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Por que mentimos – Novo livro da série Will Trent
Por que mentimos – Novo livro da série Will Trent
Por que mentimos – Novo livro da série Will Trent
E-book729 páginas10 horas

Por que mentimos – Novo livro da série Will Trent

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Sobre este e-book

Um hotel num lugar isolado.
Um assassinato sem pistas.
Todos são suspeitos.
A lua de mel de Will Trent e Sara Linton tinha tudo para ser um momento de conexão — entre eles e com a natureza. O prospecto da Pousada McAlpine prometia trilhas, passeios de bicicleta, aulas de ioga ao amanhecer… só não previa um assassinato.
Quando a gerente da propriedade é encontrada morta com sinais de violência, todos os hóspedes e funcionários se tornam suspeitos, e caberá a Will e Sara descobrir quem é o culpado.
Quem teria motivos para matar Mercy McAlpine? Quais segredos aquelas pessoas querem guardar, e por quê? Que segredo valeria a vida de uma pessoa?
Conheça Por que mentimos, o novo thriller da aclamada autora Karin Slaughter.
 
IdiomaPortuguês
EditoraHarperCollins Brasil
Data de lançamento16 de set. de 2024
ISBN9786555115567
Por que mentimos – Novo livro da série Will Trent

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    Por que mentimos – Novo livro da série Will Trent - Karin Slaughter

    Copyright © Karin Slaughter 2024.

    Will Trent é uma marca registrada de Karin Slaughter Publishing LLC.

    Mapa © Karin Slaughter 2024

    Copyright da tradução © 2024 por Casa dos Livros Editora LTDA.

    Todos os direitos reservados.

    Título original: This Is Why We Lied

    Todos os direitos desta publicação são reservados à Casa dos Livros Editora LTDA. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão dos detentores do copyright.

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Slaughter, Karin

    Por que mentimos / Karin Slaughter; [tradução Marina Della Valle]. – 1. ed. – Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2024.

    Título original: This is why we lied.

    ISBN 978-65-5511-556-7

    1. Ficção norte-americana I. Título.

    24-204392

    CDD-813

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Ficção: Literatura norte-americana 813

    Bibliotecária responsável: Cibele Maria Dias – CRB-8/9427

    HarperCollins Brasil é uma marca licenciada à Casa dos Livros Editora LTDA. ­Todos os direitos reservados à Casa dos Livros Editora LTDA.

    Rua da Quitanda, 86, sala 601A – Centro

    Rio de Janeiro/RJ – CEP 20091-005

    Tel.: (21) 3175-1030

    www.harpercollins.com.br

    Para David — por sua paciência e bondade infinitas

    SUMÁRIO

    Capa

    Folha de rosto

    Créditos

    Dedicatória

    Prólogo

    1

    2

    3

    4

    5

    6

    7

    8

    9

    10

    11

    12

    13

    14

    15

    16

    17

    18

    19

    20

    21

    Trinta e sete minutos antes do assassinato

    Um mês depois do assassinato

    Agradecimentos

    PRÓLOGO

    Will Trent sentou-se à beira do lago para tirar as botas de caminhada. Os números em seu relógio brilhavam no escuro. Faltava uma hora para a meia-noite. Ele ouvia uma coruja ao longe. Uma brisa gentil sussurrava através das árvores. A lua era um círculo perfeito no céu noturno, uma luz saltando da figura na água. Sara Linton nadava na direção do deque flutuante. Uma fria luz azul iluminava seu corpo enquanto ela cortava as ondas suaves. Então virou-se, dando braçadas preguiçosas para trás enquanto sorria para Will.

    — Vai entrar?

    Will não conseguia responder. Ele sabia que Sara estava acostumada com seus silêncios embaraçosos, mas não era um daqueles momentos. Ele estava sem palavras só de olhar para ela. Tudo o que conseguia pensar era a mesma coisa que todo mundo pensava quando os viam juntos: o que uma mulher como ela estava fazendo com ele? Ela era tão inteligente, engraçada e linda, e ele não conseguia nem desamarrar os sapatos no escuro.

    Ele tirou a bota à força enquanto Sara nadava em sua direção. O cabelo marrom-avermelhado comprido estava grudado na cabeça dela. Os ombros nus se destacavam fora do negrume da água. Ela havia tirado as roupas antes de mergulhar, rindo com a observação dele de que parecia má ideia pular dentro de algo que você não conseguia ver no meio da noite e quando ninguém sabia onde você estava.

    Contudo, parecia uma ideia ainda pior não atender o desejo de uma mulher nua pedindo para você juntar-se a ela.

    Will tirou as meias, então ficou de pé para desabotoar a calça. Sara soltou um assovio baixo de apreciação quando ele começou a se despir.

    — Opa — disse ela. — Um pouco mais devagar, por favor.

    Ele riu, mas não sabia o que fazer com o sentimento de leveza no peito. Will nunca havia experimentado esse tipo de felicidade prolongada. Claro, houve vezes em que conhecera explosões de alegria — o primeiro beijo, a primeira transa, a primeira transa que durou mais de três segundos, formar-se na faculdade, receber um pagamento de verdade, o dia em que finalmente conseguiu se divorciar da ex-mulher odiosa.

    Isso era diferente.

    Will e Sara casaram-se havia dois dias, e a euforia que ele experimentara durante a cerimônia não tinha diminuído. Na verdade, o sentimento aumentava a cada hora que passava. Quando ela sorria para ele, ou ria de uma de suas piadas idiotas, era como se houvesse borboletas em seu estômago. Ele entendia que não era algo muito másculo, mas havia coisas em que você pensava e coisas que compartilhava, e essa era uma das muitas razões pelas quais ele preferia um silêncio embaraçoso.

    Sara soltou um uau quando Will tirou a camisa de forma teatral antes de entrar no lago. Ele não estava acostumado a andar por aí nu, especialmente ao ar livre, então mergulhou com mais rapidez do que deveria. A água estava fria, mesmo sendo verão. Ele sentiu calafrios, e sua pele ficou arrepiada. Sentiu os pés afundando de modo desagradável na lama. Então Sara enroscou o corpo no dele e Will não tinha mais nenhuma reclamação.

    Ele disse:

    — Ei.

    — Ei. — Ela arrumou o cabelo dele para trás. — Já esteve num lago antes?

    — Não por vontade própria — admitiu ele. — Tem certeza de que a água é segura?

    Ela pensou sobre aquilo.

    — As cabeças-de-cobre normalmente são mais ativas ao amanhecer. E estamos muito ao norte para a boca-de-algodão.

    Will não tinha imaginado a possibilidade de cobras ali. Crescera no centro de Atlanta, cercado por concreto sujo e seringas usadas. Já Sara tinha crescido em uma cidade universitária na área rural do sul da Geórgia, cercada pela natureza.

    E cobras, aparentemente.

    — Tenho uma confissão — disse ela. — Contei para Mercy que mentimos para ela.

    — Imaginei — respondeu Will.

    O que havia ocorrido entre Mercy e a família dela naquela noite tinha sido intenso.

    — Ela vai ficar bem?

    — Provavelmente. Jon parece ser um bom garoto. — Sara balançou a cabeça para a futilidade de tudo aquilo. — É difícil ser adolescente.

    Will tentou animar as coisas.

    — Há algo a ser dito sobre crescer num orfanato.

    Ela pressionou o dedo sobre os lábios dele, o que Will imaginou ser o jeito dela de dizer não é engraçado.

    — Olhe para cima.

    Will olhou. Então deixou a cabeça voltar enquanto uma sensação de deslumbramento o tomava. Nunca tinha visto estrelas de verdade no céu. Não como aquelas, de qualquer modo. Furos de alfinete individuais e brilhantes na imensidão escura e aveludada do céu. Não achatadas pela alta poluição. Não embotadas por fumaça ou névoa. Respirou fundo. Sentiu que as batidas do coração desaceleravam. O único som era, de fato, o dos grilos; e a única luz produzida pelo homem era uma cintilação distante que vinha da varanda da casa principal.

    Ele meio que amava aquele lugar.

    Tinham andado oito quilômetros em um terreno rochoso para chegar à Pousada Familiar McAlpine. O lugar existia havia tanto tempo que Will ouvira falar dele ainda criança. Tinha sonhado em visitar um dia. Andar de canoa, praticar stand-up paddle, andar de bicicleta, fazer caminhadas, comer s’mores ao redor da fogueira do acampamento. Estar com Sara, casado e feliz em sua lua de mel, era um fato que trazia mais espanto que cada estrela no céu.

    — Em lugares assim, você raspa um pouco a superfície e todo tipo de coisa ruim vem à tona — disse Sara.

    Will sabia que ela ainda estava pensando em Mercy. A discussão brutal com o filho dela. A resposta fria dos pais. O irmão patético. O babaca do ex-marido. A tia excêntrica. E os outros convidados com seus problemas, que tinham sido amplificados pela quantidade de álcool servido no jantar em grupo. O que lembrou Will, de novo, de que, quando sonhara com aquele lugar, ainda criança, não tinha previsto que outras pessoas estariam ali. Especialmente um cuzão em particular.

    — Sei o que vai dizer — falou Sara. — É por isso que mentimos.

    Aquilo não era exatamente o que ele ia dizer, mas era quase.

    Will era agente especial do Departamento de Investigação da Geórgia. Sara tinha se especializado em pediatria e, naquele momento, trabalhava como médica-legista no mesmo local. Os dois cargos costumavam provocar longas conversas com estranhos, nem todas boas e algumas muito ruins. Esconder seus empregos tinha parecido um jeito melhor de desfrutar da lua de mel deles.

    Contudo, dizer que era uma coisa não o impedia de ser a outra. Eles eram, ambos, o tipo de pessoa que se preocupava com os outros. Particularmente Mercy, que parecia ter o mundo inteiro contra ela naquele momento. Will sabia como era preciso ser forte para manter a cabeça erguida e continuar seguindo em frente, enquanto todo mundo tentava puxá-lo para baixo.

    — Ei.

    Sara abraçou-o mais forte, passando as pernas em torno da cintura dele.

    — Tenho outra confissão.

    Will sorriu porque ela estava sorrindo. A borboleta no estômago dele começou a se agitar. Então outras coisas se agitaram, porque sentia o calor dela contra seu corpo.

    — Qual seria?

    — Não consigo ficar longe de você.

    Sara beijou-o até o lado do pescoço, mordiscando-o para provocar uma resposta. Os calafrios voltaram. A sensação da respiração dela em sua orelha encheu o cérebro dele de necessidade. Ele deixou a mão descer lentamente. A respiração de Sara alterou-se quando ele a tocou. Will sentia os seios dela subindo e descendo contra seu peito nu.

    Então, um grito alto rasgou o ar da noite.

    — Will. — O corpo de Sara se retesou. — O que foi isso?

    Ele não tinha ideia. Não sabia nem se era humano ou animal. O grito tinha sido de gelar o sangue. Não uma palavra ou um pedido de socorro, mas um som de terror desenfreado. O tipo de barulho que fazia a parte mais primitiva do cérebro entrar no modo luta ou fuga.

    Will não tinha sido feito para fugir.

    Ele segurou a mão de Sara enquanto voltavam para a costa. Pegou suas roupas e entregou a Sara as coisas dela. Olhou por cima da água enquanto colocava a camiseta. Sabia pelo mapa que o lago tinha o formato de um boneco de neve deitado. A área para nado ficava na cabeça. A costa desaparecia na escuridão na curva do abdômen. O som era difícil de identificar, mas a fonte óbvia do grito era onde as outras pessoas estavam. Quatro outros casais e um homem sozinho estavam hospedados na pousada. A família McAlpine ficava na casa principal. ­Tirando Will e Sara, os hóspedes estavam em cinco dos dez chalés que se espalhavam além do salão de jantar. Com isso, o número total de pessoas no complexo era dezoito.

    Qualquer uma delas poderia ter gritado.

    — O casal que estava brigando no jantar. — Sara fechou os botões do vestido. — A dentista que estava bêbada. O cara de TI estava…

    — E o cara sozinho? — A calça cargo de Will deslizou pelas pernas em direção à cintura. — Aquele que ficou alfinetando Mercy?

    — Chuck — falou Sara. — O advogado era detestável. Como ele entrou no wi-fi?

    — A mulher dele obcecada por cavalos irritou todo mundo. — Will enfiou os pés nus nas botas. As meias foram para os bolsos. — Os caras mentirosos do aplicativo estão aprontando alguma.

    — E o Chacal?

    Will levantou o olhar dos cordões de sapato que amarrava.

    — Querido? — Sara virou as sandálias para poder calçá-las. — Você está…

    Ele deixou os cadarços sem amarrar. Não queria falar sobre o Chacal.

    — Pronta?

    Eles pegaram a trilha. Will sentiu vontade de acelerar, apertando o passo, até que Sara começou a ficar para trás. Ela era atlética, mas seus sapatos eram feitos para passear, não para correr.

    Ele parou, virando-se para ela.

    — Tudo bem se…

    — Vai — disse ela. — Eu alcanço você.

    Will saiu da trilha, fazendo uma linha reta entre as árvores. Usou a luz da varanda como guia, as mãos afastando os galhos e as trepadeiras que se prendiam em sua camisa. Os pés molhados escorregavam dentro das botas. Tinha sido um erro deixar os cadarços desamarrados. Pensou em parar, mas o vento mudou, trazendo para o ar um odor parecido com o de moedas de cobre. Will não sabia se era mesmo cheiro de sangue ou se seu cérebro de policial estava recuperando memórias de cenas de crime passadas.

    O grito não poderia ter vindo de um animal.

    Nem Sara estava certa. A única convicção de Will era que o que quer que tivesse feito aquele som estava com medo de perder a vida. Coiote. Lince. Urso. Havia muitas criaturas nas matas que poderiam fazer outras criaturas se sentirem assim.

    Ele estava exagerando?

    Parou de avançar pelo mato, virando-se para procurar a trilha. Sabia onde Sara estava, não pela visão, mas pelo barulho dos sapatos dela no cascalho. Ela estava na metade do caminho entre a casa principal e o lago. O chalé deles ficava no fim do complexo. Ela provavelmente estava tentando bolar um plano. Havia luzes nos outros chalés? Deveria começar a bater nas portas? Ou pensava a mesma coisa que Will, que estavam se preocupando demais, reflexo do trabalho de ambos, e que aquilo terminaria por ser uma história engraçada para contar à irmã sobre como ouviram um animal dar um grito de morte e saíram correndo para investigar em vez de transar ardentemente no lago.

    Naquele momento, Will não conseguia apreciar o humor. O suor havia emplastrado seu cabelo na cabeça. O calcanhar doía com uma bolha. Sangue caía de um ponto na testa onde uma trepadeira lhe rasgara a pele. Ele ouviu o silêncio na mata. Nem os grilos estrilavam. Deu um tapa no inseto que picava seu pescoço. Alguma coisa saiu correndo pelas árvores acima.

    Talvez ele não amasse aquele lugar, afinal.

    Pior, a verdade era que ele culpava Chacal por sua infelicidade. Desde crianças, nada dava certo na vida de Will quando aquele cuzão estava por perto. O babaca sádico era um amuleto de má sorte ambulante.

    Will esfregou o rosto com as mãos, como se pudesse apagar do cérebro qualquer pensamento sobre o Chacal. Eles não eram mais crianças, Will era um homem adulto em sua lua de mel.

    Ele tornou a seguir na direção de Sara. Ou, ao menos, na direção que achava que Sara seguia. No escuro, Will tinha perdido toda a noção de tempo e direção. Não sabia por quantos minutos tinha corrido pela floresta como se estivesse enfrentando um grupo de guerreiros ninja. Caminhar pelo mato crescido era muito mais difícil sem a adrenalina para empurrá-lo. Will fez o próprio plano em ­silêncio. Assim que chegasse à trilha, colocaria as meias e amarraria os cadarços, assim não ficaria mancando pelo resto da semana. Localizaria sua linda esposa, voltaria com ela para o chalé e recomeçariam de onde tinham parado.

    — Socorro!

    Will congelou.

    Não havia mais incerteza. O grito tinha sido tão claro que ele sabia que saíra da boca de uma mulher.

    Então ela gritou de novo:

    — Por favor!

    Will se afastou rapidamente da trilha, correndo na direção do lago. O som tinha vindo do lado oposto à área de nado, do bumbum do homem de neve. Ele manteve a cabeça baixa. As pernas tremiam. Ouvia o sangue correndo perto dos ouvidos, junto com o eco dos gritos. A mata logo se transformou numa floresta densa. Galhos baixos arranhavam seus braços enquanto pequenos mosquitos voa­vam a seu redor. O terreno subitamente desapareceu sob seus pés, e ele caiu de lado, torcendo o tornozelo.

    Ignorou a dor aguda, forçando-se a continuar. Tentou manter a adrenalina sob controle. Precisava desacelerar o passo. O complexo ficava mais elevado que o lago. Havia uma descida íngreme perto do salão de jantar. Will encontrou a parte de trás da Trilha Circular, então seguiu para baixo em outro caminho em zigue-zague. O coração ainda pulsava forte. O cérebro girava em recriminações. Ele devia ter prestado atenção a seus instintos na primeira vez. Devia ter percebido aquilo. Sentia-se enjoado com o que encontraria, porque a mulher tinha gritado para salvar a própria vida, e não havia predador mais cruel que o ser humano.

    Ele tossiu conforme o ar ficou espesso com a fumaça. O luar atravessou as árvores bem a tempo para que ele visse que o chão estava disposto em níveis. Will chegou a uma clareira. Latas de cerveja vazias e bitucas de cigarro emporcalhavam o chão. Havia ferramentas por todos os lados. Manteve-se atento enquanto corria por cavaletes, cabos de extensão e um gerador que tinha sido virado de lado. Havia mais três chalés, todos em diferentes estágios de reparo. Um estava com uma lona no telhado, outro, com as janelas fechadas com madeira. O último pegava fogo. Chamas lambiam o revestimento. A porta estava entreaberta, e fumaça saía por uma janela lateral quebrada. O teto não ia aguentar muito mais tempo.

    Os gritos por socorro. O fogo.

    Alguém tinha que estar lá dentro.

    Will respirou fundo antes de subir a escada da varanda. Escancarou a porta com um chute, e uma onda de calor secou seus olhos. Tirando uma, todas as janelas estavam fechadas com tábuas. A única luz vinha do fogo. Ele se agachou, ficando abaixo da fumaça ao entrar na sala. Na pequena cozinha. No banheiro com espaço para banheira. No pequeno closet. Seus pulmões começaram a doer. Estava ficando sem ar. Inalou um bocado de fumaça preta ao entrar no quarto. Sem porta. Sem utensílios. Sem armário. Da parede dos fundos do chalé, só se viam as vigas.

    Eram muito estreitas para que ele passasse entre elas.

    Will ouviu um rangido alto acima do crepitar do fogo e correu de volta para a sala. O teto fora totalmente tomado pelo fogo. Labaredas consumiam os pilares de apoio. O telhado estava ruindo, e choviam pedaços de madeira em chamas. Will mal conseguia enxergar por causa da fumaça.

    A porta da frente estava muito longe; então ele correu até a janela quebrada, pulando no último minuto, passando pelos destroços que caíam. Will rolou pelo chão. A tosse forte sacudia seu corpo. A pele estava esticada, como se quisesse evaporar com o calor. Tentou ficar de pé, mas só conseguiu ficar de gatinhas antes de expelir fuligem preta. O nariz escorria. O suor pingava de seu rosto. Ele tossiu de novo e, ao respirar, sentiu como se tivesse vidro nos pulmões. Pressionou a testa no chão. A lama grudava em suas sobrancelhas chamuscadas. Ele respirou profundamente pelo nariz.

    Cobre.

    Will sentou-se.

    Havia uma crença entre policiais de que era possível sentir o cheiro do ferro no sangue quando ele atingia o oxigênio. Não era verdade. O ferro precisava de uma reação química para ativar o cheiro. Em cenas de crime, eram os compostos gordurosos da pele. O odor era ampliado na presença de água.

    Will olhou para o lago. Seus olhos estavam embaçados. Ele limpou a lama e o suor. Silenciou a tosse que queria vir.

    Ao longe, ele via as solas de um par de tênis.

    Calça jeans manchada de sangue abaixada até o joelho.

    Braços flutuando ao lado.

    O corpo estava de rosto para cima, metade dentro da água, metade fora.

    Will sentiu-se momentaneamente petrificado pela visão. Era o modo como a lua deixava a pele azul-clara, cerosa. Talvez brincar sobre ter crescido em um orfanato tivesse colocado aquilo em sua mente, ou talvez ainda sentisse a ausência de qualquer membro da família a seu lado no altar do casamento, mas se pegou pensando na mãe.

    Até onde sabia, havia apenas duas fotografias que documentavam os dezessete anos da vida curta de sua mãe. Uma era da polícia, quando fora presa, um ano antes do nascimento de Will. A outra tinha sido tirada pelo médico-legista que fizera a autópsia dela. Polaroid. Desbotada. O azul ceroso da pele da mãe tinha o mesmo tom da pele da mulher morta deitada a cinco metros de distância.

    Will ficou de pé e mancou até o corpo.

    Ele não esperava de forma alguma ver o rosto da mãe. Seus instintos já tinham avisado sobre quem encontraria. Ainda assim, ficar de pé ao lado do corpo, sabendo que estava certo, produziu outra cicatriz no lugar mais escuro de seu coração.

    Outra mulher perdida. Outro filho que cresceria sem a mãe.

    Mercy McAlpine jazia na água rasa, ondas fazendo seus ombros se retraírem de leve. A cabeça estava apoiada em um grupo de pedras que mantinha o nariz e a boca acima da água. Mechas de cabelo loiro flutuavam ao redor do rosto, dando a ela um efeito etéreo — um anjo caído, uma estrela que se apagava.

    A causa da morte não era um mistério. Will podia ver que ela fora esfaqueada várias vezes. A camisa branca de botões que Mercy usava no jantar havia se transformado em uma massa sangrenta no peito dela. A água lavara algumas feridas. Ele via os furos feios nos ombros dela, onde a faca tinha sido torcida. Quadrados vermelhos escuros mostravam que a única coisa que impedira a lâmina de ir mais fundo fora o cabo.

    Em sua carreira, Will tinha visto cenas de crime mais horríveis, mas aquela mulher estava viva, andando, brincando, flertando, brigando com o filho ­emburrado, em pé de guerra com a família tóxica, havia menos de uma hora e agora estava morta. Jamais seria capaz de se entender com o filho. Jamais o veria se apaixonar. Jamais sentaria na primeira fileira para vê-lo se casar com o amor da vida dele. Sem mais feriados, aniversários, formaturas ou momentos sossegados juntos.

    E tudo o que ficaria para Jon seria a dor da ausência dela.

    Will se permitiu alguns segundos de tristeza antes de invocar seu treinamento. Examinou as árvores para o caso de o assassino ainda estar no entorno. Verificou se havia armas no chão. O agressor tinha levado a faca com ele. Observou a mata de novo, tentando detectar sons estranhos. Engoliu a fuligem e a bile em sua garganta. Ajoelhou-se ao lado de Mercy e pressionou os dedos na lateral do pescoço dela, procurando pulso.

    Sentiu as batidas aceleradas do coração dela.

    Estava viva.

    — Mercy?

    Will virou com cuidado a cabeça dela para si. Os olhos da mulher estavam abertos, a parte branca brilhando como mármore polido.

    — Quem fez isso com você? — perguntou com a voz firme.

    Will ouviu um som assoviado, mas não da boca ou do nariz dela. Os pulmões tentavam puxar ar pelas feridas abertas no peito.

    — Mercy.

    Ele pegou o rosto dela nas mãos e voltou a falar, decidido:

    — Mercy McAlpine. Meu nome é Will Trent. Sou um agente do Departamento de Investigação da Geórgia. Preciso que olhe para mim agora.

    As pálpebras dela começaram a estremecer.

    — Olhe para mim, Mercy! — ordenou Will. — Olhe para mim.

    O branco dos olhos dela apareceu por um instante. As pupilas giraram. ­Segundos se passaram, talvez um minuto, antes que ela finalmente olhasse para Will. Houve uma breve faísca de reconhecimento, então uma onda de medo. Ela estava de volta ao corpo, cheia de terror, cheia de dor.

    — Você vai ficar bem. — Will começou a se levantar. — Vou trazer ajuda.

    Mercy agarrou-o pelo colarinho, puxando-o para baixo. Ela olhou para ele — olhou de verdade. Ambos sabiam que ela não ficaria bem. Em vez de entrar em pânico, em vez de soltá-lo, ela o mantinha ali. A vida dela estava entrando em foco. As últimas palavras que dissera para a família, a briga com o filho.

    — Jo-Jon… diga a ele… diga a ele que e-ele precisa… ele precisa se afastar d-de…

    Will viu as pálpebras dela começando a tremer de novo. Ele não diria nada a Jon. Mercy diria suas últimas palavras na cara do filho. Ele levantou a voz, gritando:

    — Sara, chame o Jon! Rápido!

    — Nã-não… — Mercy começou a tremer. Ela entraria em choque em instantes. — J-Jon não pode…e-ele não pode… ficar… A-afaste ele de… de…

    — Me escute — disse Will. — Dê ao seu filho a chance de se despedir.

    — A-amo…— balbuciou. — Amo ele… ta-tanto…

    Will podia ouvir a própria dor na voz dela.

    — Mercy, por favor, fique comigo só mais um pouco. Sara vai trazer Jon aqui. Ele precisa ver você antes…

    — Si-sinto muito…

    — Calma — pediu Will. — Apenas fique comigo. Por favor. Pense na última coisa que Jon lhe disse. Esse não pode ser o fim disso. Sabe que ele não te odeia. Ele não te quer morta. Não o deixe com isso. Por favor.

    — Perdoo…ele… — Ela tossiu, espalhando sangue. — Perdoo ele.

    — Diga isso a ele você mesma. Jon precisa ouvir isso de você.

    A mão dela apertou mais a camisa de Will. Ela o puxou para mais perto.

    — Per-perdoo ele…

    — Mercy, por favor, não… — A voz de Will desapareceu.

    Ela estava indo embora rápido demais. De repente, ele se deu conta do que Jon veria se Sara o trouxesse até ali. Não era um momento terno para se despedir. Nenhum filho deveria ter que viver com a imagem da morte violenta da mãe.

    Ele tentou engolir a própria dor.

    — Certo. Vou dizer a ele. Prometo.

    Mercy tomou a promessa dele como permissão.

    O corpo dela ficou mole. Ela soltou o colarinho dele. Will observou a mão de Mercy cair, as ondulações que provocou ao bater na água. O tremor havia parado. A boca estava aberta; um suspiro lento, dolorido, foi a despedida. Will esperou que ela respirasse roucamente de novo, mas o peito permaneceu imóvel.

    Ele entrou em pânico no silêncio. Não podia deixá-la ir. Sara era médica. Podia salvar Mercy. Ela traria Jon, e ele teria a chance de dizer adeus.

    — Sara!

    A voz de Will ecoou pelo lago. Ele arrancou a camisa e cobriu as feridas de Mercy. Jon não veria os danos, veria o rosto da mãe. Saberia que ela o amava. Não teria que passar o resto da vida dele imaginando o que poderia ter sido.

    — Mercy? — Will a chacoalhou tão forte que a cabeça dela rolou para o lado. — Mercy?

    Ele deu um tapinha no rosto dela. A pele estava gelada. Não havia mais cor para sumir. O sangue tinha parado de circular. Ela não estava respirando. Ele não encontrava pulso. Precisava começar as compressões. Will juntou as mãos, colocou as palmas no peito de Mercy, endireitou os cotovelos e os ombros e bombeou com todo o peso.

    Então, uma dor atravessou a mão dele como um relâmpago. Tentou puxar de volta, mas estava presa.

    — Pare!

    Sara surgiu do nada. Ela pegou as mãos dele, segurando-as contra o peito de Mercy.

    — Não se mexa. Vai cortar os nervos.

    Levou um momento para que Will entendesse que Sara não estava preocupada com Mercy, mas com ele.

    Will olhou para baixo. O cérebro dele não tinha explicação para o que via. Lentamente, começou a voltar a si. Estava olhando para a arma do assassinato. O ataque tinha sido frenético, violento, cheio de raiva. O criminoso não tinha somente esfaqueado Mercy no peito, ele a atacara por trás, enfiando a faca nas costas dela com tanta força que o cabo se quebrara. A lâmina ainda estava enfiada no peito de Mercy.

    Will tinha empalado a mão na faca quebrada.

    1

    DOZE HORAS ANTES DO ASSASSINATO

    Mercy McAlpine encarou o teto planejando a semana. Dez casais tinham ido embora da pousada naquela manhã. Cinco outros chegariam ao longo do dia. Mais cinco na quinta-feira, deixando a pousada cheia durante o fim de semana. A transportadora tinha largado as últimas malas no estacionamento naquela manhã, e ela precisava colocar cada uma no chalé certo. Também tinha que pensar no que fazer com o amigo idiota do irmão, que adorava bater à porta deles. Os funcionários da cozinha precisavam ser avisados de que ele estaria ali, porque Chuck tinha alergia a amendoim. Ou talvez ela não os avisasse e o nível de dor de cabeça em sua vida fosse cortado mais ou menos pela metade.

    A outra metade era um peso sobre ela. Dave bufava como um trem a vapor que nunca chegaria ao fim do túnel. Os olhos dele estavam arregalados, as bochechas, bem vermelhas. Mercy tinha chegado ao orgasmo, discretamente, havia cinco minutos. Ela deveria ter dito a ele, mas odiava deixar que ele vencesse.

    Mercy virou a cabeça, tentando ver o relógio ao lado da cama. Estavam no chão do chalé 5, porque Dave não valia uma superfície macia e lençóis limpos. Devia ser quase meio-dia, e Mercy não podia se atrasar para o encontro de família. Os hóspedes começariam a chegar lá pelas duas da tarde, e telefonemas precisavam ser feitos. Dois casais tinham pedido massagem. Outro tinha se inscrito de última hora no rafting. Ela precisava confirmar se o lugar para passeio a cavalo tinha o horário pela manhã. Precisava também checar o tempo de novo, ver se aquela tempestade ainda seguia na direção deles. O fornecedor trouxera nectarinas em vez de pêssegos. Ele realmente achava que ela não sabia a diferença?

    — Merce? — Dave ainda continuava, mas ela conseguia ouvir a derrota na voz dele. — Acho que preciso parar.

    Mercy deu dois tapinhas no ombro dele, tirando-o de cima dela. O pau cansado de Dave roçou na perna dela conforme ele caía de costas. Ele olhou para o teto. Ela olhou para ele. Dave acabara de completar 35 anos e parecia mais perto dos oitenta. Os olhos dele estavam amarelados, o nariz marcado por vasinhos rompidos. A respiração era intensa. Ele voltara a fumar, porque a bebida e os comprimidos não o estavam matando rápido o suficiente.

    — Desculpe — pediu ele.

    Não havia necessidade de Mercy responder, eles tinham feito aquilo tantas vezes que as palavras dela eram como um eco perpétuo. Talvez se você não estivesse chapado… talvez se você não estivesse bêbado… talvez se você não fosse um merdinha inútil… talvez se eu não fosse uma idiota solitária, estúpida que fica trepando com o ex-marido perdedor no chão…

    — Você quer que eu… — Ele apontou para baixo.

    — Estou bem.

    Dave riu.

    — Você é a única mulher que eu conheço que finge não ter orgasmo.

    Mercy não queria brincar com ele. Ela ralhava com Dave por tomar decisões ruins, mas continuava transando com ele como se fosse alguém melhor. Ela puxou a calça jeans para cima. O botão estava apertado devido aos quilos que ganhara. Não tinha tirado nada além dos tênis Nike cor de lavanda, que estavam ao lado da caixa de ferramentas dele. Então lembrou-se:

    — Você precisa consertar o banheiro antes que os hóspedes cheguem.

    — Está certo, chefa. — Dave rolou de lado, preparando-se para ficar de pé. Ele nunca tinha pressa. — Acha que pode me dar um dinheiro?

    — Tire da pensão alimentícia.

    Ele estremeceu, não pagava havia dezesseis anos.

    — E o dinheiro que Papai pagou para você consertar os chalés dos solteiros?

    — Aquilo foi um depósito.

    O joelho de Dave estalou alto quando ele ficou de pé.

    — Precisei comprar material.

    Ela imaginou que a maioria do material tinha vindo do traficante ou do agente de apostas.

    — Uma lona e um gerador usado não custam mil dólares.

    — Deixa disso, Mercy Mac.

    Mercy soltou um suspiro audível ao olhar seu reflexo no espelho. A cicatriz que cruzava seu rosto era de um vermelho-vivo contra a pele branca. O cabelo ainda estava bem preso para trás. A camisa não tinha nem amassado. Ela parecia ter tido o orgasmo menos satisfatório, dado pelo homem mais decepcionante do mundo.

    Dave perguntou:

    — O que acha desse negócio de investimento?

    — Acho que Papai vai fazer o que quiser.

    — Não estou perguntando para ele.

    Ela olhou para o ex pelo espelho. O pai dela tinha soltado a notícia sobre os investidores ricos durante o café da manhã. Mercy não tinha sido consultada, então imaginou que fosse o jeito do pai de demonstrar que ainda estava no controle. A pousada tinha passado pelas mãos de sete gerações da família McAlpine. Em períodos anteriores, foram feitos pequenos empréstimos, normalmente de hóspedes antigos que queriam que o lugar continuasse funcionando. Eles ajudaram a consertar telhados e comprar aquecedores novos, e, uma vez, a trocar a fiação elétrica da estrada. Isso parecia muito maior. Papai dissera que o dinheiro dos investidores seria suficiente para construir um anexo ao complexo principal.

    Mercy disse:

    — Acho que é uma boa ideia. O antigo acampamento fica na melhor parte da propriedade. Podemos construir uns chalés maiores, talvez começar a anunciar para casamentos e reuniões de família.

    — Ainda vai chamar de Acampamento Aqui-Pedofilia?

    Mercy não queria rir, mas riu. O Acampamento Awinita era um terreno de cem acres com acesso ao lago, um riacho cheio de trutas e uma vista magnífica das montanhas mais baixas. A terra tinha sido também uma mina de ouro até quinze anos antes, quando todas as organizações que a alugavam, dos escoteiros aos batistas do Sul, tiveram algum tipo de escândalo com pedofilia. Não havia como saber quantas crianças tinham passado por isso ali. A única opção fora fechar o lugar antes que a mácula se espalhasse para a pousada.

    — Não sei — disse Dave. — A maior parte daquele terreno fica em área de conservação. Não se pode construir em nenhum lugar depois de onde o riacho encontra com o lago. Fora isso, não vejo Papai dando satisfação a ninguém sobre como esse dinheiro é gasto.

    Mercy citou o pai:

    Só tem um nome naquela placa na estrada.

    — Seu nome também está naquela placa — disse Dave. — E você faz um ótimo trabalho gerenciando este lugar. Estava certa a respeito de melhorar os banheiros. Foi um saco colocar o mármore, mas, com certeza, causa uma boa impressão. As torneiras e as banheiras parecem ter saído de uma revista. Os hóspedes estão gastando mais com extras e voltando para se hospedar de novo. Aqueles investidores não estariam oferecendo nenhum dinheiro se não fosse pelo que você fez aqui.

    Mercy resistiu à vontade de se envaidecer. Na família dela, elogios não eram distribuídos sem pensar. Ninguém tinha dito uma palavra sobre as paredes com cores diferentes nos chalés, a área de café e as jardineiras transbordando de flores para que os hóspedes tivessem a sensação de entrar em um conto de fadas.

    Ela falou:

    — Se gastarmos esse dinheiro bem, as pessoas vão pagar duas vezes, talvez até três, mais do que estão pagando agora. Especialmente se oferecermos uma estrada em que possam chegar de carro em vez de ter que fazer o caminho a pé. Poderíamos até colocar uns daqueles quadriciclos para ir até a parte atrás do lago. É lindo lá embaixo.

    — Realmente é lindo, com isso concordo. — Dave passava a maior parte dos dias no local, remodelando os três chalés antigos de forma ostensiva. — Pitica falou alguma coisa sobre o dinheiro?

    A mãe dela sempre ficava do lado do pai, mas Mercy disse:

    — Ela falaria para você antes de falar para mim.

    — Não ouvi coisa alguma.

    Dave deu de ombros. Pitica se abriria com ele por fim. Ela amava Dave mais do que os próprios filhos.

    — Se quer minha opinião, maior nem sempre é melhor.

    Maior era exatamente o que Mercy estava esperando. Depois do choque com a notícia, ela tinha se acostumado com a ideia. A entrada de dinheiro poderia melhorar as coisas. Estava cansada de andar na areia movediça.

    — É muita mudança — ponderou Dave.

    — Seria tão ruim se as coisas fossem diferentes? — perguntou, encostando-se na penteadeira e olhando para ele.

    Eles se entreolharam. A pergunta tinha muito peso. Ela o analisou além dos olhos amarelados e do nariz salpicado de vermelho, e viu o rapaz de 18 anos que tinha prometido tirá-la dali. Então viu o acidente de carro que abriu seu rosto. O centro de recuperação. Centro de recuperação de novo. A batalha pela guarda de Jon. A ameaça de recomeçar a beber. E a decepção constante, implacável.

    O telefone dela apitou sobre a mesinha lateral. Dave olhou para a notificação.

    — Tem alguém no começo da trilha.

    Mercy desbloqueou a tela. A câmera ficava no estacionamento, o que significava que tinha cerca de duas horas antes que os primeiros hóspedes completassem a caminhada de oito quilômetros até a pousada. Talvez menos. Parecia que poderiam encarar a trilha com facilidade. O homem era alto e magro, com corpo de corredor. A mulher tinha cabelo ruivo comprido e cacheado e carregava uma mochila que parecia ter sido usada antes.

    O casal beijou-se apaixonadamente antes de seguir para o início da trilha. Mercy sentiu uma pontada de inveja ao vê-los de mãos dadas. Os dois se admiravam mutuamente. Ambos riram, como se percebessem que agiam de modo apaixonado e infantil.

    — O cara parece bêbado de tanto trepar — disse Dave.

    A inveja de Mercy se intensificou.

    — Ela também parece bem alegrinha.

    — BMW — notou Dave. — São os investidores?

    — Gente rica não é feliz assim. Deve ser o casal em lua de mel. Will e Sara.

    Dave olhou com mais atenção, embora ambos estivessem de costas para a câmera.

    — Sabe qual a profissão deles?

    — Ele é mecânico. Ela é professora de química.

    — De onde eles são?

    — Atlanta.

    — Atlanta de verdade ou área metropolitana de Atlanta?

    — Não sei, Dave. Atlanta-Atlanta.

    Ele andou até a janela. Mercy o observou, olhando através do complexo para a casa principal. Sabia que algo o tinha provocado, mas não queria perguntar. Mercy dedicara-se muito a Dave. Para ajudá-lo. Para curá-lo. Para amá-lo o suficiente. Para ser o suficiente. Para, para, para não se afogar na areia movediça da necessidade sofrida dele.

    As pessoas achavam que ele era o sr. Dave Relaxado-Descontraído-Alma-da-Festa, mas Mercy sabia que ele andava por aí com uma bola imensa de angústia no peito. Dave não era viciado por estar em paz. Tinha passado os onze primeiros anos de vida em lares adotivos. Ninguém se deu ao trabalho de ir atrás dele quando fugiu. Ficara pela área do acampamento até que o pai de Mercy o encontrou dormindo em um dos chalés dos solteiros. Então a mãe dela preparou um jantar, e Dave começou a aparecer todas as noites até se mudar para a casa principal. Os McAlpine o adotaram, o que deu início a vários rumores maldosos quando Mercy engravidou de Jon. Não ajudou que Dave tivesse 18 anos e Mercy tivesse acabado de fazer 15 quando aconteceu.

    Eles jamais se viram como irmãos. Eram mais como dois idiotas que se encontraram ao acaso. Ele a odiou até que a amou. Ela o amou até odiá-lo.

    — Alerta.

    Dave se virou da janela.

    — Peixetopher está vindo com raiva.

    Mercy estava colocando o telefone no bolso de trás quando o irmão abriu a porta. Ele estava segurando um dos gatos, um ragdoll gordo e mole. Christopher vestia o de sempre: colete de pescador, chapéu de pescador com iscas penduradas, bermuda cargo com bolsos demais e chinelos; assim poderia colocar facilmente as galochas e ficar no meio de um riacho o dia inteiro jogando o anzol. Daí o apelido.

    Dave perguntou:

    — O que o atraiu até aqui, Peixetopher?

    — Não sei. — Peixe levantou o olhar. — Algo me chamou a atenção.

    Mercy sabia que poderiam seguir naquilo por horas.

    — Peixe, você disse ao Jon para limpar as canoas?

    — Disse, e ele me mandou ir me foder.

    — Jesus. — Mercy lançou um olhar para Dave, como se ele fosse o único responsável pelo comportamento de Jon. — Onde ele está agora?

    Peixe colocou o gato na varanda ao lado do outro.

    — Eu o mandei comprar pêssegos na cidade.

    — Por quê? — Ela olhou para o relógio de novo. — Temos cinco minutos até o encontro de família. Não vou pagar Jon para vagabundear por aí o verão todo. Ele precisa saber dos horários.

    — Ele precisa ficar longe. — Peixe cruzou os braços do jeito que sempre fazia quando achava que tinha algo importante a dizer. — A Delilah está aqui.

    Se ele dissesse que Lúcifer estava dançando na varanda da frente, ela teria ficado menos chocada. Sem pensar, Mercy agarrou o braço de Dave. O coração dela batia forte no peito, pois fazia doze anos que tinha enfrentado a tia em um tribunal cheio. Delilah tentara conseguir a guarda permanente de Jon, e Mercy ainda sentia as feridas profundas da luta para consegui-lo de volta.

    — O que aquela vaca está fazendo aqui? — perguntou Dave. — O que ela quer?

    — Não sei — respondeu Peixe. — Ela passou por mim na rua e entrou na casa com Papai e Pitica. Encontrei Jon e o mandei sair antes que ele a visse. De nada.

    Mercy não conseguia agradecer ao irmão. Ela começara a suar. Delilah morava a uma hora de viagem, em sua pequena bolha. Os pais a chamaram até aqui porque estavam aprontando alguma coisa.

    — Papai e Pitica estavam na varanda esperando Delilah?

    — Eles sempre ficam na varanda de manhã. Como vou saber se estavam esperando por ela?

    — Peixe!

    Mercy bateu o pé. Ele sabia a diferença entre um achigã-boca-pequena e um achigã-da-rocha, mas não sabia ler as pessoas.

    — Como eles estavam quando Delilah chegou? Ficaram surpresos? Falaram alguma coisa?

    — Acho que não. Delilah saiu do carro segurando a bolsa desse jeito. — Mercy o viu posicionar as mãos na frente da barriga. — Aí ela subiu a escada e todos entraram.

    — Ela ainda se veste como a Pippi Meialonga? — perguntou Dave.

    — Quem é Pippi Meialonga?

    — Quietos — sibilou Mercy. — Delilah não falou nada sobre Papai estar numa cadeira de rodas?

    — Não. Nenhum deles falou nada, agora que estou pensando nisso. Estranhamente silenciosos. — Peixe levantou o dedo para indicar que tinha se lembrado de outro detalhe. — Pitica começou a empurrar a cadeira de Papai para dentro, mas Delilah tomou o lugar dela.

    — É a cara da Delilah — murmurou Dave.

    Mercy sentiu a mandíbula contrair. Delilah não tinha ficado surpresa ao encontrar o irmão em uma cadeira de rodas, o que significava que já sabia do acidente, o que significava que haviam conversado pelo telefone. A questão era: quem tinha dado o telefonema? Ela fora convidada ou simplesmente ­tinha aparecido?

    Como se fosse uma deixa, o celular dela começou a tocar. Mercy o retirou do bolso e viu o nome no identificador de chamada.

    — Pitica.

    — Coloque no viva-voz — pediu Dave.

    Mercy tocou a tela. A mãe começava cada telefonema do mesmo jeito, não importava se estivesse ligando ou respondendo.

    — É a Pitica.

    — Pode falar, mãe — disse Mercy.

    — Vocês estão vindo para a reunião de família?

    Mercy olhou para o relógio. Estava dois minutos atrasada.

    — Mandei Jon para a cidade. Peixe e eu estamos indo.

    — Traga Dave.

    A mão de Mercy pairava sobre o telefone. Estava pronta para desligar, mas seus dedos vacilaram.

    — Por que quer o Dave aí?

    Houve um clique, e a mãe encerrou a chamada.

    Mercy olhou para Dave, depois para Peixe. Ela sentiu uma gota grossa de suor descer pelas costas.

    — Delilah vai tentar pegar Jon de volta — falou ela.

    — Não, não vai. Ele acabou de fazer aniversário, já é quase um adulto. — Pelo menos uma vez Dave era o lógico. — Delilah não pode levá-lo embora. Mesmo se ela tentar, não vai para julgamento por uns dois anos, pelo menos. Até lá, ele vai ter dezoito.

    Mercy pressionou a palma da mão sobre o coração. Ele estava certo. Jon, às vezes, agia feito um bebê, mas tinha dezesseis anos. Mercy não era uma ferrada que fazia cagadas em série, com duas prisões por dirigir embriagada, tentando largar a heroína com Xanax. Ela era uma cidadã responsável. Dirigia o negócio da família e estava limpa havia treze anos.

    — Caras — disse Peixe —, deveríamos saber que Delilah está aqui?

    — Ela não viu você quando veio pela rua? — questionou Dave.

    — Talvez? — Peixe estava perguntando, não afirmando. — Eu estava empilhando madeira perto do barracão e ela passou bem rápido. Sempre como se estivesse em uma missão.

    Mercy pensou em uma explicação que era quase horrível demais para falar:

    — O câncer pode ter voltado.

    Peixe pareceu abalado. Dave se afastou um pouco, virando as costas para eles. Pitica tinha sido diagnosticada com melanoma metastático havia quatro anos. Um tratamento agressivo tinha colocado o câncer em remissão, mas isso não significava cura. O oncologista lhe dissera para manter suas coisas em ordem.

    — Dave? — perguntou Mercy. — Notou alguma coisa? Ela mudou de alguma forma?

    Dave balançou negativamente a cabeça e enxugou os olhos com o punho. Ele sempre tinha sido o menino da mamãe, e Pitica ainda cuidava dele como a um bebê. Mercy não podia se ressentir da afeição extra, pois a mãe dele o abandonara em uma caixa de papelão do lado de fora de uma unidade do Corpo de Bombeiros.

    — Ela… — Dave limpou a garganta algumas vezes para conseguir falar. — Ela iria me sentar sozinho e contar se tivesse voltado. Não jogaria isso em cima de mim num encontro de família.

    Mercy sabia que era verdade, porque Dave fora a primeira pessoa a quem ­Pitica contara da última vez. Ele sempre tivera uma conexão especial com a mãe dela. Tinha sido ele quem a apelidara de Mãe Pitica, por causa do tamanho dela. Durante o tratamento do câncer, Dave a levara a cada consulta médica, a cada cirurgia, a cada tratamento. Também fora ele quem trocara os curativos cirúrgicos, cuidara para que ela tomasse os remédios e até lavara os cabelos dela.

    Papai estava muito ocupado gerenciando a pousada.

    — Estamos ignorando o óbvio — disse Peixe.

    Dave estava limpando o nariz com a barra da camiseta quando se virou.

    — Como assim?

    — Papai quer falar sobre os investidores.

    Mercy se sentiu uma idiota por não ter pensado nisso antes.

    — Precisamos convocar um encontro do conselho para votar o recebimento do dinheiro?

    — Não.

    Dave conhecia as regras do Fundo Familiar McAlpine melhor que qualquer um. Delilah tinha tentado tirá-lo porque ele era adotado.

    — Papai é o administrador, então ele toma essas decisões. Além disso, só é preciso de quórum para convocar uma votação. Mercy, você tem o voto de Jon, então ele só precisa de você, Peixe e Pitica. Não há motivo para que eu esteja lá. Ou Delilah.

    Peixe olhou ansiosamente para o relógio.

    — Precisamos ir, certo? Papai está esperando.

    — Esperando para nos pegar de tocaia — disse Dave.

    Mercy imaginou que fosse o que o pai planejava. Ela não tinha a ilusão de que participariam de um momento afetuoso em família.

    — Vamos acabar logo com isso — convocou Mercy.

    Ela liderou os rapazes pelo complexo. Os dois gatos caminhavam ao lado deles. Mercy lutava contra seu estado natural de ansiedade. Jon estava seguro. Ela não estava indefesa. Era velha demais para uma surra, e não era como se Papai conseguisse alcançá-la.

    Ela sentiu o calor subir pelo rosto. Era uma filha horrível por pensar em algo assim. Dezoito meses antes, o pai estava guiando um grupo na trilha de bicicleta quando foi de cabeça sobre o guidão e caiu no desfiladeiro. Um helicóptero de resgate o içara numa maca enquanto os hóspedes assistiam a tudo com horror. Ele havia quebrado o crânio e duas vértebras do pescoço. As costas também tinham sido fraturadas. Não havia dúvida de que ele terminaria em uma cadeira de rodas. O pai sofrera danos nos nervos do braço direito. Se tivesse sorte, teria controle limitado da mão esquerda. Ainda conseguia respirar sozinho, mas naqueles primeiros dias os cirurgiões falavam dele como se estivesse morto.

    Mercy não teve tempo para sofrer. Ainda havia hóspedes na pousada, e mais chegariam nas semanas seguintes. Era preciso fazer os cronogramas. Escolher os guias. Comprar mantimentos. Pagar contas.

    Peixe era o mais velho, mas nunca tinha se interessado pelo gerenciamento. Sua paixão era levar os hóspedes para a água. Jon era muito jovem, e mais, ele odiava o lugar. Não dava para ter certeza de que

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