A Questão Chinesa
De Yige Dong, Eli Friedman, Richard Smith e
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Sobre este e-book
Talvez a principal fonte de agitação venha dos trabalhadores. A insurgência operária cresceu em escopo e intensidade ao longo dos anos 2000 e 2010, impulsionada pela escassez de mão de obra e um ambiente político relativamente permissivo. Após uma enorme onda de greves na indústria automobilística em 2010, houve até uma discussão pública sobre a garantia do direito de greve para os trabalhadores — direito esse que havia sido retirado da Constituição em 1982, quando o país embarcava nas reformas de mercado. No entanto, quando Xi Jinping assumiu o poder, em 2012, o governo tomou uma direção abertamente antioperária. Até reformas sindicais tímidas foram suspensas, e o pequeno número de ONGs independentes de trabalhadores foram reprimidas, enquanto diversos ativistas tiveram de cumprir anos na prisão.
Em 2018, um movimento de estudantes universitários marxistas, que apoiavam a luta dos trabalhadores na fábrica de máquinas de soldagem Jasic, em Shenzhen, parecia promissor. Mas, apesar da afinidade declarada dos ativistas por Marx e Mao, o Estado, ainda autodeclarado socialista, incomodou-se profundamente com essa aliança politizada de classes, reprimindo-a com dureza, prendendo e fazendo desaparecer muitos ativistas e sujeitando-os a tortura, confissões forçadas e prolongadas detenções extrajudiciais. Embora os movimentos incipientes de uma década atrás tenham se tornado menos assertivos e espetaculares, protestos e greves trabalhistas esparsos e em pequena escala continuam intactos.
É impossível determinar com precisão quantos protestos ocorrem na China a cada ano, já que o governo faz esforços extremos para impedir a circulação de informações relacionadas às agitações. O sociólogo Sun Liping fez uma estimativa, bastante citada, de 180.000 protestos em 2010. Lu Yuyu — um jornalista ativista que contabilizou protestos sociais utilizando fontes digitais — documentou pelo menos 70.000 deles durante um período de três anos, até 2016. Em seguida, ele cumpriu uma sentença de quatro anos de prisão por essa iniciativa. Independente do número específico de protestos, sabemos que o governo está extremamente preocupado com a instabilidade social.
A grande expansão da capacidade policial se dá em conjunto com o desenvolvimento de um aparato de censura e vigilância digital abrangente e bastante eficaz. Em suma, apesar de não haver ameaça imediata de instabilidade, o Estado não está disposto a se arriscar.
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A Questão Chinesa - Yige Dong
A questão chinesa
A questão
chinesa
Eli Friedman
Richard Smith
Irene Maestro Guimarães
Ching Kwan Lee
Jenny Chan
Au Loong Yu
Pun Ngai
Yige Dong
Zhuang Liehong
Sophia Chan
JN Chien
Ellie Tse
Ashley Smith
Leo Vinicius Liberato
Contrabando Editorial, 2023
[CC BY-NC-ND 4.0] Contrabando Editorial
Somente alguns direitos reservados. Esta obra possui a licença
Creative Commons de Atribuição + Uso não comercial + Sem derivações
ISBN: 978-65-997188-5-4
Formato: ePub 3.0
Publicado em 2023 por
Contrabando Editorial
Rua Itapeva, 490, conjunto 38
Bexiga, São Paulo
Contrabando.xyz
@contrabandoEditorial
Capa desenhada por Maíra Martines
Introdução
Eli Friedman
I
1. Por que a China é capitalista
Eli Friedman
2. Por que a China não é capitalista (apesar das Ferraris cor-de-rosa)
Richard Smith
3. Luta de classes na China
Irene Maestro Sarrion dos Santos Guimarães
II
1. Depois do milagre
Ching Kwan Lee
2. A campanha por direitos sindicais na fábrica Jasic
Jenny Chan
3. Conjuntura política e greve operária
Au Loong Yu
4. Debatendo o Movimento Jasic
Pun Ngai
5. Existe um movimento feminista chinês de esquerda?
Yige Dong
6. Colhendo nos campos de bem-estar social
Coletivo Chuang
7. Relembrando o levante de 2011 em Wukan
Zhuang Liehong
8. De Hong Kong, o ditoanti-imperialismo de Pequim é uma farsa
Sophia Chan
9. Contra a nova Guerra Fria
JN Chien e Ellie Tse
10. Por que a esquerda precisa apoiar a luta de Hong Kong por direitos democráticos
Eli Friedman e Ashley Smith
11. De partir a alma
Coletivo Chuang
12. Trabalhadores precarizados em movimento no Brasil e na China
Leo Vinicius Liberato
Tabela de mapas
Coletivos Chineses
Landmarks
Sumário
Capa
Introdução
Eli Friedman¹
Ao longo do último século, a China tem sido um lugar de recorrente insurreição social. Das combativas greves gerais anticoloniais de 1925-1927 à mobilização em massa dos camponeses nos anos 1930 e 1940, incluindo as convulsões da Revolução Cultural e dos movimentos pró-democracia de estudantes e trabalhadores dos anos 1980, o povo chinês engajo-se repetidamente em lutas contra as desigualdades materiais e a opressão política. No entanto, desde a violenta repressão contra o movimento por democracia na Praça da Paz Celestial, em 1989, muitas pessoas na China, assim como internacionalmente, passaram a acreditar que décadas de rápido crescimento econômico sufocaram a resistência social. Isso não poderia estar mais longe da verdade: embora o Partido Comunista tenha sido vitorioso em extinguir uma oposição política sustentável, a resistência dos de baixo às injustiças e as reivindicações por maior igualdade social e econômica continuam sendo uma força poderosa na República Popular da China.
Existem múltiplas linhas de conflito na sociedade chinesa derivadas da hierarquia étnica e da opressão de gênero, enquanto que a transição da China ao capitalismo nos últimos quarenta anos também deu início a novas formas de luta de classes. Mesmo se cada um desses eixos de conflito produza tipos distintos de resistência, desde 1989 eles compartilham algumas características chave. Em primeiro lugar, tais lutas, com apenas algumas exceções, foram apresentadas como apolíticas e sem antagonismo ao Partido Comunista. Em segundo lugar, a resistência permanece bastante fragmentada e descentralizada, o que significa que não há organizações transregionais ou nacionais capazes de sustentar a mobilização dos movimentos sociais. Em terceiro lugar, e relacionado aos pontos anteriores, a mobilização tende a focar em questões materiais imediatas, em vez de articular queixas locais às estruturas nacionais (ou transnacionais) de dominação. É difícil afirmar, com clareza, se essas características dão-se por uma crença sincera de que os governos locais são corruptos e a liderança central, benevolente, ou se a apresentação política dócil é apenas uma tática de sobrevivência. Dito isso, embora os levantes individualmente não se apresentem em termos radicais, a natureza generalizada da resistência social expressa um grande desafio ao governo e às forças empresariais.
É impossível determinar com precisão quantos protestos ocorrem na China a cada ano, já que o governo faz esforços extremos para impedir a circulação de informações relacionadas às agitações. O sociólogo Sun Liping fez uma estimativa bastante citada, de 180.000 protestos em 2010. Lu Yuyu — um jornalista ativista que contabilizou protestos sociais utilizando fontes digitais² — documentou pelo menos 70.000 deles³ durante um período de três anos, até 2016. Em seguida, ele cumpriu uma sentença de quatro anos de prisão por essa iniciativa. Independente do número específico de protestos, sabemos que o governo está extremamente preocupado com a instabilidade social. Ao longo dos anos 2000 e 2010, Beijing estabeleceu comitês weiwen
(de manutenção da estabilidade) em todos os níveis de governo, ao mesmo tempo em que aumentou, de forma drástica, os gastos em segurança doméstica e policiamento. Essa grande expansão da capacidade policial se dá em conjunto com o desenvolvimento de um aparato de censura e vigilância digital abrangente e bastante eficaz. Em suma, apesar de não haver ameaça imediata de instabilidade social, o Estado não está disposto a se arriscar.
Talvez a principal fonte de agitação venha dos trabalhadores. Grandes protestos e levantes seguiram às privatizações e reformas de mercado nas empresas estatais ao final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Na medida em que o setor privado cresceu em importância econômica, a partir de meados dos anos 2000, migrantes rurais que chegavam às cidades para trabalhar em empresas privadas se tornaram os principais atores da insurreição operária. Com apenas uma central sindical controlada pelo PCCh — a Federação dos Sindicatos da China —, que se alinha na maioria das vezes ao capital, os trabalhadores que enfrentavam condições laborais exploratórias recorreram às greves selvagens na defesa de seus interesses. A insurgência dos trabalhadores cresceu em escopo e intensidade ao longo dos anos 2000 e 2010, impulsionada pela escassez de mão de obra e um ambiente político relativamente permissivo. Após uma enorme onda de greves na indústria automobilística em 2010, houve até uma discussão pública sobre a garantia do direito de greve para os trabalhadores — direito esse que havia sido retirado da Constituição em 1982, quando o país embarcava nas reformas de mercado. No entanto, quando Xi Jinping assumiu o poder, em 2012, o governo tomou uma direção abertamente antioperária. Até reformas sindicais tímidas foram suspensas, e o pequeno número de ONGs independentes de trabalhadores foram reprimidas, enquanto diversos ativistas tiveram de cumprir anos na prisão. Em 2018, um movimento de estudantes universitários marxistas, que apoiavam a luta dos trabalhadores na fábrica de máquinas de soldagem Jasic, em Shenzhen, parecia promissor. Mas, apesar da afinidade declarada dos ativistas por Marx e Mao, o Estado, ainda autodeclarado socialista, incomodou-se profundamente com essa aliança politizada de classes, reprimindo-a com dureza, prendendo e fazendo desaparecer muitos ativistas e os sujeitando a tortura, confissões forçadas e prolongadas detenções extrajudiciais. Embora os movimentos incipientes de uma década atrás tenham se tornado menos assertivos e espetaculares, protestos e greves trabalhistas esparsos e em pequena escala continuam intactos.
As lutas por terra também têm sido um grande catalisador de agitação social. Áreas rurais da China, incluindo as periferias das cidades, mantêm propriedades de terra nominalmente coletivas. No entanto, sem qualquer mecanismo de controle democrático, em termos práticos, isso significa que os quadros locais do partido determinam como ocorrem as aquisições de terras, enquanto os camponeses quase nunca têm voz para expressar seus interesses. Em meio à expansão urbana gigantesca e sem precedentes históricos na China, milhões de camponeses foram expropriados de suas terras, em geral recebendo uma pequena fração de seu valor de mercado. Não é de se surpreender que isso, em certas ocasiões, gerou intensa resistência, muitas vezes ganhando contornos violentos. No exemplo mais proeminente da última década, em 2011, a aldeia de Wukan, no sul, se revoltou contra as autoridades locais que vendiam suas terras para incorporadores. Os camponeses insurgentes na prática assumiram o controle físico da aldeia, exigindo a reversão da venda e eleições democráticas para a liderança do vilarejo. Embora o movimento não tenha, em última instância, tido sucesso, ele representou um ponto alto da resistência rural. Esse tipo de conflito prossegue em menor escala, enquanto a transformação capitalista da vida agrária continua acelerada.
O ativismo feminista cresceu em direções promissoras na última década. Uma rede de feministas, em grande parte, embora não de forma exclusiva, vindas de universidades, começou a se mobilizar contra a violência sexual e doméstica em meados da década de 2010. Com frequenência saindo às ruas em protestos de pequena escala, mas bem organizados, sua capacidade de mobilização em diferentes regiões incomodou as autoridades. Em 2015, um grupo que ficou conhecido como as cinco feministas
foi detido pela polícia. Soltas pouco depois, viram sua causa transformar-se em sensação internacional. A mobilização contra a agressão sexual também ganhou peso nos últimos anos. Um dos exemplos mais notáveis é Yue Xin, uma estudante da Universidade de Pequim, que ganhou atenção internacional em 2018 quando ajudou na articulação política contra um caso de violência sexual no campus. Yue Xin também foi a principal coordenadora durante a campanha da Jasic, e expressa uma corrente de feminismo radical que visa incorporar análises da hierarquia de gênero na crítica marxista de classe.
A situação nas periferias imperiais da China, em Xinjiang e no Tibete, é distinta. Respondendo à crescente desigualdade étnica e à repressão cultural, grandes levantes ocorreram no Tibete em 2008 e em Xinjiang em 2009, nos quais centenas de pessoas foram mortas. Na década seguinte, a resistência foi esporádica, marcada por protestos de autoimolação por dezenas de tibetanos, enquanto os uigures de Xinjiang realizaram protestos e, vez por outra, ataques violentos a policiais e civis. Em resposta, o governo tem recorrido a um sistema cada vez mais abrangente de vigilância e controle, cuja manifestação mais extrema são os campos de reeducação
, onde mais de um milhão de uigures e outras minorias muçulmanas têm sido aprisionadas. Ao mesmo tempo, o Estado tem se esforçado em higienizar ou erradicar a língua e a cultura originárias, incentivando a colonização local por membros da maioria han. Contudo, a presença avassaladora das forças de segurança torna a resistência extremamente difícil e arriscada no momento.
Por fim, Hong Kong ocupa uma posição excepcional na política chinesa. Com liberdade de associação, imprensa e expressão, a região administrativa especial
tem sido, há vários anos, o local mais indisciplinado dentro da RPC. O Partido Comunista, desde o retorno de Hong Kong à China em 1997, cultivou laços estreitos com as elites oligárquicas da cidade e buscou uma estratégia de desenvolvimento que excluiu as classes trabalhadoras e médias do país beneficiando os super-ricos. Ao mesmo tempo, o governo sabotou até mesmo os limitados direitos democráticos conquistados pelos habitantes de Hong Kong. A demanda por expansão da democracia eleitoral, conforme prometida na Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1984, foi a peça central do levante de 2014, conhecido como a Revolta do Guarda-Chuva. A insurreição de 2019 foi, no início, desencadeada em resposta a um projeto de lei que permitiria a Hong Kong extraditar pessoas para a China continental, levando muitos ativistas a temerem ser submetidos aos tribunais controlados pelo PCCh. Mas o movimento expandiu-se rapido, incluindo reivindicações relacionadas à expansão da democracia eleitoral e oposição à violência policial. O Estado não estava disposto a ceder em nenhuma dessas reivindicações e se apoiou na repressão brutal para esmagar o levante – que ficou conhecido como terror branco
, entre os ativistas. A Lei de Segurança Nacional, aprovada em Pequim sem qualquer participação da legislatura de Hong Kong, resultou em uma repressão ainda mais severa, agora imposta por um conjunto obscuro de desconhecidas instituições paralelas. Por ora, o levante foi reprimido, mas as demandas básicas pela manutenção das liberdades políticas, e por protestos sem a ameaça de violência policial continuam sem resposta.
Os capítulos abaixo trazem visões elucidativas e radicais sobre esses movimentos. A China de fato é uma sociedade complexa, e conectar-se às suas lutas sociais é bastante difícil para os estrangeiros. No entanto, esse volume destaca a comunhão de lutas em todo o mundo contra a exploração de classes, a hierarquia racial e étnica e a opressão de gênero. Embora esses movimentos tomem formas diferentes na China e nas Américas ou na Europa, eles estão simultaneamente ligados pelo sistema global do capitalismo. Toda a classe trabalhadora e os povos oprimidos podem e devem estar unidos na luta por uma expansão da democracia radical e na oposição à expropriação e exploração capitalistas. Nos capítulos que se seguem, veremos o heroísmo, os sucessos, assim como os fracassos das experiências da China.
1 Professor associado de Estudos Comparativos e Internacionais do Trabalho na Escola de Relações Industriais e Trabalhistas da Universidade de Cornell, Eli Friedman é autor de The Urbanization of People: The Politics of Development, Labor Markets, and Schooling in the Chinese City (2020, Columbia University Press), e coeditor do livro China on Strike: Narratives of Worker’s Resistance (2016, Haymarket).
2 @wickedonna, disponível em: https://newsworthknowingcn.blogspot.com .
3 Why protests are so common in China
, The Economist, 2018.
I
1. Por que a China é capitalista¹
Por um anti-imperialismo antinacionalista
Eli Friedman
A China do século XXI é capitalista. Isso representa uma transformação dramática para um país que havia eliminado a propriedade privada dos meios de produção, ao final dos anos 1950, engajando-se na década seguinte em algumas das experiências políticas mais radicais do século XX. Apesar da profunda reorganização das relações de produção nos últimos quarenta anos, o Partido Comunista Chinês (PCCh) retém seu monopólio do poder e ainda se declara socialista, embora agora com características chinesas
.
Sua estrada comunista rumo ao capitalismo² gerou uma confusão séria para a esquerda (tanto dentro da China, quanto em termos globais) sobre como caracterizar o estado atual das coisas. Esclarecer essa questão é de extrema importância para a prática anticapitalista, e é ainda mais grave pelo crescente poder global da China. Em última instância, isso nos remete a perguntar se acreditamos que o Estado chinês e sua oposição à ordem liderada pelos EUA personificam uma política libertadora. Se, por outro lado, entendermos que a China, em vez de tentar transcender o capitalismo, está comprometida na competição com os EUA pelo controle do sistema, chegamos a uma conclusão política bastante diferente: de que devemos traçar nosso próprio caminho por libertação radical, independente e contrária a todos os poderes de Estado existentes.
O capitalismo é um conceito complexo, e pretendo apenas abordar algumas questões centrais aqui. Fundamentalmente, ele constitui um sistema em que a necessidade humana é secundária à produção de valor. Essa relação é institucionalizada por meio da universalização na dependência do mercado, com as relações humanas mediando-se através de mercadorias. Essa lógica do capital manifesta-se não apenas na exploração econômica do trabalho e nas relações sociais de classe que a acompanham, mas também nos modos de dominação política dentro de espaços, incluindo o Estado e a esfera do trabalho. Apesar de importantes diferenças perante o modelo liberal anglo-americano, veremos que a China tornou-se capitalista em todos os aspectos.
Indicadores do capitalismo chinês são abundantes. As metrópoles do país são adornadas com lojas da Ferrari e da Gucci, logotipos empresariais estrangeiros e nacionais estampam toda a paisagem e moradias de luxo, e arranha-céus brotam por todos os principais núcleos urbanos. A rápida evolução da China, de um dos países mais igualitários do mundo, em termos ecômicos, para um dos mais desiguais,³ indica grandes mudanças estruturais. Também podemos ver a adesão da China à OMC, a insistência contínua,⁴ pelo governo, de que ela é, de fato, uma economia de mercado. Ou Xi Jinping defendendo a globalização em Davos,⁵ e reivindicando que o mercado tenha um papel decisivo
⁶ na alocação de recursos, como sinais da adesão do Estado ao capitalismo. Igualmente, pode-se encontrar expressões culturais generalizadas, que sugerem uma orientação capitalista enraizada, incluindo a valorização do trabalho árduo, consumismo crasso e a adoração à genialidade única de heróis empresariais, de Steve Jobs a Jack Ma.
No entanto, seria um erro confundir esses efeitos do capitalismo com o capitalismo em si. Para entender de forma mais completa como o capital passou a ser o princípio orientador do Estado e da economia na China, será preciso uma investigação mais profunda.
Economia, Trabalho e Reprodução Social
Ao propor uma crítica radical do capital, poderíamos, como sugeriria Marx, partir da mercadoria. Uma mercadoria é algo útil a alguém e que contém um valor de troca. Em um sistema de produção capitalista, o valor de troca domina, o que significa que o lucro, não a utilidade, determina a produção das coisas. Marx começa O Capital com uma análise da forma mercadoria, porque ele acreditava que ela nos permitiria desvendar a totalidade do sistema capitalista.
Se olharmos para a China contemporânea, não há dúvida de que a produção de mercadorias foi universalizada. Isso é visível nas vastas cadeias de abastecimento transnacionais que estão centradas na China, onde a exploração dos trabalhadores chineses em fábricas que produzem de tudo, desde telefones celulares e carros a equipamentos médicos, roupas e móveis, enriqueceu as empresas nacionais, assim como estrangeiras, resultando em um boom de exportações⁷ de proporções sem precedentes. Os gigantes da tecnologia chinesa, como Tencent, Alibaba, Baidu e ByteDance, são distintos das empresas do Vale do Silício em alguns aspectos importantes, mas estão unidos em seus esforços para produzir tecnologia voltada, primeiro, à mercantilização da informação. Da mesma forma, bolhas imobiliárias recorrentes, e construtoras demaseado lucrativas⁸ indicam a produção de habitações em resposta às oportunidades de mercado. Em uma ampla variedade de setores, está claro que a produção é orientada, antes de tudo, para a geração de lucros, e não para responder às necessidades humanas.
Embora uma análise da produção de mercadorias seja esclarecedora, é politicamente mais potente abordar a questão na outra direção: em vez de perguntar o que o capital exige para garantir sua própria expansão contínua, devemos perguntar como os seres humanos sobrevivem. Como, então, o proletariado chinês – um grupo de pessoas cuja única propriedade produtiva é sua própria força de trabalho – garante sua própria reprodução social? A resposta é, como em qualquer outra sociedade capitalista, que os proletários devem descobrir alguma maneira de se vincular ao capital para viver. Necessidades básicas como alimentação, moradia, educação, saúde, transporte e tempo de lazer e socialização não são garantidas como algo assegurado. Na verdade, a vasta maioria das pessoas na China precisa, primeiro, tornar-se útil ao capital para assegurar esses bens.
A sociedade chinesa é, claro, altamente heterogênea, estriada de divisões socioeconômicas e corolários de diversidade nas estratégias de subsistência. A categoria mais relevante, demográfica e em termo políticos, para elucidar o argumento em questão, é a do trabalhador migrante. Composta por quase trezentos milhões de pessoas que vivem fora de seu local oficial de registro doméstico (hukou) 9 , essa gigantesca força de trabalho é a espinha dorsal da transformação industrial da China. Uma vez que um trabalhador migrante deixa o local de registro de seu hukou , ele renuncia a qualquer direito à reprodução subsidiada pelo Estado, tornando -se efetivamente um cidadão de segunda classe em seu próprio país. Talvez seja óbvio que a única razão pela qual centenas de milhões de pessoas façam essa escolha é porque não conseguem sobreviver nas áreas rurais empobrecidas de onde originam e são compelidas pelas forças do mercado a procurar por trabalho nos centros urbanos.
As relações de trabalho capitalistas eram politicamente controversas quando surgiram pela primeira vez na China no final dos anos 1970, já que muitos membros do PCCh ainda apoiavam o sistema maoísta de emprego vitalício, a chamada tigela metálica de arroz
.¹⁰ Esse debate, porém, se encerrou na década de 1990, muito claramente sinalizado pela Lei do Trabalho de 1994, que estabeleceu uma estrutura legal para o trabalho assalariado. Em vez de inaugurar um mercado de trabalho altamente regulamentado nos moldes socialdemocrata (como era o desejo de muitos reformadores), o trabalho foi mercantilizado, mas permaneceu altamente informal¹¹ . Mesmo após a implementação da Lei de Contratos de Trabalho em 2008, voltada especificamente a garantir a prevalência de instrumentos laborais formais, o número de trabalhadores migrantes com contratos caiu ao longo do início dos anos de 2010, atingindo a cobertura, em 2016, de apenas 35,1%¹² .
Os trabalhadores sem contrato não têm proteções legais, o que torna extremamente difícil encaminhar violações aos direitos trabalhistas. Além disso, o seguro social – incluindo seguro saúde, pensões, seguro de acidente de trabalho, desemprego e seguro de nascimento
– depende do empregador. Ser relegado à informalidade laboral produz outras formas de exclusão e dependência do mercado para as pessoas que vivem fora da área de seu registro hukou . Se, por exemplo, um residente de outra localidade deseja matricular seu filho em uma escola pública urbana, o primeiro requisito é apresentar um contrato de trabalho local – essa estipulação por si só elimina a grande maioria dos migrantes da escola pública. Embora os mecanismos de distribuição nominal de bens públicos, como educação, variem amplamente de acordo com a cidade, a lógica geral dá a vantagem aos que o Estado determinou serem úteis à economia local¹³ . Muitas cidades grandes têm planos de pontuação
¹⁴ nos quais migrantes requerentes devem acumular pontos com base em uma série de métricas orientadas ao mercado de trabalho (por exemplo, nível mais alto de educação, certificação de habilidades, prêmios de trabalhador modelo
) para acessar serviços públicos. Todos os outros são deixados aos caprichos do mercado.
A situação do proletariado urbano que trabalha no mesmo local de seu registro hukou é um tanto diferente e certamente melhor do ponto de vista material. Eles têm acesso à escola pública, possivelmente algum subsídio para moradia e são muito mais propensos a ter um contrato de trabalho formal. A assistência social na China não é generosa, a parcela do PIB correspondente aos gastos sociais esta muito abaixo da média da OCDE¹⁵ , mas os residentes urbanos têm maior chance em acessá-los. Profundas desigualdades regionais e de classe, bem como problemas fiscais se disseminam pelo sistema¹⁶ . Como resultado, não há dúvida de que mesmo esses grupos relativamente privilegiados devem se fazer úteis ao capital a fim de garantir assistência médica adequada, moradia digna ou segurança na aposentadoria. O programa de subsistência dibao 17 não é suficiente, nem busca sustentar a reprodução em um nível socialmente aceitável.
Poder Político
Não apenas a economia da China é capitalista, mas o Estado agora governa segundo os interesses gerais do capital. Como em todos os outros países capitalistas, o Estado chinês tem sua própria autonomia relativa e pode-se debater qual dos estados é mais autônomo. Mas é bastante evidente que o Estado chinês engatou na marcha do valor capitalista, o que resultou em uma mudança profunda na gestão pública.
Essa lógica centrada no capital é óbvia na política do chão de fábrica. A China viveu uma explosão de insurgência dos trabalhadores nas últimas três décadas, e o país é o líder global em greves selvagens¹⁸ . Como o Estado responde quando os trabalhadores empregam a consagrada tradição de recusar trabalho para o capital? Embora cada greve tenha, inevitavelmente, seu caráter