instituto Nacional
do Livro (1937) e Conselho Nacional de Cultura (1938). Figura-
chave da administração pública na época foi Gustavo Capanema,

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definido por Rubim (2007, p. 16) como “esteticamente modernista
e politicamente conservador”: à frente do Ministério da Educação e
da Saúde (1934-1945), onde se localizava o setor nacional de cul-
tura. Ele empregou artistas e intelectuais de expressão para a cul-
tura brasileira, como Carlos Drummond de Andrade (seu chefe de
gabinete), Candido Portinari, Oscar Niemeyer, entre outros.
A bibliografia do mesmo período acerca da trajetória da política
cultural no Brasil geralmente ressalta a experiência de Mário de
Andrade na direção do Departamento de Cultura da Prefeitura de
São Paulo, entre os anos de 1935 e 1938. Rubim (2007, p. 15) con-
sidera que a gestão do ícone modernista “por suas práticas e ideá-
rios, transcende em muito as fronteiras paulistanas”. As suas prá-
ticas inovadoras estavam em

1. estabelecer uma intervenção estatal sistemática abran-


gendo diferentes áreas da cultura; 2. pensar a cultura
como algo “tão vital como o pão”; 3. propor uma defi-
nição ampla de cultura que extrapola as belas artes, sem
desconsiderá-las, e que abarca, dentre outras, as culturas
populares; 4. assumir o patrimônio não só como material,
tangível e possuído pelas elites, mas também como algo
imaterial, intangível e pertinente aos diferentes estratos
da sociedade; 5. patrocinar duas missões etnográficas
às regiões amazônica e nordestina para pesquisar suas
populações, deslocadas do eixo dinâmico do país e da sua
jurisdição administrativa, mas possuidoras de significa-
tivos acervos culturais […]. (RUBIM, 2007, p. 15)

A experiência de gestão de Mário de Andrade, no entanto, é con-


siderada uma excepcionalidade no contexto nacional, de instabili-
dades e descontinuidades da política pública da cultura. Ao falar do
período do Estado Novo, e mencionando posteriormente também
a ditadura militar, Rubim (2007) destaca a “forte relação” que há
entre governos autoritários e políticas culturais no Brasil. De forma
sumária, o autor diz que “a história das políticas culturais do Estado

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nacional brasileiro pode ser condensada pelo acionamento de
expressões como: autoritarismo, caráter tardio, descontinuidade,
desatenção, paradoxos, impasses e desazos”. Todas essas caracterís-
ticas, efetivamente, continuarão a aparecer nas décadas seguintes,
permanecendo nos dias de hoje.
Nas décadas seguintes, a cultura viveria aquilo que Rubim (2007,
2011) chama de “tristes tradições”, marcadas sobretudo pela ins-
tabilidade institucional. Criado em 1985, fechado em 1990 e reto-
mado em 1993, o Ministério da Cultura já teve diferentes minis-
tros, cada qual com a sua marca. No governo Sarney, evoluiu-se
em relação a políticas de fomento à cultura e se criou a primeira lei
de incentivo. Transformada em Lei Rouanet, sobrenome do secre-
tário da pasta ligada à presidência no governo Collor, estaria con-
solidada aquela que é possivelmente a mais duradoura política cul-
tural do Brasil. Com os governos Fernando Henrique, o caráter de
abertura ao capital privado ganha força também no meio cultural,
com o aumento da importância da Lei Rouanet; por outro lado, é
continuado o processo de retomada das instituições iniciado por
Itamar Franco. Críticos como Rubim (2011) consideram que houve
ausência de política pública no governo FHC e uma cedência do
papel estatal ao mercado. Para simbolizar, o autor cita que a publi-
cação mais “famosa” dos oito anos de governo FHC foi uma publi-
cação chamada Cultura é um bom negócio (ou seja, a cultura como
negócio, e não como direito).
Para exemplificar a concepção hegemônica no período (e ainda
vigente em muitos formuladores de política cultural), vale recorrer
a ideias expressas em um artigo de Ottaviano Carlo de Fiore (2001),
professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e secre-
tário do Livro e Leitura do MinC no início dos anos 2000. O autor
divide a cultura de qualquer país em “problemas verticais” e “pro-
blemas horizontais”. Os verticais seriam aqueles próprios do “povo
da cultura”, problemas setorizados (sistema de distribuição da pin-
tura, o preço elevado dos livros etc.). Os problemas horizontais, por

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sua vez, seriam aqueles que “não afetam um ofício artístico em par-
ticular”, mas “a nação como um todo”; como exemplo, cita a baixa
proficiência da leitura e o analfabetismo funcional. Aí cabe ques-
tionar: os problemas crônicos de produção e circulação de livros
são apenas uma pauta setorizada ou influem decisivamente nos
baixos índices de leitura? E a falta de acesso aos bens culturais (que
não aqueles de massa) não corrobora a permanência do analfabe-
tismo funcional e a baixa escolaridade?
Além disso, são expressas ideias no mínimo controversas. O autor,
reconhecendo que na periferia não tem espaços culturais tradi-
cionais (elenca teatro, biblioteca, centro cultural e cinema) e afir-
mando que as pessoas que lá vivem produzem cultura “fortemente
globalizada, rap etc.”, aponta como a “próxima tarefa histórica” a
“colonização cultural das periferias”. (DE FIORE, 2001, p. 25) Ao
dizer que “nós temos que levar a civilização às grandes periferias”
(DE FIORE, 2001, p. 25), pressupõe-se que as pessoas da periferia
não são “civilizados”, não possuem cultura. O movimento, assim,
seria vertical, de uma classe dirigente e ilustrada que acha que só
ela é detentora de cultura, o que exclui a possibilidade de enxergar
o que é produzido do outro lado. É uma visão, assim, colonialista de
política cultural.
Uma mudança significativa para a cultura tanto enquanto política
pública quanto em sua dimensão social se daria a partir de 2003.
O governo Lula mudaria a importância da área cultural no Estado
brasileiro. Tendo como base o documento A imaginação a serviço
do Brasil, construído para a campanha eleitoral de 2002, o docu-
mento traria como novidade avistar a cultura sob diversas con-
cepções: como direito social básico; como política pública para o
desenvolvimento e a democracia; como algo transversal etc. Já apre-
sentava temas que virariam emendas à Constituição uma década
depois, como a criação do Sistema Nacional de Cultura.
A gestão, que teve à frente na maior parte do tempo o ministro
Gilberto Gil – um dos mais conhecidos artistas brasileiros –, é

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marcada por aspectos como a retomada do diálogo do governo com
a comunidade cultural, o que, para Rubim (2011), permite que ele
assuma um perfil diferente do velho Estado desenvolvimentista e
construa caminhos para a “modernidade brasileira”, ao garantir
lugar de protagonismo à sociedade civil, via conferências, conse-
lhos, colegiados, reuniões públicas etc. É feita a opção pela diversi-
dade como um dos princípios orientadores da política cultural bra-
sileira, assinala Rubim (2011); cabe ressaltar que se trata de uma
mudança paradigmática, já que sempre se trabalhou a cultura sob
a ótica da identidade, como se o país de 200 milhões de habitantes
fosse obrigado a contar com características identitárias comuns a
todos.
A ação do ministério amplia o escopo tradicional da política cul-
tural, indo além do patrimônio e das artes: adota-se a dimensão
“antropológica” de cultura, que faz que sejam desenvolvidas ações
para diversas comunidades periféricas e marginalizadas em seus
direitos culturais. Tal inovação teria efeitos também sobre a gestão
pública. Para exemplificar: em editais voltados aos povos indígenas,
de rica cultura oral, porém muitos sem cultura letrada, passa-se
a aceitar projetos não escritos, mas gravados. Além disso, atuali-
zam-se também as linguagens artísticas e midiáticas, agregando as
culturas digitais e até mesmo os jogos eletrônicos. (RUBIM, 2011)
Do ponto de vista da gestão, cabe ressaltar que no período é reali-
zado o primeiro concurso público para o ministério em sua história
de mais de duas décadas. O orçamento do órgão, que em 2003 era
de 0,14% do orçamento da União, em 2010 chegou a 1%, ou R$ 2,2
bilhões. Nos anos seguintes, porém, já no governo Dilma, estanca a
tendência de crescimento: no ano de 2015, ficou em R$ 2,6 bilhões.
Nesse governo, contudo, são conquistados avanços legais signi-
ficativos, como a aprovação do Sistema Nacional de Cultura e do
primeiro Plano Nacional de Cultura, além de iniciativas como o
Vale-Cultura.

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A concepção que norteou o Sistema Nacional de Cultura e o Plano
Nacional de Cultura, que busca consolidar uma nova lógica para a
política cultural brasileira, fica nítida no seguinte trecho:

Diferentemente do que acontece no Sistema Nacional


de Saúde, bem como no Sistema Nacional de Educação,
modelos para implantação do Sistema Nacional de
Cultura, não cabe ao Estado ser o realizador da “Cultura”
e das suas atividades inerentes. Cabe ao Estado, neste
caso, ser o mediador, regulador, financiador e garantir
que as políticas públicas para a Cultura sejam executadas,
tendo como realizadora principal a Sociedade Civil, e
sendo o cidadão o beneficiário primeiro deste direito fun-
damental. (BRASIL, 2012)

A priori da dor e a morte do Minc


A história conhece épocas especialmente dispostas ao cinismo.
(SLOTERDIJK, 2011, p. 481) O filósofo alemão Peter Slotedijk flagra
a fluidez do mundo, a sua dor, seu mal-estar; com os quais o poeta
se espanta. A imagem que Sloterdijk (2011) põe a nu da República
de Weimar, período que vai do término da primeira guerra mun-
dial, em 1918, à ascensão de Hitler, em 1932, possui relação intrín-
seca com a conjuntura atual, marcada pela extinção, ou “morte”,
do Ministério da Cultura, se levarmos em consideração que em
Crítica da razão cínica, Sloterdijk fala desse momento conturbado
da perspectiva de um filósofo historiador.
A extinção do MinC pelo atual governo revela sua intenção de
atacar, controlar e enquadrar a política de ações culturais do país
dentro de seus moldes. Ao deixar de ser tema de pasta do primeiro
escalão na estrutura governamental, as políticas de incentivo à cul-
tura perdem o status e a integridade de um órgão próprio e exclu-
sivo para a gestão e a execução das políticas culturais em parceria
com os estados, municípios e a sociedade civil. A partir de agora,

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elas ficarão diretamente vinculadas ao Ministério da Cidadania,
além de sofrerem uma redução significativa nos seus recursos
humanos, técnicos e financeiros.
Observa-se aí tendências defensivas: blindagem do eu contra o
seu sofrimento, não ao que seria a verdade subjetiva e não à ferida
anterior, à fraqueza e à indigência. Na atitude neocínica (Sloterdijk
distingue o cinismo de Diógenes, contestador e provocativo, do
cinismo corrente, manifesto enquanto falsa consciência escla-
recida), consumam-se os processos históricos de aprendizagem
da amargura. O cinismo aparece enquanto estratégia e combate.
Estratégia para o quê? Combate ao quê? A resposta está na e para
a autoconservação. Cinismo como reação à dor no mundo e à sen-
sação de mal-estar provocadas pela industrialização voraz e a modi-
ficação abrupta do modo de vida, pela mistificação das massas pro-
movida pelos meios de comunicação, pela constante promissória
sobre o prazer e pela adequação do homem ao ritmo da máquina.
Em face das catástrofes mundiais passadas e das que ainda nos
ameaçam, a vitalidade atual, frustrada pela história, sobrevive em
crença descrente.

O povo nunca é humanitário. O que há de mais fun-


damental na criatura do povo é a atenção estreita
aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, prati-
cada tanto quanto possível, dos interesses alheios […].
(SLOTERDIJK, 2011, p 478)

Existir é renegar. Que sou hoje, vivendo hoje, senão a


rene­gação do que fui ontem, de quem fui ontem? Existir é
desmentir-se. Não há nada mais simbólico da vida do que
aquelas notícias dos jornais que desmentem hoje o que o
próprio jornal disse ontem. (SLOTERDIJK, 2011, p. 484)

Voltando à extinção do Minc, é importante destacar que tal


“morte”, começa com um enorme esvaziamento político e uma
drástica redução orçamentária nos últimos anos. A resistência e

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perma­nência do Ministério da Cultura (MinC) foi uma demarcação
institucional do campo das artes e da cultura no país. Muito mais
do que uma “conquista setorial” dos artistas, produtores, gestores e
fazedores de artes e culturas, tal fato representou uma conquista da
sociedade e do povo brasileiro como um todo.
Contrapondo os resultados da área cultural à suposta economia
que a redução e extinção desse ministério apresentaria, a con-
tribuição econômica da pasta do setor cultural, contradizendo
os auxiliares do presidente, gera 2,7% do PIB nacional e mais
de 1 milhão de empregos diretos, englobando mais de 200 mil
empresas e instituições públicas e privadas, números muito
superiores a diversos outros setores tradicionais da economia
brasileira. E a tendência seria desses números continuarem em
crescimento. Além disso, tem-se ainda a Lei Rouanet, tão injusta
e propositalmente atacada pelos setores conservadores e pelos
membros do atual governo. A tão criticada lei representa apenas
0,3% do total de renúncia fiscal da União, mas proporciona o
incentivo de milhares de projetos artístico-culturais em todo o
país, gerando renda e empregos.

Resistindo e reexistindo
Durante os anos entre os governos de Lula e o primeiro de Dilma,
parecia haver uma harmonia entre o crescimento econômico e os
direitos sociais. No entanto, ainda no meio desse processo, Paulani
(2012, p. 97) advertia para a “sustentabilidade do arranjo assim dis-
posto, bem como à sua capacidade de tornar permanentes as con-
quistas até então obtidas”. De fato, parece que essa sustentabili-
dade não foi possível. Tal insustentabilidade foi o que gerou a crise
política e econômica no país a partir de 2013, o impeachment da
presidenta Dilma e o início do governo interino de Michel Temer.
A pauta principal do atual governo é a austeridade do Estado.
Se a ditadura militar ascendeu ao poder sob o pretexto de moder-
nizar o Estado, novamente se fala nisso, porém, numa modernização

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contrária àquela que passava pelo papel regulador do Estado diante
da burguesia industrial. Agora, o foco é no desenvolvimento de uma
elite financeira (grande parte estrangeira), a qual espera suprir as
necessidades sociais em um Estado desregulado, o que passa pelo
desmanche da seguridade social. No pacote do desmanche está a
política cultural, que não deixa de ser um tipo de seguridade social,
contrariando o que Araújo (2000) pontua como o ideal das polí-
ticas públicas, que passa mais pela reorganização da instituciona-
lização do que pela desinstitucionalização. Não é à toa que um dos
primeiros atos do atual presidente foi a extinção do Ministério da
Cultura, assim como Collor, exemplificando a continuidade desses
projetos de governo.
Vemos no Brasil uma gangorra da institucionalização e desins-
titucionalização desde os anos 1930. O que deve vir agora é uma
nova onda da mercantilização da cultura, vinda pela primeira vez
durante as reformas neoliberais dos anos 1990. Como diz Barbalho
(2016, p. 14): “A valorização da perspectiva econômica da cultura
tem influenciado de modo crescente, pelo menos desde a retomada
do ideário liberal nos anos 1980, as políticas públicas para o setor”.
O que se viu nos governos Lula e Dilma foi um pouco de terra firme,
mas que não ficou fora dessa maré.
O que é constante nessa história das políticas públicas é a sub-
missão do Estado aos interesses daqueles que concentram a renda
do país, da sociedade civil e do Estado. É uma longa tradição de
um Estado autoritário e de mudanças pelo alto, antes pela colo-
nização, mas agora pela subjugação à economia mundial. As con-
quistas em torno do fortalecimento das políticas culturais voltadas
para a seguridade da diversidade cultural talvez só tenham sido
possíveis enquanto conciliáveis com os interesses do capital glo-
balizado. À menor sombra de risco a esse capital, essas políticas são
postas para escanteio.
Apesar dos retrocessos ora apresentados, há um forte tecido social
potente, sobretudo fomentado pelas ações de programas como

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o Cultura Viva,4 que é considerado um marco divisório no que se
refere à forma como as políticas culturais passaram a ser implemen-
tadas no Brasil. Tendo como base os Pontos de Cultura selecionados
por meio de editais públicos, o Programa possibilitou maior trans-
parência e seriedade às ações no campo cultural, fazendo surgir
novas perspectivas para entidades culturais que há tempos bus-
cavam reconhecimento e apoio para as atividades desenvolvidas em
suas comunidades. A formação cidadã e as redes criadas, a exemplo
da TEIA Nacional da Diversidade,5 são ferramentas de resistência e
reexistência. Mesmo ante a falta de recursos e a ausência do Estado,
as instituições, coletivos culturais e agentes seguem resistindo,
afinal de contas, em tempos de retrocesso, cultura e resistência
podem ser consideradas sinônimos.

Referências
ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Ensaios sobre o desenvolvimento brasileiro:
heranças e urgências. Rio de Janeiro: Revan, 2000.

BARBALHO, Alexandre. Política cultural e desentendimento. Fortaleza:


IDBCult, 2016.

BRASIL. Ministério da Cultura. As metas do Plano Nacional de Cultura.


São Paulo: Instituto Via Pública; Brasília, DF: MinC, 2012.

DE FIORE, Ottaviano Carlo. Funções do Estado na cultura. In:


ALMEIDA, Candido José Mendes de; ZYLBERSZTAJN, José Leon;
SOUSA, Madalena Mendes de Almeida; DIREITO, Paulo Roberto (org.).
Cultura brasileira ao vivo. Rio de Janeiro: Imago, 2001. p. 27-41.

4 O Programa Cultura Viva é um marco histórico na evolução das políticas culturais. É res­
ponsável por transformar o Programa Cultura Viva e sua ação estruturante mais conhe­
cida, os Pontos de Cultura, na Política Nacional de Cultura Viva. Tornou-se a primeira
política nacional criada após a institucionalização do Sistema Nacional de Cultura (PEC
nº 416/2005 – art. 2016-A) e do Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010) visando
simplificar e desburocratizar os processos de prestação de contas e repasse de recursos
para as organizações da sociedade civil; articulação de parceria entre União, Estados,
Distrito Federal e Municípios com a sociedade civil.
5 Coletivo que reúne Pontos de Cultura de todo o Brasil e realiza atividades de integração,
formação e que tem como objetivo fortalecer o exercício dos direitos culturais e promover
a atuação cultural em rede.

Pol. Cult. Rev., Salvador, v. 12, n. 2, p. 34-49, jul./dez. 2019 48


PAULANI, Leda Maria. A inserção da economia brasileira no cenário
mundial: uma reflexão da situação atual à luz da história. Boletim de
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RAYMUNDO, Jackson. Escola de samba: uma escola do povo negro, o


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RUBIM, Antônio Albino C. (org.). Políticas culturais no Brasil. Salvador:


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