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Cinco mil dias: O Brasil na era do lulismo
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E-book771 páginas9 horas

Cinco mil dias: O Brasil na era do lulismo

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Sobre este e-book

Cinquenta e dois autores – entre acadêmicos, lideranças políticas e ativistas sociais – de relevância nacional e de variadas matizes políticas no campo progressista realizam uma minuciosa avaliação, setor por setor, dos 13 anos de governos lulistas, que abrangem o período entre 2003 e 2016. São enfocados, entre outros, temas como economia em suas múltiplas variáveis, desenvolvimento, direitos sociais, judiciário, infraestrutura, energia, educação, saúde, cultura, segurança pública, meio-ambiente, direitos da mulher, população LGBT, povos indígenas, questão racial, esportes, combate à pobreza, comunicações, política externa, habitação e urbanismo e relações com movimentos sociais.

Para analisar os avanços e limites da mais longeva experiência de um partido político à frente do Governo Federal desde a redemocratização do país, os organizadores Gilberto Maringoni e Juliano Medeiros convocaram pensadores, ativistas, parlamentares, dirigentes políticos e lideranças de movimentos sociais. Contribuíram com o balanço nomes como André Singer, Armando Boito Jr., Aldo Fornazieri, Chico Alencar, Cid Benjamin, Edmilson Brito Rodrigues, Eduardo Fagnani, Eloísa Machado de Almeida, Erminia Maricato, Guilherme Boulos, Ivan Valente, Jean Wyllys, José Luiz Del Roio, Leda Maria Paulani, Ligia Bahia, Lúcio Gregori, Luis Felipe Miguel, Luiz Eduardo Soares, Nilcéa Freire, Pedro Paulo Zahluth Bastos, Reginaldo Nasser e Vladimir Safatle, entre outros.
IdiomaPortuguês
EditoraBoitempo Editorial
Data de lançamento18 de dez. de 2017
ISBN9788575596012
Cinco mil dias: O Brasil na era do lulismo

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    Cinco mil dias - Gilberto Margingoni

    I – Os rumos da política

    A ideia de lulismo

    [1]

    André Singer

    [2]

    A persistência do que poderíamos chamar de conservadorismo popular marca a distribuição das preferências ideológicas no Brasil pós-redemocratização, com a direita reunindo quase sempre cerca de 50% mais eleitores do que a esquerda

    Em 29 de outubro de 2006, o candidato do PT venceu o do PSDB por uma diferença de 20 milhões de votos[3]. Na superfície, era a reiteração da maioria firmada na eleição presidencial de 2002. Mas, encoberto sob cifras quase idênticas, houve em 2006 um realinhamento de bases sociais, fazendo emergir fenômeno novo, que sugerimos chamar de lulismo. A outros esforços despendidos para entender o lulismo[4], sugerimos imaginar que ele fosse, sobretudo, a representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização. Por isso, aparece na política depois da chegada de Lula ao poder.

    A combinação de ideias que empolgaria essa fração, o subproletariado, seria a expectativa de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade sem ameaça à ordem estabelecida. Dado tal arranjo ideológico, a possível hegemonia lulista não seria às avessas, como sugerira Chico de Oliveira, ainda que, ao juntar elementos de esquerda e de direita, cause a impressão de inverter o arranjo lógico dos argumentos, pois sempre se teve como evidente que, para diminuir a desigualdade no Brasil, seria preciso alterar a ordem[5].

    Movimento subterrâneo

    A percepção do movimento profundo que representou o lulismo foi dificultada porque se deu sem mobilização e sem fazer-se notar, como assinalou um ex-ministro[6]. De um lado, houve um movimento subterrâneo de eleitores de baixíssima renda, que tendem a ficar invisíveis para os analistas; reforçou esse efeito o fato de o deslocamento ter sido simultâneo ao estardalhaço em torno do mensalão, escândalo que teceu, a partir de maio de 2005, um cerco político-midiático ao presidente, deixando-o na defensiva por cerca de seis meses[7].

    No período do mensalão, o governo efetivamente perdeu parcela importante do suporte que trazia desde a eleição de 2002. Nas camadas médias, a rejeição desdobrou-se em nítida preferência por um candidato de oposição à presidência em 2006. Entre os brasileiros de escolaridade superior, a reprovação a Lula deu um salto de 16 pontos percentuais, passando de 24% em agosto para 40% hoje, escrevia a Folha de S.Paulo em 23 de outubro de 2005.

    Três meses depois, porém, enquanto os mais ricos, seguindo no viés anterior, optavam em massa (65%) pelo então pré-candidato do PSDB, entre os de renda familiar de até cinco salários mínimos ocorria uma virada em sentido contrário, com um aumento dos índices de satisfação a respeito do mandato de Lula[8]. Sobretudo no fundo da sociedade, onde circulam personagens de escassa repercussão, houve uma crescente inclinação, desde pelo menos o início de 2006, a manter no Palácio do Planalto o ex-retirante pernambucano que tinha as mesmas origens dos seus recém-apoiadores[9].

    A divergência entre os estratos de renda irá crescer ao longo de 2006 e os números encontrados pelo Ibope perto do primeiro e do segundo turno expressam uma disputa socialmente polarizada, como mostram as Tabelas 1 e 2[10]. Nelas, a disposição da parcela mais pobre de sufragar em Lula inverte-se de maneira linear à medida que aumenta o rendimento, de sorte que os mais ricos dão folgada maioria a Alckmin.

    Tabela 1 – Intenção de voto por renda familiar mensal no 1º turno de 2006

    Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 3.010 eleitores realizada entre 28 e 30 de setembro de 2006.

    O que atrapalhou a compreensão e levou analistas como Chico de Oliveira a considerarem pouco plausível que os quase 40 milhões de votos em Alckmin no primeiro turno fossem apenas dos ricos é a singularidade brasileira, que grosso modo transforma em classe média todos (aí incluídos setores assalariados de baixa renda) os que não pertencem à metade da população que tem baixíssima renda.

    Lula foi eleito, sobretudo, pelo apoio que teve nesse segmento, enquanto Alckmin contou, além do voto dos mais ricos, com certa sustentação na fatia de eleitores de classe média baixa, que vagamente corresponde ao que o mercado chama de classe C. Na faixa de dois a cinco salários mínimos de renda familiar mensal, por exemplo, Alckmin quase empatava com Lula às vésperas do primeiro turno (Tabela 1), mas entre os eleitores de baixíssima renda (até dois salários mínimos de renda familiar mensal), Lula aparecia com uma vantagem de 26 pontos percentuais sobre Alckmin. Era, destarte, verdadeira a interpretação de que o Brasil se dividiu entre pobres e ricos. A polarização social do pleito efetuou-se pela implantação de Lula entre os eleitores de baixíssima renda, visível desde o primeiro turno, assim como a de Alckmin entre os de ingresso mais alto (acima de 10 salários mínimos de renda familiar mensal).

    Tabela 2 – Intenção de voto por renda familiar mensal no 2º turno de 2006

    Fonte: Ibope. Pesquisa com amostra nacional de 8.680 eleitores realizada entre 26 e 28 de outubro de 2006.

    Os dados indicam que o lulismo foi expressão de uma camada social específica e a clivagem entre eleitores de baixíssima renda e de classe média, que apareceu nos debates pós-eleitorais sob a forma de questionamento do real papel dos chamados ‘formadores de opinião’[11], outorgou uma característica única à eleição de 2006. Em perspectiva comparada, as cientistas políticas Denilde Oliveira Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky observaram que em 2002 o voto em Lula não estava especialmente associado com nenhum estrato social, enquanto em 2006 os eleitores de classe baixa se mostram significativamente mais inclinados a dar seu voto a Lula[12]. O único caso anterior de polarização por renda em eleições presidenciais, desde a redemocratização, surgira no segundo turno de 1989, sendo que naquela ocasião a candidatura Lula estava, não por acaso, no lado oposto da linha que dividia pobres e ricos. Enquanto Fernando Collor de Mello alcançava vantagem de dez pontos percentuais na faixa de até dois salários mínimos de renda familiar mensal, no segmento mais alto quem obtinha vantagem análoga era Lula.

    Collor e a baixa renda

    Se no primeiro turno de 1989 havia uma nítida tendência de crescimento do apoio a Fernando Collor com a queda da renda, levando à concentração do voto collorido entre os mais pobres, no campo oposto (classe média) ocorria uma dispersão nas opções por Lula, Brizola, Covas e Maluf, não caracterizando, ainda, a polarização, que viria a ocorrer no segundo turno[13]. Em entrevista concedida após aquele pleito, Lula afirmava:

    A verdade nua e crua é que quem nos derrotou, além dos meios de comunicação, foram os setores menos esclarecidos e mais desfavorecidos da sociedade [...]. Nós temos amplos setores da classe média com a gente – uma parcela muito grande do funcionalismo público, dos intelectuais, dos estudantes, do pessoal organizado em sindicatos, do chamado setor médio da classe trabalhadora.[14]

    Consciente do peso eleitoral dos mais desfavorecidos, acrescentava:

    A minha briga é sempre esta: atingir o segmento da sociedade que ganha salário mínimo. Tem uma parcela da sociedade que é ideologicamente contra nós, e não há porque perder tempo com ela: não adianta tentar convencer um empresário que é contra o Lula a ficar do lado do trabalhador. Nós temos que ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam seduzir pela promessa fácil de casa e comida.[15]

    Em trabalhos sobre 1989, notamos, entretanto, que a vitória de Collor não decorria apenas de promessas fáceis. Havia uma hostilidade às greves, cuja onda ascensional se prolongou desde 1978 até as vésperas da primeira eleição direta para presidente, e da qual Lula era, então, o símbolo maior. Observava-se aumento linear da concordância com o uso de tropas para acabar com as greves conforme declinava a renda do entrevistado, indo de um mínimo de 8,6%, entre os que tinham renda familiar acima de vinte salários mínimos, a um máximo de 41,6% entre os que pertenciam a famílias cujo ingresso era de apenas dois salários mínimos. Em outras palavras, ao contrário do esperado, os mais pobres demonstravam maior hostilidade às greves do que os mais ricos.

    À época, assinalamos que a resistência às greves e à candidatura Lula, manifestada por eleitores de baixíssima renda, estava associada, além do mais, a uma autolocalização intuitiva à direita do espectro ideológico (Quadro 1)[16]. Não obstante, tratava-se de direita peculiar, uma vez que favorável à intervenção do Estado na economia. Como resolver a aparente contradição? Sugerimos que os eleitores mais pobres buscariam a redução da desigualdade, da qual teriam consciência, por meio de intervenção direta do Estado, evitando movimentos sociais que pudessem desestabilizar a ordem. Para eleitores de menor renda, a clivagem entre esquerda e direita não estaria em ser contra ou a favor da redução da desigualdade e sim em como diminuí-la. Identificada como opção que colocava a ordem em risco, a esquerda era preterida em favor de solução pelo alto, de uma autoridade constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaça de instabilidade. Esse seria o sentido da adesão intuitiva à direita no espectro ideológico. Era comum, nas pesquisas, os eleitores de baixa escolaridade entenderem a direita como o que é direito ou como sinônimo de governo; a esquerda sendo o errado e a oposição. Se aceitarmos que tais associações expressam escolha pela ordem, o presumível erro de acepção fica mitigado e torna inteligível o viés desfavorável a Lula.

    Construção a partir de cima

    Como vimos, o modelo de comportamento político desenhado acima tem antecedentes. Marx, em O 18 de brumário[17], revela que a projeção de anseios em uma figura vinda de cima, que deriva da necessidade de ser constituído enquanto ator político desde o alto, é típica de classes ou frações de classe que têm dificuldades estruturais para se organizar. A natureza do vínculo esclarece por que o seu surgimento sempre causa surpresa. Como eles não são capazes de representar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados[18], aparecem na política de repente, sendo criados de cima para baixo, sem aviso prévio, sem a mobilização lenta (e barulhenta) que caracteriza a auto-organização autônoma das classes subalternas quando se dá nos formatos típicos do século XIX, isto é, dos movimentos e partidos operários.

    O fato de Collor ter decepcionado a camada que o elegeu ao provocar a recessão de 1990/1991, levando à perda de suporte que favoreceu o impedimento em 1992, não afetou a estrutura de comportamento político que o pleito de 1989 revelara. Nas eleições presidenciais seguintes, de 1994 e de 1998, o conservadorismo popular, acionado pelo medo da instabilidade, venceu Lula pela segunda e terceira oportunidades. Percebia-se, vagamente, um poder de veto das classes dominantes que residia na capacidade de mobilizar o voto de baixíssima renda contra a esquerda. O que não se distinguia com nitidez eram as raízes ideológicas do mecanismo.

    Em 1993, a pesquisa Cultura Política voltou a investigar a localização dos eleitores no espectro ideológico, usando distribuição de 10 pontos em lugar de 7. O resultado foi semelhante ao colhido quatro anos antes. A esquerda (posições de 1 a 4) reunia 27% das preferências, contra 45% da direita (posições de 7 a 10)[19]. Os levantamentos de opinião, aliás, indicam permanente supremacia conservadora na distribuição do eleitorado entre esquerda e direita, como se observa no Quadro 1.

    Quadro 1 – Posição no espectro ideológico (Brasil), 1989-2006

    Fonte: Para Datafolha, relatório Posição política, 20/21 de maio de 2010. Disponível em: <datafolha.folha.uol.com.br>. Acesso em: 3 abr. 2012. Exceto para 2000, em . Acesso em: 3 abr. 2012. Para Criterium e F. Perseu Abramo: Fundação Perseu Abramo, disponível em: . Acesso em: 18 set. 2009. As posições na escala de 1 a 7 foram assim agrupadas: esquerda= 1 a 3; centro= 4; direita= 5 a 7.

    As pesquisas mostram, igualmente, que a tendência à direita cai com o aumento da renda, ocorrendo o contrário com a esquerda. Por isso, as derrotas de Lula em 1994 e 1998 podem ser entendidas, ao menos em parte, como reedições de 1989.

    Apesar de a estabilidade monetária ter se sobreposto, em 1994 e 1998, aos argumentos abertamente ideológicos utilizados por Collor (ameaça comunista) em 1989, o resultado é que as duas campanhas de Fernando Henrique Cardoso mobilizaram os eleitores de menor renda contra a esquerda. Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gustavo Venturi demonstraram que, na esteira do Plano Real, o melhor resultado de Lula em 1994 ocorreu entre os estudantes, entre os assalariados registrados com escolaridade secundária ou superior, e entre os funcionários públicos. Já os trabalhadores sem registro formal, portanto, desvinculados da organização sindical, deram os melhores resultados a Fernando Henrique[20].

    Condutor em meio à crise

    Em 1998, a coligação governista procurou convencer, com sucesso, os eleitores de que Cardoso seria o melhor condutor do país em meio à crise financeira internacional que ameaçava a estabilidade conquistada quatro anos antes e que Lula supostamente não conseguiria manter[21]. De acordo com Tarso Genro, boa parte das massas excluídas simplesmente repercutiram esta estratégia manipuladora [...]. Para Genro, em 1998 pesou significativamente, mais do que ocorreu com a eleição de Collor, uma grande parte da população marginalizada, tornada lúmpen ou meramente excluída do mundo da Lei e do Direito[22]. Em decorrência, os argumentos da campanha de Lula de que Fernando Henrique tinha abaixado a cabeça para os banqueiros e agiotas internacionais [...], aumentou os juros [...] e as empresas estão fechando e demitindo[23] não atraíram mais do que os cerca de 30% de votos válidos que pareciam, então, constituir o teto do candidato, quando, na realidade, eram o teto da esquerda, socialmente limitada pela rejeição do subproletariado no extremo inferior de renda.

    Ainda em 2002, depois de unir-se a partido de centro-direita, anunciar candidato a vice de extração empresarial, assinar carta-compromisso com garantias ao capital e declarar-se o candidato da paz e do amor, Lula tinha menos intenção de voto entre os eleitores de renda mais baixa do que entre os de renda superior. Wendy Hunter e Timothy Power notaram que no núcleo de apoio recebido por Lula nas suas quatro tentativas prévias de chegar à presidência, ocorridas entre 1989 e 2002, encontravam-se os eleitores com maior nível de escolaridade, concentrados principalmente nos estados mais urbanos e industriais do Sul e do Sudeste[24]. Em suma, a base social de Lula e do PT expressavam as características da esquerda em sociedade cuja metade mais pobre pendia para a direita.

    depois de assumir o governo, Lula obteve a adesão plena do segmento de classe que buscava desde 1989, deixando, porém, de contar com o apoio que sempre tivera na classe média. "Lula perdeu intenções e, provavelmente, votos entre alguns de seus eleitores ‘tradicionais’, ‘decepcionados’ com os ‘escândalos’. Substituiu-os, porém, e compensou as perdas, com votos de ‘não eleitores’, pessoas que nunca haviam votado nele antes"[25], afirma Marcos Coimbra, diretor do Instituto Vox Populi (grifos meus). Entre a eleição de 2002, entendida como sendo a da demorada ascensão da esquerda em país de tradição conservadora, e a reeleição de Lula por outra base social e ideológica, em outubro de 2006, operou-se uma transformação decisiva e que se faz necessário entender.

    Mudança nas atitudes dos eleitores

    Marcos Coimbra registra:

    as primeiras pesquisas feitas logo após o começo do governo, em 2003, captaram uma nítida mudança nas atitudes dos eleitores de classe popular, apontando para o aumento de sua autoestima e da confiança, de que o Brasil iria melhorar, agora que as políticas de governo passariam a ter outra intenção e finalidades: um governo diferente, com gente diferente, fazendo coisas diferentes.[26]

    Três anos depois da posse, quando outro pleito apontava no horizonte, tais mudanças nas atitudes se expressariam na forma de uma adesão que salvou Lula da morte política a que parecia condenado pela rejeição da classe média.

    Na análise de Coimbra, o fundamento da aprovação ao governo, que por sua vez levou ao voto em 2006, foi a sensação de eleitores de renda baixa e média de que o seu poder de consumo aumentara, seja em produtos tradicionais (alimentos, material de construção), seja em novos (celulares, DVDs, passagens aéreas)[27]. Com efeito, a partir de setembro de 2003, com o lançamento do Programa Bolsa Família (PBF), inicia-se uma gradual melhora na condição de vida dos mais pobres. No princípio apenas unificação de programas de transferência de renda herdados da administração Fernando Henrique, o qual, por sua vez, copiara a fórmula de governos locais petistas, aos poucos a quantidade de recursos destinados ao PBF o converteu em uma espécie de pré-renda mínima para as famílias que comprovassem situação de extrema necessidade.

    Em 2004, o PBF recebeu verba 64% maior e, em 2005, quando explode o mensalão, teve um aumento de outros 26%, mais do que duplicando em dois anos o número de famílias atendidas, de 3,6 milhões para 8,7 milhões. Entre 2003 e 2006, a Bolsa Família viu o seu orçamento multiplicado por treze, pulando de R$ 570 milhões para R$ 7,5 bilhões, atendendo a cerca de 11,4 milhões de famílias perto da eleição de 2006[28].

    Diversos estudos encontraram indícios de que o PBF teve influência nos votos recebidos por Lula em 2006. Elaine Cristina Licio e colaboradores verificaram, por meio de survey, no que se refere à atitude dos beneficiários do Programa, que entre eles a porcentagem de voto em Lula foi cerca de 15% maior no primeiro e segundo turnos em comparação com a obtida na média do eleitorado[29].

    Yan de Souza Carreirão associa a alta votação de Lula nas regiões Nordeste e Norte ao fato de o programa ter-se concentrado naquelas áreas. Lula teve, no primeiro turno, por exemplo, cerca de 60% dos votos válidos do Nordeste e apenas 33% dos do Sul, sendo que o investimento do PBF na região nordestina foi três vezes maior do que na sulista[30]. Em observação mais segmentada, Nicolau e Peixoto notaram que "Lula obteve percentualmente mais votos nos municípios que receberam mais recursos per capita do Bolsa Família"[31], mostrando a repercussão do programa nos chamados grotões, tipicamente o interior do Norte/Nordeste, que sempre fora tradicional território do conservadorismo.

    Vale notar que, de acordo com Coimbra, dentre os que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, a maioria eram mulheres de renda baixa, o público alvo por excelência do Bolsa Família, pois em geral são as mães que recebem o benefício[32].

    Soa consistente a afirmação de que o PBF cumpriu um papel na segunda vitória de Lula. Porém, a importância do Bolsa Família não deve ser subestimada e nem exagerada, adverte Coimbra. Sozinho não bastaria para explicar o resultado da eleição[33], diz o diretor do Vox Populi.

    Cláudio Djissey Shikida e colaboradores argumentam que raciocínios centrados no local de votação correm o risco de apenas mostrar a coincidência geográfica de dois fatores, a saber, a presença do PBF, dada a pobreza do lugar, e o voto em Lula, mas não a relação causal. A Bolsa Família foi logicamente destinada em maior proporção às regiões pobres e aos municípios de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Mas o fato de a votação em Lula ter sido maior nessas regiões e municípios não implica que ela fosse causada pelo PBF ou por ele. Fazendo uso de outro instrumental estatístico para compulsar as tendências municipais, Shikida e colaboradores concluem:

    O PBF mostrou alguma evidência de impacto positivo na eleição, porém os resultados não se mostraram robustos. Mesmo se significativo fosse, o valor do estimador seria bem menor do que o necessário para que o efeito Bolsa Família fosse a chave para a compreensão da eleição de Lula.[34]

    Shikida e colaboradores sugerem que o controle dos preços, enquanto componente central do aumento do poder de compra entre as camadas pobres, pudesse ser mais explicativo da inflexão ocorrida em 2006. Chamam a atenção, por exemplo, para o fato de que entre 2003 e 2006, a cesta básica subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre e São Paulo, e em Recife e Fortaleza a variação foi de 4% e de -3%. Terá sido coincidência Lula ter perdido no Rio Grande do Sul e em São Paulo nos dois turnos, ao passo que no Estado de Pernambuco recebeu 82% dos votos no segundo turno e no Ceará, 75%?[35]

    Na mesma linha, mirando além da Bolsa Família, Hunter e Power lembram que o aumento real de 24,25% no salário mínimo durante o primeiro mandato teve um impacto mais abrangente do que o PBF. Além disso, a Bolsa Família e a elevação do salário mínimo, somadas, dinamizaram as economias locais menos desenvolvidas, que dependem, em grande medida, de comércio pequeno e gastos no varejo para a sua sobrevivência. Então, não é surpreendente que as vantagens da minoria (sic) tenham aumentado dramaticamente nos últimos três anos nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Tampouco causa surpresa que tanto o comparecimento como o apoio a Lula nessas duas regiões tenham crescido em 2006 comparado a 2002[36].

    O primeiro aumento importante do salário mínimo, 8,2% reais, ocorreu em maio de 2005[37] e é razoável imaginar que a poderosa combinação Bolsa Família-salário mínimo tenha demorado alguns meses para produzir efeitos, ajudando a entender porque as pesquisas de intenção de voto registram crescente adesão dos mais pobres a partir do início de 2006. Mas além do acréscimo de renda obtido pelos milhões de brasileiros que recebem um salário mínimo da Previdência Social[38], outra possibilidade aberta aos aposentados, às vezes principal fonte de recursos em pequenas comunidades, foi o uso do crédito consignado.

    Crédito consignado

    O crédito consignado fez parte de uma série de iniciativas oficiais que tinha por objetivo expandir o financiamento popular, que incluiu uma multiplicação expressiva do empréstimo à agricultura familiar (sobretudo no Nordeste), do microcrédito e da bancarização de pessoas de baixíssima renda.

    Criado em 2004, permitiu aos bancos descontar empréstimos em parcelas mensais retiradas diretamente da folha de pagamentos do assalariado ou do aposentado. A redução do risco decorrente do pagamento garantido acarretou uma queda em quase treze pontos percentuais da taxa de juros desses empréstimos, e, em 2005, depois de crescer quase 80%, o crédito consignado colocava em circulação dezenas de bilhões de reais, usados, em geral, para o consumo popular. Ainda no capítulo da assistência social, com a promulgação do Estatuto de Idoso, em janeiro de 2004, a idade mínima para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que paga um salário mínimo para idosos ou portadores de necessidades especiais cuja renda familiar per capita seja inferior a ¼ de salário mínimo, caiu de 67 para 65 anos. Com isso, em 2006, 2,4 milhões de cidadãos recebiam o BPC.

    Além das medidas de alcance geral, que propiciaram a ativação de setores antes inexistentes na economia (por exemplo, clínicas dentárias para a baixa renda), uma série de programas focalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural), regularização das propriedades quilombolas, construção de cisternas no semiárido etc., favoreceram o setor de baixíssima renda. Carreirão reproduz cruzamento realizado pelo Datafolha em junho de 2006 que mostra a influência de ser atendido por programa governamental sobre a disposição de reeleger o presidente. Os números mostram que a intenção de voto em Lula pulava de 39%, na média, para 62%, quando o entrevistado participava de algum programa federal[39].

    Em resumo, o tripé formado pela Bolsa Família, pelo salário mínimo e pela expansão do crédito, somado aos referidos programas específicos, e com o pano de fundo da diminuição de preços da cesta básica, resultaram em diminuição da pobreza a partir de 2004, quando a economia voltou a crescer e o emprego a aumentar. É o que Marcelo Neri chama de o Real do Lula: No biênio 1993-1995 a proporção de pessoas abaixo da linha da miséria cai 18,47% e, no período 2003-2005, a mesma cai 19,18%[40].

    Conservadorismo popular

    A persistência do que poderíamos chamar de conservadorismo popular marca a distribuição das preferências ideológicas no Brasil pós-redemocratização, com a direita reunindo quase sempre cerca de 50% mais eleitores do que a esquerda (Quadro 1). Gustavo Venturi mostra que a pendência para a direita do eleitorado de menor escolaridade (que está associada à renda), já observada em 1989, continuava presente quase duas décadas depois[41].

    Em 2006, enquanto os eleitores de escolaridade superior dividiam-se por igual entre a esquerda (posições 1 e 2 = 31%), do centro (posições 3, 4 e 5 = 32%) e da direita (posições 6 e 7 = 31%), entre os que frequentaram até a quarta série do ensino fundamental, a direita tinha 44% de preferência, quase o triplo de adesão que tinha a esquerda (16%) e o centro (15%)[42]. A conclusão de Venturi é de que passadas mais de duas décadas de democracia, a construção de uma hegemonia político-cultural identificada como de esquerda não avançou[43].

    Em outras palavras, apesar do sucesso do PT e da CUT, a esquerda não foi capaz de dar a direção ao subproletariado, fração de classe particularmente difícil de organizar. O subproletariado, a menos que atraído por propostas como a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), tende a ser politicamente constituído desde cima, como observou Marx a respeito dos camponeses da França em 1848. Atomizados pela sua inserção no sistema produtivo, ligada ao trabalho informal intermitente, com períodos de desemprego, necessitam de alguém que possa, desde o alto, receber e refletir as aspirações dispersas. Na ausência de avanço da esquerda nessa seara, o primeiro mandato de Lula terminou por encontrar outra via de acesso ao subproletariado, amoldando-se a ele, mais do que o modelando, e, ao mesmo tempo, constituindo-o como base política autônoma. É isso que obriga a esquerda a se reposicionar.

    A emergência do lulismo tornou necessário, também, o reposicionamento dos demais segmentos político-ideológicos. O discurso de Lula em defesa da estabilidade tirou a plataforma a partir da qual a direita mobilizava os mais pobres, sobrando-lhe apenas o recurso às denúncias de corrupção, assunto limitado à classe média.

    Arbitragem de cima

    À medida que passou a ser sustentado pela camada subproletária, Lula obteve autonomia similar à que Luís Bonaparte adquiriu com a súbita adesão dos camponeses em 10 de dezembro de 1848. Com ela, Lula cria um ponto de fuga para a luta de classes, que passa, sobretudo no segundo mandato, a ser arbitrada desde cima, ao sabor da correlação de forças. Se a reforma da Previdência, que tirava benefícios do servidor público e fazia parte do programa do capital, foi aprovada, a reforma trabalhista, que visava tirar direitos dos assalariados, foi adiada sine die, e assim por diante.

    Juiz acima das classes, o lulismo não precisa afirmar que o povo alcançou o poder ou que os dominados comandam a política, como na formulação que Oliveira foi buscar na África do Sul pós-apartheid[44].

    Ao incorporar pontos de vista tanto conservadores, principalmente o de que a conquista da igualdade não requer um movimento de classe auto-organizado que rompa a ordem capitalista, quanto progressistas, a saber, o de que um Estado fortalecido tem o dever de proteger os mais pobres independentemente do desejo do capital, ele achou em símbolos dos anos 1950 a gramática necessária para a sua construção ideológica. A velha noção de que o conflito entre um Estado popular e elites antipovo se sobrepõe a todos os demais cai como uma luva para um período em que a polaridade esquerda/direita foi empurrada para o fundo do palco. Enunciado por um nordestino saído das entranhas do subproletariado, o discurso popular ganha uma legitimidade que talvez não tenha tido na boca de estancieiros gaúchos. Não espanta que o debate sobre o populismo tenha ressurgido das camadas pré-sal anteriores a 1964, onde parecia destinado a dormir para sempre.


    [1] Versão reduzida e modificada do artigo Raízes sociais e ideológicas do lulismo, em André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador (São Paulo, Companhia das Letras, 2012).

    [2] Professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo.

    [3] Lula teve 47% dos sufrágios válidos no primeiro turno de 2002 e 49% na reeleição de 2006. Em números absolutos, Lula teve 52.788.428 de votos contra 33.366.430 de votos para José Serra, no segundo turno de 2002, e 58.295.042 de votos contra 37.543.178 de votos para Geraldo Alckmin, no segundo turno de 2006.

    [4] A bibliografia sobre o lulismo incluía, no campo petista, O PT e o lulismo, artigo assinado por Gilney Viana, de 31 de outubro de 2007 e Duas agendas: na crise, de duas, uma, de Renato Simões, de 23 de maio de 2009, ambos publicados originalmente no sítio do partido: . Em outra vertente, havia Merval Pereira, O lulismo no poder (Rio de Janeiro, Record, 2010) e Rudá Ricci, Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto, 2010).

    [5] Ver Francisco de Oliveira, Ruy Braga e Cibele Rizek, Hegemonia às avessas (São Paulo, Boitempo, 2010) e José de Souza Martins, A política do Brasil, lúmpen e místico (São Paulo, Contexto, 2011).

    [6] Roberto Amaral, As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?, Comunicação & política, Rio de Janeiro, Paz e Terra, v. 25, n. 1, p. 9–30, 2007. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2017.

    [7] Usando balizamentos de mídia, pode-se dizer que a fase aguda do mensalão iniciou-se com a reportagem da revista Veja que começou a circular em 14 de maio de 2005 e terminou com a entrevista presidencial ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, em 7 de novembro do mesmo ano.

    [8] Folha de S.Paulo, 5 fev. 2006.

    [9] Ver resultados das pesquisas Datafolha nas edições da Folha de S.Paulo de 23 de outubro de 2005 e de 5 de fevereiro de 2006.

    [10] Agradeço ao Centro de Estudos de Opinião Pública (Cesop) da Unicamp a cessão de dados do Ibope 2006 e a Gustavo Venturi a cessão de dados da Fundação Perseu Abramo.

    [11] Roberto Amaral, As eleições de 2006 e as massas: uma emergência frustrada?, cit., p. 9.

    [12] Denilde Holzhacker e Elizabeth Balbachevsky, Classe, ideologia e política: uma interpretação dos resultados das eleições de 2002 e 2006, Opinião Pública, Campinas, Cesop /Unicamp, v. 13, n. 2, 2007, p. 294-296.

    [13] André Singer, Collor na periferia: a volta por cima do populismo?, em Bolívar Lamounier (org.), De Geisel a Collor, o balanço da transição (São Paulo, Sumaré, 1990), p. 138.

    [14] André Singer (org.), Sem medo de ser feliz (São Paulo, Scritta, 1990), p. 98-99.

    [15] Ibidem, p. 98.

    [16] André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro (São Paulo, Edusp, 2000).

    [17] Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 143.

    [18] Idem.

    [19] André Singer, Esquerda e direita no eleitorado brasileiro, cit., p. 182.

    [20] Antonio Manuel Teixeira Mendes e Gustavo Venturi, Eleição presidencial: o Plano Real na sucessão de Itamar Franco, Opinião Pública, Campinas, Cesop /Unicamp, v. 2, n. 2, 1994, p. 43-45.

    [21] Ver Paul Singer, No olho do furacão, Teoria e Debate, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, n. 39, 1998, p. 22: Muitos votaram pela reeleição porque Fernando Henrique Cardoso tinha apoio internacional, do qual Lula carecia.

    [22] Tarso Genro, Um confronto desigual e combinado, Teoria e Debate, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, n. 39, 1998, p. 5.

    [23] Jorge Almeida, Marketing político, hegemonia e contra-hegemonia (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2002), página 219. Note-se o tom enragé da campanha de 1998, abandonado em 2002.

    [24] Wendy Hunter e Timothy Power, Recompensando Lula: poder Executivo, política social e as eleições brasileiras em 2006, em C. R. Melo e M. A. Sáez (orgs.), A democracia brasileira: balanço e perspectivas para o século 21 (Belo Horizonte, Editora UFMG, 2007), p. 334.

    [25] Marcos Coimbra, Quatro razões para a vitória de Lula, Cadernos Fórum Nacional, Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Altos Estudos, n. 6, 2007, p. 7.

    [26] Ibidem, p. 13.

    [27] Ibidem, p. 11.

    [28] Sobre o crescimento do PBF ver Jairo Nicolau e Vitor Peixoto, As bases municipais da votação de Lula em 2006, Cadernos Fórum Nacional, Rio de Janeiro, Instituto Nacional de Altos Estudos, n. 6, 2007, p. 20, e José Prata Araújo, Um retrato do Brasil (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006), p. 155.

    [29] Elaine Cristina Licio, Lucio R. Rennó e Henrique Carlos de O. de Castro, Bolsa Família e voto na eleição presidencial de 2006: em busca do elo perdido, Opinião Pública, Campinas, Cesop/Unicamp, v. 15, n. 1, 2009, p. 43.

    [30] Yan de Souza Carreirão, Evolução das opiniões do eleitorado durante o governo Lula e as eleições presidenciais brasileiras de 2006. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2009.

    [31] Jairo Nicolau e Vitor Peixoto, As bases municipais da votação de Lula em 2006, cit., p. 21.

    [32] Marcos Coimbra, Quatro razões para a vitória de Lula, cit., p. 7.

    [33] Idem.

    [34] Cláudio Djissey Shikida, Leonardo Monteiro Monastério, Ari Francisco de Araújo Junior, André Carraro e Otávio Menezes Damé, "‘It’s the economy, Companheiro!’: uma análise empírica da reeleição de Lula com base em dados municipais", 2007. Disponível em: , 2007. Acesso em: 20 mar. 2017.

    [35] Idem.

    [36] Wendy Hunter e Thimoty J. Power, Recompensando Lula: poder Executivo, política social e as eleições brasileiras em 2006, cit., p. 347. No original, há uma referência truncada na tradução: retail sales over the past three years have climbed most dramatically in the North and Northeast.

    [37] Folha de S.Paulo, 1º mar. 2008, p. B1.

    [38] Em 2011, 18,6 milhões de beneficiários recebiam salário mínimo, quase 10% da população. Folha de S.Paulo, 17 fev. 2011, p. A6.

    [39] Yan de Souza Carreirão, Evolução das opiniões do eleitorado durante o governo Lula e as eleições presidenciais brasileiras de 2006, cit., p. 19.

    [40] Marcelo Neri, Miséria, desigualdade e políticas de renda: o Real do Lula, 2007. Disponível em: . Acesso em: 29 mar. 2017.

    [41] Gustavo Venturi, Esquerda ou direita?, Teoria e Debate, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, n. 75, 2008, p. 39.

    [42] Idem.

    [43] Idem.

    [44] Francisco de Oliveira, Hegemonia às avessas, em F. de Oliveira, R. Braga e C. Rizek (orgs.), Hegemonia às avessas (São Paulo, Boitempo, 2010), p. 26.

    O legado dos governos do PT

    Armando Boito Jr.

    [1]

    A grande burguesia interna brasileira inserida no agronegócio, na construção pesada, na construção civil, na indústria naval, na indústria de transformação, no setor bancário e no setor comercial foi a fração burguesa hegemônica nos governos do PT. Porém, para construir tal hegemonia, essa fração teve de recorrer à formação de uma frente política, que denominamos neodesenvolvimentista, e que contou com a participação das classes trabalhadoras. Essa frente mostra a importância que teve o movimento popular para tirar o capitalismo brasileiro da situação de baixíssimo crescimento dos anos 1990

    A deposição do governo Dilma Rousseff e a ofensiva conservadora capitaneada pelo governo Michel Temer impõem às organizações e aos intelectuais socialistas algumas questões referentes ao período que ora se encerra: como caracterizar os governos Lula da Silva e Dilma Rousseff? Que classes sociais e frações de classe esses governos representavam? Quem ganhou e quem perdeu com tais governos? Como explicar o golpe de Estado que pôs fim a essa série de quatro governos vinculados ao Partido dos Trabalhadores (PT)? Como avaliar as posições adotadas pelas organizações socialistas frente a tais governos? Quais as possibilidades abertas na atual conjuntura? Não temos a ambição de responder a todas essas questões, mas tentaremos apresentar alguns elementos de resposta.

    Os governos do PT e a burguesia interna

    Os governos do PT entre 2003 e 2016 não formam um bloco homogêneo. Há diferenças importantes, de um lado, entre os governos Lula da Silva e os governos Dilma Rousseff e, de outro, entre o primeiro e o segundo mandatos de cada um desses ex-presidentes. Tais diferenças têm a ver, é claro, com a situação econômica e política nacional e internacional. Porém, esse período de treze anos configura sim um tempo particular na história política recente do Brasil. Ele representou, acima de tudo, o intervalo no qual a grande burguesia interna brasileira logrou obter a hegemonia no interior do bloco no poder, deslocando, para um segundo plano, os interesses do grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele associada. Interesses esses, por sua vez, que tinham estado no centro da política de Estado durante os governos de Fernando Henrique Cardoso. O movimento operário e popular teve uma participação política importante na definição dos rumos desse período, mas o poder governamental esteve nas mãos da grande burguesia interna[2].

    Sabemos que essa caracterização é polêmica. Muitos dirigentes e intelectuais do Partido dos Trabalhadores entendem que os governos do PT foram governos populares que sofreram a oposição política das elites[3]. Essa análise padece de alguns defeitos evidentes: é prisioneira da autoimagem do PT, superestima a tímida distribuição de renda propiciada pelos governos do PT como indicador do caráter popular desses governos, subestima os ganhos das grandes empresas nos governos petistas e utiliza de modo vago a noção de elite.

    No termo elite cabe um pouco de tudo: empresários, artistas, banqueiros, pastores, milionários, jornalistas, políticos conservadores, estrelas da indústria cultural etc. A verdade, contudo, é que parte importante da elite, ou melhor, da burguesia, apoiou ativamente os governos do PT. Durante o segundo governo Lula da Silva e o primeiro governo Dilma Rousseff, mormente no biênio 2011-2012, importantes associações do grande empresariado nacional manifestaram, sistematicamente, apoio à política econômica, social e externa desses governos – associações do agronegócio e da indústria, grandes bancos nacionais, grandes empresas do ramo das telecomunicações etc[4]. As associações da grande burguesia interna identificavam nesses governos seus representantes políticos. As críticas que faziam à política econômica eram secundárias ou seguiam a linha do está bom, mas queremos mais. É impreciso e incorreto, portanto, afirmar que as elites eram oposição aos governos do PT.

    Outro tipo de análise corrente sobre os governos petistas consideram-nos governos da burguesia sem outra especificação. Essa tese foi sustentada desde o início do ciclo de governos petistas por algumas organizações e intelectuais vinculados à tradição trotskista[5]. Nesse tipo de análise, o golpe do impeachment era praticamente impensável. Tanto é assim que, até o final de 2015, era corrente ler e ouvir que o movimento pelo impeachment não era para valer, que seria mera chantagem da burguesia sobre o (seu próprio) governo. Ocorreu, contudo, que parte importante da burguesia promoveu e apoiou um golpe de Estado que, ao contrário do que esperavam, era para valer e depôs, de fato, o governo Dilma Rousseff.

    Uma elaboração secundária foi, então, usada como explicação para esse acontecimento surpreendente: numa determinada etapa do processo político nacional, os governos do PT não serviam mais para a burguesia por não lograrem, seja resolver a crise econômica, seja controlar o movimento popular[6]. A crise econômica e a ascensão do movimento reivindicativo tiveram, de fato, forte impacto na crise política.

    Contudo, o dado empírico incômodo para o tipo de análise que agora nos ocupa é que parte da burguesia, a sua fração associada ao capital internacional, sempre se opôs aos governos do PT. Essa oposição não nasceu no momento da crise. Ela esteve a cargo, no plano partidário, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e do Democratas (DEM), que são partidos burgueses e neoliberais, e fez-se fortemente presente, também, na grande imprensa. O defeito principal desse tipo de análise é ignorar que a burguesia não age como bloco homogêneo na política brasileira; ignorar que a burguesia está dividida, ainda que de modo flexível, em frações com interesses específicos e conflitantes.

    É verdade que os interesses e posições da burguesia associada não são vocalizados de maneira tão aberta quanto aqueles da burguesia interna, cujas associações corporativas estampam clara e publicamente suas posições. Contudo, os interesses e posições do capital internacional e da burguesia associada são vocalizados por instituições internacionais – como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) –, pelos governos imperialistas e por blocos regionais como a União Europeia. Dentro do Brasil, existem também associações empresariais atuando em setores estratégicos e importantes da economia nacional, como é o caso do Instituto Brasileiro do Petróleo (IBP), que vocalizam os interesses do capital internacional e da burguesia associada. O IBP representa os interesses das petroleiras e estaleiros navais estrangeiros e ganhou proeminência política no processo de aprovação do novo regime de exploração do petróleo já sob o governo Michel Temer.

    Os governos do PT e o movimento popular

    A grande burguesia interna brasileira – inserida no agronegócio, na construção pesada, na construção civil, na indústria naval, na indústria de transformação, no setor bancário e no setor comercial – foi a fração burguesa hegemônica nos governos do PT. Porém, para construir tal hegemonia, essa fração da grande burguesia teve de recorrer à formação de uma frente política, que denominamos neodesenvolvimentista, e que contou com a participação das classes trabalhadoras – grande parte do operariado, da baixa classe média, do campesinato e dos trabalhadores da massa marginal[7]. Essa frente, que foi obra de engenharia política dos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff, mostra a importância que teve o movimento popular para tirar o capitalismo brasileiro da situação de baixíssimo crescimento dos anos 1990. Aqui nos deparamos com um fenômeno recorrente na história política do Brasil: a debilidade da burguesia brasileira faz com que o desenvolvimento do capitalismo dependa da pressão popular.

    A transformação do PT de um partido operário e popular reformista, com um programa ambicioso de implantação de um estado de bem-estar social no Brasil, como fora o programa da Frente Brasil Popular na eleição presidencial de 1989, num partido político representante da grande burguesia interna e baseado num programa neodesenvolvimentista não era inelutável. Mas, foi o que ocorreu. E tal ocorreu devido à conjuntura da década de 1990 e às opções políticas da direção do PT. A ofensiva neoliberal que acuou o movimento operário e popular naquela década, formando um contraste evidente com correlação de forças vigente na década anterior, o consequente rebaixamento das reivindicações dos trabalhadores que passaram para um plano defensivo, a oportunidade política aberta pelas críticas crescentes de parte do empresariado à política econômica neoliberal ortodoxa dos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC) e a formação política da direção do partido levaram o PT a retomar, em condições históricas novas e, na verdade, desfavoráveis, as propostas desenvolvimentistas, e a se aproximar da burguesia interna. As organizações socialistas e populares viram-se diante de um fato consumado: a virada política do PT. A maioria e as mais representativas dessas organizações decidiram pelo apoio crítico aos governos petistas. Essa decisão permitiu ao movimento operário e popular obter conquistas e acumular forças.

    Nesses governos, em primeiro lugar, os trabalhadores obtiveram conquistas materiais modestas, mas importantes. A política econômica, cujo foco foi os interesses da grande burguesia interna e não os do capital internacional, propiciou um crescimento econômico maior, reduziu drasticamente o desemprego e fortaleceu o setor capitalista de Estado e privado nacional. A política social permitiu uma moderada distribuição da renda, maior acesso das camadas pauperizadas a serviços públicos e equipamentos básicos – iluminação, água, atendimento médico, moradia e outros. Promoveu também medidas de democratização do acesso ao ensino universitário e técnico para a baixa classe média e fortaleceu a agricultura familiar. A política externa dos governos petistas, focada na expansão dos negócios das grandes empresas brasileiras nos mercados dos países do Sul, propiciou, também, uma retaguarda econômica, política e diplomática aos governos de esquerda da América Latina. A política de reconhecimento dos direitos das mulheres, da população negra e indígena e das minorias sexuais, embora tímida, representou um contraste significativo com a situação das décadas anteriores.

    Em segundo lugar, o fato de os governos do PT reconhecerem o direito à reivindicação das classes populares criou condições mais propícias para a sua organização e para a sua luta. O movimento operário e popular acumulou força. Nesse período, o movimento sindical logrou uma forte recuperação.

    A segunda metade da década de 1990 e os primeiros anos da década seguinte formam um período de refluxo e de derrotas para o movimento sindical. No ano de 2003, quando se inicia o ciclo de governos petistas, começou a recuperação.

    Em 2003, ocorreram 312 greves e 18% das convenções coletivas e dos acordos assinados entre trabalhadores e patrões estabeleceram um reajuste maior que a inflação passada. Ou seja, 82% dos trabalhadores permaneceram com salários congelados ou tiveram seus ganhos diminuídos. Após um crescimento contínuo desses dois indicadores, chegou-se no ano de 2013 ao total de 2150 greves, um recorde histórico no Brasil, e ao impressionante escore de 95% das convenções coletivas e dos acordos assinados com reajuste acima da inflação passada[8]. O aumento real de salário tinha se tornado regra.

    Somente a partir de 2015, mas, principalmente, em 2016, com o grande crescimento do desemprego e com o comando do país entregue ao governo Michel Temer é que essa linha ascendente sofre uma brusca inflexão.

    No campo do movimento popular, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que fora sistematicamente perseguido e criminalizado durante o segundo mandato de FHC, conquistou maior liberdade de ação, obteve mais créditos e mercados institucionais para a agricultura familiar, embora não tenha logrado obter um programa de desapropriações de terra. A luta por moradia também se fortaleceu muito – basta lembrarmos o crescimento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) – e, como se sabe, produziu resultados no plano da política habitacional. Nenhum movimento popular, feminista, negro ou de minorias sexuais sofreu retrocesso.

    Em vista disso, parece-nos que as organizações socialistas e populares que dispensaram apoio crítico aos governos petistas, combinando de maneira complexa o apoio a tais governos com a crítica, a cobrança, a pressão e a luta, definiram a tática correta para esse período. As duas outras opções, tanto a de integrar-se aos governos petistas, quanto, no outro extremo, a de defini-los como o inimigo principal, ambas revelaram-se prejudiciais para a luta socialista e popular. No momento crítico do golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff, o campo popular, que soube combinar o apoio com a crítica e a pressão, esteve na linha de frente de resistência aos golpistas. Os governistas demoraram muito para reagir, e quando o

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